Ministro aposentado do STF critica debates no Congresso sobre perdão a envolvidos no 8/1 e PEC da Blindagem
Celso de Mello, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal — Foto: Jorge William / Agência O Globo
O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello afirma que a proposta de anistia aos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro, em tramitação no Congresso, afronta diretamente a Constituição por violar o princípio da separação de Poderes. Para o ex-presidente da Corte, a medida representa "um novo, inaceitável e ultrajante vilipêndio contra o Estado de Direito e a supremacia da ordem constitucional".
Em entrevista ao GLOBO, Celso de Mello defendeu que o Parlamento não pode usar a prerrogativa da anistia em para beneficiar quem atentou contra a democracia. O ex-decano do STF criticou ainda a PEC da Blindagem, em discussão no Congresso, e disse que a Corte não vai ser curvar às pressões de potências estrangeiras, em referência aos posicionamentos recentes do governo dos Estados Unidos no curso do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro na trama golpista.
A proposta de anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro voltou a ganhar força no Congresso em meio ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e os outros sete réus do "núcleo crucial" da trama golpista. Como avalia esse movimento político?
O projeto de lei articulado pela oposição bolsonarista, destinado a conceder anistia aos golpistas que dessacralizaram os símbolos da República e do regime democrático, representa, em sua essência, um novo, inaceitável e ultrajante vilipêndio contra o Estado de Direito e a supremacia da ordem constitucional. Tal pretensão encontra obstáculo na própria Constituição. Conceder anistia a quem perverte a democracia e subverte o Estado de Direito traduz ato que afronta, uma vez mais, a soberana autoridade da Constituição.
Quais são, na sua avaliação, os limites constitucionais que impedem o Congresso de aprovar uma anistia nesse caso?
O Congresso não pode exercer seu poder de legislar em matéria de anistia quando houver hipóteses pré-excluídas pela Constituição, como tortura, racismo, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos. Também não pode fazê-lo em casos de desvio de finalidade, o que ocorre neste projeto, pois sua motivação é atribuir ao Parlamento a condição anômala (e inadmissível) de órgão revisor das decisões do STF. Além disso, qualquer tentativa de anistiar quem atentou contra a democracia caracteriza ofensa ao princípio da separação de Poderes e viola cláusulas pétreas.
Caso esse projeto vingue no Congresso, o senhor acha que o STF deve considerá-lo inconstitucional?
Sim. O Supremo já firmou jurisprudência de que atos concessivos de clemência, como graça, indulto e anistia, são plenamente suscetíveis de controle jurisdicional, e que o Congresso não pode transgredir a separação de Poderes nem beneficiar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito. No caso específico, a proposição legislativa incide em algumas transgressões à Constituição, especialmente porque visa beneficiar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito e porque busca converter o Congresso em anômalo órgão revisional de decisões do Supremo Tribunal Federal.
O STF retoma na terça-feira o julgamento da trama golpista. Como vê a possibilidade de o ministro Luiz Fux abrir divergência e votar por penas menores?
A divergência de posições constitui fato natural no âmbito de órgãos colegiados, como o STF. A própria legislação processual prevê essa possibilidade, ao instituir mecanismos de superação das divergências que se manifestem em julgamentos.
O STF é alvo de ataques de aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro e, recentemente, foi acusado pelo governo dos Estados Unidos de promover uma "caça às bruxas" contra Bolsonaro. O que pode ser feito para responder?
Tenho plena fé na integridade e na independência do Supremo Tribunal Federal, por mais complexos que sejam os desafios a enfrentar. A Corte Suprema do Brasil não serve a governos, a pessoas ou a grupos ideológicos nem se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem. O Supremo Tribunal Federal, expressão legítima da soberania nacional, não é vassalo de potestades (potências) estrangeiras nem instrumento servil de pretensões contestáveis , especialmente quando fundadas em pressões (ou em sutis ameaças) conflitantes com o espírito democrático que rege o Estado de Direito em nosso país.
Como vê outras iniciativas do Congresso, como a PEC da Blindagem?
A PEC da Blindagem busca instituir, em torno dos congressistas, um absurdo círculo de imunidade penal e processual penal, absolutamente incompatível com os fundamentos que informam a ideia republicana e regem o princípio democrático. As prerrogativas parlamentares têm por finalidade protegê-los em face de atos que pratiquem no exercício legítimo da atividade legislativa. O abuso parlamentar, portanto, não está, nem deve estar, sob a proteção que a vigente Constituição já confere, de modo suficiente, aos membros do Poder Legislativo. Os autores de referida PEC excederam-se, claramente, na formulação dessa proposta. A garantia constitucional da imunidade parlamentar deve ser compreendida como instrumento destinado a viabilizar a prática legítima e independente do mandato legislativo. Não se destina, contudo, a ampará-lo em casos que traduzam comportamentos abusivos que resvalem para o campo da criminalidade comum.
Mariana Muniz, repórter, de Brasília - DF para o Globo - RJ. Publicada originalmente em 08.09.25
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