Dá para explicar a bandeira dos EUA usada como símbolo no 7 de Setembro?
Bolsonaristas abrem bandeira dos Estados Unidos em ato na av. Paulista - Eduardo Knapp - 7.set.25/Folhapress
Pensar a conjuntura político-social de uma época e de um território faz parte do DNA da psicanálise. Faz parte da sua busca por entender as condições nas quais se dá o sofrimento psíquico pessoal e coletivo.
Para quem critica os psicanalistas por entrarem nessa seara, só posso perguntar a que psicanálise se referem quando o fazem. Freud nunca deixou de denunciar o autoritarismo e as posturas alienadas que lhe servem de sustentação. As obras dele que provam isso estão ao alcance de um clique: "O Mal-estar na Cultura", "Psicologia das Massas e Análise do Eu", só para começo de conversa.
Colocar o Brasil no divã não é novidade, tem sido uma prática de psicanalistas como Lélia Gonzalez, Helio Pellegrino, Maria Rita Kehl, Contardo Calligaris...
Mas como qualquer paciente, "o gigante" resiste a se encarar no espelho. O sintoma e o sofrimento é que nos obrigam a parar e pensar quem somos. Como a bandeira dos EUA foi usada de símbolo do 7 de Setembro?
Em uma análise, é necessário prestar atenção ao que se repete ao longo da trajetória pessoal. As parcerias amorosas mudam, mas são sempre violentas? Os abandonos se sucedem? Troca-se de emprego, mas a queixa continua igual? Enfim, a maneira como enfrentamos os perrengues da vida nos mostra uma forma própria de existir, que se repete e, muitas vezes, difere das histórias que contamos de nós mesmos.
O Brasil tem uma herança de violência que decorre de sua fundação. A instalação de Daniel Jablonski na Galeria Janaína Torres ilustra bem a relação sinistra que os invasores já tinham com a terra quando aqui chegaram. Mera paisagem a ser usurpada, a relação com o vivente sempre esteve submetida ao capital. A exploração ininterrupta do território justificou a escravização de indígenas locais e de negros sequestrados.
Nossa independência decorreu mais das disputas entre quem deveria ficar com os frutos dessa exploração —as elites de cá ou as elites de lá— do que do reconhecimento de uma identidade nacional.
Desde então, nos vemos divididos entre assumir a construção de um país ou sonhar com a miragem de uma ascendência europeia, fruto da identificação com o agressor. A vira-latice brasileira, no entanto, deveria ser nosso ponto mais forte.
Embora decorra de uma história de miscigenação forçada, é ela que nos impede de ostentar um mito de origem baseado num ideal de superioridade e pureza, que sabemos ser uma das causas do terror que assola o mundo. Não se trata de harmonia entre três raças, mas da assunção de suas diferenças.
Nossa fratura constitutiva, quando reconhecida como tal, pode levar a uma ideia de soberania que valha a pena. Não apenas no sentido jurídico, político ou econômico, mas naquilo que ela traz de reconhecimento simbólico, de uma identidade nacional. Longe da patriotada na qual se pensam as relações exteriores como um "nós contra a rapa", mas da assunção de que estamos todos desamparados diante de um mundo que se desorganiza de forma acelerada.
O julgamento inédito de militares e políticos que atentaram —e ainda atentam— contra nosso direito democrático é o ponto fora da curva da repetição do que nos fundou.
Mais do que responsabilizar quem merece, trata-se de um ato inédito na direção da cura. Não precisa ser psicanalista para antecipar que o desfecho inverso só leva ao pior.
Vera Iaconelli, a autora deste artigo, é Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise. Também autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP. Pubicado originalmente na Folha de S. Paulo, e 08.09.25
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