quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A diferença entre direito e regalia

Indenizações generosas pagas a militares que passam para reserva distorcem direito à proteção social da categoria

O pagamento de generosas remunerações a militares nos últimos anos, revelado recentemente pelo Estadão, expõe de forma cristalina um dos elos que sustentam a relação entre o presidente Jair Bolsonaro e as Forças Armadas. 

No auge da pandemia de covid-19, quando o País buscava uma forma de ajudar milhões de famílias vulneráveis e contabilizava milhares de mortes diárias em decorrência de uma doença ainda sem vacinas nem tratamento eficaz, o governo depositava valores milionários a militares como Walter Braga Netto e Bento Albuquerque, que ocupavam os Ministérios da Casa Civil e de Minas e Energia à época, e a Luiz Eduardo Ramos, à frente da Secretaria-Geral da Presidência da República.

Os dados, levantados pelo deputado Elias Vaz (PSB-GO), jogam luz sobre benesses exclusivas, que garantem à categoria militar a invejável condição de aumentar a renda na aposentadoria – chamada de passagem para a reserva. O Ministério da Defesa argumentou haver amparo legal em todos os pagamentos, que incluíram indenizações por férias, adicionais e licenças especiais não usufruídas ao longo da carreira. A força do relatório do deputado está na revelação de que a situação dos ministros não é caso isolado. Quase 1,6 mil militares receberam mais de R$ 100 mil por mês entre janeiro e maio deste ano, totalizando despesas de R$ 262,5 milhões. Entre os contemplados está o ex-ministro Eduardo Pazuello, conhecido pela ruinosa gestão à frente do Ministério da Saúde e por ter violado a disciplina militar ao participar de um comício bolsonarista quando ainda era general da ativa. Ele recebeu R$ 305,4 mil em março.

É um fenômeno que o colunista Pedro Fernando Nery, do Estadão, chamou de “marechalcracia”, que garante aos militares uma promoção de patente na passagem para a reserva, a integralidade dos vencimentos e o direito de se aposentar com a maior remuneração da carreira. Aos privilégios que já vigoram há anos, Bolsonaro adicionou novos apanágios. No ano passado, permitiu que os militares acumulassem salários e aposentadorias acima do teto constitucional de R$ 39,2 mil, medida autorizada por portaria e que beneficiou inclusive o próprio presidente. Recentemente, criou um bônus para o militar que continua trabalhando mesmo depois de atingir o tempo para passar à reserva. Aos trabalhadores civis que se aposentam pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), resta arcar com um benefício calculado a partir da média das contribuições e limitado a um teto de pouco mais de R$ 7 mil, que proporciona um padrão de vida bem mais modesto.

O assunto suscita o debate sobre a diferença entre legalidade e moralidade. As indenizações militares podem até não violar nenhuma lei, mas são constrangedoras do ponto de vista moral, considerando os valores auferidos e o momento em que eles foram pagos. Como instituições permanentes de Estado, as Forças Armadas exigem dedicação exclusiva de seus quadros; em contrapartida, o País oferece uma proteção social permanente aos que seguem a carreira e às suas famílias. É um direito que deve ser preservado, mas que não pode ser distorcido ou usado como pretexto para a concessão de regalias.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18.08.22

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