terça-feira, 15 de novembro de 2022

Talvez no ocaso a ‘ditadura do Judiciário’

Concluída a eleição, é desejável que ocorra uma acomodação e os antagonismos se resolvam sem a necessidade de recorrer ao Poder Judiciário.

Ministro Alexandre de Moraes, Presidente do TSE

Com a eleição de um novo governo para o Brasil e a caminhada para desejáveis e melhores relações políticas, é possível que a ideia de existência, entre nós, de uma “ditadura do Judiciário” seja progressivamente revista e abandonada. Até mesmo pessoas de reconhecidas inteligência e cultura se deixaram contaminar por essa ideia equivocada.

A nossa Constituição federal e o Direito dela decorrente não admitem que um juiz ou ministro intervenha nos fatos por própria iniciativa. Tome-se, por exemplo, o todo-poderoso ministro Alexandre de Moraes: se não houver provocação, se não houver um pedido expresso, ele não poderá intervir nem mesmo numa briga de galo.

A nossa Constituição e o nosso Direito adotaram o princípio nemo iudex sine actore, que vem do Direito romano, ou seja, não pode haver juiz sem autor ou sem que algum interessado requeira a sua intervenção. Mas, em face dos antagonismos políticos nos últimos quatro anos, centenas de pessoas e até mesmo agremiações partidárias passaram a demonstrar seu inconformismo da forma mais cômoda: recorrer ao Poder Judiciário e jogar o abacaxi no colo dos juízes dos tribunais superiores.

Como, em geral, as partes envolvidas têm foro privilegiado, os seus antagonismos foram encaminhados não ao juiz do fórum mais próximo, mas para aquele que tem competência legal para julgá-los. É por essa única razão que centenas de processos envolvendo interesses político-partidários chegaram aos tribunais superiores nos últimos anos e geraram decisões de grande repercussão no País, tornando conhecidos juízes que, não fossem essas divergências políticas, seriam tão pouco conhecidos como um juiz de vara de família.

Em virtude da frequência dessas decisões, tomadas tão somente porque houve provocação dos interessados, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) passaram a figurar na primeira página dos jornais e a propagar a equivocada impressão de que são muito poderosos, além de interessados no desfecho das demandas políticas.

Essa visão é equivocada e levou a equívoco ainda maior: o de que existe uma “ditadura do Judiciário”, quando o que ocorre é tão somente a prestação da atividade jurisdicional requerida pela parte e sobre a qual o juiz ou ministro não poderia negar resposta formal e escrita. Não existe a possibilidade de inércia, ou seja, não pode o juiz ficar lambendo o processo, ao invés de decidir.

Está claro no nosso Direito, por força do que dispõe a Constituição federal de 1988, que a Justiça não funcionará se não houver um autor. Infelizmente, essa verdade não está clara perante a maioria da população, levando até mesmo pessoas de boa cultura e inteligência a ver nas decisões judiciais dos tribunais superiores interesse de influir nos acontecimentos, quando o que os juízes e ministros mais desejariam é estar longe de tudo isso.

Os antagonismos políticos nos últimos quatro anos foram frequentes e estridentes, em razão do choque de interesses e do desejo de chegar a ou proteger um bem maior: o poder. Com a eleição do novo presidente da República e a tomada do poder por seu grupo político, é desejável que ocorra uma acomodação e os antagonismos se resolvam sem a necessidade de recorrer ao Judiciário.

Quem mais deseja essa paz são os próprios ministros dos tribunais superiores, porque nenhum deles se alegra por tomar decisões que muito repercutem e causam a ideia de interesse pessoal da parte daquele que decidiu. Veja-se o caso do ministro Alexandre de Moraes e de seu reconhecido conhecimento em Direito Constitucional e Penal.

Quando está em São Paulo, o que ele mais gosta é de atravessar a rua de sua casa e fazer exercícios no Clube Pinheiros, do qual é sócio há anos e onde é muito estimado. Mas, muitas vezes, nem se arrisca a isso, porque decisões judiciais suas, tomadas unicamente em atenção a quem as requereu, ferem interesses políticos ou de grupos, gerando inconformismos e até grosserias de quem se sentiu prejudicado.

É possível que os antagonismos de natureza política tenham se tornando maiores e mais frequentes nos últimos quatro anos em virtude do estilo pessoal do presidente Jair Bolsonaro, a quem sempre se atribuiu bastante coragem, mas também traços de arrogância. Sua conduta com essa característica lhe rendeu milhões de seguidores e o deixou bem perto da vitória na eleição.

Em virtude de seus atos administrativos ou políticos, ele foi repetidamente combatido por meio de ações judiciais propostas por seus adversários, e quase sempre apareceu como vítima. Agora, que a fase eleitoral já passou, é interessante observar que Jair Bolsonaro, se não tivesse afugentado as mulheres com atitudes grosseiras e entupido o Brasil com armas de fogo, poderia ter vencido a eleição. Para as mulheres, armas de fogo significam a morte de filhos, pais e maridos, e por isso são contrárias ao seu porte. Por isso milhões delas deixaram de votar nele.

Aloisio de Toledo Cesar, o  autor deste artigo, é Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de S. Paulo. Foi Secretário estadual da Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22.11.22, às 03h:00

A eleição acabou, o novo governo nem começou e a República continua ameaçada por fanáticos

Saber perder ou ganhar é para quem tem grandeza política e de alma

Pedir o fechamento do STF e a volta da ditadura militar em torno de quartéis não é democrático, não é constitucional e não é legal. Foto: Jason Szenes/EFE/EPA

A capital da República está isolada, com bloqueio das pistas de acesso à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Poderes, onde ficam o Planalto, o Supremo e o Congresso. E não é por causa do feriado da Proclamação da República, mas para evitar ataques justamente à República com caminhões e motociatas antidemocráticas. A eleição acabou, o novo governo nem começou e os bolsonaristas não sossegam.

Saber perder ou ganhar é para quem tem grandeza política e de alma, mas o Brasil assiste a um triste espetáculo em que grupos de fanáticos, surpreendentemente grandes, se enrolam na bandeira, usam o hino e os símbolos nacionais para baderna, insulto, ataques às instituições e à democracia. E para cenas de um ridículo inacreditável.

Ministros da mais alta Corte de Justiça do País são constrangidos e ameaçados com gritos e impropérios por irresponsáveis e inconsequentes que defendem volta dos militares e ditadura, ou seja, fim da liberdade, torturas, mortes e desaparecimentos. Luís Roberto Barroso teve de sair às pressas de um restaurante em Santa Catarina e seus colegas de toga estão sendo importunados por brasileiros em Nova York.

Isso não é liberdade de expressão e de manifestação. A Constituição, as leis e até os bons costumes permitem que cidadãos e cidadãs se unam para ir às ruas protestar, defender suas causas, exigir seus direitos e cobrar deveres de governantes. Mas pedir o fechamento do STF e a volta da ditadura militar em torno de quartéis? Financiar caminhoneiros para parar o País, causar desabastecimento, inflação e caos? Não é democrático, não é constitucional, não é legal.

Falta uma voz firme de comando e essa voz deveria ser do ainda presidente da República, Jair Bolsonaro, que se encastelou, parou definitivamente de trabalhar e parece estar torcendo para o circo pegar fogo. Danem-se a Pátria e a família? Deus está de olho.

De outro lado, é também preciso que os vitoriosos ajam como vitoriosos e parem de guerra pela internet, contra tudo e todos que não atrapalham, mas se reservam o direito de crítica e não lhes dizem amém. O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva fez uma campanha pacífica e um discurso de vitória pedindo união, pacificação, inclusão e esperança. Ataque, ódio e arrogância de parte de sua base e de sua militância digital não têm nada a ver com isso.

Mais de 60 milhões votaram em Lula e 58 milhões em Bolsonaro, e o Brasil está, objetivamente, dividido ao meio e com problemas gigantescos. Quer e precisa de paz, crescimento, emprego, barriga cheia, inclusão, igualdade e respeito à maioria e ao voto. A quem interessa a guerra?

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.11.22, às 03h:00

Uma chance de paz

A recuperação de Kherson pela Ucrânia abre credivelmente as portas para uma possível negociação

O presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, ontem em Kherson. (DPA Via Europa Press)

Vladimir Putin só conhece batalhas perdidas. Com a de Kherson, é a terceira derrota sofrida por seu exército desgovernado, depois da ofensiva fracassada que ele queria incendiar em Kiev e da vergonhosa perda de Kharkov. Atrocidades contra civis na dissolução de seus exércitos nunca faltam, somadas às atrocidades de ataques aéreos a infraestruturas vitais e edifícios residenciais, que não cessam nem mesmo em retiradas. Segundo o presidente da Ucrânia, Volodímir Zelenski, isso aconteceu em Kherson, onde foram registrados pelo menos 400 crimes de guerra.

A retirada desta capital da província de mesmo nome, verdadeiro centro estratégico de acesso à Crimeia e ao Mar Negro, é especialmente amarga para o Kremlin, que declarou sua anexação à Federação Russa e fracassou não apenas militarmente, mas principalmente politicamente. Kherson foi preservado quase intactoporque era a única grande cidade nas mãos dos russos desde o início da guerra, mas os ocupantes não conseguiram atrair a população, apesar do peso dos cidadãos de língua russa, nem oferecer outra alternativa senão a repressão, a tortura e a morte . A recepção calorosa dada às tropas ucranianas e o entusiasmo com que Zelensky foi recebido nesta nova viagem a poucos quilômetros da frente não é surpreendente, algo que nenhum líder do Kremlin ousou imitar e ao mesmo tempo desafia a bravata anexionista russa . As imagens de Zelensky pelas ruas de Kherson, incluindo as selfies que ele tirou, transmitem uma estranha mistura de horror de guerra e pacificação ao mesmo tempo.

Essa nova derrota para Putin permitiu que Zelensky falasse novamente de paz e insinuasse que a guerra pode estar se aproximando de um desfecho favorável. Os fatos no terreno, que são o que governam a guerra, devem levar os derrotados diretamente à mesa de negociações. A Rússia perdeu cem mil homens e seu melhor equipamento militar em oito meses por quase nada. Tem um exército diminuído, desmotivado e desacreditado, mal treinado e suspeito de graves e numerosos crimes de guerra. A geografia fluvial poderia protegê-lo de perdas maiores e rápidas, já que com o inverno chegando é mais difícil para os exércitos de Kiev cruzar o amplo Dnieper e continuar sua contra-ofensiva.

Há consciência em Washington e Bruxelas de que o momento da negociação está se aproximando. A Ucrânia está agora em plena contra-ofensiva. Ninguém pode exigir honestamente que a vítima pare de defender sua casa invadida com toda a sua energia. Quem tem a mão na aposta das negociações é o Kremlin. Com um quinto da Ucrânia ainda em suas mãos e simpatias residuais de países que jogam equidistância, esta é sua chance, embora o orgulho imperial e sua própria retórica expansionista o impeçam de aproveitá-la por enquanto.

O clamor pela paz encontrou um ponto de apoio, embora em nenhum caso essa paz possa e deva vir pela força e ameaças. O acordo ocidental é claro sobre quando Putin terá que se sentar: não cabe a Washington ou Bruxelas apontar ou estabelecer as condições, mas sim ao governo legítimo da soberana Ucrânia, com o apoio de seu Parlamento. São eles que devem contar com a mesma solidariedade e ajuda na construção da paz que seus aliados europeus e americanos agora destinam à guerra.

Editorial do EL PAÍS, em 15.11.22, às 01:00hs.

O novo Brasil de Lula e sem Bolsonaro

O presidente eleito não pode esquecer que não foi eleito apenas pela força de seu partido, mas porque criou um bloco de forças capaz de enfrentar o bolsonarismo

Lula da Silva, presidente do Brasil, durante evento em Brasília, em 10 de novembro. (Foto: Andressa Anholete /Bloomberg)

O turbulento Brasil de Bolsonaro desapareceu com suas conotações fascistas? O Brasil luminoso de Lula voltou com suas conquistas sociais? Existe hoje um novo Brasil inédito cujo objetivo final ainda é desconhecido? Essas são algumas das perguntas feitas por brasileiros que tremiam diante de um possível golpe militar.

Ainda não é fácil responder a essas perguntas com certeza, pois a situação no Brasil está se desenvolvendo sob as areias movediças da incerteza. Bolsonaro perdeu as eleições, mas seus seguidores ainda são corajosos e não se contentam com a derrota. Isso é demonstrado pelas manifestações das centenas de caminhoneiros acampados em Brasília em frente ao bastião militar exigindo um golpe.

É verdade que os militares, dos quais mais de 6.000 foram colocados nas classes estaduais por Bolsonaro, aceitaram a derrota do ex-capitão de extrema-direita, mas continuam mantendo uma atitude um tanto ambígua.

Os seguidores do líder de direita confiavam que a vigilância que, mesmo contra a Constituição, o Exército mantinha antes das eleições poderia levar à anulação do plebiscito que conferia a derrota do mito.

A reação dos militares era a última esperança de Bolsonaro e seus seguidores. Esperavam ter encontrado alguma veia para contestar o resultado da derrota eleitoral. Isso não aconteceu, pois o documento de 70 páginas elaborado pelas Forças Armadas revelou que não foram encontradas grandes falhas para anular o resultado das urnas. Os apoiadores de Bolsonaro não ficaram satisfeitos e exigiram uma nova posição dos militares, mobilizando centenas de caminhoneiros em Brasília.

Em um segundo documento, o Exército quis presentear os bolsonaristas desordeiros e declarou que, embora não tenham sido detectados erros nas urnas, isso não significa que não possam ser vulneráveis. Foi uma resposta diplomática, que não disse nada.

Tudo isso deu à equipe vencedora de Lula, assinada por dez partidos que abrangem desde a extrema esquerda até a direita liberal não golpista, uma nova força para se mostrar eufórica e com liberdade para realizar reformas, principalmente sociais. Assim, as verdadeiras lágrimas de Lula foram vistas com bons olhos quando ele afirmou que seu sonho é que ao final de seu mandato não haja um único brasileiro que não consiga comer três refeições por dia.

E se não há dúvidas de que o novo governo Lula será fortemente marcado por sua natureza social e não ideológica. Onde a polêmica ainda pode irromper é na formação de seu novo governo, que pode não ser fundamentalmente de seu partido, o PT, mas de uma gama de partidos que vão da esquerda ao centro e à direita liberal.

Daí as dificuldades que Lula está tendo na escolha de alguns de seus principais ministros, da Economia ao Meio Ambiente e Relações Exteriores, já que pretende restabelecer as relações com o resto do mundo após o isolamento a que Bolsonaro o condenou.

Daí a importância da recepção que Lula poderá ter nos próximos dias na Cúpula do Meio Ambiente no Egito. Será seu primeiro teste internacional, pois nessas cúpulas Bolsonaro foi bastante evitado pelos demais chefes de Estado para não se comprometer com suas alucinações golpistas e fascistas de extrema direita.

Tudo isso é importante neste momento para Lula, que não pode se enganar nem esquecer que não foi eleito apenas pela força de seu partido, mas por ter criado um bloco de forças, todas elas democráticas, capazes de enfrentar o bolsonarismo de raiz .

Como destacou Catarina Rochamonte em sua coluna para o jornal O Globo : “Não há carta branca para o novo governo. Se a maioria dos brasileiros fez tábula rasa dos enormes erros dos governos petistas, não foi por amor a Lula, mas por horror a Bolsonaro.”

Na verdade, é uma verdade que começa a se mostrar importante na formação do novo governo Lula. Nela, o que talvez menos importe neste momento é que o PT aproveite para colocar o maior número possível de anfitriões, mas para fazer uma frente forte contra o bolsonarismo, que é a grande ameaça à democracia.

São aqueles momentos da história em que surgem os verdadeiros estadistas capazes de afugentar os monstros da desintegração política e das tentações autoritárias. A verdade é que para Lula, que jura que esta será sua última aventura política, pode ser o momento em que se firma como um verdadeiro estadista capaz de tirar o Brasil do inferno.

João Árias, do Rio de Janeiro-RJ para o EL PAÍS,em 15.11.22, às 07:45hs

Júbilo e mísseis no recém-libertado Kherson: “Esperamos por isso há muito tempo”

Os habitantes da cidade recuperada pelas forças ucranianas voltam às ruas em um cenário de casas destruídas e cadáveres abandonados e com os militares russos a apenas um quilômetro de distância

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, encenou o último grande sucesso do avanço de seu exército com uma visita surpresa ao meio-dia desta segunda-feira à cidade-chave de Kherson, no sudeste do país, recuperada pela contra-ofensiva de Kiev na semana passada. após meses de ocupação russa. Na imagem, duas mulheres colocam flores em memória dos soldados que morreram na guerra, durante a visita de Zelensky a Kherson. (Foto: Oleg Petrasyuk - EFE)

Algo inédito está acontecendo nos dias de hoje em Kherson , a cidade ucraniana que se tornou o principal símbolo da retirada da Rússia da guerra. Os habitantes desta cidade no sul da Ucrânia, libertada na sexta-feira após mais de oito meses de ocupação russa, passeiam sorrindo pela avenida Ushakova, eixo principal do município. É a primeira vez desde fevereiro que eles se atrevem a dar um passeio, conversar com os amigos à luz do dia enquanto observam os filhos brincarem. Os moradores de Kherson estão felizes por terem deixado para trás o medo causado pelas tropas russas, mas a morte continua a assombrá-los: as posições russas estão a apenas um quilômetro de distância e o céu troveja constantemente com o som da artilharia.

A Plaza de la Libertad, onde se encontra a sede da Administração Provincial, é uma colmeia de cidadãos que querem partilhar a sua felicidade. ( Foto: Bernat Armangue - AP)

As bandeiras ucranianas e da União Européia que os guerrilheiros locais colocaram no mesmo dia em que os russos deixaram Kherson permaneceram lá para a posteridade. É também onde o governo regional instalou uma antena telefônica e conexão com a internet. Uma semana antes de se retirarem da única capital de província que haviam conquistado desde fevereiro, as forças russas sabotaram o abastecimento de água, eletricidade e rede telefônica. Os suprimentos não chegam às casas de Kherson, mas isso não é motivo para estragar a festa de Olena Dvornikova e Jana Gutnik. “Não nos importamos se não podemos tomar banho ou se não temos eletricidade, estamos esperando por esse momento há muito tempo, nosso moral estava no fundo do poço”, diz Dvornikova. Os dois amigos foram à praça na segunda-feira para ver o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky em uma visita surpresa carregada de simbolismo . Enquanto Zelensky falava, o barulho das armas ucranianas, localizadas a poucos quilômetros de distância, podia ser ouvido ao fundo.

A visita foi relâmpago, meia hora. O presidente teve tempo para responder algumas perguntas, presidir uma cerimônia de hasteamento da bandeira e cumprimentar os militares e pessoas presentes. Horas depois de partir, muitos moradores ainda não acreditavam que Zelensky estivesse na cidade, a poucos quilômetros das tropas russas. O presidente confirmou que assumiu um alto risco ao se aproximar tanto da linha de frente, mas explicou que devia seu apoio à população local e às tropas.

Junto com Zelenski, uma delegação de duzentos jornalistas de diferentes meios de comunicação de todo o mundo, incluindo o EL PAÍS, viajou. O Estado-Maior ucraniano está restringindo draconicamente o acesso da mídia à frente de Kherson e, nos últimos dois dias, retirou o credenciamento para trabalhar na Ucrânia de vários repórteres que entraram na província sem autorização militar, incluindo profissionais de televisão CNN e Sky News. A viagem exigiu fortes medidas de segurança que se mostraram justificadas: dois projéteis atingiram a apenas 100 metros dos ônibus da imprensa durante uma parada no caminho.

Kherson ainda é marcada pelos meses sob controle russo. Ainda há muitos cartazes de propaganda de Moscou pendurados nas ruas proclamando a unidade nacional da Rússia e da Ucrânia, bem como anúncios das companhias telefônicas do país invasor ou avisos recomendando que a população solicite passaportes. Alguns monumentos, como o do almirante czarista Ushakov, foram arrancados de seu pedestal e transferidos para a margem leste do rio Dnieper, onde o invasor colocou suas linhas de defesa.. A rota para Kherson é pontilhada de ataques de mísseis, nuvens de fumaça, casas destruídas e restos queimados de veículos blindados. Esquadrões de soldados vasculham a área em busca de munição russa abandonada para ser usada, e equipes de desminagem estão trabalhando sem parar. Também é fácil encontrar cenas macabras, como um posto de gasolina bombardeado na abordagem oeste de Kherson, onde estava um cadáver abandonado.

A cidade é agora a frente de guerra e um porta-voz do Alto Comando Sul das Forças Armadas Ucranianas confirmou a este jornal que a evacuação dos bairros próximos ao rio é uma possibilidade: "Vai depender do momento das operações militares". Essa mesma fonte alegou não saber qual a porcentagem da população ainda está em Kherson. No verão, o exército ucraniano afirmou que metade de seus 300.000 habitantes havia deixado o município, embora o número possa ser maior devido à transferência de 60.000 pessoas para território controlado pela Rússia. O governo de Kyiv afirma que milhares deles foram levados à força. Dvornikova e Gutnik, que têm filhos na Alemanha, negam conhecer quem se mudou compulsoriamente para o território russo, embora assegurem que tenha sido assim.

Oleksander Koshkin tem parentes que se refugiaram voluntariamente na Crimeia neste outono, à medida que os bombardeios se intensificavam à medida que as Forças Armadas ucranianas se aproximavam de Kherson. Koshkin e sua esposa prepararam chá, kompot quente (uma bebida caseira de frutas típica de alguns países orientais), pão com linguiça e queijo na segunda-feira para distribuir entre os soldados. As pessoas se aglomeravam ao redor das tropas para tirar fotos com elas e dar-lhes todos os presentes que pudessem. Koshkin admitiu ter medo do futuro deles, agora que estão na linha zero da guerra, mas disse que sofreu mais por sua irmã, na Crimeia: "Se nossas tropas conseguirem continuar com a ofensiva, cruzando o rio, a Crimeia será isolada da Ucrânia e ela não poderá retornar."

Na praça principal as pessoas se reúnem para carregar a bateria de seus celulares em geradores instalados pela Câmara Municipal. As crianças também correm atrás dos soldados para receber as identificações dos diferentes batalhões estacionados na cidade. Danil, um adolescente de 14 anos, ganhou 10 escudos de diferentes regimentos; seu favorito é o preto e branco de uma conhecida unidade de forças especiais que leva o nome e o símbolo de um personagem do filme, Predator, o alienígena caçador. Danil responde quando perguntado se encomendou os emblemas do exército russo: "Claro que não!"

Oleg Timkov, um jornalista e poeta local, conta que viu unidades chechenas, corpos de elite russos e multidões de batalhões das regiões asiáticas da Rússia. “Eu, como todo mundo, os evitava, os observava e os ouvia, mas me esquivava deles, eles instilavam terror.” O pior, diz Timkov, foram os ucranianos separatistas pró-Rússia em Donetsk. “Em Kherson eles tinham colaboradores que revelavam onde poderiam encontrar veteranos de guerra em Donbas, eles vieram ao meu prédio e levaram alguns; Não os vimos novamente." “As pessoas não saíam de casa por medo, principalmente mulheres e meninas da minha idade”, lembra Anna Voloshena, de 17 anos. Ela continuou seus estudos à distância; Apenas as escolas estabelecidas pelas autoridades ucranianas em colaboração com os russos, com currículo daquele país, podiam dar aulas presenciais. “Mas eles ficaram abertos apenas por um mês”, diz Voloshena, “porque ninguém foi lá, por medo e porque era estranho”. Os ucranianos que foram mais importantes em sua cooperação com a ocupação russaeles foram evacuados para a margem oriental do Dnieper , para áreas da província de Kherson ainda sob o controle das forças do Kremlin.

O inimigo, a um quilômetro de distância

Os vizinhos que moram perto do rio admitem que sofrem por suas vidas. Dvornikova e Gutnik fazem suas casas perto da ponte Antonov, dinamitadas pela retirada das tropas russas. Os dois amigos concordam que os dias de evacuação dos soldados invasores foram os piores porque as forças ucranianas bombardearam a área praticamente 24 horas por dia. Admitem que não se aproximam da costa; também o adolescente Danil admite que não tem permissão para se aproximar do Dnieper. Natalia Molchan, uma aposentada que mora nos bairros mais a oeste, explicou que no domingo foi passear nas praias do rio, para ver se via os russos na outra margem: "Eles estão muito longe, o rio está muito largo. , Um quilômetro. Não há mais perigo lá do que no resto da cidade.”

Representantes do Exército e analistas militares vêm alertando desde a semana passada que Kherson corre sério risco de ser invadida se as defesas russas decidirem bombardeá-la. Thibault Fouillet, oficial militar francês e especialista da Fundação para Defesa Estratégica, detalha em entrevista por telefone que, se o Estado-Maior russo decidir bombardear Kherson, não será uma decisão lógica do ponto de vista da visita militar: "No núcleo urbano não há neste momento as forças ucranianas; se atacam a cidade, como fizeram em outros lugares durante a invasão, é por uma decisão política”. Fouillet conclui que o mais sensato, caso a Ucrânia decida continuar a contra-ofensiva do outro lado do Dnieper, será evacuar Kherson para evitar baixas civis e facilitar o movimento de unidades militares. “Mas leva vários meses,

"Se eu morasse em Kherson e não fosse militar, sairia de lá o mais rápido possível, essa cidade é a frente", acrescenta Fouillet. Seus cidadãos não pensam como ele. “Sofremos muito, vamos comemorar por um mês essa vitória”, afirmou a médica Marina Maksimchuk. Ela e sua filha agitavam bandeiras nacionais enquanto o trovão da artilharia ucraniana vinha dos arredores de Kherson: a guerra para eles continua à sua porta.

Christian Segura, o autor deste artigo, escreve para o EL PAÍS desde 2014. Formado em Jornalismo e diplomado em Filosofia, exerce sua profissão desde 1998. Foi correspondente do jornal Avui em Berlim e depois em Pequim. É autor de três livros de não-ficção e dois romances. Em 2011 recebeu o prêmio Josep Pla de narrativa. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 15.11.22, às 04:18hs.

No G20, Biden anuncia fundos para infraestrutura no Brasil

Presidente diz que EUA vão liberar US$ 30 milhões para plantas no Brasil de processamento de cobalto e níquel, no âmbito de iniciativa do G7 de apoio a infraestrutura em países em desenvolvimento.


O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou nesta terça-feira (15/11) novos investimentos em projetos no Brasil, em Honduras e na Índia, entre outras nações, com o objetivo de melhorar a infraestrutura de países em desenvolvimento.

Biden fez o anúncio durante num evento na cúpula do G20, realizada na ilha indonésia de Bali, juntamente com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e seu homólogo indonésio, Joko Widodo.

Biden anunciou um investimento de 30 milhões de dólares (cerca de R$ 160 milhões) da agência federal americana US Development Finance Corporation (DFC) para o desenvolvimento no Brasil de instalações para transformação de minerais como cobalto e níquel, essenciais para a fabricação de veículos elétricos, painéis solares e outras energias renováveis.

Contraponto do G7 à Nova Rota da Seda

O anúncio faz parte da Parceria para Infraestrutura e Investimento Global (PGII, na sigla em inglês), iniciativa liderada pelo G7 para investir em infraestrutura em países em desenvolvimento e que busca ser uma resposta ao megaprojeto de infraestrutura chinês conhecido como Nova Rota da Seda.

No contexto dessa iniciativa, Biden também anunciou outro investimento da DFC de cerca de 15 milhões de dólares em infraestrutura de saúde na Índia. Incluído no pacote estará dinheiro para a expansão de uma rede de clínicas oftalmológicas e para uma empresa indiana que fabrica produtos de higiene feminina acessíveis.

Um dos maiores projetos da PGII será desenvolvido em Honduras, onde serão instalados painéis solares com equipamentos americanos. Isso será possível graças a uma garantia de empréstimo de 52 milhões de dólares que o Export-Import Bank dos EUA, uma agência de crédito à exportação, dará à empresa J.P. Morgan, que acabará financiando a compra pelo Banco Atlantida de Honduras dos equipamentos necessários para os painéis solares.

Por fim, Biden anunciou outros investimentos para ajudar a Indonésia a acelerar sua transição para energia limpa e projetos para aumentar o acesso à internet na Libéria.

Energia renovável

Sobre a PGII, Ursula von der Leyen afirmou que a iniciativa permitirá que seus signatários unam forças para responder à "demanda muito crescente" por energia renovável, para a qual os países do Sul global podem contribuir com "abundância de recursos naturais e potencial de energia limpa".

Do bloco europeu, o aporte financeiro virá da sua Global Gateway Strategy, que promove projetos sustentáveis e de qualidade para as pessoas e o planeta e prevê 300 bilhões de euros em investimentos em países terceiros nos próximos cinco anos, embora Von der Leyen não tenha especificado um número específico.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 15.11.22,  às 09:30hs. (md/lf EFE, AFP)

'Elite brasileira se propõe a pagar por um governo autoritário', diz analista político

Professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor de diversos livros, b'Sáber se dedica a analisar o cenário político brasileiro há anos.


Professor Tales b´Sáber

Apesar do governo Bolsonaro ter estourado as metas de inflação e os tetos previstos para gastos públicos, o mercado em nenhum momento reagiu tão negativamente como reagiu na semana passada a declarações do presidente eleito Luis Inácio Lula da Silva defendendo leniência quanto às responsabilidades fiscais. Para o psicanalista, escritor e analista político Tales Ab'Sáber, isto é uma mostra de que "talvez o ranço antissocial seja tão importante no Brasil a ponto de a elite se propor a pagar por um governo autoritário."

Professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor dos livros Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica (2012), Dilma Rousseff e o Ódio Político (2015) e Michel Temer e o Fascismo Comum (2018, todos pela editora Hedra), há anos Ab'Sáber se dedica a analisar o cenário político brasileiro.

"Homens que se têm como modernos agenciadores do capitalismo de hoje abriram mão de suas referências, de seus critérios matemáticos, racionais e competitivos para dar aval a um governo que estourou a inflação e um teto de gastos que antes diziam ser fundamental. Sem planejamento, sem horizonte de crescimento, tudo sob aplauso dos 'faria limers'", diz ele, referindo-se aos operadores que trabalham na avenida Faria Lima, em São Paulo, o centro financeiro do país.

Desde 2019, o governo Bolsonaro já alterou por cinco vezes o teto de gastos, principal regra fiscal que limita o crescimento das despesas públicas.

"E é aí que entra uma questão que os psicanalistas podem levantar: há um desejo arcaico, autoritário, sádico que é tão forte quanto os cálculos racionais e que pode relativizar o lucro em nome de uma afirmação antipopular? Existe isso? Eu acredito que sim."

"Se você pega [o livro] Raízes do Brasil, [o historiador] Sérgio Buarque de Hollanda fala de uma mentalidade antimoderna que persistia no país. Porque ela estava totalmente estruturada na lógica da época da escravidão", afirma.

O professor de filosofia da psicanálise na Unifesp publicou neste ano o livro O Soldado Antropofágico: Escravidão e Não-Pensamento no Brasil (N-1 Edições) no qual defende que o regime escravista do passado continua a marcar a sociedade brasileira por meio de exploração social e da ideia do "ponha-se em seu lugar" entre as classes.

"No meu livro eu sustento que existe sim, como dizem os psicanalistas, um gozo de não-pensamento na elite brasileira. O que ocorreu sob o bolsonarismo foi suspender os critérios de pensamento econômico quando houve o estouro da inflação, dos gastos públicos e a degradação do orçamento. Os critérios foram contornados por um traço identificador de classe", diz Ab'Sáber.

4 sinais de que gastos descontrolados pré-eleição vão cobrar fatura em 2023

Estado de 'paranoia de guerra'

O psicanalista diz que o bolsonarismo teve adesão nas mais variadas camadas sociais da sociedade brasileira porque ativou um estado de "paranoia de guerra" no qual se inculca a ideia de que valores como a família e a religião estão sob ameaça e há a necessidade de sua defesa a qualquer custo.

Segundo ele, isso pôde ser observado nos protestos em frente a comandos militares nas últimas semanas.

"Não é por acaso que há o pedido constante de 'exército, exército, exército'. Há uma ideia de guerra. Mas, além disso, há a fantasia de que o Exército é o agente civilizatório do caos brasileiro. O Exército é uma instituição que funciona assim historicamente no Brasil e às vezes se vê no direito de intervir", afirma.

"Por isso é perigoso. Se o Exército considera que há solo social para reproduzir essa fantasia, ele pode sim destruir a democracia."

Ab'Sáber compara esse espírito de guerra de um grupo que se vê o tempo todo sob risco à dinâmica de uma seita.

"O grupo identitário em estado de guerra vai se isolando. E essa também é a lógica da seita, em que todo o resto está contaminado e a pureza só está lá. É um sistema desejante-delirante. Talvez uma seita apenas introduza nesse sistema de autoproteção em grupo um valor teológico, um valor transcendental a algum Deus, mas que está sempre nomeado por um líder. Numa seita se segue o desejo do líder."

Teorias da conspiração nos grupos

Além de golpe militar como uma espécie de redenção salvadora para o país, outros elementos do imaginário de grupos conservadores brasileiros foram reunidos em um documentário dirigido por Ab'Sáber ao lado de Gustavo Aranda e Rubens Rewald e lançado em 2018.

Intervenção: Amor Não Quer Dizer Grande Coisa compila vídeos de 2015 e 2016 — um momento ainda pré-bolsonarismo — nos quais aparecem discursos sobre a "ameaça comunista" no país e teorias da conspiração dos mais variados tipos.

"Eu, como psicanalista, quis fazer esse documentário porque as ideias que estão lá têm uma lógica que convida à conversão, à identificação. Se você passa a acreditar naquilo, você passa a funcionar daquele jeito. Tudo o que a gente vê hoje em dia já estava lá nas falas do documentário, mas sem Bolsonaro. Ninguém toca no nome do Bolsonaro. É uma realidade psíquica, uma formação psicológica."

Esse conjunto de ideias que se descolam da realidade, na visão de Ab'Sáber, também está relacionado à instabilidade atual no mundo, cuja complexidade é rejeitada por meio de uma fuga em direção ao arcaico.

"Veja, tudo isso responde também a uma crise contemporânea em que o mundo se torna extremamente complexo e que o entendimento presente nesses grupos não consegue dar conta. Existe uma instabilidade geral e mundial em que se oferecem a esses grupos respostas arcaicas como solução desses problemas."

O psicanalista também vê se desenhando um impasse em que crises de diferentes naturezas, incluindo a ambiental, precisarão ser encaradas para evitar uma catástrofe final.

"O futuro está sobre a crise do trabalho, da renda e a ideia de que uma nova rodada de expansão do capital e da riqueza pode ser também uma rodada final de dissolução do planeta. O horizonte de destrutividade apocalíptica coloca um impasse em que, das duas uma, ou a continuidade, a repetição das mesmas práticas leva à destruição ou são gerados espaços de mediação e pensamento globais para dar conta da crise", diz.

"Essa é a grande complexidade. Essa mediação e esse pensamento têm que ultrapassar a própria lógica da crise. Observar os direitos ambientais, de outros seres vivos e dos biomas é uma revolução na lógica em que a única razão é a produção de mercadoria e de valor. O capitalismo está chegando no seu teto. E esse teto pode ser a catástrofe universal ou o espaço da consciência transformadora."

Shin Suzuki - Da BBC News Brasil em São Paulo, em 15.11.22, às 09:00hs. / Publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63605227

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

‘Democracia foi atacada no Brasil, mas sobreviveu’, diz Alexandre de Moraes

Em evento nos EUA, presidente do TSE afirma não ser possível que ‘redes sociais sejam terra de ninguém e milícias digitais ataquem impunemente’

 Apoiadores de Jair Bolsonaro hostilizam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) durante evento em Nova York Foto: Pedro Venceslau/Estadão

No momento em que apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) fazem protestos pelo Brasil contra o resultado das eleições e em defesa da intervenção militar, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre Moraes, afirmou nesta segunda-feira, 14, em Nova York, que a “democracia foi atacada no Brasil, mas sobreviveu”.

A declaração foi dada durante o Brazil Conference, evento promovido pelo Grupo de Líderes Empresariais (Lide), organização criada pelo ex-governador de São Paulo João Doria, que reuniu também os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli.

‘Agressão não encontra abrigo na Constituição. Isso é lamentável’, diz Gilmar Mendes após atos em NY

Primeiro a falar, Moraes pautou seu discurso na falta de regulamentação das redes sociais, nos ataques à democracia e nos questionamentos em torno da credibilidade do sistema eleitoral. “A desinformação e o discurso de ódio vêm corroendo a democracia”, afirmou.

Para Moraes, o fato de não haver regulamentação das redes sociais é um “problema mundial”. “Não é possível que redes sociais sejam terra de ninguém e milícias digitais ataquem impunemente”, avaliou, acrescentando que é necessária “liberdade com responsabilidade”.

“Sob falso manto de liberdade sem limites o que se pretende é corroer a democracia”, criticou Moraes.

O presidente do TSE comentou ainda sobre o impacto desse ambiente e das fake news na imprensa profissional. Segundo ele, “supostos jornalistas se misturam à imprensa tradicional e hoje a população não sabe mais o que é notícia verdadeira”.

Ao falar sobre os questionamentos em torno do sistema eleitoral, o ministro destacou que “pouco importa se o voto é impresso, se são urnas eletrônicas ou voto por correio, o que importa é desacreditar o voto”. Segundo Moraes, o poder Judiciário é, hoje, o principal alvo desses ataques. “O Judiciário é o grande cliente de milícias digitais. No Brasil, o poder Judiciário não foi cooptado, foi barreira para qualquer ataque à democracia e à liberdade.”

No domingo, Moraes, Lewandowski e Gilmar foram hostilizados por manifestantes na porta do hotel onde estão hospedados em Nova York. Barroso foi perseguido na Time Square.

Nesta segunda-feira, um grupo de manifestantes se posicionou em frente a entrada do Harvard Club, onde acontece a conferência, o que levou os ministros a usarem uma entrada lateral. A segurança foi reforçada.

Em sua fala, Gilmar Mendes também foi enfático contra manifestações antidemocráticas. “É preciso perguntar se não há um cenário de absoluta dissociação cognitiva, principalmente quando lunáticos pedem intervenção militar e a prisão do inventor da tomada de três pinos”, disse.

O ministro alertou para a necessidade de se questionar o que há por trás dos pedidos de intervenção militar em manifestações que acontecem após o fim das eleições presidenciais no Brasil. Ele chamou a atenção para a necessidade de união em prol da democracia no País e ainda para o foco na inclusão no “novo capítulo sobre responsabilidade fiscal”.

”A erosão constitucional revelou que o Brasil é resiliente. É preciso indagar se há algo mais por trás dos discursos lunáticos e histéricos que pedem intervenção militar”, enfatizou Mendes. Para o ministro, a democracia precisa recrutar esses cidadãos para “lutar pela democracia e não destruí-la”. “Estamos no mais longo período de normalidade democrática do Brasil”, avaliou.

Ao comentar sobre a situação fiscal do País, jogou luz ainda no lado social. “O novo capítulo sobre responsabilidade fiscal deve conter ideia de inclusão.”

Pedro Venceslau e Aline Bronzati, de New Yotk (USA) para O Estado de S.Paulo, em 14.11.22, às 15h08.

Quando fazer o óbvio contra as drogas e outros problemas é impossível?

Por trás de cada má ideia se esconde algum interesse político, econômico, cultural ou religioso

Imigrantes ilegais tentam atravessar a fronteira entre os Estados Unidos e o México  Foto: REUTERS/Jose Luis Gonzalez

Por que as sociedades e seus governos toleram passivamente ideias ruins? Por que há tantas políticas públicas obviamente fracassadas impossíveis de erradicar? A lista de países cujos governos não conseguem ou não se atrevem a enfrentar seus próprios tabus é vasta, longeva e variada. Um bom exemplo disso é a política a respeito do tráfico e consumo de drogas.

Em 18 de junho de 1971, o então presidente Richard Nixon declarou a guerra contra as drogas. Elas eram “inimigo público número 1″, afirmou. Segundo a Aliança Contra a Política Antidrogas, ONG que se opõe às políticas prevalentes nesse campo, os EUA gastam US$ 51 bilhões ao ano na guerra contra o tráfico e o consumo de drogas.

Em 2015, a Comissão Global sobre Política de Drogas, formada por um respeitado grupo de ex-chefes de Estado, estudou a fundo o tema e concluiu que “a guerra contra as drogas fracassou e surte consequências devastadoras sobre indivíduos e sociedades em todo o mundo”.

É óbvio que enfrentar esse grave problema, principalmente por meio de interdição, erradicação e prisão, não funciona. Ainda que tenha havido mudanças, e a legalização da maconha, por exemplo, já seja realidade em muitos lugares, a guerra contra as drogas, segundo Nixon formulou mais de meio século atrás, segue sendo a norma. A defesa automática do regime atual fecha a possibilidade de explorar outras alternativas. Sabemos que não haverá nenhuma solução perfeita, mas muitas opções seriam mais desejáveis do que a prevalente neste momento.

Energia

O subsídio aos combustíveis é outro exemplo de onde fazer o óbvio é impossível. Ao mesmo tempo em que o mundo embarca em um esforço sem precedentes para “se descarbonizar”, reduzindo o consumo de petróleo, gás e carvão, os governos destinam cifras inimagináveis para reduzir o preço da gasolina e da eletricidade.

Segundo o FMI, mais de 6% do total da economia mundial se dedica a subsidiar consumo de combustíveis fósseis. Estima-se que esta cifra superará 7% em 2025. Assim, com um pé os governos pisam no acelerador do consumo de combustíveis fósseis e com o outro tentam freá-lo.

Ou consideremos o embargo econômico dos EUA a Cuba, que vigora desde 1962. O propósito original foi – e segue sendo – mudança de regime em Cuba. A ideia era que o embargo enfraqueceria a economia cubana até produzir uma alteração de governo que abriria caminho para o estabelecimento de um regime democrático.

Obviamente, isso não aconteceu, e Cuba segue sendo a ditadura mais antiga da América Latina. Desde 1992, a Assembleia-Geral da ONU adota em sua reunião anual uma resolução exigindo que os EUA levantem o embargo. Mais que enfraquecer a ditadura, porém, o embargo serviu como a desculpa do governo de Havana para justificar seu fracasso econômico.

E há mais exemplos. A política em relação aos imigrantes, a política agrícola comum da Europa, regras trabalhistas que inibem a criação de novos postos de trabalho, o livre e fácil acesso a armas de fogo nos EUA, as políticas educativas, a governança da ONU e o gasto militar americano estão impregnados de ideias ruins impossíveis de eliminar.

Origem

Por trás de cada má ideia se esconde algum interesse político, econômico, cultural ou religioso. Por exemplo, sabemos que a política energética é fortemente influenciada pelas grandes corporações. Um dado recente e revelador nesse sentido é a quantidade de lobistas que representam os interesses das empresas de energia fóssil participando da cúpula da ONU sobre o meio ambiente (a COP-27).

Este ano, há 25% mais “lobistas fósseis” (como os chamam a ONG Testemunha Global, ou “Global Witness”) em comparação ao ano passado, na COP-26, em Glasgow. Somente um país (os Emirados Árabes) enviou uma delegação mais numerosa do que a formada pelos lobistas.

A guerra contra as drogas criou uma enorme e bem financiada burocracia que depois de mais de meio século aprendeu a neutralizar os esforços que buscam encontrar alternativas mais eficazes e humanas de lidar com esse problema. O embargo econômico a Cuba é defendido pelos políticos americanos que buscam votos dos cubanos na Flórida.

São poucos os que se beneficiam dessas políticas, mas eles estão bem organizados. Os prejudicados são muitos mais, mas não conseguimos fazer valer nosso número. Nestes tempos, porém, o mundo nos apresenta surpresas diariamente. É provável que em um futuro próximo fazer o óbvio não seja tão impossível, que algumas dessas ideias ruins sejam finalmente enterradas. 

Moisés Naim, o autor deste artigo, é escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowmen. / Traduçao de Augusto Calil. Publicado originalmente no Brasil n'O Estado de S. Paulo, em 14.11.22.

A responsabilidade jurídica de Bolsonaro

Não basta o juízo político das urnas. Se há indícios de que a lei penal foi descumprida, é preciso investigar. A paz não é fruto da impunidade, mas da efetiva igualdade de todos perante a lei

No regime democrático, o exercício do poder é submetido tanto ao controle político como ao jurídico. O presidente Jair Bolsonaro foi reprovado no controle político feito pelo eleitor. Nas urnas, a maioria da população rejeitou o modo como ele conduziu o Executivo federal, não lhe concedendo um segundo mandato presidencial.

Essa avaliação política feita pelo eleitor é elemento essencial do regime democrático, mas não é o único. Todo governante está submetido não apenas ao escrutínio popular, mas ao império da lei. Eventuais descumprimentos da legislação produzem consequências jurídicas. Na República, existe também uma responsabilização jurídica. Caso contrário, a lei seria inoperante, simplesmente inútil. Quem exerceu algum cargo público sabe, por exemplo, os muitos problemas que podem advir do desrespeito à Lei de Improbidade Administrativa. Literalmente, todo cuidado é pouco.

No caso de Jair Bolsonaro, os quatro anos de governo produziram um respeitável passivo jurídico, com incidência direta na esfera penal. Alguns inquéritos já foram abertos, por exemplo, com base nas suspeitas de interferência na Polícia Federal, denunciadas pelo ex-ministro Sergio Moro, e de prática do crime de prevaricação nas negociações da vacina Covaxin.

A partir do que a CPI da Covid apurou, uma comissão de juristas listou várias imputações penais potencialmente cabíveis por ações e omissões na pandemia: crimes de responsabilidade, crimes contra a saúde pública, crimes contra a paz pública, crimes contra a administração pública e crimes contra a humanidade. “O que restou evidente (...) é a ocorrência de uma gestão governamental deliberadamente irresponsável e que infringe a lei penal, devendo haver pronta responsabilização”, afirmou o parecer final, de setembro de 2021, assinado por Miguel Reale Júnior, Sylvia Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich.

Além disso, o comportamento de Jair Bolsonaro na Presidência da República motivou investigações envolvendo desinformação sobre as urnas eletrônicas e o processo eleitoral, ataques contra as instituições democráticas e vazamento de dados de investigação sigilosa da Polícia Federal.

Tudo isso não pode ser colocado debaixo do tapete, como se já fosse suficiente o juízo político do eleitor. É preciso apurar a responsabilidade jurídica de Jair Bolsonaro e, nos casos cabíveis, aplicar as penas correspondentes. Toda impunidade é prejudicial ao País, mas ainda mais grave seria a eventual impunidade de quem ocupou o mais alto posto da República. Representaria um tremendo mau exemplo para toda a sociedade.

É notório o pouco apreço de Jair Bolsonaro pela lei. Um exemplo aparentemente banal, mas muito significativo é a condução de motocicleta sem usar capacete, infração gravíssima à qual o Código de Trânsito Brasileiro atribui a penalidade de multa e de suspensão do direito de dirigir. O presidente da República simplesmente acha que a lei não vale para ele.

Em seu parecer, a comissão de juristas da CPI da Covid fez um diagnóstico a respeito da gestão da pandemia que pode ser aplicado a todo o governo de Jair Bolsonaro. “Não são poucas as situações que, ao ver da comissão de especialistas, merecem o aprofundamento das investigações pelos órgãos de controle do Estado brasileiro, assim como são bastante evidentes as hipóteses reais de justa causa para diversas ações penais”, disse o parecer.

O País precisa exatamente disso: investigação serena e criteriosa, dentro da mais estrita legalidade, respeitando as competências funcionais, para apurar os indícios de crime e as respectivas responsabilidades, de forma a permitir depois, quando for o caso, a aplicação, pelas vias judiciais competentes, das penas legais cabíveis.

Não se trata de perseguir ninguém. Mas não é plausível que, diante de tantos indícios – pequenos ou grandes, como, por exemplo, são as suspeitas envolvendo o MEC –, nada seja investigado. Jair Bolsonaro não está acima da lei. A tão necessária pacificação nacional não virá da impunidade, mas da efetiva percepção de que todos são iguais perante a lei.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 14.11.22, às 03h00

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Nas eleições, EUA desviaram de flechada fatal na democracia

Negacionismo eleitoral levou uma surra na eleição de terça-feira, mas nenhuma das coisas que estão corroendo os fundamentos da democracia americana foram embora


Eleitores americanos rejeitaram candidatos extremistas apoiados em discursos de negacionismo eleitoral. Foto: Julio Cortez/ AP

Pronto, pode adiar a sua mudança para o Canadá. Pode desistir da ligação para a Embaixada da Nova Zelândia sobre como se tornar um cidadão lá. A eleição de terça-feira foi realmente o teste mais importante desde a Guerra Civil para saber se o motor do nosso sistema constitucional – nossa capacidade de transferir poder de forma pacífica e legítima – permanece intacto. E parece ter sido aprovado – um pouco escangalhado, mas tudo bem.

Ainda não estou nem perto de dizer que estou aliviado, para declarar que nunca mais um político americano ficará tentado a concorrer com uma plataforma de negação eleitoral. Mas, dado o grau sem precedentes em que o negacionismo eleitoral foi elevado nestas eleições de meio de mandato, e a maneira como vários cabeças-de-bagre imitadores de Trump que tornaram o negacionismo central em suas campanhas foram esmagados nas urnas - podemos ter apenas desviado de uma das maiores flechas já apontadas para o coração da nossa democracia.

Com certeza, outra flecha pode nos atingir a qualquer momento, mas todo o sistema eleitoral dos EUA – em Estados republicanos e democratas – parece ter tido um desempenho admirável, quase ignorando os últimos dois anos de controvérsia, diminuindo-o ao que sempre foi: a fabricação vergonhosa de um homem e seus bajuladores e imitadores mais desavergonhados. Dada a ameaça representada pelos negacionistas de Trump à aceitação e legitimidade de nossas eleições, isso é um grande feito (e espero que dure até a contagem de votos no Arizona).

Apoiadora do ex-presidente Donald Trump usa camisa do grupo conspiracionista QAnon enquanto segura cartaz afirmando que Trump venceu a eleição presidencial de 2020, durante convenção do Partido Republicano na Carolina do Norte.

Apoiadora do ex-presidente Donald Trump usa camisa do grupo conspiracionista QAnon enquanto segura cartaz afirmando que Trump venceu a eleição presidencial de 2020, durante convenção do Partido Republicano na Carolina do Norte. Foto: Jonathan Drake/ Reuters - 05/06/2021

Não poderia vir em melhor hora, pois os líderes da Rússia e da China manipularam seus sistemas para se entrincheirar no poder além de seus mandatos previamente estabelecidos.

Um dos argumentos deles para seu próprio povo ao fazê-lo foi apontar para coisas como a insurreição de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos e o aparente caos de nossas eleições para dizer a seus cidadãos: “É assim que a democracia parece. É isso que vocês querem aqui?”.

De fato, em maio, durante seu discurso para a turma de formandos da Academia Naval dos EUA, o presidente Joe Biden lembrou quando o presidente chinês, Xi Jinping, o parabenizou em 2020 por sua eleição: “Ele disse que as democracias não podem ser sustentadas no século 21; as autocracias governarão o mundo. Por quê? As coisas estão mudando tão rapidamente. As democracias exigem consenso, e isso leva tempo, e você não tem tempo.”

Por essa razão, tanto Xi quanto o presidente da Rússia, Vladimir Putin – e o líder supremo no Irã, que agora enfrenta uma revolta liderada por mulheres – também perderam na noite de terça-feira. Porque quanto mais selvagem e instável nossa política, quanto menos capazes nos tornamos para transferir o poder pacificamente, mais fácil é para eles justificarem nunca fazê-lo.

Mas enquanto o negacionismo eleitoral levou uma surra esta semana, mandando uma mensagem vencedora, nenhuma das coisas que ainda estão corroendo os fundamentos da democracia americana – e nos impedindo de realmente realizar grandes coisas difíceis – foram embora.

As condições pareciam propícias para que os republicanos conquistassem importantes avanços nas eleições legislativas, mas o eleitorado tinha outros planos..

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A maré ainda favorece os republicanos contra os democratas daqui dois anos, mas sem necessariamente depender do ex-presidente

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Democratas mostram força em meio a campanha republicana focada em expor inflação e criminalidade

Avanço republicano nas eleições de meio de mandato foi menor do que o previsto, apesar dos esforços do partido em tornar o pleito um referendo sobre o governo Joe Biden

Estou falando sobre a maneira pela qual nosso sistema de eleições primárias, com o gerrymandering, a manipulação dos distritos eleitorais, e as redes sociais se uniram para envenenar constantemente nosso diálogo nacional, polarizar constantemente nossa sociedade em tribos políticas e corroer constantemente os pilares de nossa democracia: verdade e confiança.

Sem poder concordar com o que é verdade, não sabemos qual caminho seguir. E sem poder confiar um no outro, não podemos ir para lá juntos. E tudo o que é grande e difícil precisa ser feito em conjunto.

Então, nossos inimigos seriam sábios em não nos deixar para morrer, mas seríamos ainda mais sábios em não concluir que, porque evitamos o pior, asseguramos o melhor caminho daqui pra frente.

Tudo não está bem.

Estamos tão divididos saindo desta eleição quanto estávamos ao entrar nela. Mas se a onda vermelha não se concretizou – particularmente em Estados-pêndulo como a Pensilvânia, onde John Fetterman ganhou uma cadeira no Senado sobre o candidato endossado por Trump, Dr. Oz – foi apenas porque republicanos e democratas moderados e eleitores independentes apareceram para colocar Fetterman e outros candidatos lá.

“Ainda há um grupo viável de eleitores centristas por aí, que, quando têm uma escolha válida – não em todos os lugares, nem sempre, mas em alguns distritos-chave – se impõem”, me disse Don Baer, que foi diretor de comunicação da Casa Branca na era Bill Clinton. “Acho que ainda há muitos eleitores dizendo: ‘Queremos um centro viável, onde possamos descobrir como fazer as coisas acontecerem, que possa realmente ajudar as pessoas, mesmo que não seja perfeito ou tudo de uma vez. Não queremos que todas as eleições sejam existenciais’.”

O desafio, acrescentou Baer, “é como você eleva esse sentimento e o faz funcionar em Washington regularmente?”.

Não sei. Mas se esta eleição é um sinal de que pelo menos estamos nos afastando do precipício é porque muitos americanos ainda se enquadram nesse campo independente ou centrista. Eles não querem ficar remoendo queixas, mentiras e fantasias de Donald Trump, e eles enxergam que elas estão deixando o Partido Republicano louco e agitando o país inteiro. Eles também não querem ser algemados pelos wokes identitários da extrema esquerda, e estão aterrorizados com a disseminação do tipo de violência política doentia que acabou de atingir o marido de Nancy Pelosi.

Temos uma enorme dívida por manter este centro vivo para com os deputados republicanos Liz Cheney e Adam Kinzinger e a deputada democrata Elaine Luria. Os três ajudaram a liderar a investigação sobre o 6 de janeiro no Congresso e acabaram sendo forçados a deixar o cargo como resultado. Mas a mensagem que o comitê enviou a um número suficiente de eleitores – que nunca, nunca, nunca, devemos deixar algo assim acontecer novamente – certamente contribuiu para a ausência de uma onda pró-Trump nesta eleição de meio de mandato.

Em suma, não recebemos um atestado de saúde. Recebemos um diagnóstico de que nossos glóbulos brancos políticos se saíram bem em derrotar a infecção metastática que ameaçava matar todo o nosso sistema eleitoral. Mas essa infecção ainda está aqui, e é por isso que o médico aconselhou: “Comporte-se de maneira saudável, recupere sua força e retorne em 24 meses para outro exame”.

Thomas L. Friedman, o autor deste artigo, é colunista do New York Times. Publicado no Brasil pelo O Estado de São Paulo, em 10.11.22, às 10h20.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Após reunião com integrantes do Judiciário e Congresso, Lula diz que 'é possível recuperar harmonia entre Poderes'

Presidente eleito teve maratona de encontros em Brasília com membros do Supremo Tribunal Federal e da Câmara e do Senado

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, se reuniu no final da tarde desta quarta-feira com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes. Na saída, em entrevista coletiva, o petista afirmou que é possível recuperar harmonia entre poderes.

— Instituições foram atacadas, violentadas com linguagem nem sempre recomendável por certas autoridades - afirmou, fazendo referências às investidas de Jair Bolsonaro à Justiça eleitoral.

O presidente eleito reforçou a confiança na urna eletrônica, que chamou de "conquista do povo brasileiro", e disse que o Brasil vai "voltar à normalidade".

— Eu ainda nem sei quem é oposição. Nós tivemos apenas uma conversa com o presidente da Câmara, uma conversa com o presidente do Senado. Há muita disposição dos dois com concordância daquilo que estamos propondo. não foi especificado ainda tudo que nós queremos — disse ainda.

Reunião no STF

Antes de se encontrar com Moraes, Lula esteve no Supremo Tribunal Federal (STF), onde se reuniu com a presidente, Rosa Weber, e demais ministros da Corte, exceto Luís Roberto Barroso, que está viajando.

A reunião contou com a presença do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, a deputada federal e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o senador Randolfe Rodrigues, o senador eleito Flávio Dino, o deputado federal eleito Paulo Teixeira, o ex-ministro Aloizio Mercadante, os advogados Eugênio Aragão e Cristiano Zanin e o procurador da Fazenda Nacional Jorge Messias, que é cotado para assumir a Advocacia-Geral da União (AGU).

No encontro, foram tratados temas como a necessidade de reaproximação entre o Executivo e o Judiciário, em contraposição aos constantes ataques do presidente Jair Bolsonaro (PL) ao STF. Além disso, Lula e os ministros da Corte falaram sobre a importância da participação do Judiciário em temas relacionados à proteção ao meio ambiente e ao desarmamento.

Atualmente tramitam no Supremo, por exemplo, ações que questionam medidas ambientais tomadas pelo atual governo, o marco temporal das terras indígenas e as ações que questionam os decretos de armas editados por Bolsonaro.

Após a reunião, o senador eleito Flávio Dino afirmou que o encontro entre Lula e os ministros do Supremo simboliza um "marco histórico" no restabelecimento da harmonia entre os poderes. O ex-governador do Maranhão também disse que todos os magistrados, inclusive os indicados por Bolsonaro, falaram com o presidente eleito.

— Essa visita é um sinal histórico de que o momento de confronto entre os poderes ficou para trás e que nós estamos restabelecendo a harmonia entre os poderes — disse.

Ainda segundo Dino, o caminho que deve ser adotado pela equipe de transição para garantir as promessas de campanha feitas pelo governo eleito deve ser uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Segundo ele, a prioridade é dar margem fiscal para compromissos em torno do sla'rio mínimo, da merenda escolar, da farmácia popular e do Bolsa Família ampliado.

Em nota divulgada após o encontro, o STF informou que "os ministros apontaram preocupações para o Brasil, como a necessidade de investimentos em educação e meio ambiente". E que o presidente eleito, por sua vez, afirmou que "atuará pela reconstrução da união do Brasil".

Após a reunião no STF, Lula seguiu com a comitiva para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde se reuniria com o presidente da Corte, Alexandre de Moraes.

Mariana Muniz e Gabriel Shinohara, de Brasília - DF para O Globo, em 09.11.22, às 18h33

Entenda como Gal Costa se tornou símbolo forte de rebeldia das mulheres

Cantora, morta nesta quarta, é um marco incontornável da música e desafiou o conservadorismo no auge da ditadura

A cantora Gal Costa / Arquivo Nacional

Uma das poucas mulheres a integrar a tropicália, Gal Costa, que morreu nesta quarta-feira, foi um marco não só na música brasileira, como também nas camadas sociais do país, sendo responsável por chacoalhar a cultura dos anos 1960 e 1970, ao virar um símbolo de liberdade feminina.

Os vocalizes agudos da baiana vieram, muitas vezes, embalados por performances dominadas por rebeldia, que inspiraram uma legião de mulheres a se verem fora da caixinha fru-fru da Barbie Girl.

Fosse pelas roupas espalhafatosas, os decotes ousados, as danças sensuais, o típico cabelo hippie, o espírito libertário de curtir a vida, os solos vocais que encantaram ouvidos de norte a sul do Brasil, ou pela presença marcante num dos principais movimentos culturais do país, Gal foi na contramão de estereótipos machistas.

Até mesmo o jeito que a cantora segurava o violão revelava sua forma inovadora de lotar casas de shows. Nada de pernas cruzadinhas. Em muitas das apresentações, Gal apoiou o instrumento em joelhos afastados entre si. Pode até parecer um gesto pequeno, mas é só se perguntar, por acaso, quantas mulheres cantam, até mesmo nos dias atuais, com as pernas escancaradas.

O guarda-roupa da cantora também endossava a rebeldia, sobretudo na sua fase tropicalista, que contou com looks espalhafatosos e ousados.

Nos anos 1980, Gal chegou a posar nua para uma revista e ganhou, na época, fama de vulgar. Ela já havia aparecido seminua na capa de "Índia", um de seus maiores discos. Nenhuma nudez, claro, faz de alguém feminista —ou antifeminista—, mas o que chama a atenção é como Gal desafiou, sem pudores, normas conservadoras de um Brasil regido pela ditadura militar.

Em "Índia", Gal aparece de calcinha vermelha, cocares e mamilos à mostra. O álbum traz um sentimento de revolta social, com letras contestadoras e, acima de tudo, subversivas, como em "Presente Cotidiano" —composta por Luiz Melodia—, na qual a artista debocha da ideia propagada pelos militares de milagre econômico.

Talvez o álbum que melhor sintetiza a tropicália, "Gal a Todo Vapor" é outra obra transgressora da baiana. A começar pelo fato de que é o primeiro disco do Brasil gravado ao vivo —não à toa, dá para ouvir ruídos, improvisos e vários detalhes. Depois, pela brasilidade arranhada nas guitarras agressivas. E, claro, pela performance de Gal.

No show que gerou o disco, a cantora traduz bem o desbunde da contracultura brasileira, com brilhos pelo corpo, roupas hippies, sensualidade, psicodelia, rebeldia e enaltecimento de vários Brasis. Tudo isso acompanhado de seu vocal agudo, que ora surgia violento, ora doce.

Até mesmo a boca que estampa a capa de "Gal a Todo Vapor" reflete a faceta contraventora da artista. Tingidos por um forte batom vermelho, os lábios da baiana emulam uma imagem diferente da de mulher recatada e do lar.

Foi também na época de "Fa-Tal" que a cantora se tornou símbolo dos encontros da elite carioca hippie, mais especificamente do píer de Ipanema, no Rio de Janeiro. Conhecidas como as dunas de Gal, o local virou um point psicodélico da contracultura, onde jovens se reuniam para conversar, usar drogas e compor músicas.

Na época, Gal era vista como "a musa do tropicalismo", apelido que até hoje é usado para se referir à cantora. Há de se considerar o teor sexualizado do termo —afinal, nenhum dos músicos do movimento teve fama desse tipo—, mas a popularidade de diva nunca incomodou Gal, como ela mesma disse a este jornal, em 2015.

Ainda que não erguesse a bandeira feminista, o legado que Gal deixa para as mulheres é do espírito que encarnou dentro e fora dos palcos, o de alguém que quis ser livre.

Marina Lourenço, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição on line, em 09.11.22, às 15h28.

Biden resiste

O ataque à democracia pelo republicanismo extremista não atinge seus objetivos e o Partido Democrata continua

Joe Biden, em um comício a favor dos candidatos democratas da Pensilvânia no dia 5 na Filadélfia. (DPA Via Europa Press)

O tsunami trumpista não chegou. Os Estados Unidos passaram por eleições momentosas nas quais estava em jogo muito mais do que a eleição de senadores, deputados, governadores e milhares de cargos estaduais e locais. O próprio futuro da democracia estava parcialmente em jogo. O resultado eleitoral mostra um país dividido, mas também há alguns sinais de rejeição às posições mais extremistas, o que dá esperança de que a democracia tenha passado no teste.

A esmagadora “onda vermelha” prevista por Donald Trump ficou aquém porque os democratas resistiram muito melhor do que o esperado. Eles têm uma forte chance de manter o controle do Senado e perderam por pouco a Câmara dos Representantes. Se os republicanos queriam que isso fosse um referendo sobre Joe Biden, ele alcançou uma vitória moral, já que dados provisórios sugerem que ele é o presidente menos punido em uma eleição legislativa nos últimos 20 anos, apesar de lidar com a inflação mais alta em quatro décadas e uma forte erosão de sua popularidade.

Biden aproveitou o fato de ter Trump à sua frente para fazer uma árdua defesa da democracia que parece ter dado certo. Mas esse tipo de doce derrota não pode esconder que será suficiente para os republicanos controlarem a Câmara dos Deputados por uma estreita maioria, como indicam os primeiros resultados, para tentar impossibilitar a vida de Biden com um bloqueio legislativo, comissões de investigação e políticas processos judiciais justificados ou não, bem como um questionamento do apoio econômico e militar à Ucrânia diante da agressão russa.

Os republicanos ficaram muito aquém de suas expectativas. Alguns dos candidatos mais extremistas apoiados por Trump foram claramente derrotados, o que mostra as limitações eleitorais do ex-presidente. Devasta entre as bases mais fiéis do Partido Republicano, mas gera divisão e uma ampla rejeição no eleitorado como um todo. O panorama apocalíptico dos Estados Unidos que ele desenhou em sua campanha de linha grossa não atraiu os eleitores tanto quanto ele esperava. De fato, há quem considere que o resultado republicano teria sido melhor sem o protagonismo do ex-presidente.

Esta terça-feira marcou de várias maneiras o início da campanha presidencial de 2024, uma nomeação para a qual o magnata de Nova York deve concorrer na próxima semana. Suas chances de sucesso podem não ser tão grandes quanto ele mesmo acredita.

O secretário de Estado da Geórgia que se recusou a “encontrar” votos suficientes para Trump vencer as eleições presidenciais de 2020 foi reeleito. É outra boa notícia que, neste caso, não pode esconder o fato de que cerca de 200 negadores eleitorais, instalados em graus variados na farsa de que Trump foi roubado nas eleições, foram eleitos. Muitos deles serão parlamentares, mas outros também aspiram a cargos como secretário de Estado ou governador com responsabilidades diretas pela organização e supervisão de futuras eleições. Esse é outro motivo de preocupação, embora a contagem final ainda demore algumas horas ou até talvez, em alguns casos, dias. Nesses casos, o conspiracionismo pode reutilizar perigosamente as margens estreitas.

Embora a organização eleitoral de alguns Estados deixe muito a desejar, o dia transcorreu sem problemas graves e sem violência, um alívio da extrema tensão que o país vem enfrentando. Houve atrasos, falhas técnicas e pequenos incidentes que Trump e seu povo tentaram explorar, mas a normalidade democrática prevaleceu. Como a contagem de votos termina em alguns eleitorados apertados, resta saber se os candidatos a Trump que perderam são capazes, desta vez, de aceitar sua derrota.

Editorial do EL PAÍS, em 09.11.22.  Publicado originalmente às 16:21 hs. 

Democratas frustram as aspirações de um retorno triunfante de Trump

O ex-presidente, que planeja anunciar sua candidatura para 2024 na próxima terça-feira, toma corretivo nas urnas com o fracasso da maioria de seus candidatos

O ex-presidente Donald Trump, durante sua aparição ontem à noite na Flórida. (Foto: Joe Readle / Getty Images)

Donald Trump conseguiu mais uma vez o que procurava: colocar-se no centro das eleições [cujos resultados podem acompanhar aqui em direto ]. Mas desta vez não saiu como o esperado. O último sprint em sua penúltima corrida narcisista foi dado na segunda-feira em um comício em Dayton (Ohio), onde adiantou que no dia 15 de novembro preparou seu grande anúncio. Ninguém duvida de seu conteúdo: será a confirmação do lançamento de sua corrida à Casa Branca em 2024. O que o ex-presidente não suspeitava então é que os democratas, que, embora previsivelmente percam o controle da Câmara Deputados, o farão por muito menos do que o esperado, eles estavam prontos para conter a “onda vermelha” que Trump estava alardeando. O magnata de Nova York estava convencido de que essa cor, associada ao Partido Republicano nos Estados Unidos, varreria as pesquisas.

O ex-presidente convocou um partido para assistir às eleições na terça-feira em sua residência em Mar-A-Lago, em Palm Beach, onde votou pela manhã com sua esposa, Melania Trump. E lá ficou claro que, se ele e seu pessoal achavam que o retorno triunfante à Casa Branca em 2024 era um acordo feito, era melhor pensar nisso novamente.

Inexperiência e Extremismo

Alguns dos candidatos mais famosos que Trump apoiou nas primárias ficaram cara a cara em uma noite atípica com a realidade eleitoral. Lee Zeldin, em Nova York, Doug Mastriano e Mehmet Oz, na Pensilvânia, Tudor Dixon, em Michigan, e Don Bolduc, em New Hampshire, todos candidatos cujo maior crédito era o apoio de Trump, bateram contra o muro da sua inexperiência e do seu extremismo.

Quatro dos cinco (exceto Oz) pertencem à tribo dos negacionistas eleitorais que acreditam, como o próprio Trump, na falsa teoria da fraude maciça nas eleições presidenciais de 2020. Para outras duas novas faces do novo trumpismo mais extremista, Kari Lake e Blake Masters, as coisas também não pareciam boas, à medida que a contagem progredia no Arizona.

O anúncio do ex-presidente na segunda-feira ocorreu no final de um dia em que os candidatos republicanos de todo o país temiam um golpe de última hora em suas expectativas, que pareciam favoráveis ​​a menos de 24 horas da data de encerramento. eleições, as mais importantes da memória recente nos Estados Unidos. Deles virá a composição do Congresso (cujas 435 cadeiras são renovadas) e do Senado (um terço das cadeiras são votadas lá). Também está em jogo a segunda metade do mandato de Joe Biden, o futuro de Trump e a eleição de 2024, cuja pré-campanha foi inaugurada na terça-feira.

Trump, que perdeu em 2020, apesar de ainda não ter aceitado essa derrota, começou a colher a margarida presidencial na primavera de 2021. Durante as primárias deste ano, ele dava seu apoio engraçado a alguns candidatos e crucificava outros. Então parecia uma estratégia arriscada: e se aqueles que ele estava empurrando acabassem no precipício? Antes do verão, muitos em seu partido temiam que um holofote muito forte sobre o ex-presidente ofuscasse as aspirações republicanas. No final, essa influência saiu pela culatra em algumas corridas cruciais em todo o país. Não é absurdo dizer que, se o partido acabar perdendo o controle do Senado, o fará em parte por causa do grupo escolhido pelo ex-presidente.

Como este culminou na segunda-feira em Ohio é mais um exemplo de seu estilo inimitável de comunicação, daquele momento de marketing político que é difícil saber se deve ser atribuído a um gênio calculado ou apenas ao puro acaso. "Provavelmente terei que fazer isso de novo", disse ele em um comício no Texas há duas semanas. Na quinta-feira, em Iowa, para apoiar a reeleição do senador Chuck Grassley, ele divulgou uma de suas frases memoráveis ​​ao afirmar: "Muito, muito, muito provavelmente farei de novo". No sábado, na Pensilvânia, ele disse: "Eu realmente quero fazer isso". E no domingo em Miami, ele pediu a seus eleitores que ficassem atentos no dia seguinte: "Temos um grande comício amanhã à noite em Ohio".

A Ameaça DeSantis

Todos os analistas e pesquisas concordam que Trump teria muitas opções nas primárias presidenciais. Dentro do partido, apenas o governador da Flórida, Ron DeSantis , parece capaz de ofuscá-lo (outros nomes que soam são os de seu vice-presidente, Mike Pence, ou os dos governadores da Virgínia, Glenn Youngkin, e do Texas, Greg Abbott). .

A ameaça de DeSantis parece ainda mais séria desde terça-feira, depois que ele varreu sua reeleição na Flórida. Há também sérias diferenças entre os dois, que eles não fazem nenhum esforço para esconder. No domingo passado, Trump e DeSantis competiram em comícios paralelos na Flórida, mas os dois evitaram se ver. O ex-presidente disse que não apoiou o governador, que estava concorrendo à reeleição (e venceu tranquilamente), porque não o "pediu".

“Se ele aparecer, ele aparece”, disse Trump sobre DeSantis aos repórteres que viajavam com ele em seu avião particular, o Trump Force One, que o levaria para Dayton na segunda-feira. Do governador, que ele colocou em um comício no fim de semana na Pensilvânia, um de seus famosos apelidos, "DeSanctimonius" (brincando com seu sobrenome e a palavra "pudish", em inglês), ele disse em declarações publicadas terça-feira no The Wall Street Journal: “Se ele concorrer, contarei coisas sobre ele que não serão muito lisonjeiras. Eu sei mais sobre ele do que qualquer outra pessoa, exceto, talvez, sua esposa. Ela é quem está conduzindo sua campanha.”

Se Trump chegar à corrida final para a Casa Branca, ele poderá encontrar seu antigo oponente novamente, Joe Biden, que parece determinado a concorrer à reeleição apesar de ter quase 82 anos. Outros possíveis candidatos democratas para 2024 podem ser os governadores da Califórnia, Gavin Newsom; Michigan, Gretchen Whitmer, ou mesmo Illinois, JB Pritzker.

Iker Seis Dedos, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS em Washington. Licenciado em Direito Económico pela Universidade de Deusto e mestre em Jornalismo UAM/EL PAÍS, trabalha no jornal desde 2004, quase sempre ligado à área cultural. Depois de passar pelas seções El Viajero, Tentaciones e El País Semanal, foi editor-chefe de Domingo, Ideas, Cultura e Babelia. Publicado originalmente em 09.11.22 às 05:36hs

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Com a inflação mais alta em quatro décadas e um presidente democrata muito impopular, os Estados Unidos se recusaram mais uma vez a entregar o poder ao fanatismo da seita Trump

Um centro de votação em San Francisco na terça-feira. (John G. Mabanglo -  EFE)

Os Estados Unidos foram às urnas na terça-feira com Donald Trump no centro do palco político pela quarta vez em seis anos e, pela quarta vez, sua força real nas urnas provou ser muito menor do que sua incrível capacidade de intoxicar. .

Os resultados finais podem demorar dias para serem conhecidos, mas na manhã desta quarta-feira pode-se confirmar que os republicanos não conseguiram capitalizar o desgaste da presidência de Biden, como a oposição costuma fazer nas eleições de meio de mandato. O sistema de eleições a cada dois anos incentiva os cidadãos a votar contra e faz com que o poder em Washington seja sempre distribuído. É estranho que isso não aconteça. O resultado provisório aponta para um empate amargo, que tem sabor de derrota em uma situação de inflação de preços disparada e com avaliação do cidadão do presidente abaixo de 40%. A causa da incapacidade dos republicanos de ganhar um único assento no Senado, mudar um governo ou obter a maioria na Câmara (os dados indicam que será republicano, mas neste momento apenas um assento líquido mudou de mãos) Eles não pode ser atribuído ao sorriso de Biden ou à força de uma mensagem democrata que está desorientada e na defensiva há meses devido à situação econômica. A causa deve ser buscada do lado republicano. Foi aí que, contra todos os precedentes no comportamento de ex-presidentes, Donald Trump decidiu que ele seria o fator decisivo nessas eleições. Desejo concedido.

Trump perdeu as eleições de 2016 por mais de três milhões de votos, embora tenha vencido a Casa Branca graças a uma cirurgia eleitoral: apenas algumas dezenas de milhares de votos em três estados-chave. Por quatro anos, ele atuou como uma bola de demolição para as instituições americanas de dentro do Salão Oval. Naquela época, caíram tradições democráticas, regras não escritas de decoro institucional, limites intocáveis ​​ao uso do poder presidencial. Mas os cidadãos corrigiram esse desvio assim que tiveram a oportunidade. Em 2018, o Partido Republicano perdeu 40 cadeiras na Câmara dos Deputados (o maior revés desde a presidência de Nixon) e a maioria na Câmara. Em 2020, ele perdeu a Casa Branca (desta vez por sete milhões de votos) e o controle do Senado, com perdas em lugares tradicionalmente republicanos como Arizona ou Geórgia. Os apocalípticos falharam. O sistema resistiu.

No entanto, a recusa de Trump em reconhecer o resultado eleitoral ameaçou criar uma divisão tóxica impossível de resolver não só no Congresso, mas nem mesmo pelas urnas, a ponto de a possibilidade de um confronto armado entre extremos ter se tornado no bate-papo do café. As eleições de 2022 foram a oportunidade de ver se esse era o desvio irremediável ao qual Trump havia condenado a democracia americana. Ao negar o resultado eleitoral, a continuidade de Trump como força hegemônica da direita norte-americana questionou a própria democracia, como bem afirmou Biden.

Trump ampliou seu controle sobre o Partido Republicano graças ao seu talão de cheques e ao fascínio que exerce sobre aproximadamente um grande terço da base, um grupo sem o qual é impossível para um candidato vencer suas primárias. Assim, centenas de candidatos que abraçam com entusiasmo as bobagens do ex-presidente conquistaram cadeiras e cargos de responsabilidade para ter seu apoio. Mas uma conclusão deixada por estas eleições é que este apoio só é decisivo a nível local. Nas eleições em que o eleitorado é estadual (governadores ou senadores), não pode vencer o centro moderado, o que, felizmente, parece continuar existindo. Isso é fundamental para que o partido possa começar a falar claramente sobre deixar Trump para trás. Ele vai resistir.

A derrota do trumpismo tem rosto em pelo menos seis dessas competições. Nessas eleições, perderam os trumpistas que aspiravam a governador e senador pela Pensilvânia, aquele que aspirava a senador por New Hampshire e os candidatos a governadores de Maryland, Massachusetts e Nova York. Os resultados do Arizona ainda não são conhecidos, onde dois candidatos do magaverse estão a caminho de perder nas eleições para governador e Senado, embora o aperto do resultado possa mais uma vez transformar o Arizona em marco zero para antidemocráticos conspiração. Da mesma forma, os candidatos negadores ainda têm opções na Geórgia e Nevada.

Ao mesmo tempo, vários republicanos venceram confortavelmente suas eleições sem a necessidade de Trump, como o governador do Texas, Greg Abbott, ou o governador da Flórida, Ron DeSantis, que não esconde sua intenção de ser candidato em 2024. Entre eles destaca-se Brian Kemp, que se repete como governador da Geórgia. Kemp entrou em conflito com Trump quando ele tentou fazer com que as autoridades republicanas do estado manipulassem os resultados das eleições de 2020 e se recusassem a certificar a vitória de Biden no estado. Se a estrutura é a sobrevivência da democracia, é uma boa notícia que os candidatos que têm sua própria marca republicana, além de Trump, venceram. Uma marca perigosamente extremista, sim, mas não Trumpista. Eles não questionam o sistema eleitoral.

A indústria de pesquisas de opinião nos dirá nos próximos dias em que votaram negros, latinos, sindicatos, aposentados, jovens, militares e donas de casa brancas suburbanas. Além disso, que influência teve o desvio à direita do Supremo Tribunal Federal, evidente ao eliminar a proteção do direito ao aborto em vigor há 40 anos, na hora de mobilizar o voto democrata. Mas os números finais sugerem que os Estados Unidos continuam sendo um país razoavelmente dividido ao meio, onde as pessoas votam em paz, em que um segmento do eleitorado muda sua opção política sem problemas de um ciclo para outro e os candidatos pesam tanto quanto ou mais do que as partidas. Quero dizer, como sempre. Embora ele tenha empurrado seu partido para a direita de uma maneira perturbadora que os eleitores julgarão, Até agora, Trump não conseguiu alterar fundamentalmente a coexistência democrática quando se trata de votar. Pode parecer óbvio, mas isso é algo que estava em jogo nestas eleições, e as primeiras conclusões são boas.

A deriva iliberal do republicanismo já acumulou três ataques fracassados ​​às instituições de Washington. Mas a batalha não acabou. Se Trump foi uma concha inesperada que deixou danos visíveis à Casa Branca, o Trumpismo é uma bomba de fragmentação que se espalha por todo o quadro institucional dos Estados Unidos, causando danos inestimáveis ​​de longe. A luta pela saúde da democracia agora se move para condados, municípios, xerifes , promotores ou conselhos escolares, funcionários eleitos com mais influência na vida cotidiana do que a Casa Branca. O próximo jogo acabou de começar.

Pablo Ximenez de Sandoval, o autor deste artigo, é editorialista da seção Opinião. Trabalha no EL PAÍS desde 2000 e desenvolveu sua carreira no Nacional e no Internacional. Em 2014, abriu o escritório correspondente em Los Angeles, Califórnia, que ocupou até dezembro de 2020. Ele é de Madri e é formado em Ciência Política pela Universidade Complutense. Publicado originalmente em 09.11.22,às 14:33 hs.