sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa é retrocesso

Lula deve vetar mudança que dilui poder da legislação criada para coibir a influência de criminosos na política

Congresso Nacional, em Brasília — Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo

Com todas as atenções voltadas para o julgamento da tentativa de golpe de Estado no Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso aproveitou para enfraquecer a Lei da Ficha Limpa, em benefício de políticos condenados pela Justiça. Por 50 votos a 24, o Senado referendou o texto, já aprovado pela Câmara, reduzindo a eficácia da lei. Pela nova regra, os oito anos de inelegibilidade impostos a políticos ficha-suja passam a ser contados a partir de sua condenação por tribunal ou órgão colegiado — e não mais do final do cumprimento da pena.

Também foi estabelecido o limite de 12 anos para o tempo que o político ficha-suja ficará proibido de disputar cargos eletivos. O novo texto ainda determina que, para a punição valer em casos de atos de improbidade, será preciso comprovar o dolo. E amplia de quatro para seis meses o período de desincompatibilização de candidatos oriundos de Ministério Público, Defensoria Pública, Forças Armadas e polícia. Todas essas medidas são nocivas. É sintomático que o projeto tenha tramitado em regime de urgência, sem passar por comissões nem ser discutido em audiências públicas.

De acordo com os defensores das mudanças, a intenção é limitar ao máximo de oito anos o afastamento de políticos das urnas. “Está no texto da lei: oito anos. Não pode ser nove, nem 20”, disse o presidente do senado, Davi Alcolumbre (União-AP), ao votar a favor. Na prática, o Legislativo restringiu ao mínimo o poder de dissuasão da lei sobre políticos condenados pela maioria dos crimes comuns.

Tome-se o caso do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, cassado em 2016 por quebra de decoro, pois mentiu à CPI da Petrobras em 2015, ao garantir que não tinha contas bancárias secretas na Suíça. Sua inelegibilidade, pelas regras anteriores, se estenderia até os anos 2040. Com o enfraquecimento da lei, ele tem chance de se candidatar já nas eleições do ano que vem (o projeto aprovado pelo Senado foi apresentado à Câmara pela deputada fluminense Dani Cunha, do União, filha de Eduardo Cunha). Entre dezenas de outros beneficiados, estão também os ex-governadores Anthony Garotinho (RJ) e José Roberto Arruda (DF).

A Lei da Ficha Limpa resultou de uma proposta de iniciativa popular que coletou mais de 1,6 milhão de assinaturas. Sempre esteve na mira dos políticos. Sua constitucionalidade foi garantida pelo STF em 2012 e, cinco anos depois, a Corte decidiu que os oito anos de inelegibilidade seriam contados a partir do final do cumprimento da pena recebida na sentença que enquadra o político na Lei da Ficha Limpa. Foi uma decisão correta, pois não faz sentido que a segunda punição, de caráter eleitoral, seja absorvida pela sentença que serviu de base ao enquadramento do condenado.

É certo que a mudança aprovada pelo Congresso não se aplica a condenados por crimes hediondos ou graves, como lavagem de dinheiro ou tráfico de drogas. Mas isso não atenua o erro do Parlamento. É fundamental que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vete as mudanças na íntegra. É o mínimo que a população exige para que a política não se transforme em porto seguro para criminosos condenados.

Editorial d'O Globo, em 05.09.25

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