sexta-feira, 24 de março de 2023

Lula alimenta onda de desinformação ao acusar Moro de ‘armação’ em operação contra o PCC

Investigação da PF aponta que organização criminosa pretendia agir contra o senador, algoz do presidente na Lava Jato

Acusação sem provas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva alimentou campanha de desinformação sobre operação da PF que desmantelou planos de assassinato do senador Sérgio Moro. Foto: Adriano Machado/Reuters

Sem qualquer evidência de que possa ser verdadeira, a tese de que o senador Sérgio Moro (União-PR) poderia estar por trás da deflagração de uma operação da Polícia Federal que investiga planos do Primeiro Comando da Capital (PCC) para matar autoridades, incluindo ele próprio, ganhou impulso nas redes sociais. O principal responsável por alimentar as teorias conspiratórias é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que apontou uma suposta “armação de Moro” no episódio.

Desde que a PF cumpriu mandados de prisão e busca e a investigação se tornou pública, blogueiros e sites de esquerda postam conteúdos em série colocando em dúvida as informações da PF, levntantando suspeitas sobre o momento em que a operação foi deflagrada e politizando a divulgação do caso.

No centro das especulações está a juíza Gabriela Hardt, que condenou Lula no caso do sítio de Atibaia ao substituir Moro como titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, onde tramitaram denúncias da Lava Jato. Foi ela também quem autorizou a operação da PF contra o PCC na terça-feira, 21 de março — o suficiente para gerar controvérsia e rumores na internet, principalmente entre influenciadores ligados ao PT.

“Foi a Gabriela Hardt, juíza amiga de Moro, quem ordenou a operação da PF e disse que Sergio Moro era alvo do PCC”, escreveu Thiago dos Reis, em post no Twitter com mais de 240 mil visualizações. “A mentira foi engolida por toda a imprensa sem questionamento”, acrescentou. Dono de um canal no YouTube com 1,2 milhão de inscritos, ele já recebeu elogios públicos da cúpula do partido de Lula, como a presidente nacional do PT, deputada Gleisi Hoffmann.

A alegação feita pelo youtuber é falsa. A informação de que Sérgio Moro era um dos alvos do PCC foi relatada por um ex-integrante da organização criminosa, que foi jurado de morte e agora integra o programa de proteção a testemunhas. O depoimento foi colhido pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público de São Paulo e remetido para a PF em 3 de fevereiro deste ano. Com base nessas informações, a Polícia Federal pediu a quebra de sigilo de telefones e e-mails de suspeitos. O inquérito reuniu provas da ameaça, como mensagens contendo dados pessoais do ex-juiz da Lava Jato e dados indicando que comparsas vigiaram endereços de sua família e mantinham esconderijo em São Paulo e no Paraná.

Os suspeitos também procuraram saber o local de votação de Moro nas eleições de 2022. A mensagem continha informações sobre a presença de câmeras de segurança no entorno e possíveis rotas de fuga, por exemplo. Para a PF, o grupo cogitou fazer um ataque contra o político naquela época. As autoridades acreditam que o objetivo poderia ser tanto um sequestro, para exigir a libertação de Marcola, líder do PCC, ou homicídio (veja detalhes do plano nesta reportagem do Estadão).

No dia 13 de março, a PF solicitou autorização judicial para deflagrar a Operação Sequaz, com pedidos de busca e apreensão e de prisões preventivas. O pedido foi feito para a 9ª Vara Federal de Curitiba, cuja titularidade estava com Sandra Regina Soares.

A juíza Gabriela Hardt, da 13ª Vara, substituiu a magistrada quando esta entrou em férias, em 21 de março. Segundo apuração da agência Aos Fatos, a troca havia sido combinada em janeiro. No mesmo dia, Hardt autorizou a medida, que foi executada pela PF no dia seguinte.

Desconfiança

O presidente Lula alimentou a desconfiança nas redes sociais ao dizer, sem provas, que o caso parecia uma “armação do Moro”. A declaração foi dada durante visita ao Complexo Naval de Itaguaí, no Rio de Janeiro, na manhã desta quinta-feira, 23. O assunto rapidamente chegou aos trending topics do Twitter, que lista os assuntos mais comentados na plataforma.

“É visível que é uma armação do Moro”, disse Lula, ao mesmo tempo em que sugeria cautela e admitia não ter provas disso. “Eu vou pesquisar, eu vou saber da sentença. Até porque a juíza nem estava em atividade quando deu o parecer para ele, mas isso a gente vai esperar. Não vou ficar atacando ninguém sem ter provas”, completou o presidente.


O ex-juiz Sérgio Moro, atualmente senador da República, era alvo do PCC, segundo investigações da PF.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Um dia antes da operação da PF, Lula havia dito em uma entrevista para a TV 247 que, quando estava preso em Curitiba, pensava em vingança: “Só vou ficar bem quando foder com Moro”. A declaração passou a ser vinculada por opositores nas redes sociais ao plano do PCC desmantelado no dia seguinte. Pelo Twitter, Bolsonaro culpou a esquerda dizendo que “tudo não pode ser coincidência”.

O Estadão encontrou diversas postagens no Twitter, no Facebook e no Instagram repercutindo a fala de Lula e questionando o fato de a operação ter sido autorizada pela juíza Gabriela Hardt.

“Esse caso pode ter safadeza desses dois mais uma vez. Lula já sabe que foi armação do Moro!”, diz um post exibido mais de 18 mil vezes no Twitter. “A tranquilidade com que Lula falou sobre a possibilidade dele ter armado a história de que foi alvo do PCC faz supor que Lula tenha informação que ainda não pode tornar pública”, sugere outra publicação, com 6 mil visualizações.

Uma postagem no Twitter alega que as provas exibidas no relatório da PF podem ter sido forjadas. “A prova do plano do PCC se baseia em relato de testemunha protegida e anotações num caderno espiral com post-it colorido! Deixe sua risada”, escreveu uma usuária em post visualizado mais de 53 mil vezes no Twitter.

Alguns dizem ainda que a história está “mais para o PCC do Gugu, e não o do Marcola”, remetendo a uma falsa entrevista com dois criminosos exibida pelo programa Domingo Legal, em 2003. A publicação teve 23 mil visualizações na mesma plataforma.

A acusação de “armação” contradiz o discurso oficial adotado pelo próprio governo. Antes do episódio, o ministro da Justiça, Flávio Dino, havia feito elogios à PF pela “investigação séria” que teve como objetivo a “defesa da vida e da integridade de um senador de oposição ao nosso governo”. O canal de Lula no Telegram postou uma imagem com os dizeres “PF de Lula salva a vida de Moro”.

Atenção! Tudo que envolve o ex juiz corrupto Moro e essa juíza Gabriela Hardt, aquela da sentença cópia e cola, tem ilegalidades e esquemas, isso já foi comprovado na prática, portanto, esse caso pode ter safadeza desses dois mais uma vez. Lula já sabe que foi armação do Moro!
Imagem
1 mil
Responder
Compartilhar

Postagem sobre Sergio Moro no Canal do Lula no Telegram Foto: Reprodução

A repercussão do caso se deve também a críticos do PT, como parlamentares lavajatistas e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. “Senhor presidente Lula, o senhor que dá risada da ameaça a um senador e a sua família pelo crime organizado, eu lhe pergunto, o senhor não tem decência?”, escreveu Sergio Moro no Twitter. O deputado federal e ex-procurador Deltan Dallagnol (Podemos-PR) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) também geraram engajamento em posts criticando Lula e o PT.

Contraponto

O Estadão perguntou para a Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República se as declarações do presidente Lula podem ter amplificado o cenário de desinformação na internet. Não houve resposta. O youtuber Thiago dos Reis também foi procurado por mensagens diretas nas redes sociais e não respondeu às tentativas de contato.

Samuel Lima, de Brasilia-DF para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 24.03.23

O rancor de Lula desrespeita o País

Ao atribuir o plano do PCC de matar autoridades a uma ‘armação de Moro’, o presidente desmoraliza seu próprio ministro da Justiça e alimenta o ódio que tão mal tem feito ao Brasil

O presidente Lula da Silva, aquele que se elegeu pregando o diálogo e que se acha capaz de dobrar até a Rússia de Putin só no papo, está se deixando levar pelo rancor, que não costuma ser bom conselheiro. No momento em que os brasileiros tomaram conhecimento, chocados, de um plano do PCC para assassinar autoridades País afora, o presidente, em vez de elogiar o aparato de segurança federal que foi capaz de frustrar os intentos criminosos daquela organização, preferiu pôr em dúvida a própria existência do plano. O que motivou Lula da Silva a desmoralizar a Polícia Federal (PF) e o Ministério da Justiça de seu próprio governo foi a revelação de que um dos alvos do PCC era o senador Sérgio Moro, que foi seu algoz na Operação Lava Jato.

Depois de dizer que pretende ser “cauteloso” e “descobrir o que aconteceu”, declarou, sem deixar dúvidas, que, para ele, “é visível que é uma armação do Moro”. Se Lula é “cauteloso” assim, Deus livre o País quando ele não for.

Até aquele momento, a operação contra o PCC era motivo de orgulho no governo, por razões óbvias: além da vitória contra um dos mais insidiosos grupos criminosos do mundo, fruto de cuidadoso trabalho de inteligência, a ação impediu um atentado contra um dos principais opositores do governo, o senador Moro, mostrando que a máquina do Estado, neste caso, funcionou de maneira apartidária. Não demorou para que o ministro da Justiça, Flávio Dino, celebrasse essa conquista como um contraste evidente em relação ao governo anterior, de Jair Bolsonaro, que tudo fez para transformar a PF em polícia a seu serviço e contra desafetos. Lula poderia ter seguido o exemplo de Dino, mas escolheu a leviandade, mostrando que teorias da conspiração estapafúrdias não são monopólio do extremismo bolsonarista.

Lula da Silva deve ter lá suas razões para não gostar de Sérgio Moro. Afinal, passou mais de 500 dias na cadeia depois de condenado pelo então magistrado. Não se espera, portanto, que o petista perdoe Moro, mas um estadista, como o que Lula da Silva pretende ser, é justamente aquele que é capaz de deixar de lado suas eventuais mágoas pessoais em nome dos interesses nacionais. E é também aquele capaz de demonstrar empatia com a aflição alheia, mesmo que seja a de seu maior adversário. Se Moro e sua família estavam sob ameaça, como mostraram as investigações, então o presidente da República tinha o dever de respeitá-los. Sendo incapaz de dirigir uma palavra de solidariedade a Moro, que então se calasse.

No afã de atacar Moro, Lula acabou desprestigiando seu ministro da Justiça, Flávio Dino, que passou os últimos dois dias dando inúmeros detalhes sobre a operação contra o PCC e festejando o fato de que a investigação “é tão séria que foi feita em defesa da vida e da integridade de um senador de oposição ao nosso governo”. Ora, se o presidente da República desconfia que tudo isso não passa de “armação de Moro”, das duas, uma: ou Flávio Dino pede demissão por ter sido feito de bobo pelo senador ou é demitido por Lula, pois o presidente acha que ele foi feito de bobo.

Tudo considerado, o discurso de Lula da Silva é um acinte. Lança aleivosias como se estivesse no botequim, como se não fosse o chefe de Estado, a quem cabe a responsabilidade de liderar a ofensiva contra o crime organizado. Em lugar de assumir a condição de presidente da República e, assim, dar apoio a um senador ameaçado por perigosíssimos delinquentes, Lula se comportou de modo irresponsável e primário. Não foi Moro, apenas, o desrespeitado pelo presidente: foi a República. Porque não é republicano deixar que malquerenças pessoais contaminem o discurso e a prática presidenciais.

É, ademais, o tipo da reação que alimenta o ódio que tanto mobiliza os radicais no País há tempo demais. Lula precisa sair da cadeia de uma vez por todas, parar de ruminar vingança contra seus carrascos reais e imaginários e assumir, com espírito conciliador, a Presidência da República, para a qual foi eleito com a promessa de pacificar o Brasil.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.03.23

Relógio recebido ilegalmente por Bolsonaro custa cerca de R$ 800 mil e só tem 25 unidades no mundo

Valor de relógio que estava guardado entre pertences pessoais de Bolsonaro daria para comprar um carros de luxo como um Lamborghini, uma Ferrari ou um Porsche

Relógio L.U.C. Tourbillon Qualité Fleurier Fairmined, da marca Chopard, recebido ilegalmente por Bolsonaro Foto: divulgação

O relógio da marca Chopard que faz parte do conjunto de joias recebidas ilegalmente pelo ex-presidente Jair Bolsonaro custa nada menos que R$ 800 mil. O modelo, conhecido como L.U.C. Tourbillon Qualité Fleurier Fairmined, teve apenas 25 unidades produzidas pela companhia suíça.

Com sua caixa de ouro maciço e fundo em safira, o relógio custa o equivalente a carros de luxo como uma Lamborghini, uma Ferrari ou um Porsche. O item é equipado com uma pulseira de crocodilo costurada à mão e o fecho e fivela também em ouro.

O relógio faz parte do segundo pacote que o regime da Arábia Saudita enviou para Bolsonaro e que inclui, ainda, uma caneta, anel, abotoaduras e um rosário em ouro. Pelo conjunto dos itens, a estimativa é de que o kit se aproxime facilmente de R$ 1 milhão.

Inicialmente, a reportagem chegou a estimar que o conjunto poderia custar pelo menos R$ 400 mil, a partir de imagens de itens similares vendidos pela Chopard. Com a informação de detalhes do modelo do relógio divulgada hoje, porém, foi possível averiguar o preço, ao menos do relógio, com mais exatidão.

A existência deste segundo pacote foi revelada pelo Estadão, em entrevista realizada com o ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque. À reportagem, Albuquerque disse, em 3 de março, que abriu o segundo pacote quando chegou em Brasília, depois de ter o primeiro conjunto de diamantes – este estimado em cerca de R$ 16,5 milhões – retido pelos auditores da Receita Federal, no aeroporto de Guarulhos.

“Esses pacotes foram distribuídos nas malas. Uma ficou com o [assessor e membro da comitiva] Marco Soeiro, a outra eu não sei com qual membro da comitiva”, disse Albuquerque, afirmando que não tinha conhecimento do conteúdo das caixas. “Quando nós chegamos em Brasília, nós abrimos o outro pacote, que tinha relógio... era uma caixa de relógio... não sei se... tinham mais algumas coisas, e era um presente”, comentou.

O advogado Paulo Amador da Cunha Bueno entregou nesta sexta-feira, 24, o segundo conjunto de joias que foi recebido ilegalmente pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Bueno levou o conjunto para uma agência da Caixa, localizado na Asa Sul, região central de Brasília, seguindo determinação do Tribunal de Contas da União (TCU). A caixa de joias entrou no País com a comitiva do governo Bolsonaro em outubro de 2021, sem ser declarada à Receita Federal.

O presidente Jair Bolsonaro recebeu pessoalmente o segundo pacote de joias da Arábia Saudita que chegou ao Brasil pelas mãos da comitiva do então ministro de Minas e Energia (MME), Bento Albuquerque.

Como revelou o Estadão, Bolsonaro agiu de diversas maneiras para reaver as joias apreendidas na Receita Federal, acionando desde seu gabinete pessoal, até o chefe da Receita Federal e um voo da Força Aérea Brasileira. Sobre os itens que agora foram apreendidos, primeiro negou ter conhecimento. Depois, disse que recebeu e que os entregaria.

Publicado originalmente pelo O Estado de S. Paulo, em 24.03.23

quinta-feira, 23 de março de 2023

Dilma será eleita presidente do banco dos Brics nesta sexta e vai ganhar US$ 400 mil por ano

Ex-presidente é candidata única, escolhida por Lula, e ficará no cargo, em Xangai, até o fim do mandato brasileiro, em julho de 2025; posse ocorrerá durante viagem do presidente

Putin cumprimenta Dilma durante a cerimônia de abertura da reunião do Brics, na Rússia Foto: Sergei Karpukhin/ Reuters

Sete anos depois de ter sido afastada da Presidência em decorrência de crimes de responsabilidade, Dilma Rousseff voltará a ocupar um cargo público. Dilma será eleita nesta sexta-feira, 24, para comandar o Novo Banco do Desenvolvimento (NDB), instituição financeira criada em 2014 pelos Brics – o bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Em seguida, Dilma tomará posse no cargo no dia 29, durante a viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China.

O conselho de governadores do banco, formado pelos ministros da Fazenda dos países fundadores do NDB, mais os representantes dos quatro novos integrantes (Bangladesh, Emirados Árabes Unidos, Egito e Uruguai), se reúne por videoconferência e vota a indicação de Dilma em reunião interna. Dilma foi sabatinada pelas autoridades estrangeiras ao longo deste mês, depois que o NDB comunicou o início da troca de comando.

A ex-presidente – que teve o impeachment aprovado pela Câmara e pelo Senado em um processo legal tendo como justificativa crime de responsabilidade pela prática das chamadas “pedaladas fiscais” (atrasos de pagamentos a bancos públicos) e pela edição de decretos de abertura de crédito sem a autorização do Congresso – é candidata única, escolhida por Lula, e ficará no cargo para completar o mandato brasileiro, até julho de 2025. Os presidentes da instituição costumam ser eleitos por unanimidade.

Dilma deve ganhar cerca de US$ 500 mil por ano à frente da instituição, equivalente ao valor pago pelo Banco Mundial. Procurado, o NDB não se manifestou. O banco ainda oferece benefícios como assistência médica, auxílio viagem para o país de origem, subsídios para mudança em caso de contratação e desligamento, transporte aéreo.

O banco dos Brics foi criado após reunião de cúpula dos chefes de Estado, realizada em Fortaleza, em 2014, durante o mandato de Dilma como presidente. Uma das intenções era ampliar fontes de empréstimos e fazer um contraponto ao sistema financeiro e instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Atualmente, a carteira de investimentos é da ordem de US$ 33 bilhões.

A sede do banco fica num prédio em Xangai, onde Dilma passará a morar e a despachar no novo e moderno edifício construído para abrigar o NDB, inaugurado em 2021. A cidade é um centro financeiro global. Ela trabalhará num gabinete com vista para a metrópole, maior cidade chinesa, e receberá remuneração no mesmo patamar de outros bancos multilaterais, conforme executivos da instituição.

Retorno

A visita de Lula a Xangai tem como principal objetivo participar da posse de Dilma no banco dos Brics. A eleição marca o retorno de Dilma a um cargo público, após ter sido destituída pelo Congresso Nacional. Dilma não voltou a ocupar cargos políticos e passou apenas a participar de palestras, debates e discussões acadêmicas e partidárias.

A ex-presidente foi cassada num contexto político de perda de governabilidade, durante as investigações da Operação Lava Jato, acusada formalmente ter cometido “pedaladas fiscais”, uma manobra para maquiar as contas públicas, reveladas pelo Estadão.

Dilma substituirá o diplomata e economista Marcos Troyjo, ex-integrante da equipe do ex-ministro da Economia Paulo Guedes. Ele foi o primeiro brasileiro a comandar o NDB, tendo recebido a presidência de um indiano. O mandato é rotativo.

A saída de Troyjo ocorreu de comum acordo com o governo Lula. Nos bastidores, a justificativa foi uma divergência de visões sobre os objetivos do Brics e de posição política.

Durante mandato de Troyjo, o banco ampliou os financiamentos para o Brasil, que estava entre os menos contemplados nos primeiros anos de funcionamento, inaugurou escritórios em São Paulo e na Índia e deu início ao processo de expansão, com entrada de quatro países como sócios. Mais quatro negociam adesão. Os cinco fundadores completaram o pagamento das cotas do capital inicial de US$ 10 bilhões.

Os financiamentos focam em projetos de infraestrutura e sustentabilidade. O Brasil ficou com US$ 621 milhões de 2015, quando começou a operar, até 2019. Desde então, a participação nos empréstimos saltou para US$ 5,4 bilhões.

Felipe Frazão para O Estado de S. Paulo, em 23.03.23

Degradação do poder político e estagnação do crescimento ajudam a entender hesitação de Lula

O Lula 3 televisivo exibe mais exasperação do que otimismo e confiança; o profeta está tendo dificuldades para mudar a realidade

Eu estou certo e o mundo está errado costuma ser uma postura típica de profetas. Às vezes precisam de séculos para terem razão.

Lula não é profeta, nem visionário, nem tem todo esse tempo. Mas, na vital esfera da política econômica, está se comportando como se fosse dono de uma verdade que só mal-intencionados se recusam a aceitar.

(Planalto teme repercussão de fala de Lula sobre Moro após operação e Secom aponta ligação ‘perversa’)

O presidente enxerga o crescimento da economia como função quase exclusiva do crescimento do consumo das famílias. Por sua vez, dependente de transferência de renda via políticas públicas e da expansão de gastos sociais.

Os obstáculos, tais como equilíbrio fiscal, são vistos como artifícios criados por ricos que só prosperam vivendo da renda de juros altos. E por reacionários que combatem por motivos ideológicos um governo que se diz comprometido com os pobres.

O Lula dos 77 anos exibe traços de regressão a um passado no qual as coisas pareciam mais simples. Enxerga a Lava Jato como operação do serviço secreto americano destinada sobretudo a destruir a capacidade de competição internacional de grandes empreiteiras brasileiras.

Considera que a reindustrialização é função quase exclusiva de um Estado que protege, incentiva (com renúncias fiscais) e investe via bancos públicos. A falência de recentes experimentos nas linhas dessa fórmula foi apenas resultado de sabotagem política e do golpe de 2016.

O Lula 3 exibe também um notável traço de autocentrismo, em oposição ao Lula 1 e 2, quando estava cercado de operadores políticos capazes de peitá-lo. E cujo julgamento o então presidente respeitava (como Dirceu, Palocci ou Thomaz Bastos). O Estado-Maior petista de hoje é segunda linha comparado ao de 20 anos atrás.

(A picanha não veio; como fica agora a grande ideia estratégica de Lula para governar o Brasil?

BC mantém juro a 13,75% pela 5ª vez consecutiva, mesmo sob pressão do governo Lula)

O problema para a visão de mundo propagada pelo presidente é que nela não parece haver lugar para dois fatores de altíssima complexidade: a deterioração dos poderes do chefe do Executivo frente ao Legislativo e a polarização política calcificada que reforça ampla oposição social (que tirou do lulismo a antiga capacidade de conciliação).

Árbitro supremo de todas as questões, Lula 3 tem hesitado em tomar decisões, como aconteceu com o arcabouço fiscal – e, por isso, é criticado abertamente por operadores políticos como Arthur Lira. Os fatos difíceis da realidade (degradação do poder político e estagnação do crescimento econômico) ajudam a entender essa hesitação, ao mesmo tempo que parecem aprofundar em Lula uma clara frustração.

O Lula 3 televisivo exibe mais exasperação do que otimismo e confiança. O profeta está tendo dificuldades para mudar a realidade.

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.03.23

A pergunta que começa a rondar Brasília: o que está acontecendo com Lula?

Ao vento, do nada, presidente faz duas acusações graves, sem provas, na mesma semana: a primeira atinge os EUA e a segunda, senador Sérgio Moro; estilhaços vão longe

O presidente Lula visita o Complexo Naval de Itaguaí, no Rio, nesta quinta-feira, 23; petista disse que plano do PCC para matar Moro é ‘armação’ do senador Foto: PEDRO KIRILOS / ESTADÃO

Na mesma semana, o presidente Lula surpreendeu os meios políticos, jurídicos e diplomáticos ao fazer ao menos duas acusações graves, sem provas, imprudentemente. A primeira atingiu os Estados Unidos, um parceiro fundamental. A segunda foi contra o ex-juiz, ex-ministro e agora senador Sérgio Moro, mas os estilhaços vão longe.

Ao vento, do nada, Lula acusou o Departamento de Justiça dos EUA de um conluio com a Lava Jato para prejudicar as empreiteiras brasileiras em licitações internacionais. Uma história rocambolesca, sem pé nem cabeça, dessas que qualquer um pode lançar numa mesa de bar, numa roda de amigos, mas o presidente da República?

‘Se acontecer algo, a responsabilidade é de Lula’, rebate Sérgio Moro

A reação oscilou entre o choque e o constrangimento, com uma pergunta pairando nos ares de Brasília: O que está acontecendo com o Lula? A declaração, além de fora de lugar, foi feita às vésperas da viagem à China, que vive momentos tensos com os EUA.

Não convém ao Brasil tomar partido ou pender para um lado. EUA e China são as duas maiores potências do mundo e essenciais para o Brasil. Além disso, o governo Joe Biden fez uma defesa enfática das eleições e das urnas eletrônicas e cumpriu a promessa de reconhecer rapidamente a vitória do vencedor – torcendo, por baixo dos panos, mas nem tanto, para Lula. Logo, é um aliado. Precisa ser tratado como aliado.

Não satisfeito, o presidente se saiu com a história de que a articulação do PCC para matar Moro, sua família, o vice Geraldo Alckmin e o promotor Lincoln Gakiya, foi “armação do Moro”! É irresponsável, ridiculariza a Polícia Federal, que detectou e agiu tempestivamente contra a audácia do crime organizado, e tem um efeito colateral: dá holofotes a Moro.

Operação Sequaz

O Senador Sérgio Moro ( União  Brasil) chega ao Senado Federal  em Brasília-DF. O Senador seria alvo de um atentado segundo  operação  da Polícia Federal. FOTO WILTON JUNIOR / ESTADÃO

PCC gastou R$ 5 milhões para resgatar Marcola e atacar Moro

Plano do PCC era sequestrar Moro ‘Tóquio’ no dia do 2º turno das eleições

Plano de atentado contra Sérgio Moro foi descoberto a partir de depoimento de ex-integrante da facção.

Ninguém fala o que quer, na hora que bem entende, sem pesar as consequências. Isso vale principalmente para um presidente, mas Lula tem quebrado essa regra básica com certa frequência, preocupando o seu entorno, gerando críticas diplomáticas, atiçando a oposição e, claro, ganhando espaço negativo na mídia.

Também é mais do que compreensível que, depois de tudo o que passou, a prisão, a morte do neto..., Lula chore num discurso, num evento. Mas, se ele chora tanto, tão seguidamente, começa a gerar um zunzum incômodo sobre as condições emocionais de um presidente que volta para um terceiro mandato num País e um mundo diferentes – e mais hostis.

Por falar em hostilidade, Lula, o governo e o PT jogam toda a culpa dos juros estratosféricos no BC, mas manifestações infelizes do presidente e insegurança na economia assustam investidores, pressionam a inflação e impactam nos juros. Transformar o BC em vilão número 1 vai resolver?

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista do tele-jornal "Em Pauta" da GloboNews. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.03.23

Perigoso esquecer Bolsonaro

Ele não contava com a derrota e, como uma besta-fera que sangra, rosna por vingança

Leitores se queixam de que, depois de cem dias de novo governo em Brasília, eu e outros continuamos a falar de Jair Bolsonaro. "Por que essa fixação?", perguntam. "Por que não o esquecem e o mandam para a lixeira da história, que é onde ele merece estar?" A resposta é: porque não. Porque o governo de Bolsonaro ainda não terminou.

Isso só acontecerá quando o Brasil ajustar contas com ele —quando Bolsonaro for investigado, julgado e condenado. E a condenação a que me refiro não é um prejulgamento. Se Bolsonaro responder efetivamente por todos os crimes que praticou nesses quatro anos, não haverá tribunais ou grades suficientes. E não será por falta de provas —ninguém agrediu, ameaçou e mentiu com tal proficiência, envenenou de tal forma as instituições, levou tantos brasileiros à morte e, ao mesmo tempo, julgando-se imbrochável, produziu tantas evidências contra si mesmo. Está tudo documentado e em todas as mídias.

Bolsonaro conseguiu o impossível: converteu em príncipes todos os seus antecessores civis. Nenhum deles, por mais despreparado, cafajeste ou corrupto (e quase todos se enquadram em uma ou mais dessas categorias), tentou implodir a democracia. Mesmo o Getulio de 1937-45 e os generais de 1964-85, com seus históricos de tortura, mortes e agressão aos direitos, simulavam às vezes um sopro de legalidade.

A tática diversionista de Bolsonaro era clara. Enquanto fazia barulho com bravatas em cercadinhos, carros de som e motociatas, costurava silenciosamente as amarras entre militares, policiais e juízes. O bote para a ditadura seria no segundo mandato. Se ele tivesse sido reeleito, todo o sistema jurídico brasileiro ficaria sob seu domínio. Como no passado, a luta armada talvez fosse vista como a única alternativa.

É perigoso esquecer Bolsonaro. Ele não contava com a derrota e, como uma besta-fera que sangra, rosna por vingança.

Ruy Castro, o autor deste artigo, é jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo,em 22.03.23

terça-feira, 21 de março de 2023

A lei não corrompe

Alterações na Lei das Estatais são um risco de claro retrocesso no combate à corrupção no País.

As possibilidades de mudanças na legislação e, consequentemente, na governança da Petrobras – caso se confirme pelo Senado a aprovação do Projeto de Lei n.º 2.896/2022 ou, ainda, pelo recente pedido do PCdoB, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 7.331, para alterar a Lei das Estatais e a Lei das Agências Reguladoras – são sinais preocupantes e indicam a disposição dos políticos de retomar o poder e de pressionar e interferir nas decisões dessa companhia. A intenção de flexibilização das leis tem o evidente objetivo de permitir a ingerência política e, por consequência, afastar as estatais de seus reais objetivos. Trata-se de um claro retrocesso no combate à corrupção no País.

Promulgada em 2016, a Lei n.º 13.303, conhecida como Lei das Estatais, foi um avanço em termos de governança corporativa, buscando dar um perfil mais técnico aos executivos que ocupam cargos nas sociedades de economia mista e estatais. O intuito foi estabelecer ferramentas para que a seleção de candidatos à administração dessas organizações tenha como base a ética e o atendimento aos seus objetivos sociais, fortalecendo sua integridade, governança, gestão e eficiência. Não cabe o argumento de que a Lei das Estatais criminaliza a política. A lei não corrompe, não prende nem pune ninguém, apenas estabelece controles para que se evitem os assaltos aos cofres das estatais e a ingerência política na sua administração.

Ressalte-se que, além da Lei das Estatais, os mecanismos de integridade criados na Petrobras servem como um “muro” de proteção à companhia. Revelou-se acertada a implantação, no governo anterior, de regras de compliance na empresa para protegê-la de interesses políticos. A empresa mudou a indústria de óleo e gás (O&G) no Brasil em termos de governança e conformidade, elevando a barra do mercado.

Ocorre que, ainda que existam outras camadas de proteção contra as tentativas de interferências políticas na gestão da maior estatal do Brasil, como o seu estatuto social, que inclui vedações previstas na Lei das Estatais, se sabe que a simples aprovação do conselho de administração e da assembleia de acionistas, controladas pelo governo, possibilita alterações em seu regulamento interno.

Alterações na governança da Petrobras e na Lei das Estatais e eventuais mudanças na legislação anticorrupção e internas na companhia, a partir de uma nova administração, são um risco real de retorno a condutas que já presenciamos no passado e de desmantelamento de instrumentos que possibilitam o combate à corrupção no País. O aprimoramento de leis é válido, mas o retrocesso nas regras deve ser combatido. •

Mauricio Bove, o autor deste artigo, líder da área de Compliance, é sócio do escritório Lopes Pinto Advogados (LP Law). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 21.03.23.

Quem foi Lilith, primeira mulher de Adão, e por que ela renunciou ao Paraíso

Ao longo dos séculos, diversos relatos a retrataram como tendo sido a "primeira mulher do Paraíso". Mas, ao contrário de Eva, não foi criada de Adão ou para Adão. E Lilith estava muito consciente disso.

Fausto e Lilith, por Richard Westall, 1831

"Quem é aquela?"

"Olhe bem, é Lilith."

"Quem?"

"A primeira mulher de Adão. Não se apaixone por seu cabelo lindo, por mais que seja um rico adorno que contribui para a sua beleza, porque quando ela usa para alcançar um jovem, ela nunca o solta”.

Assim disse Mefistófeles a Fausto no magistral drama teatral de Johann Wolfgang Von Goethe de 1808, uma descrição com a qual a própria Lilith não concordaria muito.

Sua história foi se modificando de uma tímida lenda para a de uma heroína. Ela inspirou desde encantamentos e exorcismos até literatura e música, e hoje em dia caminha livremente pelo mundo dos videogames.

A mulher desaparecida

No contexto da Bíblia, Lilith nasceu de um vazio.

Seu nome aparece apenas uma vez, em Isaías 34:14.

"Os gatos selvagens se juntarão a hienas, e um sátiro clamará ao outro; ali também repousará Lilith e encontrará descanso."

Mas nos manuscritos do Mar Morto, o testemunho mais antigo do texto bíblico encontrado até agora, Lilith também aparece na Canção para um sábio, um hino possivelmente usado em exorcismos.

Apesar das poucas menções, para os judeus, a Torá – os Cinco Livros de Moisés ou o Pentateuco do Antigo Testamento para os cristãos – deve ser interpretada como a fonte das principais leis e da ética, já que é considerada uma forma de revelação divina para a humanidade.

E há um fragmento no Gênesis (1:27) que suscita muitas dúvidas e várias interpretações: "E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e disse: frutificai e multiplicai-vos".

Isso ocorre no sexto dia da Criação. No sétimo, Deus descansou.

Mais adiante, conta que ele colocou "o homem que havia se formado" no Éden, e só depois...

2:18 "E disse o senhor Deus: Não é bom que o homem esteja sozinho; darei uma ajuda idônea a ele.”

2:21 "E o senhor Deus fez um sono profundo cair sobre Adão, e ele adormeceu. Então ele pegou uma de suas costelas e fechou a carne em seu lugar;

2:22 e da costela que Deus tomou do homem, fez uma mulher e a levou ao homem”.

O que aconteceu com aquela fêmea criada no sexto dia?

Da Babilônia para a Bíblia

Uma interpretação é que esse primeiro ser criado era andrógino, uma criatura que era simultaneamente homem e mulher e foi separada depois.

Outra leitura é de que houve duas Evas: Adão não gostou da primeira e Deus a substituiu por outra.

Embora esta última versão tenha surgido cedo, a associação com Lilith demorou a aparecer, apesar de ela já estar viva no imaginário da região pelo menos um milênio e meio antes de a Bíblia começar a ser escrita (séculos VI-V a.C).

A menção mais antiga ao seu nome aparece na Epopeia de Gilgamesh – a mais antiga obra épica escrita – e em A Árvore Huluppu, um poema épico sumério encontrado em uma tabuleta em Ur que remonta a aproximadamente 2 mil a.C.

Como escreveu a especialista em literatura bíblica Janet Howe Gaines, "suas origens obscuras estão na demonologia babilônica, onde amuletos e encantamentos eram usados para neutralizar os poderes sinistros deste espírito alado que atacava mulheres grávidas e bebês".

"Lilith logo migrou para o mundo dos antigos hititas, egípcios, israelitas e gregos."

Isso provavelmente explica por que no Livro de Isaías ela aparece sem nenhuma apresentação: uma indicação de que o escritor confiava que os leitores a conheciam.

Também foi mencionada no Talmude da Babilônia (cerca de 500-600 d.C.), uma coletânea de discussões, relatos de grandes rabinos e meditações sobre passagens da Bíblia.

Essa Lilith talmúdica tinha, como a babilônica, cabelos longos e asas, e encarnava práticas sexuais consideradas insalubres.

Outros textos posteriores que incorporam Lilith na história da criação, como o Zohar, escrito por volta de 1300 d.C. na Espanha, um dos dois livros fundamentais do pensamento místico judaico conhecido como Cabala.

Esse texto afirma que essa criatura andrógina inicial foi dividida, criando seres humanos distintos: o homem, Adão, e a mulher, "a Lilith original, que estava com ele e concebeu dele".

Quando viu Adão com sua rival Eva, em um ataque de ciúmes, ela foi embora, transformando-se em um súcubo que seduzia homens solitários e roubava seu sêmen para gerar crianças demoníacas, deixando-as infectadas com doenças.

Mas foi um texto anônimo escrito em algum momento entre os séculos oito e dez que acrescentou mais detalhes sobre esse primeiro relacionamento.

Diferenças irreconciliáveis

No Alfabeto de Ben Sirá, Lilith é a protagonista de um episódio que conta que quando Ben Sirá foi atender o filho doente do rei Nabucodonosor da Babilônia, inscreveu em um amuleto os nomes dos três Anjos da Saúde: Senoy, Sansenoy e Semangelof.

Quando Nabucodonosor perguntou quem eram os anjos mencionados no amuleto, Ben Sirá contou que pouco depois de Deus criar o homem, Adão, e a mulher, Lilith, eles começaram a discutir.

Lilith: "Não me deitarei por baixo."

Adão: "Não me deitarei debaixo de ti, mas acima de ti, porque és apenas digna de estar na posição inferior enquanto eu, na superior."

Lilith: "Somos iguais, pois ambos fomos criados da terra."

Quando Lilith se deu conta de que não chegariam a um acordo, ela pronunciou o Tetragrama – as sílabas sagradas do nome inefável de Deus – e voou para longe.

Adão orou ao seu Criador e disse: "Senhor do Universo, a mulher que me deste fugiu de mim!"

Deus então enviou os três anjos para dizer a ela que, se não voltasse, cem de seus filhos morreriam diariamente.

Lilith, no entanto, se recusou e disse que havia sido criada para "enfermar as crianças: se são meninos, do nascimento até o oitavo dia de vida terei poder sobre eles; se são meninas, desde o nascimento até o vigésimo dia".

Mas ela jurou que cada vez que visse nos bebês os nomes ou imagens dos anjos em um amuleto, não faria mal.

Essa é a versão mais conhecida da passagem de Lilith pelo Paraíso. E a mais polêmica.

Isso porque muitos estudiosos não reconhecem O Alfabeto de Ben Sirá como uma representação do pensamento rabínico.

Alguns até o consideram uma peça deliberadamente satírica que zomba da Bíblia, do Talmude e de outras exegeses rabínicas, pois sua linguagem é muitas vezes vulgar e seu tom, irreverente.

O relato de Lilith em si leva a debates sobre mitologia versus história, textos sagrados e adições não sagradas, assim como a discussões controversas entre aqueles que consideram a Bíblia como a palavra de Deus e aqueles que a veem como parte do rico acervo cultural universal que admite não só uma história de origem, mas muitas outras.

Mas se lembrarmos que estamos percorrendo os caminhos de histórias antigas, a versão de Ben Sirá tem um valor particular.

Embora a segunda parte dessa narrativa restabeleça Lilith como o demônio alado conhecido, a disputa em que Adão se recusa a admitir que são iguais apresenta uma mulher que se rebela contra a "ordem natural".

Uma mulher que preferiu renunciar ao Paraíso em vez de seus direitos; e mais, que foi viver no Mar Vermelho, o mesmo que se abriu para libertar os judeus da escravidão.

Tudo isso no início do período Medieval.

Essas poucas linhas do relato de Ben Sirá explicavam por que Eva foi então criada da costela de Adão e instruída a obedecê-lo.

Mas além disso, por que Lilith passou de um demônio tão temível a um ícone do feminismo, em si tão temido.

Por milênios, Lilith tem continuado a voar pelo mundo com essas asas que ganhou quando não pôde ser igual, refletindo a visão que sucessivas gerações têm da mulher.

Uma mostra é o soneto que o artista Dante Gabriel Rossetti escreveu no século 19 para acompanhar a sua admirada obra Lady Lilith.

"Imóvel permanece; jovem, enquanto o mundo envelhece; e, delicadamente ensimesmada, atrai os homens a contemplar a rede brilhante que tece, até que seu coração e corpo e vida com ela fiquem presos."

Dalia Ventura para a BBC News, em 20.03.23. - Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/

Atriz pornô Stormy Daniels pode levar a indiciamento de Trump; entenda

Promotores de Manhattan que investigam o suborno à atriz podem estar perto de transformar Trump no primeiro ex-presidente americano a ser criminalmente indiciado

Estrela pornô Stormy Daniels durante convenção em 2018 (Robyn Beck / AFP)

Uma estrela de reality show convida uma atriz de filmes pornográficos, bem mais jovem, para um quarto de hotel após um torneio de golfe. Ela chega ao encontro usando um vestido de lantejoulas douradas e sandálias de salto alto. Ele promete levá-la para o programa de televisão e, depois, segundo ela, os dois mantêm relações sexuais. Apesar do enredo banal, a cadeia de eventos desencadeada pelo encontro que a atriz pornô Stormy Daniels diz que teve com Donald Trump em 2006 está perto de provocar uma consequência histórica: o primeiro indiciamento criminal de um ex-presidente americano.

O promotor do distrito de Manhattan, Alvin Bragg, sinalizou que está preparando o pedido de acusação criminal contra o ex-presidente. A expectativa é de que Trump seja acusado por esconder o pagamento de US$ 130 mil (mais de R$ 680 mil) em suborno para a atriz feito por Michael Cohen, advogado pessoal dele, às vésperas da eleição presidencial de 2016.

Para que Trump seja considerado culpado, os promotores provavelmente precisariam provar que o ex-presidente reembolsou Cohen e falsificou dados contábeis com a intenção de esconder violações à legislação eleitoral.

Não é um argumento fácil. Os promotores devem ter de usar uma tese legal que nunca foi empregada em tribunais de Nova York, o que aumenta as chances de um juiz rejeitar ou limitar as acusações. O caso foi examinado pela Comissão Federal Eleitoral e por promotores federais em Nova York, e ninguém decidiu agir.

O ex-presidente negou ter mantido relações sexuais com Daniels e disse que não fez nada de errado. Trump, que pretende disputar a candidatura republicana nas próximas eleições presidenciais deixou claro que um indiciamento será interpretado como “caça às bruxas” e que usará o caso para insuflar os apoiadores. No sábado, ele previu que será “preso” e pediu protestos contra a medida.

A principal testemunha de acusação deve ser Cohen, que se declarou culpado em agosto de 2018 e admitiu que ajudou subornar a atriz, além de uma ex-modelo da revista Playboy, para proteger a campanha presidencial de Trump.

Encontro em Lake Tahoe

Stormy Daniels – que se chama, na verdade, Stephanie Gregory — cresceu em um rancho na cidade de Baton Rouge, no estado da Louisiana. Ela tinha 27 anos quando conheceu Trump, na época com 60 anos, no torneio de golfe em Nevada.

Na biografia que publicou em 2018, a atriz conta que, quando criança, se sentiu envergonhada, mas motivada, depois de ouvir o pai de um amigo se referir a ela como “lixo branco”. Atraída pelo dinheiro, ela começou a atuar como dançarina antes mesmo de terminar o ensino médio. Aos 23, começou a fazer filmes pornográficos e logo se casou com o primeiro dos quatro maridos — Bartholomew Clifford, que era diretor de filmes para adultos sob o pseudônimo “Pat Myne”.

Quando conheceu Daniels, Donald Trump já havia passado de megaempresário a celebridade de reality show. Ele viajou para o torneio de golfe sem a terceira mulher, Melania, que ficou cuidando do filho recém-nascido.

No encontro, na cobertura do hotel Harrah, em Lake Tahoe – segundo Daniels, Trump vestia pijamas de seda preta e pantufas —, o ex-presidente disse que ela apareceria no reality show “O Aprendiz”, na rede de TV NBC. Ela duvidou que fosse possível. Ele assegurou que seria, ela conta.

Depois disso, ele telefonou para ela algumas vezes, e costumava chamá-la de “favo de mel”. Eles se encontraram pelo menos outras duas vezes em 2007, mas Trump nunca a levou para “O Aprendiz”. Ela diz que ele continuou ligando, até que ela parou de atender.

Vendendo histórias

Enquanto Trump ensaiava se candidatar a presidente em 2011, a atriz pornô começou a trabalhar com um agente para tentar vender a história do caso entre eles. Eles negociaram um acordo de US$ 15 mil (R$ 78 mil) com a revista de celebridades Life & Style. A atriz contou ao repórter que a oferta de Trump para transformá-la em participante do reality show era uma mentira, de acordo com transcrições publicadas na internet.

— Apenas para impressionar, para tentar dormir com você? — o repórter perguntou.

—Sim — ela respondeu. —E parece que funcionou.

Quando a revista procurou a Organização Trump para comentar, Cohen retornou a ligação com a ameaça de processo, e a revista desistiu da reportagem. A atriz não recebeu o pagamento. Ao mesmo tempo, Trump desistiu da candidatura e continuou apresentando “O Aprendiz”.

Quando o ex-presidente Barack Obama se preparava para deixar o cargo, em 2015, Trump decidiu se candidatar mais uma vez. Em agosto, ele se reuniu Cohen e David Pecker, o publisher da “American Media Inc.”, que publica o tabloide National Enquirer, em seu escritório na Trump Tower. Pecker, amigo de longa data de Trump, prometeu publicar reportagens positivas sobre ele e negativas sobre seus concorrentes, de acordo com três pessoas que tiveram conhecimento do encontro.

Ele também concordou em trabalhar com Cohen para encontrar e conter reportagens que pudessem causar dano aos novos esforços de Trump.

Donald Trump fala durante um comício de campanha no aeroporto Cecil em Jacksonville, Flórida (REUTERS - 24/09/2020)

O suborno

Depois de tentativas fracassadas de faturar com a história, Stormy Daniels voltou à carga quando estourou um novo escândalo envolvendo Trump. Às vésperas da eleição, o jornal Washington Post divulgou trechos de uma gravação em que o então candidato à Casa Branca faz comentários vulgares sobre como apalpar mulheres. Com a repercussão do caso, Daniels e seus assessores voltaram a buscar espaço para a história na imprensa americana.

O advogado da atriz entrou em contato com o editor da revista Enquirer, Dylan Howard. E foi aí que o advogado de Trump entrou na negociação. Os executivos da revista alertaram Cohen, e o advogado pediu ajuda ao editor da revista. De acordo com informações obtidas por autoridades federais, o advogado conversou por telefone com Trump e com os dois executivos da revista. E foi o editor da Enquirer que o botou em contato com o advogado de Stormy Daniels.

Três dias depois da divulgação das gravações pelo Post, o advogado de Trump concordou em pagar o suborno em troca do acordo de silêncio.Cohen assinou em nome de Trump, mas o pagamento demorou a sair. Ele argumentou que precisava resolver de onde tirar o dinheiro durante a campanha, por causa dos impedimentos da lei eleitoral. Segundo o advogado, Trump aprovou o pagamento.

Com a demora no repasse, o advogado da atriz cancelou o acordo. Com medo da negociação de suborno ser revelada juntamente com o escândalo sexual, o advogado concordou em pagar com recursos próprios e um novo acordo foi assinado. A atriz manteve o silêncio e, menos de duas semanas depois, o ex-presidente venceu a eleição de 20

Publicado originalmente em inglês nos Estados Unidos da América por The New York Times — Nova York. Reproduzido em portugues do Brasil por O Globo, em 21.03.23

Por que Lula busca a paz na Ucrânia?

Zelensky quer ouvir a resposta pessoalmente, em Kiev. É de presumir que, tendo-se voluntariado na busca da paz, o líder brasileiro não se omitirá

O estreitamento das relações entre o Brasil e a Suécia entre 2003 e 2016, período em que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve no poder, resultou numa aproximação estratégica de primeira grandeza.

Nesse período, foi firmado um acordo bilateral que viabilizou o programa em curso de reequipamento da Força Aérea Brasileira (FAB), um sonho antigo, com jatos suecos Gripen F-39 de última geração montados no País e exportáveis, no futuro, para outras nações.

Não se sabia nem havia como prever, então, que um ataque não provocado da Rússia à Ucrânia em fevereiro de 2022, em escandalosa violação da Carta das Nações Unidas, desencadearia o maior conflito armado na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

Ainda menos se sabia que a nação agredida reagiria com a surpreendente capacidade e vigor para resistir que vem demonstrando no campo de batalha, para a estupefação de aliados e simpatizantes de Moscou, entre eles os governos diametralmente antagônicos que se sucederiam em Brasília na virada de 2022 a 2023.

Uma das consequências geopolíticas da invasão da Ucrânia foi o reposicionamento da Suécia e da Finlândia nos grandes blocos militares. Sentindo-se vulneráveis a eventuais investidas da Rússia, ambas as nações nórdicas pediram entrada em regime acelerado na Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, o maior arranjo militar do planeta formado após a Segunda Guerra Mundial para garantir a proteção de seus membros, a começar pelos europeus, dos desígnios da Rússia.

Este é o contexto histórico e geográfico no qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vê espaço para o Brasil oferecer uma proposta genérica mas irrecusável de busca de um acordo que restabeleça a paz e, quem sabe, recuperar espaço internacional, que o País perdeu.

Talvez para surpresa de Lula, que criticou os presidentes da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e dos EUA, Joe Biden, por não terem insistido por mais tempo numa solução que evitasse o injustificado ataque de Moscou, a iniciativa brasileira foi bem recebida em Kiev. No final de fevereiro, o líder ucraniano convidou Lula a visitar o país. Presume-se que o convite a Lula foi feito com conhecimento de Washington e de seus aliados europeus, que já deram dezenas de bilhões de dólares em assistência militar e humanitária a Kiev. A resposta de Lula, então, foi de que visitaria o país quando fosse “o melhor momento”. É de presumir que, tendo-se voluntariado na busca da paz, o líder brasileiro não se omitirá.

Seja como for, o gesto de Kiev pede uma resposta. E esta deve refletir a opinião média dos brasileiros. Mas o que pensam eles sobre a guerra da Ucrânia? “Não pensam nada”, disse Mauricio Moura, especialista em opinião pública do Instituto Ideia. Segundo ele, o assunto não está no radar dos brasileiros, não ajudará a popularidade de Lula e “ele sabe disso”.

O presidente sabe, também, que sua mais ambiciosa tentativa de mediar um acordo internacional terminou mal. Aconteceu em maio de 2010, último ano do segundo mandato de seu governo, e envolveu o programa nuclear do Irã, os governos dos cincos membros permanentes do Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas (EUA, França, Reino Unido, China e Rússia) e a Alemanha, aspirante, como o Brasil, a uma cadeira permanente num CS da ONU reformado.

Deu em muito menos do que nada. Depois de uma maratona de negociações em Teerã, que envolveu Lula, o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, o então presidente do país, Mahmoud Ahmadinejad, e o ainda presidente da Turquia, Recep Erdogan, os chanceleres dos três países anunciaram “princípios” de um acordo. O suposto acordo foi fulminado por Hillary Clinton, então secretária de Estado do presidente Barack Obama, que havia estimulado a participação de Lula na busca de um entendimento. O eterno chanceler russo, Sergey Lavrov, que segue na função com o presidente Vladimir Putin, estava em Washington e não escondeu seu espanto e sua contrariedade com a ousadia brasileira. Dias depois, o CS da ONU adotou novas represálias contra o Irã, que Moscou e Pequim não vetaram e o país foi obrigado a adotar, contrariando a aposta feita pelo então chanceler Celso Amorim, que está de volta, agora na função de conselheiro de Lula no Palácio do Planalto.

Nos 13 anos decorridos desde o fiasco de Teerã, o peso econômico relativo do País encolheu, com forte perda de produtividade mal disfarçada pelos ganhos da agricultura, único setor dinâmico e que incorpora conhecimento.

Some-se a isso o aumento da pobreza e da desigualdade, a evidente mediocrização nacional e a perda resultante de densidade política e de coesão nacional, ambas corroídas por dentro por escândalos de corrupção, resultando numa sociedade fragilizada, desmotivada e incapaz de reter e multiplicar talentos com a velocidade e a qualidade que a realidade exige. Mas nem por isso há que perder a esperança. Quem sabe uma viagem de Lula à Ucrânia, se acontecer, o inspire a encontrar na solidariedade com as vítimas da invasão coragem para de fato ousar, junto com os aliados tradicionais do Brasil, em nome da paz.

Paulo Sotero, o autor deste artigo, Jornalista, é Pesquisador Sênior Do Brazil Institute Do Wilson Center, em Washington, DC. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 21.03.23

Com lançamento de foguete coreano, base de Alcântara volta à atividade

Subida de foguete coreano, no domingo, põe base no Maranhão no disputado mercado dos polos lançadores de veículos civis

 (crédito da foto: Sargento Frutuoso/DCTA)

Quatro décadas depois do início de sua implantação, o Centro de Lançamento de Alcântara lançou com sucesso, no domingo, o primeiro foguete de uma operadora estrangeira. O Hanbit-TLV, da empresa sul-coreana Innospace, de 16,3 metros de altura e 8,4 toneladas, levou embarcada uma carga útil do Sistema de Navegação Inercial (Sisnav), tecnologia desenvolvida no Brasil que permitirá ao país dar um salto na navegação autônoma de veículos lançadores de satélites (VLS).

Para o Programa Espacial Brasileiro, o lançamento confirma a Base de Alcântara como polo lançador de foguetes de baixo custo, em um mercado global que cresce rapidamente. O voo do Hanbit-TLV durou 4m33 e marcou, efetivamente, a entrada do Brasil no mercado de transporte espacial.

"O sucesso deste lançamento binacional, envolvendo o Brasil e a Coreia do Sul, ratifica que o centro está totalmente apto, tanto do ponto de vista técnico-operacional, quanto do administrativo, para realizar lançamentos de foguetes nacionais e estrangeiros em praticamente qualquer época do ano, com precisão e segurança", disse o brigadeiro engenheiro Luciano Valentim Rechiut, do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), unidade ligada à Força Aérea Brasileira (FAB).

O sucesso do lançamento foi comemorado pela Aeronáutica e pela Agência Espacial Brasileira (AEB), depois de três adiamentos por questões técnicas. A parceria com a Innospace — uma startup da Coreia do Sul — foi possível depois que o Brasil firmou, em 2019, acordo de salvaguardas tecnológicas, que protege os interessados em usar a base brasileira como polo de lançamento. Todos os custos da operação de domingo foram bancados pela empresa.

Tragédia

O lançamento também representa a virada da página mais trágica do Programa Espacial Brasileiro. Em agosto, completará 20 anos do acidente que provocou a morte de 21 pessoas, em Alcântara. Em 22 de agosto de 2003, o VLS brasileiro levaria ao espaço o primeiro satélite de tecnologia nacional, mas o foguete, de 21 metros de altura, explodiu na partida.

Uma nova torre de lançamento só seria inaugurada em 2012, permitindo a volta da operação da base maranhense. Com o Hanbit-TLV, o CLA soma 500 lançamentos desde a inauguração, mas a pretensão de desenvolver um foguete de tecnologia nacional ficou em segundo plano. A prioridade passou a ser a atração de parceiros para financiar as atividades de Alcântara.

Em maio do ano passado, o ex-presidente Jair Bolsonaro ofereceu a base para o bilionário Elon Musk, dono da SpaceX, que desenvolve projetos privados de foguetes de baixo custo — que não se interessou. Além da startup sul-coreana, o Brasil tem acordos com mais três empresas que pretendem utilizar a infraestrutura de Alcântara — uma delas a Virgin Galactic, do bilionário Richard Branson, que investe no desenvolvimento de foguetes civis tripulados.

A internacionalização das operações em Alcântara é um objetivo antigo do governo brasileiro, que vê na localização o maior diferencial em relação à maioria dos concorrentes estrangeiros. Por ser a base próxima da Linha do Equador, os foguetes percorrem uma distância menor até a órbita desejada, reduzindo os custos com combustível em até 30%.

Vinicius Doria para o Correio Braziliense, em 21.03.23. 

Os herdeiros do Papa

Direitos autorais de livros escritos pelo papa emérito Bento XVI irão para a Fundação Ratzinger, e pertences pessoais serão distribuídos entre assistentes e amigos. Anotações e cartas pessoais foram destruídas.

Cinco primos alemães do papa Bento 16 são os herdeiros do dinheiro que o pontífice economizou em suas contas. Por outro lado, os direitos autorais de seus livros irão para a Fundação Ratzinger, e seus pertences pessoais serão distribuídos entre assistentes e amigos, como ele mesmo deixou por escrito.

Bento 16 morreu no dia 31 de dezembro do ano passado, aos 95 anos. Em 2013, ele se tornou o primeiro pontífice a renunciar em 600 anos e, desde então, era chamado de papa emérito. 

A informação sobre os herdeiros foi revelada pelo monsenhor Georg Gänswein, secretário pessoal de Bento 16 durante todos os anos de pontificado e que continuou servindo o papa emérito após a renúncia.

"Pensei que havia dois parentes, dois primos, mas são cinco", disse o arcebispo alemão a alguns veículos de imprensa após uma missa celebrada no domingo (19/03), em Roma.

Os herdeiros, no entanto, poderiam abrir mão de receber o dinheiro porque - segundo o jornal italiano Corriere della Sera - "correriam o risco de serem envolvidos em uma ação de indenização iniciada na Alemanha contra Bento 16 sob a acusação de não ter interferido no caso de um padre pedófilo quando ele era arcebispo de Munique, entre 1977 e 1982".

A informação sobre os herdeiros foi revelada pelo monsenhor Georg Gänswein (D)Foto: Stefano Spaziani/picture alliance

Bens pessoais doados

Gänswein destacou que a herança não é milionária, apenas o que resta na conta bancária, já que os bens pessoais do papa emérito "serão todos doados”.

"Os demais objetos pessoais, de relógios a canetas, de pinturas a móveis litúrgicos, foram incluídos em uma lista meticulosamente elaborada por Bento 16 antes de morrer. Ninguém foi esquecido: colaboradores, secretários, seminaristas, estudantes, motoristas, párocos e amigos", disse Gänswein, de acordo com a edição desta segunda-feira do Il Messaggero.

"O que tem a ver com livros, o que tem a ver com sua obra intelectual, já está claro", acrescentou.

Os direitos das obras permanecem no Vaticano, e uma parte irá para a Fundação do Vaticano Joseph Ratzinger, criada em 2010, que é o que realmente constitui o importante legado de Bento XVI, com autênticos best-sellers como os volumes dedicados à vida de Jesus.

Gänswein também explicou que, por ordem do próprio Ratzinger, destruiu todas as anotações e cartas pessoais, e algumas foram enviadas para a fundação Ratisbona.

"Uma pena? Sim, eu também disse isso a ele, mas ele me deu essa indicação: não tem como voltar atrás. Não há mais escritos inéditos", revelou.

Gänswein trabalhou com Bento 16 por quase 20 anos - antes, durante e depois do pontificado. Desde 2013, ele é também prefeito da Casa Pontifícia.

Em 2020, o papa Francisco deu licença a Gänswein do cargo para que ele pudesse se dedicar inteiramente a auxiliar Bento 16. Nos círculos do Vaticano, especula-se que o arcebispo possa deixar Roma em breve e tornar-se embaixador.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 21.03.23

segunda-feira, 20 de março de 2023

Maranhão lidera pobreza infantil

Em abril de 2022, escrevi o artigo DE VOLTA AO PASSADO, mostrando que a pobreza do Maranhão havia aumentado, sendo que 1.059.510 era o número de famílias na linha de pobreza; 

que os índices do IDEB permaneciam muito aquém da meta e que o analfabetismo continuava em níveis inaceitáveis; que o desmatamento da pré-amazônia aumentara significativamente e que os produtores e fazedores de cultura viviam às turras com os órgãos públicos que lidavam com o assunto.

Mais adiante publiquei outro artigo mostrando análise da Folha de São Paulo sobre a pobreza do Brasil, em que o Maranhão concentrava 24 dos 25 municípios mais pobres do Brasil. 

Agora, é o UNICEF que publica dados com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD contínua), de 2019, informando que existem 32 milhões de crianças e adolescentes em situação de privação no País, do total de 50,8 milhões.  Esclarece que tal dado é diferente do entendimento tradicional da pobreza monetária. Ele é multidimensional e resultado da inter-relação entre privações, exclusões e diferentes vulnerabilidades a que meninas e meninos estão expostos.

Esclarece mais que em todas as dimensões (alimentação, renda, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e informação), as desigualdades raciais e regionais persistiram de forma preocupante e que, como acontece com outros indicadores, os grupos mais impactados são, em geral, os(as) negros(as) e indígenas e as populações das regiões Norte e Nordeste. A dimensão que mais contribui para a pobreza infantil no Brasil é o saneamento, seguido da renda e falta de água. 

Depois de realizada a análise, propõe que os governos, em seus três níveis, priorizem investimentos em prol da infância e da adolescência em seus planejamentos e execução orçamentária; que seja dada ênfase às estruturas e ofertas do SUS, priorizando políticas voltadas às crianças e adolescentes vulneráveis e às suas famílias; que seja ampliada a oferta de serviços e benefícios a esse público nas áreas de educação (implantando com urgência políticas de busca ativa escolar e retomada da aprendizagem), saúde, nutrição, infraestrutura sanitária básica e proteção e segurança.

De tudo isso, o mais triste e doloroso: é o Maranhão, de novo e sempre, o estado brasileiro que lidera a POBREZA INFANTIL em quase todas as dimensões analisadas. 

Este é um dos cruciais desafios do Governo Brandão. Como amenizar essa crucial realidade? Continuar fazendo o mesmo a nível das políticas públicas de educação, saúde e saneamento?  Manter as políticas de trabalho e renda dos últimos anos? Sabemos que fazendo o mesmo de sempre não teremos resultados diferentes.

Não tenhamos dúvidas: apostar nos grandes projetos que aportaram no Maranhão (Vale, Alumar, Suzano, Eneva, Polo do Agronegócio de Balsas) ou nos que virão aportar por aqui, anunciados à exaustão (Terminal Portuário de Alcântara, Centro de Lançamento de Alcântara, ZPE etc.) não resolverão a questão da pobreza do homem maranhense, que não se alimenta de bauxita, de ferro, ou de soja. São empresas intensivas de capital, cujo objetivo é o lucro. Simplesmente isso. Simples, porém difícil de ser entendido pelos últimos governos do Maranhão.

“Os processos de transformação das matérias-primas em mercadorias de alto valor no mercado internacional, via empresas multinacionais, não reverte em dividendos para a população do estado, mas, muito pelo contrário, resulta em expropriação, aculturação e empobrecimento, como se viu na mesa de debates sobre os “Grandes projetos de desenvolvimento e lutas sociais na amazônia brasileira”, VI Jornada Internacional de Políticas Públicas, UFMA, 2013.

Cedo ou tarde, no nosso caso, ao que parece, bem tarde, há que se voltar os olhos para o Desenvolvimento Local, única saída para o drama da pobreza endêmica da população do Maranhão.

Abdelaziz Aboud Santos, o autor deste artigo, foi Secretário de Estado do Planejamento e Orçamento do Maranhão (Governo Jackson Lago - 2007/2009)

Coisa pública não é coisa minha

O comportamento do agente público deve se pautar pela obediência ao princípio de que não pode dispor como quiser do acervo que administra

Muito recentemente vimos a baderna e a selvageria colocarem em risco as instituições nacionais. A reação dos democratas e dos próprios Poderes constituídos, capitaneados pelo Judiciário, impediu que o caos e a barbárie se instalassem. Seria mais um passo na jornada pró-instalação de um regime ditatorial para quem se considerava com direitos despóticos e ilimitados de governança.

Os bens públicos das Casas do Legislativo e do Supremo Tribunal Federal (STF) foram criminosamente danificados. A República foi atingida em seu conceito fundamental de “coisa pública”. Vandalizaram bens da sociedade, bens do povo.

Dois até agora indecifráveis enigmas são a origem e o porquê do apoio emprestado às tentativas de imposição da desordem, da intolerância e do ódio no seio da sociedade brasileira. Não me refiro apenas à adesão dada aos responsáveis políticos, mas sim à concordância com um pensamento não civilizatório transformado em ações concretas: o armamento distribuído ao povo (quase 1 milhão de armas); a negação da ciência na pandemia; a insensibilidade em face dos 700 mil mortos pela covid-19, e quem despreza a morte não preza a vida, a alheia; o abandono e o menosprezo pela educação, pelo meio ambiente, pela cultura; a tentativa de destruir avanços exemplares para o mundo nos campos das eleições (urnas eletrônicas) e da saúde (sistema de vacinação); os estímulos à destruição das instituições pátrias; a conclamação à ruptura do Estado de Direito; e várias outras condutas atentatórias ao regime, à paz e à harmonia sociais. Ideias e comportamentos que desaguaram no 8 de Janeiro.

Esses apoiadores, muitos esclarecidos e com capacidade de bem discernir o certo do errado na vida pública, se deixaram conduzir por um discurso repleto de mentiras e invencionices, distante da realidade nacional e contrário à lógica e ao bom senso. Sempre em nome de justificativas abstratas, inconsistentes e falaciosas para a opção que faziam. Por exemplo, passaram a afirmar que o seu voto era contra o risco “vermelho”: o comunismo seria implantado. Argumento obtuso, mentiroso, falso, ridículo, próprio dos que carecem de razões para as suas inconcebíveis escolhas e que põe em dúvida a sua inteligência e sua honestidade.

O seu ridículo se acentua na medida em que representa a negação da própria história recente. O mesmo grupo político contra quem investem esteve no poder durante uma década, e seus integrantes não atuaram como perigosos militantes stalinistas nem atentaram contra o regime democrático. Não invadiram nem destruíram órgãos públicos. Não conclamaram as Forças Armadas a intervir no regime. Não se comportaram como trogloditas primatas prontos a destruir e matar com vistas à ruína das instituições e da própria sociedade. Eles não.

Os correligionários do último governo, além da barbárie que apoiaram, ignoram que seus integrantes não tiveram nenhum escrúpulo nem respeito por um princípio basilar do regime republicano: o governante administra bens alheios.

República tem origem no latim res publica, que significa coisa pública. O que é público é de todos e, portanto, não é de ninguém. Aqueles que se propõem a militar na política ou na administração pública têm a obrigação de saber que vão gerir coisa alheia. Trata-se de uma noção básica, primária, essencial. Caso o administrador não tenha consciência precisa desse aspecto, não estará habilitado a assumir as funções.

Mas a questão não se resume apenas a uma noção teórica desta fundamental característica do cargo público. O conceito deve externar uma conduta pessoal que lhe seja consentânea. Vale dizer, o comportamento do agente público deve se pautar pela rigorosa obediência ao princípio de que não pode dispor como quiser do acervo que administra.

Quero destacar apenas uma das formas mais habituais de ataque ao erário. A imprensa vem noticiando com constância a despudorada utilização dos chamados cartões corporativos. Está-se revelando um abuso de gastos jamais visto na história da República. O cartão transformou-se em passaporte para a entrada livre nos cofres da Nação.

De hotéis e restaurantes de luxo, passando por grifes famosas, até a compra de guloseimas, em especial sorvetes, esses gastos representam um exemplo do desavergonhado desrespeito para com a coisa pública.

Alguém dirá que a lei autoriza o uso dos cartões. Sim, mas o uso restrito às despesas relacionadas ao exercício das funções, e não o uso descriterioso, injustificado, ligado a caprichos consumistas, uso que não fariam se os gastos saíssem de seus bolsos.

Esses esbanjadores do dinheiro alheio deveriam se espelhar nos exemplos, entre outros, de dom Pedro II, que várias vezes viajou para fora do País às suas expensas ou auxiliado por amigos. Ou, ainda, da primeira-dama Nair de Teffé, mulher do ex-presidente Hermes da Fonseca, que arcava com os custos das recepções que organizava no Palácio do Catete, sem onerar os cofres públicos.

O desrespeito ao bem público representa o desrespeito ao Brasil e ao seu povo.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo, é advogado. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 20.03.23

sexta-feira, 17 de março de 2023

Presídios, símbolos da falência do Estado

A onda de terror no RN expõe duas metástases interdependentes que se alastram aceleradamente: a expansão do crime organizado e a deterioração do sistema prisional

Há dias a população do Rio Grande do Norte é acossada por mais uma onda de terror orquestrada por uma facção criminosa. A Secretaria da Segurança potiguar acredita que a ordem tenha partido de lideranças do Sindicato do Crime (SDC) – uma dissidência do PCC – que estão em uma penitenciária da Grande Natal, em retaliação ao endurecimento das regras nas prisões locais. Um “salve” – ou convocação – que circula por WhatsApp supostamente lançado pelo SDC “justifica” a selvageria como uma reação às condições “degradantes” dos presídios. Essas causas não se excluem e expõem as raízes de duas metástases que se retroalimentam e se alastram com assombrosa velocidade: a ascensão do crime organizado e a deterioração do sistema prisional.

Na última década, o Brasil passou de consumidor da cocaína produzida na Colômbia, Peru e Bolívia para um dos maiores fornecedores do mundo, respondendo por 7% das apreensões globais, só atrás da Colômbia (37%) e EUA (18%). As disputas das facções pela rota da Amazônia até os portos nordestinos é plausivelmente a principal causa da escalada de violência no Norte e no Nordeste.

A segurança pública é dever dos Estados, mas nenhum deles tem recursos para enfrentar organizações que, em acelerada nacionalização e internacionalização, se ramificam sofisticadamente por âmbitos variados da sociedade civil, dos mercados e do Estado. Em 2018, o Congresso buscou resolver essa “acefalia federativa” criando o Sistema Único de Segurança Pública para coordenar ações de prevenção e inteligência entre os três níveis da Federação. Mas o programa foi praticamente descontinuado pelo último governo, mais interessado em armar os cidadãos do que em sofisticar a segurança pública. Nesse vácuo, as facções multiplicam seus tentáculos como hidras.

Não é por coincidência que, da malha de crimes perpetrados por elas, a sua face mais monstruosa esteja nos presídios. Massacres, decapitações e até canibalismo se tornam uma apavorante rotina, especialmente nas prisões do Norte e do Nordeste.

Em tese, o sistema carcerário deveria atender a três fins: a proteção da sociedade pelo isolamento de seus agressores, a dissuasão dos aspirantes ao crime e a ressocialização dos condenados. Na prática, o sistema prisional inverteu completamente esses fins – e, a começar pelo primeiro e mais importante, promove o seu oposto.

Nas últimas décadas, os presídios se transformaram em verdadeiras incubadoras do crime. É de lá que as facções extraem sua matéria-prima. Na comparação internacional, o Brasil tem altas taxas de encarceramento, de presos sem condenação e de superlotação. Apenas 15% dos presos estudam e 18% trabalham. Cerca de 40% são provisórios. Responsáveis por crimes de menor impacto e que poderiam ser passíveis de penas alternativas, na maioria jovens, são obrigados a se submeter a pactos de vassalagem com condenados por crimes de sangue, hediondos ou de organização criminosa, que, estima-se, representam só 13% da população prisional.

Todos os anos são enviados para essas “masmorras medievais” – na célebre definição de José Eduardo Cardozo, então ministro da Justiça, em 2015 – multidões de pobres-diabos que, após passar pelos rituais da academia do crime armada pelas facções, são bombeados para a sociedade em legiões mais ressentidas, mais violentas e mais organizadas.

Ao invés de reintegrarem os criminosos à sociedade, os presídios estão submetendo a sociedade ao crime. Numa espécie de pesadelo, porções inteiras do Brasil transformam-se num grande presídio. Os abastados se enclausuram em condomínios amuralhados e carros blindados. Os pobres veem bairros inteiros serem sequestrados pelas organizações criminosas, que controlam seus mercados e infraestrutura, cooptam seus votos e recrutam seus filhos, num verdadeiro Estado paralelo. Os que ousam resistir são retaliados com as mais horrendas humilhações e crueldades.

Os presídios que, em tese, deveriam ser o símbolo maior do poder do Estado, na prática são hoje o emblema máximo de sua falência. Enquanto essa subversão infernal não for revertida, a Nação pagará cada vez mais com seu sangue.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 17.03.23

Novo governo vai desfazendo reformas iniciadas em 2016 e nova vítima é o marco do saneamento

Lula 3 parece acreditar de verdade em um Estado que tudo faz e, caso as consequências sejam desastrosas para a economia, deverá culpar mais uma vez um inimigo externo

Desconstrução de reformas no novo governo vai criando insegurança jurídica e regulatória e pode afastar investidores privados (Foto: Eraldo Peres/AP)

Novo governo não só dá uma guinada previsível na política econômica, como vai desfazendo as reformas iniciadas em 2016. Elas funcionaram como uma mola no fundo do poço que Dilma nos jogou.

Lula 3 parece querer se livrar da imagem do social-democrata que adquiriu por ter dado continuidade às políticas de FHC. Veio agora decidido a assumir o papel de líder da esquerda para valer. Acredita de verdade em um Estado que tudo faz. E, se a consequência for inflação ou crescimento medíocre, isso será mais uma vez atribuído a um inimigo externo, que já foi até escolhido – o Banco Central. Mas pode virar o Congresso Nacional e Lira.

Basta ver como o PT analisa o desastroso biênio Dilma. Não foram a política fiscal irresponsável, os recursos desperdiçados no BNDES nem as pedaladas que levaram o País à maior recessão da história, mas um golpe imaginário, a Lava Jato que inventou corrupção onde não havia e destruiu empreiteiras.

A desconstrução das reformas vai criando insegurança jurídica e regulatória e pode afastar investidores privados. E assim, como numa profecia autorrealizada, reforçará o discurso de que, sem governo gastando, a economia não anda.

Desconstrução de reformas no novo governo vai criando insegurança jurídica e regulatória e pode afastar investidores privados

A lista de mudanças é extensa: TLP do BNDES; Lei das Estatais; reforma da Previdência; política de preços de combustíveis; desinvestimentos da Petrobras; privatização da Eletrobras; fim da limitação de despesas do governo e agências reguladoras.

Outra vítima é o novo marco do saneamento, mesmo tendo, em apenas dois anos, comprometido R$ 50 bilhões em investimentos e mais R$ 30 bilhões em outorgas. As estatais, por sua vez, não conseguiram demonstrar capacidade financeira para cumprir as metas de universalização impostas nos novos contratos.

Rui Costa diz que outorgas muito elevadas são ruins (!), pois vão gerar tarifas elevadas. Mas, no Estado que governou por oito anos, a Embasa cobra mais pelo serviço do que a média nacional e acima das privatizadas. E, mesmo assim, só 38% dos baianos têm coleta de esgoto – e, desse total, metade não é tratada. O investimento privado em ligação de água e esgoto é, em média, 70% acima do realizado pela Embasa.

O saneamento é uma política transversal de grande impacto social: reduz a mortalidade infantil, melhora o desempenho de crianças na escola, previne doenças, reduzindo gastos com saúde. É fundamental para criar igualdade de oportunidades e contribuir para a mobilidade social e o aumento da produtividade do trabalho. Dezenas de milhões de brasileiros, concentrados na população mais carente, serão novamente esquecidos com esse retrocesso.

Elena Landau, a autora deste artigo, é economista e advogada. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 17.03.23