segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno, não perdoou o Judiciário de seu tempo

Gregório de Matos Guerra (1636-1696) não perdoou os magistrados de seu tempo. Pior. Foi um deles. Chegou a desembargador. Nasceu na Bahia. A família era rica. Viveu alguns anos em Portugal. Ocupou vários cargos na burocracia colonial. Irreverente, foi demitido e desterrado para Angola. Quando voltou para o Brasil foi proibido de ficar na Bahia. Morreu no Recife. Casou-se com uma viúva, a quem abandonou, bem como abandonou a advocacia.

Segundo José Guilherme Merquior, Gregório teve um impulso boêmio, bem semelhante ao que tomaria, nos "Velhos Marinheiros" de Jorge Amado, o Capitão Vasco Moscoso de Aragão. Os historiadores da literatura (José Veríssimo) dizem que Gregório era vaidoso, muito vaidoso. Talvez mais do que por ser poeta, o orgulho com o título de doutor fazia de Gregório um reincidente no mais pesado dos pecados capitais (a soberba). Era um letrado arrogante, como insinuavam os inimigos. E os tinha muitos.

Gregório de Matos insistia que a justiça protegia os poderosos: "O Fidalgo de solar se dá por envergonhado de um tostão pedir prestado para o ventre sustentar: diz, que antes o quer furtar por manter a negra honra, que passar pela desonra, de que lhe neguem talvez; mas se o virdes nas galés com honras de Vice-Rei, esta é a justiça, que manda El-Rei."

Também não perdoava advogados que contraditoriamente defendiam causas opostas: "Os letrados peralvilhos citando o mesmo doutor. a fazer de Réu, o Autor, comem de ambos os carrilhos: se se diz pelos carrilhos sua prevaricação, a desculpa, que lhe dão, é a honra de seus parentes e entonces os requerentes, fogem desta infame grei: esta é a justiça, que manda El-Rei." Tem-se a impressão de que acusava os advogados por receberem de ambos os lados.

Tinha horror dos juramentos: "No que toca aos juramentos, de mim para mim me admiro por ver a facilidade, com que os vão dar a juízo. Ou porque ganham dinheiro, por vingança, ou pelo amigo, e sempre juram conformes, sem discreparem do artigo... Dizem, que falam verdade, mas eu pelo que imagino, nenhum, creio, que a conhece, nem sabe seus aforismos."

Tratando de Gregório de Matos há um romance delicioso e imperdível, de autoria de Ana Miranda, uma de nossas mais notáveis romancistas, imbatível no romance histórico. Dedicado a Rubem Fonseca, a autora trabalhou dez anos na construção do enredo e na reconstrução do tempo do Boca do Inferno, que é o título desse belíssimo livro. O livro levou prêmio Jabuti de revelação em 1990 e é um marco nesse dificílimo campo que é o romance histórico.

Ana Miranda, que é cearense (e que viveu em Brasília e no Rio), vinculou definitivamente Gregório de Matos à Bahia que "não deixaria de ser, nunca, a cidade onde viveu o Boca do Inferno". A autora descreve um tempo barroco, como se barroca fosse; a Bahia, "parecia ser a imagem do Paraíso. Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para o Inferno".

Gregório de Matos foi pesado com Salvador: "Que falta nesta cidade? Verdade. Que mais por sua desonra Honra Falta mais que se lhe ponha Vergonha. (...) E que justiça a resguarda? Bastarda. É grátis distribuída? Vendida! Quem tem, que a todos assusta? Injusta. Valha-nos Deus, o que custa, O que El-Rei nos dá de graça, Que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta." Essa poesia, que para alguns é crueldade, para outros exibicionismo, pode ser na verdade absoluta expressão da coragem.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, o autor deste artigo, é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Publicado originalmente no Consultor Juridico, em 21.08.22

Atentar contra a democracia é crime

Neste 7 de Setembro, há uma novidade importante. Aprovada no ano passado, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito está vigente

Diante da informação, revelada pelo jornal Metrópoles, de que empresários bolsonaristas se articulam para, em caso de derrota nas urnas, impedir a posse de quem o povo eleger, é preciso lembrar que, nestas eleições, há uma novidade importante. Aprovada pelo Congresso no ano passado, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021) está vigente. O País conta agora com uma nova proteção jurídica para fazer respeitar o regime democrático, o que pode e deve servir de alerta a todos aqueles que tentam burlar as regras do jogo democrático, bem como às autoridades competentes. Polícia e Ministério Público têm o dever de proteger o Estado Democrático de Direito.

Além de revogar a antiga Lei de Segurança Nacional (LSN, Lei 7.170/1983), a Lei 14.197/2021 criou no Código Penal uma seção específica para os tipos penais contra o Estado Democrático de Direito, incluindo crimes (i) contra a soberania nacional, (ii) contra as instituições democráticas, (iii) contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral e (iv) contra o funcionamento dos serviços essenciais. Continuam vigentes todos os direitos e garantias fundamentais, como as liberdades de expressão, de opinião e de associação, mas atentar contra a democracia é agora um crime previsto no Código Penal.

Trata-se de importante aperfeiçoamento da legislação penal, cuja finalidade é precisamente proteger os bens essenciais de uma sociedade. Por exemplo, não fazia sentido o Código Penal punir o ato de desacatar um funcionário público e, ao mesmo tempo, deixar impune um atentado contra o regime democrático.

Com a entrada em vigor da Lei 14.197/2021, é crime “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, com pena de reclusão de quatro a oito anos, além da pena correspondente à violência. Vale frisar que o Código Penal pune não apenas a extinção do Estado Democrático de Direito, e sim sua tentativa, “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.

O Congresso traçou uma linha nítida. Ações, com emprego de violência ou grave ameaça, para impedir ou restringir o exercício do Legislativo, do Judiciário ou do Executivo não são mera expressão de opinião. Não são gestos políticos aceitáveis. São crimes, a exigir a atuação da polícia e do Ministério Público.

É também crime, com pena prevista de três a seis anos de reclusão, “impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral”. Essa disposição do Código Penal é muito significativa nos tempos atuais, expressando e reiterando que a paz nas eleições é um bem de grande relevância para a sociedade. A punição não está reservada apenas a quem impedir a votação ou a apuração dos votos, mas também a quem “perturbar a eleição”.

Corretamente, a Lei 14.197/2021 definiu de antemão que não constitui crime a manifestação crítica aos Poderes constitucionais, assim como a “reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”. Num país livre, a manifestação política é livre. O importante é, como a nova lei o faz, diferenciar entre o que é crítica e manifestação de pensamento e o que é ameaça, violência ou perturbação do livre funcionamento das instituições democráticas, em especial das eleições.

Não é segredo que, tal como houve no ano passado, bolsonaristas pretendem utilizar o 7 de Setembro para intimidar o Judiciário e o Legislativo. A diferença é que, no ano passado, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito ainda não estava vigente. Agora ela está, o que confere um caráter criminoso a todas as movimentações que visam a impedir a validade do resultado das urnas. Não há nenhum patriotismo na prática de crimes.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 22.08.22

Volta do PT ao poder e reeleição de Bolsonaro causam medo no eleitor

Pesquisa mostra que 45% dos eleitores têm medo da continuidade do atual governo e 40% temem um novo mandato de Lula; campanhas atuam para reforçar sentimento

O ex-presidente Lula durante comício no Vale do Anhangabaú; petista lidera as pesquisas de inteção de voto  Foto: Marcelo Chello/AP

Uma grande parte do eleitorado diz ter medo da volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder e da reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). Os dois rivais, que lideram as pesquisas de intenção de voto, provocam nos brasileiros o mesmo sentimento de temor do que pode ocorrer se forem eleitos.

Os motivos do medo, segundo pesquisas de opinião, têm base em fatos concretos das trajetórias dos dois candidatos. O eleitor teme que, com Lula, voltem a corrupção, o alinhamento internacional com ditaduras de esquerda e o empoderamento de pautas progressistas – tema delicado para os segmentos conservadores. Com Bolsonaro, o medo é de aumento da pobreza, acirramento do discurso de ódio e até de uma ruptura democrática.

Fake news têm sido usadas para reforçar o medo que o eleitor já tem. A mistura de fatos concretos com pós-verdade (a disseminação deturpada de informações que se sobrepõem aos fatos em si) fortalece o sentimento negativo no eleitor com relação aos dois.

Levantamento feito pela Quaest para a Genial Investimentos apontou que 45% dos eleitores têm mais medo da continuidade do governo Bolsonaro; 40% temem a volta do PT. A diferença entre os dois grupos caiu de 17 para apenas cinco pontos porcentuais entre junho e agosto. O levantamento, divulgado semana passada, não considera a intenção de voto em um candidato específico, mas o sentimento do eleitor na hora da escolha.

Pesquisadores estimam que metade do eleitorado não é fiel nem a Bolsonaro e nem a Lula, mas admite votar em um por ter medo do outro. “Existem dois polos muito influentes na cabeça do brasileiro, e existe um eleitor que não é apaixonado por nenhum desses dois polos, mas acaba ficando de um lado porque tem medo do que o outro representa”, diz o cientista político Bruno Soller, do Instituto Real Time Big Data.

Segundo Soller, o medo de Lula cresce com a sensação de volta da corrupção, alinhamento internacional com ditaduras de esquerda, risco para o empresariado, empoderamento de pautas como aborto, drogas e LGBTQUIA+ e a fragilidade no combate ao crime.

Histórico

O governo do petista foi marcado por escândalos de corrupção, como o mensalão, que envolvia compra de apoio no Congresso. Quatro integrantes do primeiro escalão do PT foram presos, incluindo José Dirceu e José Genoino. Depois do impeachment de sua sucessora, Dilma Rousseff, o próprio Lula foi encarcerado pela Operação Lava Jato, em 2018, acusado de receber propina de empreiteiras em troca de favores no governo. Os processos contra ele foram arquivados, mas por falhas processuais.

Como presidente, Lula se alinhou a Hugo Chávez na Venezuela e a ditaduras na África, como a de Omar Bongo no Gabão e de Teodoro Obiang na Guiné Equatorial. Também fez alianças com Kadafi na Líbia e José Eduardo dos Santos em Angola.

O medo de Bolsonaro nos eleitores, por outro lado, está associado à piora na condição de vida dos mais pobres, no acirramento do discurso de ódio contra minorias, na falta de preparo para comandar crises como a pandemia, na ruptura democrática e no isolamento internacional.

Bolsonaro termina os quatro anos de mandato como um pária por ignorar fóruns globais. Aliado de Donald Trump, ele não reconheceu a eleição de Joe Biden nos Estados Unidos num primeiro momento e travou um embate direto com o presidente da França, Emmanuel Macron, envolvendo questões ambientais.

Na pandemia, negou a doença que matou mais de 680 mil pessoas no Brasil e foi contra a vacinação. O Supremo Tribunal Federal (STF) investiga uma rede de fake news operada por aliados diretos dele para atacar seus adversários. Já na economia, Bolsonaro encerra os quatro anos de gestão com número recorde de pessoas em situação de pobreza.

Insegurança

Um dos mais tradicionais políticos do MDB, o ex-governador gaúcho Pedro Simon afirma que o comportamento imprevisível de Bolsonaro e sua postura radical reforçam o temor do eleitor com um segundo mandato. “A gente olha para o Bolsonaro, vê que ele é uma pessoa que não passa em um (teste) psicotécnico. É uma pessoa que a gente não tem confiança.”

Lula, por sua vez, na avaliação de Simon, provoca medo ao emitir sinais dúbios. “Em primeiro lugar, ele não foi absolvido, anularam o processo, mas não esclareceram o assunto. Segundo, essa interrogação do Lula... Trazer como seu vice uma pessoa da qual ele disse horrores lá atrás é uma grande interrogação”, declarou.

“Para o Lula, a área mais complicada e sensível é a questão do combate à corrupção e o desempenho do PT durante o mandato de sua sucessora, que não trouxe bons frutos”, complementou o cientista político e professor do Insper Leandro Consentino.

Provocar medo no eleitorado sempre foi uma estratégia dos marqueteiros de campanhas eleitorais. A diferença agora é que, pela primeira vez, estão na disputa um ex-presidente contra o atual. Lula e Bolsonaro são as duas maiores lideranças políticas do País, ambos têm torcidas e suas gestões e histórias despertam no eleitor incertezas sobre que Lula ou que Bolsonaro virão nesse possível novo mandato.

Após ter trabalhado em 91 campanhas majoritárias pelo País, o cientista político Antonio Lavareda afirma que o medo é uma das ferramentas emocionais usadas pelas candidaturas para reforçar os sentimentos de raiva e ansiedade. “Os brasileiros estão inseguros com o seu futuro, com o futuro das suas famílias. Isso desperta ansiedade e leva as pessoas a reavaliarem as escolhas anteriores”, afirmou.

Em 1989, o então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Mário Amato, causou polêmica ao dizer que 800 mil empresários deixariam o País se Lula ganhasse. Em 1995, a campanha de Fernando Henrique Cardoso aproveitou o sucesso do Plano Real para propagar o medo da volta da inflação. A disputa de 2002 foi marcada pela atriz Regina Duarte, na campanha de José Serra. “Eu tenho medo”, disse, em relação a Lula. Em 2014, a propaganda da petista Dilma Rousseff divulgou que a proposta de Marina Silva (então no PSB, hoje na Rede), de dar autonomia ao Banco Central tiraria comida da mesa das famílias. A fake news do PT ajudou a derrubar a adversária.

A “campanha do medo” deste ano reeditou Regina Duarte. Na terça-feira, 16, ela, que foi secretária de Cultura de Bolsonaro, disse que o presidente “é exemplo de democracia para o mundo”. “Como em 2002, eu tenho medo (de Lula)!”, repetiu a atriz.

Do outro lado, o deputado André Janones (Avante-MG), que tem forte presença nas redes sociais, entrou de cabeça na campanha digital de Lula e tem se referido a Bolsonaro como “futuro presidiário”.

Daniel Weterman e Lauriberto Pompeu, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 22.08.22

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

A campanha da mentira começou e Lula não está pronto para enfrentar Bolsonaro

Entre os candidatos democratas, é preciso ter uma máquina que saiba reagir à desinformação

Ex-presidente Lula e presidente Jair Bolsonaro são os favoritos na corrida ao Palácio do Planalto (Até agora, digo eu, o editor do blog)

O vídeo impressiona de tão bem editado. Renata Vasconcellos, âncora do Jornal Nacional, apresenta a pesquisa do Ipec anunciada na segunda. Quando corta para o gráfico, porém, os números contam uma história bem distinta daquela que realmente foi ao ar.

No vídeo que bomba no WhatsApp, o presidente Jair Bolsonaro (PL) lidera com 44%, seguido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 32%. O Ipec de verdade afirmou exatamente o contrário. Mas a edição do áudio é tão precisa que o receptor desavisado não perceberá nada. A máquina bolsonarista de fake news já está a toda. Começou o inferno que será esta eleição. E o principal adversário do presidente, Lula, está completamente despreparado para esta batalha.

A campanha do presidente trabalha de forma sofisticada a desinformação – há coordenação. O foco da semana foi um dos eleitores chaves desta eleição: o brasileiro evangélico.

A máquina bolsonarista de fake news já está a toda

Na publicidade oficial, Bolsonaro circulou calado enquanto a primeira-dama, Michelle, falava. Ele precisa conquistar mais mulheres, corte que dá imensa vantagem a Lula. Entre evangélicos, mulheres formam maioria. Por ser mulher, Michelle gera empatia. Ela também fala a língua dos louvores. Enquanto parte da elite olha constrangida, cheia de preconceitos , Michelle está num espaço em que se move à vontade

Enquanto ela falava de um Palácio do Planalto consagrado a Deus hoje, corriam informações absolutamente mentirosas no Zap. Por exemplo, a de que, se eleito, Lula mandaria fechar templos.

A vítima hoje é Lula – fossem Ciro Gomes (PDT) ou Simone Tebet (MDB) em primeiro, seriam ele ou ela. Mas enquanto o bolsonarismo atacava a credibilidade do petista, nos Zaps oficiais da campanha de Lula havia figurinhas do candidato. Nos grupos não-oficiais, o clima era um de indignação. Não com Bolsonaro, mas com quem se fiava em pesquisas que sugeriam uma eleição apertada.

Demorou quase uma semana para que um discurso de defesa contra esta linha de ataque começasse a aparecer.

Num mundo ideal, não haveria ameaça à democracia. Não haveria grupos de Zap de empresários bolsonaristas defendendo uma Ditadura. Num mundo ideal, um dos candidatos não teria uma máquina publicitária baseada exclusivamente na mentira. Mas não vivemos no mundo ideal.

Sobram os candidatos democratas – Lula, Ciro, Simone. Principalmente Lula, por estar na frente. É preciso ter uma máquina que saiba reagir à desinformação. Houve quatro anos para prepará-la.

Pedro Dória, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 18.08.22, às 17h26

O equilíbrio essencial à democracia

Devemos realizar promessas sociais para afastar as sombras do autoritarismo

Convidado a debater o equilíbrio entre os Poderes no seminário que a Esfera Brasil promove nesta sexta-feira (19), em São Paulo, ao lado do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, e dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), lanço uma provocação: qual é o equilíbrio democrático que buscamos neste mundo de profundas mudanças?

Vivemos tempos de disrupção tecnológica e de uso de algoritmos que conduzem multidões para o conflito. Trata-se de desafios ainda não totalmente assimilados pela sociedade e pelas instituições democráticas em particular, mas que têm gerado severa erosão do espaço político e social da democracia liberal.

Às instituições cumpre diagnosticar, com precisão, as razões do desgaste do modelo democrático em todo o mundo. Precisamos refletir sobre o papel do Estado diante de uma cidadania mais consciente de seus direitos e carente de respostas na velocidade própria do mundo digital. É essa mesma cidadania que está sujeita aos perigos da desinformação em massa e das notícias fraudulentas produzidas nas bolhas antidemocráticas.

No Brasil, desde as manifestações de 2013, vivemos uma sucessão de momentos turbulentos. Tendo a Constituição como norte, nossa jovem democracia tem mostrado resiliência institucional. Mas só resiliência não é suficiente. As insurgências contra nossa democracia se sustentam em sentimentos difusos de insatisfação da população em face do Estado e da precária implementação das promessas constitucionais.

Alcançar esse novo equilíbrio requer foco na cidadania. O Estado é provedor de direitos, de segurança e de múltiplos serviços. Com a instantaneidade da era digital, a cidadania exige respostas efetivas e céleres. Os cidadãos e as cidadãs não aceitam mais ficar em compasso de espera. A eficiência do Estado é a chave para o resgate da confiança na democracia, mediante a entrega de melhores serviços

Como gerar esses resultados em tempos de crispação? O conflito permanente impõe custos pesados à economia e, sobretudo, aos mais pobres e marginalizados pela desigualdade. As urgências da cidadania exigem diálogo propositivo, serenidade e resolução democrática e pacífica das diferenças.

Nesse caminho, a harmonia e o equilíbrio de forças entre os Poderes são fundamentais. Cabe à política —por meio dos representantes eleitos para o Executivo e o Legislativo— liderar a realização das exigências da cidadania a tempo e modo adequados às exigências sociais.

Na busca pelo equilíbrio, cabe ao Judiciário garantir segurança jurídica e harmonia social. Cabe a ele realizar o direito na vida do cidadão e manter a estabilidade democrática, tendo como guia a Constituição.

O momento é oportuno. Em outubro, cada cidadão projetará nas urnas seus anseios e, assim, participará do ritual de renovação da democracia. As urgências do Brasil exigem propostas, programas e rumos claros. É preciso indicar concretamente à cidadania os caminhos que se pretende percorrer. Insultos e gritaria não resolvem os problemas nacionais.

A democracia brasileira já mostrou sua pujança. Foi nela que superamos desafios como os da dívida externa, da alta inflação, da indisciplina fiscal na federação e da instabilidade da moeda. Na área social, também há conquistas a celebrar, como nosso sistema público de saúde —cuja importância testemunhamos nesta trágica pandemia— e nossos mecanismos econômicos e sociais de distribuição de renda e de atendimento à população mais vulnerável.

Mas ainda precisamos de soluções para questões concretas e urgentes relativas à educação, à segurança pública, aos regimes tributário e fiscal, à administração pública e à desburocratização. Problemas como as profundas desigualdades sociais e regionais, a pobreza, a marginalização, a situação de risco de crianças e jovens, a violência doméstica e de gênero, dentre outros, são grandes óbices à concretização da cidadania e da justiça social no Brasil.

Como já advertia Hannah Arendt, as soluções totalitárias surgem como uma forte tentação "sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica do homem de um modo digno". Para afastar as sombras do autoritarismo, em democracia e para a preservação da própria democracia, precisamos ser capazes de realizar as promessas sociais da Constituição Cidadã. É assim que vamos alcançar o equilíbrio essencial à democracia: o equilíbrio social que se constrói com a superação das desigualdades, a partir de uma sociedade mais desenvolvida, justa e igualitária.

José Antonio DIAS TOFFOLI, o autor deste artigo, é Ministro do Supremo Tribunal Federal - STF. Foi Presidente do TSE e do STF. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.08.22, às 21h00

Risco de golpe bolsonarista cai, mas o de confusões continua alto

Só estaremos seguros mesmo quando Bolsonaro estiver no xadrez

Posse de Alexandre de Moraes no TSE - Mateus Vargas - /Folhapress

Menos de uma semana após a sociedade civil ter afirmado de forma crível que não aceitará um golpe, foi a vez de a classe política dizer o mesmo. A mensagem foi dada na posse do ministro Alexandre de Moraes como presidente do TSE. A impressionante salva de palmas que as urnas eletrônicas receberam no discurso de Moraes mostrou que não será fácil desacreditar o sistema de contagem de votos. A Bolsonaro, que estava no evento, só restou fazer cara de tacho.

Isso significa que agora o presidente vai parar com a pregação golpista? Não é tão simples. Até acho que Bolsonaro entendeu que as resistências a seu plano de pôr as eleições sob suspeição serão maiores do que ele antecipava, mas daí não decorre que a estratégia será abandonada. O problema de Bolsonaro é que, quando acuado, ele só sabe reagir radicalizando.

Bolsonaro, porém, não era o único destinatário dos recados. Os comandantes militares também os ouviram e espera-se que os tenham assimilado de forma mais madura que o presidente. Isso significa que estamos livres do risco de insurreições pós-eleitorais? De novo, não é tão simples. Não creio que as Forças Armadas entrarão numa aventura golpista, mas não é impossível que eleitores de Bolsonaro, eventualmente militares, policiais ou só valentões, o façam por conta e risco. Foi um pouco esse o perfil dos revoltosos que invadiram o Capitólio em Washington em 2021.

Com um exército de Brancaleone fica difícil ter êxito numa empreitada sediciosa, mas é o que basta para criar confusão. Pessoas meio malucas, armadas e agindo sem comando hierárquico e sem objetivos definidos ficam ao sabor de flutuações quânticas. Podem tanto acovardar-se ao primeiro sinal de resistência quanto envolver-se em incidentes com mortes, como ocorreu nos EUA.

A defesa das instituições está hoje em melhor posição do que há 15 dias, mas só estaremos seguros mesmo quando Bolsonaro estiver no xadrez.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.08.22, às 18h02

'Putain du Centrao': cobertura global tenta traduzir 'tchutchuca'

Francês Le Figaro e argentino La Nación usam alternativas como 'perrita del Centrao'; outros evitam expressão ao noticiar

Apoiada em vídeo, a notícia do confronto físico entre Jair Bolsonaro e o influenciador Wilker Leão deu volta ao mundo, com a cobertura se esforçando para traduzir "tchutchuca do Centrão", um dos insultos usados contra o presidente-candidato.

O conservador francês Le Figaro, com AFP, usou "putain du Centrao", prostituta do Centrão, e explicou que Leão perguntou "por que ele havia se aliado a uma nebulosa de partidos que comercializam seu apoio para obter vantagens".

O Washington Post, com AP, descreveu o insulto como "the 'darling' of a pork-barrel faction in Congress", o "queridinho" de uma facção clientelista no Congresso. E ouviu de um analista da Medley Advisors que "foi muito ruim para o presidente em termos eleitorais, mostra falta de contenção".

Outros americanos, como Bloomberg, noticiaram sem a expressão. "Tchutchuca", registre-se, já havia levado a um esforço de tradução no exterior há três anos, quando o deputado Zeca Dirceu usou a palavra para se referir ao ministro Paulo Guedes.

O vídeo chegou a sites como o diário econômico NBD, de Xangai (acima). O jornal Huanqiu, o original em chinês do Global Times, e o portal Sohu noticiaram, traduzindo "tchutchuca" como 宠儿 ou chǒng ér, que significa "queridinho", no caso, "dos membros do Congresso envolvidos na alocação de verbas".

Em russos como Gazeta.Ru e a emissora OTR, destacados pelo agregador Yandex, a expressão foi evitada, falando genericamente em "perguntas desconfortáveis" e "obscenidades".

Alemães como Der Spiegel também evitaram, mas não a RND, que traduziu o insulto por "liebling politischer hinterwäldler", algo como "queridinho dos políticos caipiras" ou do interior.

Na Argentina, o Página/12, usualmente mais severo com Bolsonaro, também evitou, mas o conservador La Nación não se conteve: "perrita del Centrao", cadelinha do Centrão.

Nelson de Sá, o autor deste texto, é Jornalista. Publica a coluna Toda Mídia e cobre cultura e tecnologia para a Folha de S. Paulo. O texto acima foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 19.98.22, às 12h51.

Jornalista, publica a coluna Toda Mídia e cobre cultura e tecnologia

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A diferença entre direito e regalia

Indenizações generosas pagas a militares que passam para reserva distorcem direito à proteção social da categoria

O pagamento de generosas remunerações a militares nos últimos anos, revelado recentemente pelo Estadão, expõe de forma cristalina um dos elos que sustentam a relação entre o presidente Jair Bolsonaro e as Forças Armadas. 

No auge da pandemia de covid-19, quando o País buscava uma forma de ajudar milhões de famílias vulneráveis e contabilizava milhares de mortes diárias em decorrência de uma doença ainda sem vacinas nem tratamento eficaz, o governo depositava valores milionários a militares como Walter Braga Netto e Bento Albuquerque, que ocupavam os Ministérios da Casa Civil e de Minas e Energia à época, e a Luiz Eduardo Ramos, à frente da Secretaria-Geral da Presidência da República.

Os dados, levantados pelo deputado Elias Vaz (PSB-GO), jogam luz sobre benesses exclusivas, que garantem à categoria militar a invejável condição de aumentar a renda na aposentadoria – chamada de passagem para a reserva. O Ministério da Defesa argumentou haver amparo legal em todos os pagamentos, que incluíram indenizações por férias, adicionais e licenças especiais não usufruídas ao longo da carreira. A força do relatório do deputado está na revelação de que a situação dos ministros não é caso isolado. Quase 1,6 mil militares receberam mais de R$ 100 mil por mês entre janeiro e maio deste ano, totalizando despesas de R$ 262,5 milhões. Entre os contemplados está o ex-ministro Eduardo Pazuello, conhecido pela ruinosa gestão à frente do Ministério da Saúde e por ter violado a disciplina militar ao participar de um comício bolsonarista quando ainda era general da ativa. Ele recebeu R$ 305,4 mil em março.

É um fenômeno que o colunista Pedro Fernando Nery, do Estadão, chamou de “marechalcracia”, que garante aos militares uma promoção de patente na passagem para a reserva, a integralidade dos vencimentos e o direito de se aposentar com a maior remuneração da carreira. Aos privilégios que já vigoram há anos, Bolsonaro adicionou novos apanágios. No ano passado, permitiu que os militares acumulassem salários e aposentadorias acima do teto constitucional de R$ 39,2 mil, medida autorizada por portaria e que beneficiou inclusive o próprio presidente. Recentemente, criou um bônus para o militar que continua trabalhando mesmo depois de atingir o tempo para passar à reserva. Aos trabalhadores civis que se aposentam pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), resta arcar com um benefício calculado a partir da média das contribuições e limitado a um teto de pouco mais de R$ 7 mil, que proporciona um padrão de vida bem mais modesto.

O assunto suscita o debate sobre a diferença entre legalidade e moralidade. As indenizações militares podem até não violar nenhuma lei, mas são constrangedoras do ponto de vista moral, considerando os valores auferidos e o momento em que eles foram pagos. Como instituições permanentes de Estado, as Forças Armadas exigem dedicação exclusiva de seus quadros; em contrapartida, o País oferece uma proteção social permanente aos que seguem a carreira e às suas famílias. É um direito que deve ser preservado, mas que não pode ser distorcido ou usado como pretexto para a concessão de regalias.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18.08.22

Demonstração de união contra o golpismo

Ao expressar firme união do País em torno da democracia e do TSE, cerimônia de posse de Alexandre de Moraes foi auspiciosa. Não há espaço para devaneios golpistas  

Em tempos normais, a cerimônia de posse de um novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é ato meramente protocolar e burocrático. Como não vivemos tempos normais, a posse do ministro Alexandre de Moraes na presidência do TSE, anteontem, foi meticulosamente organizada para expressar a imperturbável disposição de fazer valer a vontade dos eleitores nas eleições de outubro, ante as ameaças golpistas do presidente Jair Bolsonaro.

Além do próprio presidente Bolsonaro, estiveram presentes os presidentes da Câmara e do Senado, o presidente do Supremo Tribunal Federal, quatro ex-presidentes da República, numerosas autoridades de diversas esferas, parlamentares, candidatos e lideranças da sociedade civil. Ou seja, a República compareceu em peso para ouvir o ministro Alexandre de Moraes garantir que o sistema eleitoral, difamado por Bolsonaro, é seguro e transparente. Foi aplaudido de pé.

A cerimônia de posse do novo presidente do TSE expressou a firme união do País em torno da democracia e de sua Justiça Eleitoral. As urnas eletrônicas não são um tema que cause divisão na sociedade. Ao contrário: como mostraram os atos suprapartidários em favor do atual sistema de votação na semana passada, a campanha bolsonarista contra o sistema eleitoral é artificial e minoritária. Sem provas e sem apoio, Jair Bolsonaro, claramente deslocado na cerimônia do TSE, está cada vez mais solitário na tentativa de difamar e bagunçar as eleições brasileiras.

Com o auditório do TSE inteiramente lotado, Alexandre de Moraes disse que a cerimônia de posse simbolizava “o respeito pelas instituições como único caminho de crescimento e fortalecimento da República e a força de democracia como único regime político onde todo poder emana do povo e deve ser exercido pelo bem do povo”. Ou seja, se os tempos têm um evidente caráter excepcional, com o presidente da República tentando interferir explicitamente no processo eleitoral, é também evidente que o País e suas instituições estão do lado da democracia. Não há espaço para devaneios golpistas.

“Somos a única democracia do mundo que apura e divulga os resultados eleitorais no mesmo dia, com agilidade, segurança, competência e transparência. Isso é motivo de orgulho nacional”, disse o novo presidente do TSE, sendo ovacionado pela plateia. Eis a resposta da sociedade aos ataques de Bolsonaro: uma união ainda mais forte, um reconhecimento ainda mais explícito, um aplauso ainda mais entusiasmado à Justiça Eleitoral.

As palmas eram também um reconhecimento do trabalho feito até aqui pelo anterior presidente do TSE, ministro Edson Fachin. Nas justas palavras do corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Mauro Campbell Marques, Edson Fachin mostrou na presidência do TSE um firme compromisso com o exercício do diálogo, com a transparência e com a harmonia institucional entre seus integrantes.

Com suas circunstâncias peculiares, a cerimônia de posse do novo presidente do TSE serviu para reiterar um aspecto fundamental do processo eleitoral: seu caráter civil. Os militares não foram citados nos discursos. E essa ausência, longe de representar qualquer menoscabo, é importante reconhecimento do papel constitucional das Forças Armadas. Respeitam-se os militares respeitando suas funções, que nada têm a ver com contagem de votos.

Ao expressar a firme união do País em torno da democracia e do TSE, a cerimônia de posse foi especialmente auspiciosa. Mas os desafios continuam. Como lembrou Alexandre de Moraes, “liberdade de expressão não é liberdade de agressão, de destruição da democracia, das instituições, da dignidade e da honra alheias”. O novo presidente do TSE prometeu uma atuação da Justiça Eleitoral célere, firme e implacável no combate à desinformação e a outras práticas abusivas, de forma a “proteger a integridade das instituições do regime democrático e a vontade popular”.

Em sua fala, o procurador-geral da República, Augusto Aras, garantiu que o Ministério Público “respeita o voto votado e o voto apurado” e que está especialmente atento à defesa do sistema eleitoral. É o que o País espera. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18.08.22

Chamado de 'tchutchuca do Centrão', Bolsonaro reage e puxa camisa de youtuber; veja o vídeo

Influencer Wilker Leão, que costuma gravar vídeos provocando bolsonaristas no Palácio da Alvorada, também chamou presidente de covarde

O presidente Jair Bolsonaro se envolveu em uma confusão ao agarrar a camisa e tentar tirar o celular de um youtuber após ser provocado durante conversa com apoiadores na manhã desta quinta-feira, ao deixar o Palácio da Alvorada, em Brasília. Wilker Leão, que tem um canal na internet, chamava o presidente de "tchutchuca do Centrão" e questionava medidas tomadas por Bolsonaro, quando foi confrontado pelo presidente. O vídeo da confusão foi publicado pelo portal G1.

Perfil: Saiba quem é Wilker Leão, youtuber que irritou Bolsonaro ao chamá-lo de 'tchutchuca do Centrão'

Antes do embate com Bolsonaro, Wilker já havia sido derrubado no chão por apoiadores do presidente. O influencer costuma ir à saída do Alvorada para gravar vídeos nos quais provoca Bolsonaro e militantes bolsonaristas. Em abril deste ano, Wilker já havia discutido com o presidente após questionar Bolsonaro sobre declarações a respeito da realidade de cabos e soldados do Exército nos quartéis.

No episódio desta quinta-feira, Bolsonaro cumprimentava apoiadores na saída do Palácio do Alvorada quando começou a ser questionado por Wilker:

— Por que o senhor limitou delação premiada, presidente? — perguntou, sendo empurrado em seguida.

Após a queda, Wilker Leão perguntou a Bolsonaro o que ele achava desta violência e foi ignorado pelo presidente, o influencer, no entanto, continuou gritando xingamentos em meio aos bolsonaristas:

—Quero ver se você é corajoso de sair para conversar comigo, tchutchuca do Centrão. O Lula é ladrão também, mas esse aí está fazendo tudo que o PT faz, senão o PT volta — disse Wilker Leão. — Seu covarde, tchutchuca do Centrão. Safado! Você é vagabundo.

Após essas falas, o presidente saiu do carro e foi em direção a Wilker tentando tirar o celular da mão do influencer.

— Vem cá, quero falar contigo, vem cá— disse Bolsonaro enquanto puxava o youtuber pela camisa e segurava seu braço.

Paula Ferreira, de Brasília-DF para O Globo, em 18.08.22 

Nova Lei de Improbidade: STF veta anistia de condenações definitivas, mas poupa políticos investigados ou com processos pendentes

Reforma na legislação acabou com modalidade culposa dos atos de improbidade

Supremo Tribunal Federal vetou anistia de políticos condenados por atos de improbidade culposos. Foto: Felipe Sampaio/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 18, que as mudanças na tipificação da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), em vigor desde outubro do ano passado, valem para investigações em curso e processos ainda sem sentença definitiva. A decisão barra a anistia de políticos condenados com base na versão anterior da lei.

A reforma legislativa não prevê mais punição para os atos de improbidade “culposos” – cometidos por negligência, imprudência ou imperícia. Apenas atos deliberados de corrupção foram mantidos na nova lei. Essa era uma bandeira da classe política, que reclamava de condenações consideradas injustas e da falta de segurança para os gestores públicos. Para promotores e procuradores, a extinção da forma culposa favorece a impunidade e enfraquece o combate à corrupção.

A maioria dos ministros votou para manter as condenações culposas transitadas em julgado (quando não há mais possibilidade de recurso) e poupar políticos investigados ou que brigam na Justiça para reverter sentenças desfavoráveis.

O resultado do julgamento, no entanto, não tem efeito automático sobre inquéritos e processos em andamento. Caberá aos investigadores e juízes responsáveis analisar cada caso para verificar se houve intenção do político em transgredir as regras da boa administração pública.

Apenas os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia foram contra a revisão das ações e investigações em tramitação.

Prescrição

Outro ponto em discussão no julgamento era o efeito das alterações nos prazos prescricionais previstos na Lei de Improbidade, ou seja, o tempo máximo para que o Estado possa processar o agente público por improbidade administrativa.

Com a reforma legislativa, o Congresso adotou um modelo híbrido que combina balizas do Direito Penal e do Direito Processual. De um lado, a prescrição principal, contada a partir da data em que foi cometido o ato de improbidade, passou de cinco para oito anos. De outro, foi instituída a chamada “prescrição intercorrente”, que leva em consideração a duração do processo, e tem prazo máximo de quatro anos. A ideia foi evitar o prolongamento das ações de improbidade e o desgaste à imagem dos políticos processados enquanto aguardam o fim do processo.

A maioria dos ministros decidiu que os novos prazos só valem para processos iniciados depois que a nova lei entrou em vigor.

Rayssa Motta/São Paulo e Weslley Galzo/Brasília para O Estado de S. Paulo, em 18.08.22.

Superação da pobreza precisa incluir incentivo ao trabalho, diz um dos criadores do Bolsa Família

Um dos idealizadores do programa Bolsa Família durante o primeiro governo Lula, mas também atuante nas gestões Michel Temer e Jair Bolsonaro, o economista Ricardo Paes de Barros se diz pronto para colaborar com as políticas de combate à pobreza e à desigualdade de qualquer que seja o próximo governo.

Ricardo Paes de Barros sugere programa social para além da transferência de renda e diz que pobreza no Brasil mudou de característica (Foto divulgação INSPER)

"Isso não quer dizer que eu não tenha minhas preferências de qual seja o próximo governo", diz Paes de Barros, entre risos.

Consignado do Auxílio Brasil: o que pensa quem vai pegar empréstimo e quem vai passar longe

Nesta quinta-feira (18/8), ele apresenta em um seminário no Insper, em São Paulo, o artigo inédito Diretrizes para o desenho de uma política para a superação da pobreza, ao qual a BBC News Brasil teve acesso em primeira mão.

No documento, escrito em parceria com Laura Muller Machado, secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo e também professora do Insper, os dois economistas apresentam sugestões a partir de um pressuposto simples.

"Uma efetiva e duradoura superação da pobreza só ocorre quando há geração de renda pelo trabalho de forma autônoma. Portanto, a superação da pobreza requer um processo de inclusão produtiva bem-sucedido", diz logo de início o estudo.

Machado e Paes de Barros propõem um modelo de assistência social que combina transferência de renda focalizada (isto é, com foco em quem mais precisa), a exemplo do Bolsa Família e do Auxílio Brasil, com um acompanhamento individualizado das famílias vulneráveis por agentes públicos.

Nesse acompanhamento, agente social e família construiriam em conjunto um "plano personalizado de desenvolvimento familiar", para coordenar os esforços dos membros da família e a oferta local de serviços e oportunidades, com objetivo de superar a pobreza, tendo como pilar central a geração de renda autônoma pelas pessoas através do trabalho.

Questionado se a proposta não pode ser entendida como uma responsabilização individual da família por uma pobreza que advém de questões sociais e estruturais, Paes de Barros admite que o projeto contém "um componente ideológico forte" — ele é um economista de viés liberal, com doutorado pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.

"Sim, esse plano responsabiliza a família. Ele está dizendo: 'você, com os talentos que você tem, consegue sair da pobreza, mesmo vivendo num país desigual'", diz Paes de Barros.

"Essas famílias são pobres não por falta de talento, mas por falta de oportunidades. O que esse programa vai fazer é 'dar um balão' no capitalismo selvagem, levando essas famílias àquelas oportunidades que não chegaram nelas", acrescenta o economista.

"A ideia desse programa é as pessoas voltarem a ter um projeto de vida, voltarem a sonhar com uma vida melhor e mostrar que, com o devido apoio da sociedade, esse sonho pode ser concretizado, não precisa de uma revolução para garantir a superação da pobreza."

O Bolsa Família, mais bem sucedido programa social do país, foi concebido durante o primeiro governo Lula por um grupo de economistas liberais, como Marcos Lisboa, Ricardo Henriques, José Márcio Camargo e o próprio Paes de Barros.

O projeto enfrentou resistências dentro do governo e também em setores do PT, mas foi encampado pelo então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

'A cara da pobreza mudou'

Pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) por mais de 30 anos e subsecretário de Ações Estratégicas durante o governo de Dilma Rousseff (PT), entre 2011 e 2015, Paes de Barros explica que as diretrizes desenhadas por ele e Laura Machado — secretária no governo do tucano Rodrigo Garcia — partem de uma percepção de que houve uma mudança no caráter da pobreza no Brasil.

Ele observa que a pobreza diminuiu no país entre o início dos anos 2000 e 2014, voltando a subir desde então, numa tendência que se manteve mesmo com a retomada do crescimento da economia e da geração de emprego.

Gráfico de linha mostra a evolução da extrema pobreza no Brasil entre 1992 e 2021

Pobreza diminuiu no país entre o início dos anos 2000 e 2014, voltando a subir desde então. Gráfico produzido a partir de dados da Pnad (1992-2015) e Pnad Contínua (2012-2021) do IBGE (Crédito INSPER)

"A cara da nossa pobreza mudou. Antigamente, o pobre era o cara que o avô, o pai e ele trabalharam a vida toda, 10 horas por dia, e eram pobres. Agora, temos uma pobreza diferente, porque a taxa de ocupação dos pobres caiu dramaticamente, embora a vontade deles de trabalhar continue lá em cima", diz o economista.

Ele observa que isso se reflete na taxa de desemprego, de pessoas trabalhando menos horas do que gostariam e de pessoas que desistiram de procurar trabalho entre os mais pobres.

Exemplo disso é que 81% dos 3,7 milhões de brasileiros sem emprego há mais de dois anos pertencem às classes D e E. Entre 2015 e 2021, o número de pessoas sem emprego há mais de 48 meses nessas classes sociais avançou 173%, segundo levantamento da Tendências Consultoria noticiado pelo jornal O Estado de S. Paulo.

"Tem uma clara evidência de que a nossa pobreza migrou de ser de insuficiência de salário, para ser de falta de trabalho. Não é que a economia não tenha trabalho, mas as pessoas mais pobres têm muita dificuldade de se reconectar ao mundo do trabalho", avalia.

"Temos então que reconstruir essa conectividade dos mais pobres com a economia brasileira, num esforço coletivo e em novas bases. Vamos ter que levar muito a sério o talento dessas pessoas, promovendo uma inserção mais moderna, produtiva, sustentável e permanente."

Voltar ao Brasil sem Miséria

Segundo Paes de Barros, o modelo que está sendo proposto é muito similar ao do plano Brasil sem Miséria, lançado em 2011 pelo governo de Dilma Rousseff.

Esse plano, diz ele, era baseado em três pilares: direito ao trabalho, transferência de renda e garantia de outros direitos sociais, como acesso à água, luz e habitação.

Dilma Rousseff em cerimônia de comemoração de 1,5 milhão de beneficiados pelo plano Brasil sem Miséria (Roberto Stukert / Pres. da República)

"O desenho do Brasil sem Miséria é o que tem de mais moderno em nível mundial. Tinha muita coisa a melhorar no programa, mas ele estava absolutamente na direção certa. O que o Brasil tem que fazer é voltar ao Brasil sem Miséria", defende Paes de Barros.

Questionado sobre o que deu errado com o programa e por que ele não foi bem-sucedido em seu intuito de acabar com a miséria no país, Paes de Barros avalia que o plano perdeu prioridade no governo Dilma, já antes do impeachment sofrido pela ex-presidente.

"Teve uma descontinuidade do Brasil sem Miséria antes da transição [entre governos]. Por razões que eu não sei por quê. Mas precisamos de um 'Brasil sem Miséria 2', cujo pilar central seja a inclusão produtiva. O pilar da transferência de renda deve ser complementar, mas não é ele que vai superar a pobreza", afirma.

"O erro do Brasil pós-Tereza Campello [titular do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome entre 2011 e 2016] foi o foco exclusivo em transferência de renda."

Diretrizes para superar a pobreza

O programa idealizado por Paes de Barros e Laura Machado é baseado em cinco eixos:

foco em quem mais precisa (focalização);

atendimento personalizado e integrado;

acesso prioritário dos que mais precisam a serviços e oportunidades;

confiança das famílias e dos agentes públicos de que superar a pobreza pela inclusão produtiva é possível;

e contínuo monitoramento, avaliação e correção de rotas.

Os economistas observam que a focalização tem uma vantagem orçamentária.

Por exemplo, garantir uma renda mínima de R$ 210 (atual linha de pobreza do Programa Auxílio Brasil) para todos os 213 milhões de brasileiros custaria R$ 536 bilhões por ano, ou 6,2% do PIB (Produto Interno Bruto, soma dos bens e serviços produzidos pelo país).

Já com transferências focadas nos 14% da população com renda inferior a R$ 210 por pessoa, e considerando que parte dessas famílias têm alguma renda, é possível atingir o mesmo objetivo de que todos os brasileiros tenham uma renda mínima de R$ 210 com um gasto de R$ 51,3 bilhões por ano, ou 0,6% do PIB.

Programas sociais focalizados, como o Bolsa Família, têm uma vantagem orçamentária, mas desincentivam aumento de renda através do trabalho, pois isso resulta em uma redução do benefício (Lampert Zart / Ag. Brasil)

No entanto, a focalização tem uma desvantagem: como ganha mais quem tem renda menor, as pessoas têm um desincentivo para aumentar sua renda através do trabalho, pois isso resulta numa redução das transferências recebidas pelo governo.

Assim, os economistas sugerem dois caminhos para contornar esse problema: o primeiro é que a redução do benefício tem que ser menor do que o ganho de renda obtido pela pessoa através do trabalho. O segundo, é que a diminuição da transferência deve acontecer com uma distância no tempo.

Um exemplo, dizem eles, é o dispositivo de emancipação do Auxílio Brasil (que também estava presente no Bolsa Família). Com esse dispositivo, uma família que superar a pobreza através de um aumento na sua renda do trabalho continua a receber as transferências por mais dois anos.

Planos familiares personalizados

O segundo eixo proposto pelos dois especialistas em políticas públicas é o atendimento personalizado às famílias.

Eles avaliam que isso é plenamente possível, graças à rede de quase 9 mil Centros de Referência da Assistência Social (Cras), localizados em cerca de 5.500 (99%) dos 5.570 municípios brasileiros.

Somente os Cras contam com 111 mil agentes e o país tem ainda aproximadamente 300 mil agentes comunitários de saúde, com profundo conhecimento das comunidades onde atuam, destacam Paes de Barros e Machado.

Célia Barros (de amarelo) recebeu doações após seu filho Miguel (segundo à esquerda), de 11 anos, ligar para a polícia por estar com fome, em Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte (AFP)

"A consequência da pobreza é a mesma: são direitos sociais violados — falta de trabalho, insegurança nutricional, problemas de habitação e saneamento, etc. Mas a causa da pobreza é diferente para cada família", defende Paes de Barros.

"Um erro grosseiro da política atual é achar que vai resolver o problema da pobreza no anonimato. Ou seja, eu não sei quem é o pobre, mas vou fazer uma política para tirar ele da pobreza. É o mesmo que querer resolver o problema da saúde sem o doente ficar frente a frente com o médico. Não tem como", afirma.

Assim, o economista defende que cada família trabalhe com um agente público, primeiro identificando os fatores determinantes de sua pobreza e então mapeando as oportunidades e assistências necessárias para superá-la.

Esse trabalho seria acompanhado pelo agente ao longo do tempo, com monitoramento, avaliação e correção de rotas constantes — o que, na visão dos autores, também é uma forma de manter a família engajada, já que o sucesso do plano depende de a família acreditar nele.

E para que o plano possa ser executado, a família deve ter acesso ao serviços necessários — como creches, educação integral e centros-dia para idosos, para permitir que os adultos da família possam trabalhar; serviços de saúde, para garantir bem estar nutricional, físico e mental a esses trabalhadores; e de transporte, para assegurar a ida e volta ao trabalho com menor tempo e gasto de recursos.

Os pesquisadores também sugerem uma gama de serviços para quem busca ou já tem um emprego, e para quem quer trabalhar por conta própria ou ter um pequeno negócio.

Esses serviços vão desde a intermediação de mão de obra e formação profissional, até o subsídio para aquisição de insumos, disponibilidade de crédito a juros baixos e assistência técnica aos pequenos empresários.

Como garantir trabalho nos pequenos municípios

A BBC News Brasil perguntou a Paes de Barros como levar esse plano a cabo, diante da realidade dos pequenos municípios brasileiros, onde não há oferta de empregos.

Um levantamento realizado pela Folha de S. Paulo, com dados do Ministério da Cidadania e da Secretaria Especial do Trabalho, mostrou, por exemplo, que em metade (50,3%) dos municípios do país o número de famílias beneficiárias do Auxílio Brasil supera o de empregados com carteira assinada.

No Nordeste, beneficiários superam empregados em 94% dos municípios e, no Norte, em 82%.

Isso acontece devido ao baixo dinamismo da economia dos pequenos municípios, altamente dependentes do setor público, tanto para a geração de postos de trabalho, quanto para transferência de recursos, segundo especialistas ouvidos pelo jornal.

Para Paes de Barros, a solução está em arranjos produtivos locais.

"A maior parte do Brasil, e as partes mais pobres do Brasil, tem recursos naturais, potencialidades e vantagens comparativas. Basta usar isso bem", afirma, citando como exemplos o arranjo produtivo do mel no Piauí e o da pesca no norte do Maranhão.

Cooperativa de mel no município de Piracuruca, no Piauí (Gov. do Piauí)

"O emprego que temos que ter não é emprego público e não é necessariamente emprego formal. O que queremos é trabalho de alta qualidade, isso pode ser via cooperativa de produtores e de várias outras maneiras. Ninguém precisa ser empregado de uma grande empresa, mas é preciso descobrir qual é o talento de cada local e desenvolver esse talento."

Segundo ele, isso poderá ser feito com a ajuda do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). "O Sebrae tem que entrar em campo e baixar a bola para cuidar do realmente pobre, porque ele ainda tem um ponto de corte muito alto", opina.

Como será o Brasil de 2023, após o auxílio de R$ 600

E como fazer a transição do Auxílio Brasil elevado a R$ 600 pelo governo Jair Bolsonaro às vésperas da eleição, para esse programa complexo, onde a superação da pobreza pode levar anos até que as famílias consigam sua autonomia através do trabalho?

"O Auxílio Brasil é pessimamente focalizado e o Cadastro Único está ridiculamente desatualizado", avalia Paes de Barros.

"Temos que melhorar dramaticamente a focalização. Então tem gente que vai perder? Tem. Gente que não precisa, ou que precisa muito menos. Vamos focalizar e redesenhar, porque dar R$ 600 para uma família de uma pessoa e R$ 600 para uma família de sete pessoas não faz nenhum sentido", sentencia.

Segundo ele, o resultado desse redesenho deve ser ter menos beneficiários, recebendo mais — em agosto desse ano, o Auxílio Brasil chegou a 20,2 milhões de famílias, segundo o Ministério da Cidadania.

"O objetivo é reduzir dramaticamente a distância entre quem está passando fome e quem é classe média baixa, concentrando os benefícios nos mais pobres. É preciso dar a garantia de uma renda a essas pessoas e a implementação do projeto de vida é o segundo pilar", afirma.

Para Paes de Barros, destinar mais recursos ao Auxílio Brasil foi uma boa ideia, mas isso foi feito pelo atual governo de maneira tecnicamente tosca e pouco eficaz.

Auxílio turbinado e consignado: as medidas para injetar dinheiro no bolso dos brasileiros a 2 meses da eleição

Quanto ao empréstimo consignado do Auxílio Brasil, também parte do pacote eleitoral de Bolsonaro, o economista avalia que a possibilidade de tomar dinheiro emprestado é algo positivo, mas isso deveria vir junto com educação financeira e uma legislação impedindo a cobrança de juros abusivos.

"A ideia de dar mais uma opção para o cara do que ele pode fazer com o dinheiro dele é boa, mas isso teria que vir junto com uma série de medidas para que ninguém possa abusar desse dispositivo para se apropriar da renda dessas pessoas de uma maneira indevida. A ideia em si é boa, mas como está sendo feito é péssimo", conclui.

Thais Carrança - @tcarran,da BBC News Brasil em São Paulo

(Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62526942)

terça-feira, 16 de agosto de 2022

1,6 mil militares receberam mais de R$ 100 mil líquidos por mês

Supersalários foram pagos de janeiro a maio de 2022; maior vencimento foi de R$ 603 mil livres, já após descontos

O mais bem pago da lista é um coronel, lotado no Comando do Exército. Em abril, ele recebeu R$ 603.398,92.

De janeiro a maio deste ano, 1.559 militares das três Forças Armadas tiveram pagamentos líquidos de mais de R$ 100 mil por mês. Juntos, os profissionais receberam R$ 262,5 milhões já depois dos descontos, como Imposto de Renda e contribuição para a Previdência dos militares.

A lista dos beneficiados inclui oficiais que integraram o governo de Jair Bolsonaro (PL), como o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello – em março, o general teve rendimentos líquidos de R$ 305,4 mil, ao passar para a reserva remunerada do Exército. O ex-ministro da Saúde, porém, está longe do topo da lista dos maiores contracheques militares deste ano.

O número 1 do ranking é um coronel, lotado no Comando do Exército, chamado James Magalhães Sato, de 47 anos. Em abril deste ano, o pagamento líquido devido a ele foi de R$ R$ 603.398,92, valor correspondente a 38 anos dos rendimentos de um trabalhador que ganhe o salário mínimo atual, de R$ 1.212. O montante também é cerca de mil vezes maior do que o Auxílio Brasil, que terá valor médio de R$ 607 em agosto, segundo o governo.

No cadastro do Exército, Sato aparece como “militar da ativa”. A remuneração básica do coronel é R$ 22,4 mil, mas, em abril deste ano, os rendimentos foram aumentados por uma verba de R$ 733,8 mil recebida sob a rubrica de “outras remunerações eventuais”. O campo das “observações” informa que se trata do pagamento de “valores decorrentes de atrasos”, sem mais detalhes. A reportagem do Estadão tentou contato com o coronel, mas não houve resposta até a conclusão desta edição.

Nos últimos meses, alguns militares se aproximaram da cifra de R$ 1 milhão. Levantamento feito pela equipe do deputado Elias Vaz (PSB-GO) encontrou o caso de um militar da Aeronáutica cujos vencimentos brutos foram de R$ 818.902,09 em junho de 2021 – este é o montante antes dos descontos. Em novembro passado, os rendimentos brutos de outro aeronauta, que ocupou o posto de diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) chegou a R$ 719,7 mil. O caso de Pazuello também é mencionado no levantamento feito pelo deputado.

“É um tapa na cara do povo brasileiro, que está passando por uma das piores crises dos últimos tempos. Fica claro que há uma conduta do governo Bolsonaro que privilegia um grupo das Forças Armadas, já que esses benefícios não abrangem todos os militares nem chegam a outros servidores federais, como professores e enfermeiros”, diz Vaz.

JUSTIFICATIVA. Em março, a remuneração básica bruta de R$ 32 mil de Pazuello foi acrescida de verbas indenizatórias que somam R$ 282,6 mil em março deste ano, resultando em vencimentos líquidos de R$ 305,4 mil. Novamente, a informação disponível nos dados abertos do Portal da Transparência é a de que seriam “valores decorrentes de atrasos”. Procurado, Pazuello disse apenas que “todos os valores recebidos foram pagos conforme a legislação vigente”.

O segundo maior vencimento líquido até o momento pertence a um major-brigadeiro da Aeronáutica, que atua desde fevereiro no Quarto Comando Aéreo Regional (IV Comar), em São Paulo. Em março deste ano, a rubrica “outras remunerações eventuais” no contracheque do militar teve o valor de R$ 376,8 mil, resultando em rendimentos líquidos de R$ 405,7 mil. A justificativa é a de que o militar está “em ajuste de contas” – ou seja, se preparando para deixar a ativa.

Resposta

Valores referem-se à remuneração mensal e a indenizações pontuais e a atrasados, diz Defesa

‘INDENIZAÇÕES’. Procurado, o Ministério da Defesa apenas reencaminhou uma nota já enviada dias antes ao Estadão. Segundo o texto, “os valores referem-se à remuneração mensal e a indenizações pontuais e a atrasados”. “Essas indenizações são relativas ao recebimento de férias não usufruídas ao longo da carreira, ou a outros direitos, que são calculados na ocasião da passagem dos militares para a reserva.”

“Cabe ressaltar que as Forças Armadas cumprem, rigorosamente, a legislação que rege o pagamento de seus militares e servidores civis. Os valores são lançados no Portal da Transparência e são submetidos à fiscalização dos órgãos de controle”, diz ainda a nota do ministério.

Os comandos de Marinha, Exército e Aeronáutica também foram procurados, mas ainda não se manifestaram. •

André Shalders e Daniel Weterman para O Estado de S, Paulo. Publicado originalmente em 16.08.22

Governo Bolsonaro fura poço e não entrega água no Nordeste

Na Zona Rural de Oeiras (PI), poços do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca continuam fechados após dois anos, mantendo população sem acesso à água

Crédito: https://tv.estadao.com.br/politica,governo-bolsonaro-fura-poco-e-nao-entrega-agua-no-nordeste,1264339


Empresa vence licitação milionária em pregão encerrado em 10 minutos

Em todo o ano passado, Dnocs do Piauí comprou só ração para peixe; em dezembro, abriu sua maior licitação para poços

Lavar roupa no rio quase todos os dias é o fardo de Maria de Lourdes Rodrigues da Silva, de 58 anos, moradora de Oeiras (PI). Foto: Wilton Júnior/Estadão

Nos últimos quatro anos, o governo federal empenhou mais de R$ 260 milhões para uma única empresa abrir poços no Nordeste. A Agromáquinas Empreendimentos Agrícolas, sediada no interior da Bahia, venceu as licitações mais valiosas da Codevasf. A firma, com sede na cidade de Brumado (BA), é dirigida por Erivaldo Alves de Moura.

Um dos pregões vencidos pela empresa foi encerrado em dez minutos. Apenas duas firmas participaram e a Agromáquinas levou 12 lotes no valor de R$ 53 milhões. A outra concorrente é especializada em 65 tipos de serviços, de perfuração de poços a lavanderia, passando por chaveiro, bufê, armarinho e controle de pragas urbanas. Dos R$ 260 milhões reservados para a Agromáquinas, R$ 81,9 milhões foram captados via orçamento secreto. O mecanismo de captação de apoio no Congresso, pelo governo Jair Bolsonaro (PL), foi revelado pelo Estadão.

Em 2019, o então vereador José Batista da Gama (PDT) propôs conceder título de cidadão petrolinense ao dono da Agromáquinas. Na homenagem da Câmara Municipal, Zé Batista justificou a “nobre honraria” pelos “relevantes serviços prestados à cidade, a Pernambuco e ao Nordeste”. O político é aliado do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). Gama foi secretário de Desenvolvimento Econômico e Agrário na gestão de Miguel Coelho, filho do parlamentar, na prefeitura de Petrolina.

Em nota, o empresário afirmou que “a Agromáquinas é uma empresa com quase 20 anos de atuação e participa de licitações na Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) e no Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) há aproximadamente dez anos, tendo celebrado contratos nas gestões dos presidentes Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro”.

“Não possuo qualquer interlocução com o senador Fernando Bezerra ou outro parlamentar, uma vez que as tratativas são sempre mantidas diretamente com os gestores públicos da Codevasf, do Dnocs ou qualquer outro contratante, seja público ou privado”, disse.

A Agromáquinas participa de licitações na Codevasf e no Dnocs há dez anos. Não possuo qualquer interlocução com parlamentares.”

Erivaldo Alves de Moura, empresário

No Piauí, o Dnocs passou o ano passado quase inteiro só comprando ração para peixe. Em dezembro, porém, promoveu licitações no valor de R$ 28 milhões para furar e equipar poços de água no Estado. Num dos pregões, a Engipec precisava demonstrar a experiência de perfuração de 500 poços. Comprovou apenas 77, sendo a maior parte feita no início de 2000. Mesmo assim, acabou levando o contrato de R$ 12 milhões.

O Dnocs no Piauí é comandado por Arão Lobão, amigo do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, homem forte do governo Bolsonaro. O preenchimento de vagas no governo e a distribuição de recursos passam pela sua mesa. Lobão assumiu em setembro do ano passado e logo promoveu as licitações dos poços num total de R$ 28 milhões. Uma busca no site do Dnocs-Piauí mostra que é o pregão mais alto da autarquia desde 2018.

Orçamento secreto

WJOEIRAS  OEIRAS  PI   21.07.2022  (((EMBARGADO E EXCLUSIVO)))   ORÇAMENTO SECRETO/ PIAUÍ    POLITICA OE -  - Na zona rural de Oeiras no Piauí - PI , o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) mantém lacrados poços artesianos abertos há meses, enquanto famílias sertanejas passam sede. Nos povoados de Lagoinha e Mata Fria, moradores lavam roupas no rio e buscam água em nascentes, chamadas de "olhos d'água". Na foto, Maria de Lourdes Rodrigues da Silva de 58 anos, indo levar roupa para lavar no rio. 

O setor técnico sugeriu a desclassificação da Engipec por “ausência de atestado de capacitação técnica e operacional em quantidade/volume suficientes” e por não apresentar o cronograma físico-financeiro da obra. A firma conseguiu o contrato após um novo parecer. O setor técnico mudou de ideia e afirmou que os 77 poços eram suficientes para demonstrar que a empresa “possui expertise e capacidade operacional para a execução dos serviços”. Adicionou que, como a empresa havia perfurado um poço de 360 metros, seria capaz de fazer um de 250 metros. Procurada, a empresa não respondeu aos contatos.

O empresário Eduardo Veras, dono da Engipec, afirmou que “o serviço está sendo executado sem problemas algum”. Sobre a falta de comprovação técnica, ele afirmou que “isso não tem fundamento”.

O programa de abertura de poços do governo criou uma expectativa numa região marcada pelo fisiologismo, pelas atuações eleitoreiras dos órgãos públicos e por históricas demandas sociais.

Poço do Dnocs lacrado em Oeiras, no Piauí; obra está inacabada 

Lavar roupa no rio quase todos os dias é o fardo de Lourdes Rodrigues da Silva, de 58 anos. Moradora da zona rural de Oeiras (PI), ela não tem água encanada em casa. Anda cerca de oito quilômetros até o rio, levando as roupas e o sabão numa bacia equilibrada na cabeça.

“No inverno, tem as brotas”, disse ela. “Brotas” são riachos sazonais que aparecem na época chuvosa e somem no período seco. Na estiagem, que no sertão piauiense vai de maio a outubro, Maria de Lourdes caminha até o Rio Croatá para lavar roupa. A água de beber vem de um poço perto da casa dela, mas a vazão não basta para lavar as roupas.

Julia Affonso e André Shalders para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 16.08.22

Governo Bolsonaro fura poço e não entrega água no Nordeste

Documentos mostram irregularidades em licitações fechadas em minutos e reservas de recursos para novas obras sem a conclusão de antigas; gasto é de R$ 1,2 bilhão

A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo (ao centro) no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos. Foto: Wilton Júnior/Estadão

Na zona rural de Oeiras, no Piauí, famílias de pequenos agricultores ainda enfrentam o velho drama da falta de acesso à água potável. Não deveriam. O município foi um dos contemplados por uma “força-tarefa das águas” anunciada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para o Nordeste e o norte de Minas. Dois anos depois, no entanto, poços abertos pelo programa estão lacrados. As obras pararam pela metade e bombas de retirada de água não foram instaladas.

A situação se repete em todo o semiárido nordestino. Ao longo de três meses, o Estadão analisou contratos do atual governo que somam R$ 1,2 bilhão para a construção de poços no sertão. Os documentos mostram irregularidades em pregões milionários feitos em menos de dez minutos e a reserva de recursos para abertura de novos poços sem que outros sejam concluídos. O resultado é um cemitério de poços abandonados.

A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo (ao centro) no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos.

A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo (ao centro) no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos. Foto: Wilton Júnior/Estadão

O agricultor Francimário Borges de Moura, de 47 anos, foi um dos moradores do assentamento rural de Faveira do Horácio, em Oeiras, que se entusiasmaram quando o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) começou a cavar um poço de 212 metros de profundidade, em junho de 2020, perto da comunidade. O poço, porém, foi lacrado ainda naquele ano. As 24 famílias da comunidade planejavam fazer um plantio de caju de 24 hectares. “O poço tem uma vazão bastante forte, potente, daria conta”, lamentou à reportagem.

A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo, de 37 anos, no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos. Mesmo para tomar banho é considerada inadequada pelos moradores. Em busca de água potável, a família de Valmira anda cerca de um quilômetro até chegar a uma nascente. Próximo dali há um poço lacrado com a inscrição “DNOCS 3/8/2020″. Mais um poço construído pela metade. “Eles abriram, mas não encanaram a água para nós. A gente fica triste, porque tem água doce perto, mas não pode usar”, afirmou Valmira.

Orçamento secreto

Na zona rural de Oeiras no Piauí - PI , o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) mantém lacrados poços artesianos abertos há meses, enquanto famílias sertanejas passam sede. Nos povoados de Lagoinha e Mata Fria, moradores lavam roupas no rio e buscam água em nascentes, chamadas de "olhos d'água". Na foto, Maria de Lourdes Rodrigues da Silva de 58 anos, indo levar roupa para lavar no rio. 

No povoado da Alagoinha, o governo federal cavou um poço público, mas a bomba não é potente para abastecer casas que ficam na parte alta do lugar. “A água tem gosto de sal. Em vez de espumar (com sabão), ela vira um material diferente. A gente põe a água no corpo quando está tomando banho e pode passar o sabão dez vezes: todas as dez vezes sai sujo”, disse o morador Antônio Francisco da Silva Costa, o Antônio Marçal, de 54 anos.

Para quem mora na região mais alta, “dificilmente” chega água. A água retirada do poço é salobra, com gosto mineral forte e desagradável, levemente salgado. Já a água da nascente, considerada “boa”, não tem gosto, mas é turva de terra.

O agricultor Francimário Borges de Moura; Poços abertos na zona rural de Oeiras (PI) estão lacrados há meses. Foto: Wilton Júnior/Estadão

No fim do ano passado, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (Progressistas-PI), anunciou que a construção de poços seria uma marca do governo Bolsonaro no Nordeste. “O presidente nos deu a determinação de levar um grande programa, uma verdadeira força-tarefa para que a gente unifique diversos órgãos que são voltados ao sistema de abastecimento de água para a população”, afirmou.

Eles abriram, mas não encanaram a água para nós. A gente fica triste, porque tem água doce perto mas não pode usar”

Valmira Fernandes de Araújo

A força-tarefa de abertura de poços envolveu três órgãos controlados por apadrinhados do próprio Ciro Nogueira e de líderes aliados do Planalto – a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o Dnocs e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

No primeiro semestre deste ano, Bolsonaro participou da entrega de poços no Nordeste. As obras foram citadas no discurso do presidente durante o lançamento de sua candidatura ao Palácio do Planalto, em julho, no Rio. “Água em grande parte do Nordeste é uma realidade”, disse. “Também o nosso Exército, com a Codevasf, fura dezenas de poços todos os meses, levando dignidade a essas pessoas. Eu estou mostrando o que nós fizemos, o que pretendemos seguir fazendo.”

As licitações para a construção de poços no País são genéricas. Parte dos editais da administração federal não informa a localidade exata onde o poço deve ser perfurado. Há pregões em que nem o tipo de rocha é especificado. Para especialistas em auditoria de obras públicas, isso influencia no preço final do contrato e limita a concorrência de empresas de pequeno e médio porte.

A súmula 177, do Tribunal de Contas da União (TCU), destaca que é “indispensável” ter uma “definição precisa e suficiente” do objeto das licitações, para que haja “igualdade” entre os participantes.

O Estadão teve acesso a um processo administrativo da Codevasf para abertura de poços no Piauí. Em março e abril, a estatal do Centrão, como é conhecida, recebeu seis ofícios de prefeituras, de associações e de um sindicato com a indicação dos locais onde os poços deveriam ser perfurados.

Ao Estadão, o presidente do Sindicato Rural da cidade de Pio IX (PI), Luís Pereira de Alencar, contou que indicou quatro comunidades. Ele admitiu que não sabe quantas pessoas serão beneficiadas e que poços são furados, até mesmo, em propriedades privadas. Mesmo assim convenceu a estatal a fazer a obra. “Não tem como precisar”, disse.

Procurados, Bolsonaro e Ciro Nogueira não responderam. Dnocs também não se manifestou.


Com poço, sem água

Falta de bomba

O governo federal fura poços pelo sertão, mas não instala os equipamentos do sistema de abastecimento. Sem bombas, a água não sai do buraco

Precariedade

Em alguns casos, o governo instala equipamentos precários, como bombas sem a potência adequada para destinar água até localidades mais altas

Má qualidade

Água potável não chega às casas; quando chega, é salobra

Pregões

No atual governo, foram realizados pregões de abertura de poços que somam um total de R$ 1,2 bilhão

Licitações

As licitações têm indícios de “superestimativa” de preço e limitação de concorrência. Uma licitação da Codevasf em Alagoas, de R$ 53 milhões, durou apenas dez minutos

Sob suspeita

Uma empresa venceu um pregão do Dnocs, do Piauí, sem comprovar capacidade técnica. O órgão é comandado por um amigo do ministro Ciro Nogueira (Casa Civil)

O que diz a Codevasf

A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) informou ontem que seus pregões são abertos à livre concorrência e à participação de empresas de todo o País. A empresa afirmou que observa a súmula 177 do TCU, “com clara definição de objeto, quantidades e Estados”.

De acordo com o órgão, “os locais beneficiados são apontados na definição do objeto, no Termo de Referência”. “A localização exata de poços ocorre após visita técnica de responsável qualificado da empresa contratada, com ratificação de equipe técnica da Codevasf.”

Ao Estadão, a companhia declarou que a escolha dos locais onde vai perfurar poços está relacionada “à necessidade hídrica, ausência de rede de abastecimento de água, origem de recursos orçamentários e atendimento à política pública de redução da dependência de carros-pipa”. A Codevasf afirmou que atende a demandas de prefeituras e associações e a indicações de órgãos responsáveis pela descentralização de recursos, quando aplicável.

Julia Affonso e André Shalders para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 16.08.22

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Um Brasil altivo defende a democracia

A leitura das ‘Cartas’ em defesa do regime democrático e do Judiciário mostrou que o País não está dividido em relação à democracia, valor inegociável para toda a sociedade

Se o presidente Jair Bolsonaro envergonhou profundamente o País ao difamar a democracia brasileira perante embaixadores estrangeiros, a resposta da sociedade em defesa das eleições e do regime democrático orgulhou e emocionou o País. Ontem, em todo o território nacional, foram lidos manifestos em defesa do Estado Democrático de Direito, numa demonstração luminosa de que a sociedade está vigilante e não aceita retrocessos autoritários. A democracia é um valor inegociável, o patamar mínimo imprescindível. Não é questão de ser de esquerda, direita ou centro. É apenas a firme compreensão de que não existe projeto de país sem respeito às regras e às instituições democráticas.

Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, foram lidos dois manifestos. Elaborada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e que recebeu a adesão da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), da União Nacional dos Estudantes (UNE), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e de muitas outras entidades, a carta Em Defesa da Democracia e da Justiça é expressão contundente de que o apoio ao regime democrático e ao Poder Judiciário une os mais diversos setores e as mais variadas ideologias. “A todos que exercem a nobre função jurisdicional no país, prestamos nossas homenagens neste momento em que o destino nos cobra equilíbrio, tolerância, civilidade e visão de futuro”, diz a carta da Fiesp. A sociedade não está dividida em relação à democracia e às instituições democráticas.

Como ressaltou o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que leu o manifesto da Fiesp no Salão Nobre da faculdade, “hoje (ontem) é um momento grandioso, em que capital e trabalho se juntam em defesa da democracia. Estamos celebrando aqui com alegria, com entusiasmo, o hino da democracia”.

Em seguida, no pátio das Arcadas, foi lida a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, a Carta de 22, que até ontem à tarde havia recebido mais de 950 mil assinaturas, sendo mais de 160 mil professores, 28 mil engenheiros, 14 mil médicos, 9 mil desempregados, 6 mil policiais, 5 mil enfermeiros, 4 mil dentistas e 4 mil motoristas. Esses números explicitam que a defesa da democracia não é uma causa partidária ou elitista. É uma causa do povo brasileiro. “São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”, diz a Carta de 22.

Na ocasião, o diretor da Faculdade de Direito da USP, Celso Campilongo, lembrou três aspectos fundamentais do Estado Democrático de Direito, todos eles enxovalhados pelo presidente Bolsonaro. O primeiro é a “observância do princípio da legalidade, do respeito às leis”, ou seja, “tudo o que não estão querendo fazer com o nosso sistema eleitoral”, disse, referindo-se aos ataques de Jair Bolsonaro contra as urnas eletrônicas. O segundo aspecto, lembrou o professor Campilongo, é o princípio da publicidade.

Consequência direta dos dois anteriores, o terceiro aspecto do Estado Democrático de Direito é o “controle da legalidade e da publicidade pelas instituições com competência para fazê-lo”. E o professor lembrou que quem tem competência para organizar as eleições, apurar os votos e proclamar os resultados é o Tribunal Superior Eleitoral. “O resto é gente sem competência jurídica e sem competência moral para se intrometer no processo eleitoral brasileiro”, disse Campilongo, num ensinamento especialmente necessário nos dias de hoje, em que o bolsonarismo tenta envolver os militares na apuração das eleições, atribuição totalmente estranha às funções constitucionais das Forças Armadas.

Após a leitura da Carta de 22 no pátio das Arcadas, tocou-se o Hino Nacional. Seus versos ressoaram forte no centro de São Paulo e em todo o Brasil. Eram a certeza de que, apesar de toda a escalada de violência de Jair Bolsonaro contra a democracia, continua havendo um País altivo, que não deseja ser refém dos autoritários e que lutará para defender suas instituições, suas eleições, sua democracia. Esse é o verdadeiro e profundo Brasil.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 12.08.22