segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno, não perdoou o Judiciário de seu tempo

Gregório de Matos Guerra (1636-1696) não perdoou os magistrados de seu tempo. Pior. Foi um deles. Chegou a desembargador. Nasceu na Bahia. A família era rica. Viveu alguns anos em Portugal. Ocupou vários cargos na burocracia colonial. Irreverente, foi demitido e desterrado para Angola. Quando voltou para o Brasil foi proibido de ficar na Bahia. Morreu no Recife. Casou-se com uma viúva, a quem abandonou, bem como abandonou a advocacia.

Segundo José Guilherme Merquior, Gregório teve um impulso boêmio, bem semelhante ao que tomaria, nos "Velhos Marinheiros" de Jorge Amado, o Capitão Vasco Moscoso de Aragão. Os historiadores da literatura (José Veríssimo) dizem que Gregório era vaidoso, muito vaidoso. Talvez mais do que por ser poeta, o orgulho com o título de doutor fazia de Gregório um reincidente no mais pesado dos pecados capitais (a soberba). Era um letrado arrogante, como insinuavam os inimigos. E os tinha muitos.

Gregório de Matos insistia que a justiça protegia os poderosos: "O Fidalgo de solar se dá por envergonhado de um tostão pedir prestado para o ventre sustentar: diz, que antes o quer furtar por manter a negra honra, que passar pela desonra, de que lhe neguem talvez; mas se o virdes nas galés com honras de Vice-Rei, esta é a justiça, que manda El-Rei."

Também não perdoava advogados que contraditoriamente defendiam causas opostas: "Os letrados peralvilhos citando o mesmo doutor. a fazer de Réu, o Autor, comem de ambos os carrilhos: se se diz pelos carrilhos sua prevaricação, a desculpa, que lhe dão, é a honra de seus parentes e entonces os requerentes, fogem desta infame grei: esta é a justiça, que manda El-Rei." Tem-se a impressão de que acusava os advogados por receberem de ambos os lados.

Tinha horror dos juramentos: "No que toca aos juramentos, de mim para mim me admiro por ver a facilidade, com que os vão dar a juízo. Ou porque ganham dinheiro, por vingança, ou pelo amigo, e sempre juram conformes, sem discreparem do artigo... Dizem, que falam verdade, mas eu pelo que imagino, nenhum, creio, que a conhece, nem sabe seus aforismos."

Tratando de Gregório de Matos há um romance delicioso e imperdível, de autoria de Ana Miranda, uma de nossas mais notáveis romancistas, imbatível no romance histórico. Dedicado a Rubem Fonseca, a autora trabalhou dez anos na construção do enredo e na reconstrução do tempo do Boca do Inferno, que é o título desse belíssimo livro. O livro levou prêmio Jabuti de revelação em 1990 e é um marco nesse dificílimo campo que é o romance histórico.

Ana Miranda, que é cearense (e que viveu em Brasília e no Rio), vinculou definitivamente Gregório de Matos à Bahia que "não deixaria de ser, nunca, a cidade onde viveu o Boca do Inferno". A autora descreve um tempo barroco, como se barroca fosse; a Bahia, "parecia ser a imagem do Paraíso. Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para o Inferno".

Gregório de Matos foi pesado com Salvador: "Que falta nesta cidade? Verdade. Que mais por sua desonra Honra Falta mais que se lhe ponha Vergonha. (...) E que justiça a resguarda? Bastarda. É grátis distribuída? Vendida! Quem tem, que a todos assusta? Injusta. Valha-nos Deus, o que custa, O que El-Rei nos dá de graça, Que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta." Essa poesia, que para alguns é crueldade, para outros exibicionismo, pode ser na verdade absoluta expressão da coragem.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, o autor deste artigo, é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Publicado originalmente no Consultor Juridico, em 21.08.22

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