segunda-feira, 1 de setembro de 2025

O que está em jogo no julgamento histórico de Bolsonaro

STF decide se ex-presidente e outros sete réus são culpados em trama golpista. Caso atrai holofotes mundiais e rompe com tradição conciliadora pós-ditadura.

Bolsonaro nega que tenha tentado um golpe, e afirma estar sendo perseguido por Alexandre de MoraesFoto: Marco Bello/REUTERS

Poucos momentos no calendário brasileiro evocam o espírito nacionalista como o 7 de Setembro, Dia da Independência. Crianças são estimuladas a celebrar as cores do país e desfiles cívicos e militares tomam as ruas de várias cidades. Em Brasília, tanques passam pela Esplanada dos Ministérios e um militar costuma bater continência para o presidente da República.

Neste ano, as celebrações terão um pano de fundo especial: o julgamento dos acusados de integrarem o núcleo central da trama para dar um golpe de Estado após as eleições de 2022, cuja figura de proa é o ex-presidente e militar reformado Jair Bolsonaro. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) inicia o julgamento nesta terça-feira (02/09) e reservou sessões para isso até a sexta-feira da próxima semana.

Apoiadores de Bolsonaro organizarão atos no 7 de Setembro em sua defesa, sob o mote de que seria um julgamento injusto, e críticos ao ex-presidente também irão às ruas defendendo sua punição. O país está dividido, com uma leve maioria de apoio ao trabalho do STF e à prisão de Bolsonaro.

Uma pesquisa Datafolha realizada em 29 e 30 de julho apontou que 55% concordavam com as primeiras restrições aplicadas pelo STF contra o ex-presidente, como tornozeleira eletrônica e proibição de sair de casa à noite, enquanto 41% discordavam. O resultado é mais apertado sobre se Bolsonaro deveria ser preso por tentativa de golpe: 48% responderam que sim e 46%, que não, no limite da margem de erro de dois pontos percentuais.

Bolsonaro sai de hospital em Brasília após fazer exames, em 16 de agostoFoto: Mateus Bonomi/Anadolu/picture alliance

O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu que o julgamento traz "algum grau de tensão" ao país, mas o considera importante para encerrar um ciclo. "É imperativo o julgamento, porque o país precisa encerrar o ciclo em que se considerava legítima e aceitável a quebra da legalidade constitucional por não gostar do resultado eleitoral", disse em 25 de agosto.

Nos 50 dias que antecederam o julgamento, Bolsonaro sentiu gradativamente os efeitos de restrições à sua liberdade. Em 18 de julho, teve que instalar uma tornozeleira eletrônica e foi proibido de usar redes sociais, de sair de casa à noite e de se comunicar com investigados e autoridades estrangeiras. Em 4 de agosto, após descumprir a proibição de uso de redes sociais, teve sua prisão domiciliar decretada e seus celulares apreendidos e foi proibido de receber visitas sem autorização judicial.

Essas decisões foram tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes, relator de inquéritos e ações penais relacionadas à tentativa de golpe. A primeira, que decretou as cautelares, foi referendada pela Primeira Turma da corte.

Bolsonaro nega que tenha tentado um golpe e diz estar sendo perseguido por Moraes. Sua defesa afirmou, nas alegações finais, que o ex-presidente em momento algum "praticou qualquer conduta que tivesse por finalidade impedir ou dificultar a posse" deLuiz Inácio Lula da Silva e que ele "sempre defendeu e reafirmou a democracia e o Estado de Direito". Os demais réus também negam ter participado de atividades criminosas.

Como será o julgamento

O presidente da Primeira Turma, ministro Cristiano Zanin, programou sessões nos dias 2, 3, 9, 10 e 12 de setembro para julgar a ação penal sobre o chamado "núcleo crucial" da trama do golpe. Compõem o colegiado Zanin, Moraes, Cármen Lúcia, Flávio Dino e Luiz Fux.

Além de Bolsonaro, há outros sete réus nessa ação penal, sendo quatro militares da reserva de alta patente: Almir Garnier Santos, almirante da reserva da Marinha, Augusto Heleno, general da reserva do Exército e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, Paulo Sérgio Nogueira, general da reserva do Exército e ex-ministro da Defesa, e Walter Braga Netto, general da reserva do Exército e ex-ministro da Casa Civil.

Os demais três réus são Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Alexandre Ramagem, deputado federal (PL-RJ) e ex-diretor geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e Mauro Cid, tenente-coronel da ativa do Exército e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.

Braga Netto, que foi ministro da Defesa de Bolsonaro e seu candidato a vice em 2022, também é réu na mesma ação penalFoto: EVARISTO SA/AFP

O grupo é acusado de ter cometido cinco crimes em 2022 e 2023: golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, associação criminosa armada, dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. Apenas Ramagem não responderá ao crimes de dano contra o patrimônio da União e de deterioração de patrimônio tombado.

O julgamento será iniciado com Moraes lendo seu relatório sobre o caso, seguido pela manifestação do procurador-geral da República, Paulo Gonet. Depois, os advogados dos réus apresentam suas sustentações orais, começando pela defesa de Mauro Cid, que firmou um acordo de colaboração premiada. A defesa de Bolsonaro será a quinta a se manifestar.

Por fim, os ministros apresentam seus votos e, caso haja maioria pela condenação, fixam a pena de cada réu. Dependendo da evolução, é possível que o julgamento não seja encerrado no dia 12, e novas sessões seriam marcadas. Também é possível que algum ministro peça vista do processo, com prazo de 90 dias para devolução. Mesmo que haja pedido de vista, a expectativa é que o julgamento termine neste ano.

Brasília terá um contingente extra de policiais durante os dias de julgamento, e cerca de 30 policiais estarão permanentemente de prontidão no STF, inclusive durante a noite. Também foram realizadas varreduras nas casas dos ministros.

O que está em jogo

Sob uma perspectiva histórica, o julgamento será a primeira vez que o sistema de Justiça brasileiro irá processar e, eventualmente, punir um ex-presidente por tentativa de golpe de Estado. Trata-se de uma ruptura com o modelo adotado da última vez em que o Brasil sofreu um golpe de Estado, em 1964, cujos líderes e patrocinadores foram poupados após a redemocratização por uma generosa anistia.

Bolsonaristas e integrantes conservadores do Congresso tentaram fazer avançar um projeto que anistia o ex-presidente e seus apoiadores, mas a empreitada não deslanchou. Segundo a pesquisa Datafolha citada no início deste texto, 55% dos brasileiros são contra uma anistia, enquanto 35% são favoráveis.

O julgamento ocorrerá de forma relativamente célere considerando a complexidade do caso e os padrões do Judiciário brasileiro: dois anos e oito meses após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, que depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília e balançaram o início do atual governo Lula. .

A maioria da massa de bolsonaristas que participou dos atos golpistas já foi responsabilizada. Foram abertas 1.628 ações penais no STF sobre o caso, e até 12 de agosto 1.190 pessoas haviam sido responsabilizadas pela corte – 638 foram julgadas e condenadas e outras 552 admitiram a prática de crimes menos graves e fizeram acordo com o Ministério Público Federal.

Pesquisa Datafolha aponta que 55% dos brasileiros são contra a anistia a Bolsonaro, mas um percentual menor, 48%, defende sua prisão (Foto: Nelson Almeida/AFP)

O STF também estará sob holofotes internacionais. Bolsonaro integra uma corrente de partidos e movimentos de extrema direita atuantes em diversos países do mundo. Os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 em Brasília emularam o ataque ao Capitólio de 5 de janeiro de 2021 em Washington DC, quando apoiadores de Donald Trump, então derrotado em sua campanha à reeleição, tentaram impedir a posse de seu sucessor, Joe Biden.

A evolução de ambas as tentativas violentas de subversão da ordem institucional teve caminhos muito distintos até o momento, o que levou a revista britânica The Economist a publicar uma reportagem de capa sustentando que o julgamento de Bolsonaro no Brasil oferece uma lição de "maturidade democrática" aos EUA.

Essa distinção tem sido frisada por Lula, cujo governo está no alvo de Trump. O líder dos EUA anunciou um tarifaço contra o Brasil para, entre outros motivos, pressionar pela suspensão do julgamento de Bolsonaro.

"Se Trump fosse brasileiro e se tivesse feito o que aconteceu no Capitólio, ele também seria julgado, e se ele também tivesse violado a Constituição de acordo com a Justiça, ele também estaria preso", afirmou Lula em uma entrevista à CNN publicada em 17 de julho. O paralelo internacional dá a Lula um discurso de defesa da soberania, mas pode vir a causar mais problemas para o Brasil – é possível que Trump amplie a pressão sobre seu governo caso Bolsonaro seja condenado.

Michelle Bolsonaro em cima de um trio elétrico discursando para pessoas na rua em um protesto; foto do dia 3 de agosto de 2025Michelle Bolsonaro em cima de um trio elétrico discursando para pessoas na rua em um protesto; foto do dia 3 de agosto de 2025

Bolsonaristas consideram que o ex-presidente está sendo perseguido por MoraesFoto: Marx Vasconcelos/REUTERS

Por fim, uma eventual condenação de Bolsonaro acelera a disputa na direita entre pré-candidatos ao Planalto que querem o apoio da base política do ex-presidente, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo)

Bolsonaro já está inelegível até 2030, em função de outros processos julgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas se recusa a apoiar um nome para as eleições de 2026. Essa estratégia é similar ao que fez Lula quando ficou preso de abril de 2018 a novembro de 2019 por corrupção passiva e lavagem de dinheiro na ação penal sobre o triplex no Guarujá, posteriormente anulada pelo STF.

O petista seguiu candidato às eleições de 2018, como forma de aumentar a pressão política pela reversão de seu julgamento, e o PT só declarou que Fernando Haddad seria seu candidato no último dia do prazo eleitoral.

O que acontece se Bolsonaro for condenado

Caso seja considerado culpado pelos crimes dos quais é acusado, Bolsonaro pode receber uma pena máxima de mais de 40 anos de reclusão. A definição de pena leva vários fatores em conta, inclusive a idade do condenado.

Se houver divergência entre os ministros da Primeira Turma sobre a sentença para Bolsonaro, é possível que seus advogados apresentem um recurso chamado embargos infringentes para tentar levar o processo ao plenário da corte, mas há dúvida sobre se isso poderia ser aplicado neste caso.


Casa de Bolsonaro em Brasília, onde ele está em prisão domiciliar desde 4 de agosto (Foto: Eraldo Peres/AP ) Photo/picture alliance

Bolsonaro tem 70 anos e alguns problemas de saúde, parte deles decorrente da facada que levou durante a campanha eleitoral de 2018. Desde que foi colocado em prisão domiciliar, ele tem tido crises de soluço e sintomas de refluxo. Em 16 de agosto, o ex-presidente foi a um hospital para realizar exames, e seu boletim médico apontou um quadro de infecções pulmonares, esofagite e gastrite.

Segundo uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo, ministros do STF avaliam que uma eventual condenação de Bolsonaro à prisão não seria cumprida em um quartel do Exército, pois poderia estimular uma movimentação de seus apoiadores. Outras duas possibilidades são consideradas: uma cela especial no presídio da Papuda, em Brasília, ou uma sala adaptada na Superintendência da Polícia Federal no Distrito Federal – similar ao que ocorreu quando Lula esteve preso em Curitiba.

Se for condenado, a defesa de Bolsonaro deve pedir que ele cumpra a pena em regime domiciliar, citando o precedente do ex-presidente Fernando Collor, que tem 76 anos e foi condenado por um esquema de corrupção na BR Distribuidora. Poucos dias após ser preso, o STF autorizou em 1º de maio que ele cumprisse a pena em casa, após a defesa alegar que ele sofre de doenças graves, que incluem doença de Parkinson, apneia do sono grave e transtorno afetivo bipolar.

Texto de Bruno Lupion. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 01.09.25

Lula abusa de seu poder

Perto de sua última eleição, Lula faz da Presidência um palanque permanente para fazer o que realmente gosta: campanha. Por motivo bem parecido, Bolsonaro foi declarado inelegível

A certeza de que, em 2026, disputará uma eleição presidencial pela última vez em sua longuíssima vida política parece ter dado a Lula da Silva a ilusão de que ganhou um salvo-conduto para abusar da lei e da paciência dos brasileiros. Não ganhou, ao contrário do que ele pensa, mas para o demiurgo petista isso pouco importa, desde que possa agir e falar sem parar de acordo com suas intenções eleitorais. E assim ele tem extrapolado todos os limites aceitáveis ao converter a Presidência da República e os eventos oficiais em palanque permanente e transformar a posição de chefe de Estado em condição privilegiada para fazer o que realmente gosta: campanha eleitoral.

Como não governa, Lula faz comícios, disso já se sabe. Entretanto, o que o País tem visto neste ano é de outra ordem. Na mais recente reunião ministerial, por exemplo, momento em que, em tese, deveria discutir com auxiliares ideias e decisões restritas à esfera de governo, Lula transformou o Palácio do Planalto em arena eleitoral e sua fala de chefe de Estado em discurso de candidato. Citou nominalmente o provável principal adversário capaz de tomar-lhe a reeleição (o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas), como quem coloca o dedo em riste contra um inimigo a enfrentar, e levou seus ministros a vestir bonés com jeito e slogan de caráter eleitoral, convocando os auxiliares a uma tarefa de cunho claramente partidário. Como se sabe, ele e seus sabujos estão empolgados com a linha de conflito adotada pelo governo e pelo PT depois de amargar meses de impopularidade pelo vazio programático que marca o terceiro mandato.

Não foi o único episódio em modo campanha e, infelizmente, não será o último. Não há dia ou evento oficial sem que Lula deixe de fazer referência à sua condição de candidato nas próximas eleições – mesmo quando é para fingir que pode não levar tal ideia adiante, como se não tivesse passado os últimos 40 anos pensando apenas na próxima disputa eleitoral. Não deixou de fazê-lo nem sequer nos meses em que foi um presidiário condenado por corrupção em duas instâncias. Hoje, nos comícios em atos públicos – todos na condição de chefe de governo, convém insistir –, ele invariavelmente ignora abordagens administrativas e a busca efetiva de soluções para os muitos problemas do País, preferindo desancar adversários, repisar o mote patriótico do lulopetismo na campanha, difundir realizações do seu governo como quem reinventou o Brasil e incentivar a militância a aproveitar os bons ventos trazidos pelo tarifaço de Donald Trump.

É o exato contrário do que manda a liturgia do cargo de presidente, mas coerente com quem se enxerga acima do bem, do mal e da lei. Afinal, Lula não parece contente em ser apenas um enviado de Deus, com assim já se definiu, ou comparado a um novo messias, como também já se apresentou diversas vezes. Com alguma frequência perfila-se com grandes heróis da história nacional, de Tiradentes a Getúlio Vargas, de modo a ilustrar o quanto se sente como a personificação do povo e seus anseios. Esse panegírico só serve para mostrar que Lula é mesmo incorrigível, um vício de origem que se agravou com o iminente fim de sua carreira eleitoral. Em outubro de 2026, Lula terá 81 anos e até mesmo os petistas já se preparam para chegar o momento em que precisarão trabalhar sem seu campeão de votos, posto que o chefão passará a ser apenas uma inspiração ou um retrato na parede.

Mas antes que esse momento chegue – infortúnio da militância do PT e alívio de um Brasil que gostaria de ver a política brasileira sem as amarras da polarização entre o lulopetismo e o bolsonarismo –, convém ter cuidado. Recorde-se que o Tribunal Superior Eleitoral tornou Jair Bolsonaro inelegível porque enxergou abuso de poder na reunião do então presidente com embaixadores estrangeiros, em pleno Palácio da Alvorada. À época, Bolsonaro usou o encontro para deslegitimar o sistema eletrônico de votação. Hoje Lula usa as reuniões no Palácio do Planalto para deslegitimar outras coisas: a Presidência que exerce e as leis eleitorais que restringem seus delírios palanqueiros. Não há outro nome a chamar: abuso de poder.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 01.09.25

sábado, 30 de agosto de 2025

Morre Luis Fernando Verissimo, o cronista que dizia muito com poucas palavras, aos 88 anos

Escritor ficou conhecido por sua precisão em crônicas e criou personagens como o Analista de Bagé, a Velhinha de Taubaté e Ed Mort; releia sua última coluna publicada no ‘Estadão’


Em 17 de agosto de 2025, sua família divulgou a informação de que ele estava internado desde a semana anterior por conta de uma “pneumonia leve que foi piorando”.

Documentário examina sutilezas de Luis Fernando Verissimo: ‘Captar o indizível, os pequenos gestos

A ùltima Crônica de Luís Fernando Veríssimo

Discute-se a melhor maneira de punir o presidente Trump por ter incitado a invasão do Congresso e criado as cenas de caos que os americanos não vão esquecer tão cedo

Por Luis Fernando Verissimo

14/01/2021 | 03h00

Notícia de presente

Discute-se a melhor maneira de punir o presidente Trump por ter incitado a invasão do Congresso e criado as cenas de caos que os americanos não vão esquecer tão cedo. Ele poderia ser processado ou impichado (de novo). Estou escrevendo antes da escolha do castigo. A última notícia que se tem é que Trump estaria trancado no seu quarto na Casa Branca, recusando-se a receber assistentes, amigos e parentes. Do lado de fora da porta, teria se formado uma espécie de comitê que tenta convencê-lo a se entregar ou pelo menos conversar. Trump resiste. A qualquer tentativa de comunicação, ele começa a cantar. Convites para saírem todos dali e irem jogar golfe também são ignorados. Trump só respondeu quando perguntaram se ele precisava de alguma coisa. – Preciso de mais quatro anos de governo.  – Mas o senhor perdeu as eleições.  – Invenção da imprensa sem caráter. Se eu tivesse contado os votos, teria vencido. – O senhor não precisa de mais nada mesmo? Algo para os cabelos? Tintura? Armação?  – Tenho tudo que eu preciso, obrigado. Inclusive a caixinha... – A caixinha? – A caixinha. Com os dois botões. Um dispara foguetes contra a Rússia, o outro dispara foguetes contra o Congresso americano. A revelação de que Trump tem a caixinha dentro do quarto fechado provoca uma correria dentro da Casa Branca. Ele tem a caixinha! Ele tem a caixinha! Ele não tem a caixinha! Alguém viu a caixinha? Perguntam para ele:  – Presidente, o senhor usaria armas nucleares contra a Rússia e o Congresso? – Se me provocarem...  É ESCRITOR, CRONISTA, TRADUTOR, AUTOR DE TEATRO E ROTEIRISTA

O escritor Luis Fernando Verissimo em ambiente de trabalho. Foto de 1995. Foto: Marcos Mendes/Estadão

Os problemas de saúde de Luis Fernando Verissimo

Nos últimos anos, o escritor já havia enfrentado outros problemas de saúde, incluindo uma cirurgia na mandíbula, em novembro de 2020, e um AVC (Acidente Vascular Cerebral) em janeiro de 2021. Este último afetou uma parte cognitiva de seu cérebro, dificultando a ordenação de seus pensamentos, ainda que compreendesse o que se passava ao redor.

Desde então, passava por uma recuperação lenta e gradual e também por alguns fatos inusitados - como a sua maior facilidade para se comunicar em inglês, língua que se tornou fluente por conta da infância nos EUA.

Em 1988, Luis Fernando Verissimo começou seus trabalhos como colaborador do Estadão. Até janeiro de 2021, quando sofreu o AVC, o escritor também foi colunista do jornal.Clique aqui para reler sua coluna mais recente, A Caixinha.

Pouco antes, em dezembro de 2020, foi questionado sobre o vinha lendo nos desafiadores tempos de pandemia. “O melhor livro que li em 2020 foi o de ensaios e estudos sobre Antonio Candido lançado pela editora 34, prova de que existe vida inteligente na Terra.”

Primeira crônica ilustrada da série 'Aventuras da Família Brasil', de Luís Fernando Veríssimo, publicada no Caderno 2 de 6 de novembro de 1988.  Foto: Luís Fernando Veríssimo/Estadão Acervo

Cronista, cartunista, ficcionista, saxofonista, gourmet e torcedor fanático do Internacional, Luis Fernando Verissimo sempre foi uma das raras unanimidades positivas do País.

Autor de mais de 70 livros que já venderam milhões de exemplares (entre eles, os best sellers O Analista de Bagé e A Comédia da Vida Privada) e de personagens emblemáticos (a Velhinha de Taubaté, que criticava a ditadura, o detetive Ed Mort, as Cobras), o filho do escritor Erico Verissimo só começou a escrever aos 30 anos (nasceu em 1936), depois de ter passado por várias escolas de arte e desenho, inacabadas; de ter tentado o comércio “só para reforçar o mau jeito da família”; e de ter passado por uma rápida carreira jornalística, de revisor e colunista de jazz a cronista principal do jornal gaúcho Zero Hora.

Os primeiros livros de Luis Fernando Verissimo

Em 1973, lançou, pela Editora José Olympio, seu primeiro livro, O Popular, com o subtítulo “crônicas, ou coisa parecida”, coletânea de textos editados na imprensa, formato que marcaria boa parte de suas futuras publicações. O primeiro grande sucesso, no entanto, aconteceu com o lançamento de seu quinto livro de crônicas, Ed Mort e Outras Histórias, o primeiro pela Editora L&PM, com a qual trabalharia durante 20 anos. Sátira aos romances policiais, o detetive Ed Mort inspiraria ainda um tira de quadrinhos desenhados por Miguel Paiva e um filme com Paulo Betti no papel título.

Verissimo se tornaria fenômeno de vendas com O Analista de Bagé, lançado em 1981, quando a primeira edição se esgotou em apenas dois dias. O personagem foi originalmente criado para um programa de humor na TV, capitaneado por Jô Soares. Com o projeto engavetado, Verissimo levou-o ao livro, tornando-se uma figura peculiar: psicanalista de formação freudiana ortodoxa, o analista não esconde, porém, seu sotaque e a predileção por costumes típicos da fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina. A graça surgia justamente na contradição entre a sofisticação da psicanálise e a “grossura” caricatural do gaúcho da fronteira. O personagem inspirou dois livros de contos, um de quadrinhos (com desenhos de Edgar Vasques) e uma antologia.

A Velhinha de Taubaté, “a única pessoa que ainda acredita no governo”, surgiu dois anos depois, como crítica ao governo militar em seus anos derradeiros. Em pouco tempo, Verissimo cruzou fronteiras, tornou-se colaborador de programas humorísticos de televisão, vistos e ouvidos em todo o Brasil – é o caso das histórias da Comédia da Vida Privada, série de 21 programas (1995-1997), com roteiros de Jorge Furtado e direção de Guel Arraes.

‘Há diferença entre ser humorista e fazer humor’

Sua timidez tornou-se outra característica sempre lembrada, reforçando o valor de seu texto: sim, Verissimo sempre buscou ser engraçado na escrita e não na fala. Na verdade, nunca se julgou um humorista. “Acho que há uma diferença entre ser humorista e fazer humor”, disse, certa vez. “O humorista é o cara que tem uma visão humorística das coisas. O humor é sua maneira de ver e de ser.”

Uma filosofia que se revelou útil durante a dura fase de exceção. Veríssimo conta que, durante a ditadura, ele enviava uma crônica para o jornal deixando sempre uma na gaveta, de reserva. “E não foram poucas as vezes em que saiu a reserva”, comentou, em outra entrevista. “Os censores pareciam achar o cartum algo infantil; então, era mais fácil fazer passar um cartum político que um texto político.”

Autodeclarado um gaúcho desnaturado, por não andar a cavalo, não tomar chimarrão e ter nascido e se criado na cidade, Verissimo sentiu o gosto da felicidade plena no dia 4 de abril de 2008, quando sua filha Fernanda lhe deu a primeira neta, Lucinda, nascida em uma data especial: dia do aniversário do Sport Club Internacional.

O cronista mais popular do Brasil

Em 2020, Elias Thomé Saliba, professor da USP especializado em humor e autor de Raízes do Riso, descreveu o escritor como o cronista mais popular do Brasil, aquele que “diz o que o leitor quer falar, mas não consegue”. “Verissimo ultrapassa o transitório não apenas porque suas crônicas se transformam em livros, mas porque estabeleceu desde o início um pacto humorístico com o leitor.”

“Mais do que qualquer outro, o público que se torna parte do pacto humorístico é aquele que percorre o noticiário sério do jornal ou da revista e torna-se capaz de entender as alusões, ironias e paródias de Verissimo e de seu humor fortemente conectado com os eventos noticiados e, por isso, compreensível apenas naquelas situações”, defendia (leia a análise completa aqui).

Os ‘falsos Verissimos’ da internet

Com a era moderna, muitos dos textos passaram para o meio digital. Em muitos casos, porém, textos que não eram do autor contavam com a assinatura de “Luis Fernando Verissimo”, tentando ganhar credibilidade. Ele se acostumou ao fato. “Fico sem graça de dizer que não é meu. Em outra oportunidade, uma senhora veio me dizer que não gostava tanto dos meus textos, exceto do Quase, que era maravilhoso. O que posso dizer? Melhor não decepcionar. E quando vou a escolas onde os alunos encenam um texto que, na verdade, não é meu?”, relatava ao Estadão em 2016.

Curiosamente, Luis Fernando Verissimo se assumia como um “analfabeto em informática”, que se limitava ao uso de e-mails e Google. Para o restante, recorria aos filhos. Ainda sobre tecnologia, em texto publicado no Estadão em 2019, “Pertenço à geração perdida no tempo”, citava a “farta literatura premonitória” sobre robôs indestrutíveis. “Que eu saiba, ninguém ainda imaginou um roteiro em que os inimigos não sejam grandes robôs blindados, mas os pequenos celulares”.

Verissimo escrevia poucas palavras, mas era extremamente preciso

Em 2016, o escritor foi perguntado: qual a receita para seus textos serem populares e não popularescos? “Não tenho”. Em seguida, atribuía o mérito ao gênero: “Acredito que, antes de mais nada, é ter clareza na escrita. E, como a crônica normalmente não é um texto grande, torna-se acessível a qualquer público”. Ao longo da carreira, Verissimo ficou conhecido não apenas pelos “textos não tão grandes”, mas também por escrever estritamente o necessário, em pouquíssimas palavras, e ainda assim ter muito a dizer.

Para quem tem interesse em se aprofundar um pouco mais pela figura do autor, em 2024, o documentário Verissimo foi lançado. Fugindo do estilo biográfico cronológico, o longa tinha foco maior no cotidiano do escritor, prestes a completar 80 anos de idade à época das filmagens, que acompanhou por 15 dias. Atualmente, está disponível para assistir no streaming Mubi.

Ubiratan Brasil e André Carlos Zorzi, os autores deste texto, são Jornalistas. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.08.25

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

PEC da Blindagem mostra que, no escurinho do sistema, bolsonaristas e Centrão se acertam

No Brasil, desde que a Lava-Jato fez água, não passa um ano sem que brote no Congresso alguma iniciativa destinada a desmontar o aparato de fiscalização e controle do uso dos recursos públicos.

Oposicionistas fazem motim na Câmara contra prisão domiciliar de Bolsonaro — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo/05/08/2025

Fazer o que bem entende sem ser cobrado ou punido é o sonho de qualquer um. Mas, para deputados, senadores, governadores, prefeitos, presidente da República, juízes ou ministros do Supremo, é uma causa que ganha status de prioridade sempre que o ambiente político permite. No Brasil, desde que a Lava-Jato fez água, não passa um ano sem que brote no Congresso alguma iniciativa destinada a desmontar o aparato de fiscalização e controle do uso dos recursos públicos.

Já tivemos a Emenda Constitucional que impedia a prisão de deputados por crimes que não fossem inafiançáveis, a que garantia a parlamentares acesso irrestrito aos inquéritos sobre eles mesmos, inclusive os protegidos por sigilo, além de um projeto que tornava crime chamar de ladrão políticos condenados por corrupção. Esses não passaram, mas outros viraram lei, como o que liberou advogados de ter de apresentar contratos formais para justificar o recebimento de recursos, ou a emenda que afrouxou a Lei de Improbidade Administrativa e dificultou a punição de autoridades por desvios de conduta.

A ofensiva em curso, o pacote da blindagem, surgiu no gabinete do ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), numa noite tumultuada. Um grupo de deputados invadira o plenário em protesto contra a prisão domiciliar de Bolsonaro e se recusava a devolver a cadeira do atual presidente, Hugo Motta (Republicanos-PB), a menos que se votasse a anistia aos presos do 8 de Janeiro. Revezavam-se na invasão, alternando ataques ao STF com críticas ao “sistema” — que, na narrativa da extrema direita, atua para tirar Bolsonaro do jogo eleitoral.

Foi quando os líderes reunidos no gabinete de Lira perceberam a oportunidade de ressuscitar projetos que tentam emplacar há anos. O primeiro diz que só o próprio Congresso pode autorizar a abertura de investigação sobre parlamentares, até mesmo inquéritos policiais, e o segundo tira do STF o poder de julgá-los, mudando o foro dos processos para instâncias inferiores.

O foco do Centrão é escapar de investigações sobre desvios de recursos de emendas. Mas o argumento apresentado no calor da hora foi que, só quando estiverem livres do Supremo, os deputados e senadores terão coragem de aprovar a anistia aos presos do 8 de Janeiro (o plano original serviria para libertar também Jair Bolsonaro). O líder do PL, Sóstenes Cavalcante, aceitou o acordo, de que Hugo Motta foi apenas informado.

A primeira parte do plano, chamada de PEC das Prerrogativas, virou prioridade na pauta da Câmara ontem. A mudança de foro ainda não se sabe se vinga, mas não porque os parlamentares tenham desistido, e sim porque uma ala teme que ficar nas mãos de juízes de primeira instância possa lhes render ainda mais problemas.

A consequência das mudanças é óbvia: um “liberou geral” para todo tipo de desmando, já que abrir inquéritos contra deputados e senadores ficará praticamente impossível. Também não será surpresa se o crime organizado despejar todo o dinheiro que puder na campanha de 2026 para colocar seus integrantes no Congresso.

A extrema direita, que se diz pela democracia e enche a boca para acusar Lula de bandido, sabe disso, mas finge que não vê. Os deputados de esquerda — que, diante dos microfones, chamam o pacote de salvo-conduto para os golpistas, mas nos corredores admitem que podem ajudar a aprová-lo — também sabem.

Para justificar o empenho pela aprovação dos projetos, Sóstenes repete aos quatro ventos que só tenta proteger os parlamentares das chantagens dos ministros do Supremo. Mas quem está chantageando quem, quando e por que, no entanto, ele não diz.

A única forma de conter essa onda é submeter os parlamentares ao vexame da exposição dos conchavos e à pressão da opinião pública. Foi assim com as últimas tentativas de passar a boiada da impunidade, e é por isso que os dois projetos vêm sendo discutidos a portas fechadas e em segredo. No escurinho do sistema, fronteiras ideológicas deixam de existir, e as causas por que esses guerreiros da democracia dizem lutar simplesmente desaparecem.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é jornalista especializada em politica e economia. Publicado originalmente n'O Globo, em 28.05.25

Eleição de 2026 será uma batalha

Parece ser consenso: nunca houve uma legislatura tão disforme e despreparada

Eleitora finaliza votação na urna eletrônica em Benfica, na Zona Norte do Rio — Foto: Custodio Coimbra / Agência O Globo

Não deveria ser surpresa os aspones das redes sociais escreverem leis apresentadas por deputados bolsonaristas — como se denuncia. Tampouco a mesma bancada do capitão se colocar contra a punição de quem sexualiza crianças atrás de monetização — como acontece. O problema não se encontra num poder controlado por baixos instintos. Está em como o espaço vazio foi ocupado sem resistência.

Atire a primeira pedra quem se lembrar do nome do deputado em que votou em 2022.

Parece ser consenso: nunca houve uma legislatura tão disforme e despreparada, movida a vinténs e de costas para a solução dos problemas brasileiros. Cada novo projeto saído da lavra dos parlamentares revela a discordância entre o que se pensa como futuro coletivo e o interesse privado de seus autores. Basta o exemplo do aumento de número de deputados bancado pelo presidente da casa, Hugo Motta. Com a ajuda do PT velho de guerra.

É de perguntar: a cara do Brasil é o deputado Sóstenes Cavalcante ou esse é o retrato da pátria adormecida, anestesiada e esquecida pela maioria que se afastou da política?

Em 1988, ano da Constituinte, com o Brasil disposto a escrever seu destino, houve mobilização entre vários setores de olho na eleição de membros do Parlamento. O país vinha da vitória da reconquista da democracia, da luta contra o arbítrio da ditadura civil-militar. Havia a crença de que a política fosse o caminho para superar o atávico subdesenvolvimento e a desigualdade aprofundada pelo regime extinto.

Vídeos pela internet exibem caravanas de diferentes grupos da sociedade levando ao Congresso suas reivindicações — de indígenas a mulheres, de artistas a garimpeiros e ainda profissionais liberais. No outro lado da bancada, deputados como Florestan Fernandes, um dos pais da sociologia moderna brasileira, ou o senador Afonso Arinos, um liberal letrado. Nem tudo era vista do mar, porque lá estava o deputado Roberto Cardoso Alves, o santo guerreiro do Centrão, discípulo cínico do dístico do “é dando que se recebe”. Aqui não se discute religião.

Isso faz parte do Brasil. Demoramos a abolir a escravatura pelos interesses dos fazendeiros, como demos as costas por quase cem anos à novidade da Revolução Industrial. Não se espante ao saber que — hoje, em 2025! — cada dólar de café exportado aos Estados Unidos gera a eles US$ 43 em valor agregado. É uma valorização de 4.200%!

Daí que parte da sociedade mobilizada sugere sair das reclamações em posts indignados para a organização — ou reação. Começam a circular convocatórias para que cidadãos de áreas diversas se candidatem a cargos eletivos no próximo ano. A ideia é disputar voto em suas áreas de influência e atuação, a partir de compromissos claros com a modernização e a higienização da atividade parlamentar.

Ocorreu algo semelhante em 1988, e não parece ser difícil repetir a conquista, dado que a Constituição aprovada, mesmo com seus defeitos, levou o Brasil a completar 40 anos de democracia, a despeito de dois impeachments e uma boa dúzia de escândalos.

Na base da polarização atual, se encontra o desencanto com a política escandido pela interdição de Dilma Rousseff e a malversação comandada pelo PT. Queira ou não, a esquerda representada pelo partido trazia no embalo a organização de diversas forças, muitas delas estandartes importantes para a sociedade.

A descoberta dos roubos na Petrobras, as caixinhas e coberturas afastaram da política formadores de opinião e deixaram sem discurso aqueles eleitores do PT incapazes de adotar o cinismo de resultados — algo que ocorreu às pencas com intelectuais ligados ao partido.

À debacle produzida pelo PT, se somam a contundência com que temas incômodos são vetados pelas redes sociais — à esquerda e à direita, vale dizer. Diria que a lacração começou com o marketing político pós-ditadura e com a rejeição de pautas polêmicas capazes de afugentar eleitores —mas isso é tema para outra coluna. Com o receio de não ganhar, adotou-se a hipocrisia eleitoral pautada pelo bom senso das pesquisas de opinião.

Pintada a política como algo sujo, decadente e reacionário. Tal discurso resultou no afastamento de setores que fariam a diferença, de personalidades capazes de encarar o contravapor dos amantes de emendas e dos office boys das big techs.

Para o Brasil de Adoniran Barbosa e Guimarães Rosa, que soube derrubar duas ditaduras, reencontrar a História não deve ser tarefa impossível.

Miguel de Almeida, o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema. Publicado originalmente n' O Globo, em 25.08.25

Brasil na capa da Economist: Julgamento de Bolsonaro 'dá lição aos EUA de maturidade democrática'

O ex-presidente Jair Bolsonaro e o julgamento da ação penal na qual ele é acusado de liderar uma suposta tentativa de golpe de Estado são o foco da capa da revista britânica The Economist desta semana.

 "O que o Brasil pode ensinar aos EUA" (Crédito, Reprodução/The Economist)

Na publicação, o ex-presidente é retratado com o rosto pintado com as cores do Brasil e com um chapéu igual ao que usava o "viking do Capitólio", um dos apoiadores do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que ficou conhecido por ter participado assim da invasão ao Congresso americano em 6 de janeiro de 2021.

Em suas páginas, a revista traz uma longa reportagem sobre a trajetória política brasileira e a investigação contra Bolsonaro e seus aliados.

Em um segundo texto, com tom opinativo, a Economist discute ainda as diferenças entre a forma como os Estados Unidos lidaram com as ameaças contra a sua democracia, após os ataques ao Capitólio em 2021, e a conduta adotada pelo Brasil nos últimos meses.

Com o título "Brasil oferece aos Estados Unidos uma lição de maturidade democrática", o editorial descreve a condução do processo penal contra Bolsonaro e seus aliados como uma "fantasia da esquerda americana".

"Os Estados Unidos estão se tornando mais corruptos, protecionistas e autoritários — com Donald Trump, esta semana, mexendo com o Federal Reserve (Fed) e ameaçando cidades controladas pelos democratas. Em contraste, mesmo com o governo Trump punindo o Brasil por processar Bolsonaro, o próprio país está determinado a salvaguardar e fortalecer sua democracia", diz a Economist.

A revista britânica descreve ainda Jair Bolsonaro como "polarizador" e o "Trump dos trópicos" e afirma que o ex-presidente brasileiro e "seus aliados, provavelmente, serão considerados culpados" pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Ainda segundo o texto, o plano contra a democracia brasileira pelo qual Bolsonaro é acusado "fracassou por incompetência, e não por intenção".

Bolsonaro e todos os outros acusados negam as acusações. O julgamento está marcado para começar na próxima terça-feira (2/9).

Alexandre de Moraes, 'o juiz que se recusa a ceder à vontade de Trump': o que diz Washington Post sobre ministro do STF

'Lula vai colher benefícios por ser atacado por Trump, mas deve evitar briga maior', diz Economist

As similaridades e diferenças apontadas pela revista entre Brasil e Estados Unidos se debruçam especialmente no fato de tanto Bolsonaro quanto o presidente americano Donald Trump terem sido acusados de agir para reverter o resultado de uma eleição, divulgar informações falsas sobre fraude e incitar seus apoiadores a invadirem prédios públicos para impedir a posse de seus adversários políticos.

No caso americano, Trump se tornou réu em ações estaduais e federais por suas ações após sua derrota na eleição presidencial de 2020 para o democrata Joe Biden.

Segundo uma das acusações, ele teria espalhado "mentiras de que houve fraude" e conspirado para mudar ilegalmente a eleição a seu favor, levando eventualmente à invasão da sede do Congresso americano. Trump refutou as alegações.

Quando os casos foram abertos, o republicano já se preparava para ser candidato às eleições de 2024, e os processos não chegaram a ser concluídos antes de ele voltar à Casa Branca no início deste ano, após derrotar a democrata Kamala Harris nas urnas.

Trump não foi acusado de sedição — possibilidade que era a principal ameaça à sua candidatura, já que a 14ª Emenda da Constituição proíbe quem "tiver se envolvido em insurreição ou rebelião" contra o governo de ocupar cargos civis ou militares em gestões federal ou estadual. E como não há instrumento similar à Lei da Ficha Limpa brasileira nos EUA, os indiciamentos não afetaram a campanha do americano.

O atual presidente dos EUA ainda foi julgado pelo Congresso em dois processos de impeachment em 2021, após o fim do seu primeiro mandato, mas foi absolvido pelo Senado americano. O efeito prático de uma condenação naquele momento poderia ser a perda de seus direitos políticos.

Quando Trump assumiu os processos foram extintos, após a Suprema Corte dos Estados Unidos decidir que ex-chefes de Estado têm imunidade absoluta contra processos por ações tomadas oficialmente como presidente durante o mandato.

Logo após sua posse no início deste ano, Trump anunciou sua decisão de perdoar ou atenuar as sentenças de quase 1,6 mil pessoas envolvidas na invasão do Capitólio.

Montagem com fotos da invasão à sede dos Três Poderes em Brasília e a invasão do Capitólio nos EUACrédito,Reuters

Já Bolsonaro foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2023 por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião realizada no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros em 2022.

No julgamento previsto para a próxima semana, o ex-presidente brasileiro é acusado de cinco crimes relacionados a um suposto plano de golpe de Estado para impedir Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de assumir o poder após as eleições de 2022.

Entre os crimes imputados ao ex-presidente estão liderança de organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

Os dois últimos se referem aos ataques de 8 de janeiro de 2023 contra as sedes dos Três Poderes da República. Na ocasião, milhares de apoiadores radicais de Bolsonaro, insatisfeitos com a eleição e posse do presidente Lula, invadiram e depredaram o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF — em um episódio amplamente comparado ao que aconteceu em 2021 em Washington.

Apoio de Trump a Bolsonaro pode fazer americanos pagarem mais por hambúrguer, diz The Economist

O que o Brasil pode ensinar aos EUA, segundo a Economist

Segundo a Economist, o Brasil é "um caso de teste de como os países se recuperam de uma febre populista".

"Na Polônia, dois anos após a perda do poder do partido Lei e Justiça (PiS), uma coalizão liderada por Donald Tusk, um centrista, está sendo limitada por um novo presidente do PiS. No Reino Unido, o Brexit agora é impopular, mas Nigel Farage, o político que o inspirou, lidera nas pesquisas. Nem mesmo o massacre do Hamas em 7 de outubro de 2023 conseguiu tirar Israel de suas amargas divisões".

Mas, segundo o texto, o país que mais viveu momentos semelhantes ao Brasil é os Estados Unidos. E de acordo com a publicação britânica, as duas nações "parecem estar trocando de lugar".

Para a Economist, o passado recente com uma ditadura militar pode ajudar a explicar porque a reposta às ameaças à democracia em território brasileiro foi mais forte.

"Além disso, a maioria dos brasileiros não tem dúvidas sobre o que Bolsonaro fez. A maioria acredita que ele tentou dar um golpe para se manter no poder", diz a revista, afirmando ainda que mesmo os políticos conservadores do país, que precisarão dos votos dos apoiadores de Bolsonaro para vencer as eleições de 2026, criticam o "estilo político" do ex-presidente.

E, segundo a publicação, esse "reconhecimento abriu a oportunidade de reforma" no Brasil, pois "a maioria dos políticos brasileiros, tanto de esquerda quanto de direita, quer deixar para trás a loucura de Bolsonaro e sua polarização radical".

O papel do STF

Mas segundo a Economist, um dos pontos-chave para uma mudança institucional no país passa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que é descrito pela revista como "guardião da democracia brasileira".

O editorial afirma que a corte "supervisiona uma gama estonteante de regras, direitos e obrigações" e pode receber casos de grupos que vão de sindicatos a partidos políticos.

O texto cita ainda o caso conhecido como Inquérito das Fake News, aberto pelo STF para investigar notícias falsas e ameaças contra os membros da Corte e seus familiares. Segundo a revista, os próprios magistrados abriram o caso, tornando-se ao mesmo tempo "vítima, promotor e juiz".

"Para lidar com uma carga de trabalho de 114.000 decisões somente em 2024, a maioria das decisões vem de juízes individuais. Há amplo reconhecimento de que juízes não eleitos, com tanto poder, podem corroer a política, bem como salvá-la de golpes. Os próprios juízes veem a necessidade de mudança."

A Economist segue afirmando que "consertar" o STF "será difícil", mas que há mais obstáculos para uma reforma no Brasil, como uma "incontinência fiscal crônica, em particular isenções fiscais descontroladas e aumentos automáticos de gastos" e a polarização nacional.

"Mesmo que as elites queiram mudanças, o Brasil ainda é um país profundamente dividido. Bolsonaro tem apoiadores fanáticos que causarão problemas, especialmente se o tribunal impor uma sentença severa. Reformar o Supremo Tribunal Federal e a Constituição exige que grupos abram mão do poder em prol do bem comum", diz o editorial.

Por isso, tensões seriam inevitáveis. "Mas, ao contrário de seus colegas nos Estados Unidos, muitos dos políticos tradicionais do Brasil, de todos os partidos, querem seguir as regras e progredir por meio de reformas."

Segundo a Economist, essas são as marcas da maturidade política. "Pelo menos temporariamente, o papel do adulto democrático do hemisfério ocidental mudou para o sul."


Edição da Economist desta semana também traz uma longa reportagem sobre a trajetória política brasileira e a investigação contra Bolsonaro e seus aliados. (Crédito: Reprodução / The Economist)

Estratégia de Trump 'sairá pela culatra'

Outro empecilho na trajetória do Brasil apontado é o presidente americano Donald Trump, que como lembra a revista, acusou o STF de uma "caça às bruxas" contra Bolsonaro, impôs tarifas de 50% sobre as importações brasileiras nos EUA e decretou sanções contra o ministro Alexandre de Moraes.

Segundo a Economist, essa interferência "faz lembrar de uma época passada e desagradável, quando os Estados Unidos habitualmente desestabilizavam os países latino-americanos".

Mas, de acordo com a revista, a estratégia de Trump "provavelmente sairá pela culatra".

"Apenas 13% das exportações brasileiras vão para os Estados Unidos, e consistem principalmente de commodities, para as quais novos mercados podem ser encontrados. Os EUA já concederam inúmeras isenções. Até agora, os ataques de Trump apenas fortaleceram a posição de Lula nas pesquisas de opinião e lhe deram uma desculpa para qualquer notícia econômica ruim antes da próxima eleição, em outubro de 2026."

O que a Economist já disse sobre o Brasil

Esta não é a primeira reportagem da britânica Economist sobre o atual momento político brasileiro. Tampouco é a primeira capa dedicada pela publicação ao Brasil.

Em textos anteriores, a revista já tratou da posição do presidente Lula após ser atacado pelo presidente americano Donald Trump e alertou sobre o peso que as taxas anunciadas pelo republicado podem acabar pesando no bolso dos consumidores americanos.

Em 2009, 2013 e 2016, capas da publicação também trataram da situação política e econômica do Brasil.

A primeira capa retratava um momento em que as avaliações sobre a economia brasileira viviam um momento bom, com o título "Brasil decola". Quatro anos depois, em uma referência à reportagem anterior, a manchete da revista questionava se o país havia "estragado tudo", em meio a uma desaceleração do crescimento econômico.

Em 2015, uma outra capa previa um ano seguinte 'desastroso' para o Brasil, em meio ao governo da ex-presidente Dilma Rousseff.

Julia Braun, a autora desta reportagem, é Repórter da BBC Brasil em Londres (UK). Publicada originalmente em 28.08.25

Orçamento inchado em 2026

Mesmo que o governo utilize todos os subterfúgios legais, o rombo é estimado em R$ 44,9 bilhões


Reunião da Comissão de Orçamento do Congresso Nacional

O prazo para o Poder Executivo apresentar a proposta orçamentária de 2026 está se aproximando. A Constituição determina que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) seja enviado até o dia 31 de agosto. Nossas projeções, na Warren, indicam um déficit superior a R$ 100 bilhões. A meta estipulada é um superávit de R$ 34,5 bilhões.

Na prática, o governo pode retirar da meta fiscal, para fins de checagem legal, certas despesas com precatórios, o que lhe confere uma folga de R$ 55,1 bilhões. Mesmo assim, ainda faltariam R$ 79,4 bilhões (-100 + 55,1 - 34,5) para o alcance do superávit proposto no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO).

Durante a execução do Orçamento, tem-se adotado o piso da meta fiscal como referência. Para 2026, a meta é R$ 34,5 bilhões, e essa banda inferior é igual a zero. Permite-se, legalmente, a entrega de um resultado menor. Neste caso, o buraco de R$ 79,4 bilhões diminuiria para R$ 44,9 bilhões.

Antes de prosseguir, vamos ter clareza sobre o que está em jogo. Mesmo que o governo utilize todos os subterfúgios legais – desconto de R$ 55,1 bilhões em precatórios e banda inferior da meta fiscal –, o rombo é estimado em R$ 44,9 bilhões.

Ocorre que, na etapa de apresentação da proposta orçamentária, é impossível trabalhar com a banda inferior. Trata-se de uma questão de lógica pura. As bandas propostas pela Lei Complementar n.º 200/2023, mais conhecida como novo arcabouço fiscal, servem para acomodar choques. Ora, por definição, choques são eventos não previsíveis, que pegam os gestores da política fiscal de surpresa.

Como, então, de saída, fundamentar o planejamento orçamentário do Ploa na banda inferior? Choques imprevisíveis seriam estimados? Até para nossos padrões históricos de criatividade, isso seria inusitado. Logo, não há saída para o governo, no dia 31, a não ser apresentar um Ploa com receitas suficientes para, ao menos no papel, garantir um resultado compatível com o superávit de R$ 34,5 bilhões.

Esse resultado mínimo é calculado em -R$ 20,6 bilhões. Vale dizer, para garantir um superávit de R$ 34,5 bilhões, no papel, o déficit de R$ 20,6 bilhões mostra-se adequado, dado o desconto dos precatórios (34,5 - 55,1). Tomando como base o nosso cenário na Warren, que indica um déficit na casa dos R$ 100 bilhões, o desafio do governo, na construção do Ploa, seria encontrar receitas à altura dessa diferença: R$ 79,4 bilhões.

Alguém poderia aventar que as despesas discricionárias seriam reduzidas, já no Ploa, resolvendo a questão. Mas isso é inviável. Se o ajuste recaísse sobre elas, o nível de despesas dessa natureza, essenciais ao funcionamento da máquina, dado ainda o fato de que estão espremidas por mais de R$ 50 bilhões em emendas parlamentares, levaria à paralisação da máquina pública.

Resta, portanto, buscar receitas como se não houvesse amanhã. A estratégia, similar à que se adotou para o Ploa de 2025, não é boa. Cria-se uma peça orçamentária alicerçada em fumaça, ou seja, em arrecadação que não existe, mas tem alguma probabilidade de acontecer.

Os candidatos a assumir esse papel de inchar o Ploa e garantir a meta, no papel, são: a medida provisória que promove majoração na tributação de títulos isentos; o corte de benefícios tributários (ainda não há proposta do governo, mas há projeto em tramitação); e as receitas do petróleo derivadas de antecipações.

Como se vê, é tudo muito frágil. A alternativa seria a alteração da meta fiscal. O governo parece não gostar dessa saída, preferindo jogar o problema para o próximo ano. O risco dessa escolha é gerar ruídos nos dois momentos: agora, porque todos vão olhar com lupa o Ploa e criticar a superestimativa de receitas e, depois, quando, no momento de apresentar o primeiro relatório bimestral do Orçamento, no final de março, opte-se pela mudança da meta já com o ano em curso.

É compreensível que a equipe econômica faça uma aposta dessa natureza, até porque há ainda muitas possibilidades de ganhos de arrecadação por meio dos projetos em tramitação no Congresso, como mencionei. Ao mesmo tempo, uma política fiscal dependente de tantos fatores incertos é, no mínimo, precária. O Congresso não apoia as iniciativas enviadas pelo Executivo para conter gastos, tampouco acena com tesouradas nas suas emendas.

O fato é que 2027 já bate à porta. Mesmo que se resolva o problema de 2026 com receitas adicionais e algum ajuste na meta fiscal, a dívida pública continuará crescendo em proporção do PIB, para pressionar os juros e reduzir as perspectivas de crescimento. Além disso, as despesas discricionárias caminham para níveis tão baixos que, invariavelmente, o vencedor das eleições, em outubro do próximo ano, não conseguirá escapar de uma proposta de ajuste estrutural.

Esse pacote para 2027 teria de avançar sobre: indexações, vinculações, emendas parlamentares, supersalários, previdência (civis e militares), subsídios financeiros e creditícios e gastos tributários. Sem um pacote completo, vamos direto para o vinagre.

Felipe Salto, o autor deste artigo, é o Economista-chefe da Warren Investimentos, membro do Conselho Superior de Economia da FIESP  e Professor do Instituto de Direito Público / IDP. foi Secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e o primeiro diretor-executivoo da Instituição Fiscal Independente (IFI). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.08.25

O último refúgio dos canalhas está cheio

Na guerra dos patriotas de fancaria, perdemos todos. Enquanto lulopetismo e bolsonarismo se engalfinham para definir quem é mais brasileiro, os patriotas de verdade só querem um governo decente

Se o patriotismo “é o último refúgio dos canalhas”, como diz o escritor inglês Samuel Johnson (1709-1784), - imagem acima - então esse refúgio está lotado no Brasil. Lulopetistas e bolsonaristas andam se esmerando em transformar esse sentimento de pertencimento a uma comunidade nacional em arma política para fins eleitorais.

Em reunião anteontem, o presidente Lula da Silva e seus ministros apareceram com um boné azul em que se lia “O Brasil é dos brasileiros”, um constrangedor contraponto governista aos bonés vermelhos Make America Great Again (“Torne a América grande novamente”), o movimento político nacionalista liderado pelo presidente dos EUA, Donald Trump. Ainda estamos a mais de um ano da eleição presidencial, mas já é possível antever que essa patacoada será o grande mote do lulopetismo na campanha.

O patriotismo fajuto que Lula abraçou não tem qualquer relação com os reais interesses e necessidades da Pátria. Ao presidente e seus marqueteiros só interessa explorar eleitoralmente o elo afetivo dos brasileiros entre si e deles com o lugar em que nasceram ou escolheram viver, no momento em que o Brasil é agredido pelos EUA de Trump. No limite, Lula quer se confundir com a própria ideia de pátria, e não à toa, na reunião ministerial, a título de reafirmar sua disposição para defender o Brasil contra os EUA, leu um discurso de Getúlio Vargas, o autocrata que quis inventar uma identidade brasileira moldada conforme seus propósitos autoritários. Nesse discurso, Vargas denunciava “forças internacionais” que se uniram aos “eternos inimigos do povo humilde”, que “procurarão, atingindo minha pessoa e o meu governo, evitar a libertação nacional e prejudicar a organização do nosso povo”.

Como se percebe, Lula se vê como Vargas, isto é, como a própria personificação do Brasil e de seu povo – donde se conclui, conforme essa retórica, que qualquer ataque a Lula equivale a crime de lesa-pátria cometido por traidores do Brasil. Não é à toa que o slogan do governo, apresentado na reunião, passará a ser “Do lado do povo brasileiro”, que substituirá o “União e reconstrução”. Em vez de união, o lulopetismo agora quer que se escolha um lado – o do “povo brasileiro”, obviamente encarnado em Lula.

Enquanto isso, “patriotas” bolsonaristas, que há anos prejudicam o País, esmeram-se em criar uma crise sem precedentes no Brasil a título de livrar Jair Bolsonaro da cadeia. Nesse sentido, Bolsonaro, como Lula, também se considera a própria encarnação do Brasil, e mobilizar uma força estrangeira – o governo americano – para pressionar magistrados tidos como inimigos do ex-presidente seria, na verdade, um gesto para salvar o País e a democracia brasileira. O Leitmotiv golpista é, portanto, evidente.

Nenhuma surpresa. O brado retumbante de Jair Bolsonaro – “Brasil acima de tudo” – é tão verdadeiro quanto uma nota de três reais. Dono de um próspero empreendimento familiar, dedicado a fazer dinheiro com rachadinhas e afins sob a proteção de mandatos políticos, Bolsonaro nunca se importou com partidos, com o decoro parlamentar, com a Constituição ou com o Brasil. Seu propósito sempre foi e continua a ser a exploração do ressentimento de eleitores insatisfeitos com a política para acumular patrimônio pessoal. Bolsonaro, que jamais respeitou a farda militar que um dia vestiu e que foi capaz de conspurcar seguidamente o 7 de Setembro, invoca o patriotismo não no sentido de inspirar união e orgulho, e sim com o objetivo de semear o antagonismo, do qual extrai votos e poder.

Nessa guerra entre patriotas de fancaria, perdemos todos. De um lado, temos um entreguista que, com a expectativa de safar-se da cadeia, pôs-se a serviço de um governante estrangeiro que humilha o Brasil como quem dá um peteleco numa mosca. De outro, temos um contumaz oportunista, convencido de ter encontrado a fórmula para ganhar mais um mandato presidencial sem a necessidade de apresentar programas de governo e soluções efetivas para os reais problemas brasileiros. No meio dos dois estão os brasileiros que amam seu país e só querem um governo decente.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.08.25

Cenário eleitoral

Não se sabe ao certo o que vai acontecer amanhã, o que dizer dentro de um ano


Lula e Bolsonaro, parceiros na polarização

O cenário político ganha uma conotação eleitoral cada vez mais acentuada, como se qualquer medida governamental ou iniciativa partidária devesse ser vista predominantemente sob essa ótica. Com a geopolítica tomando uma forma interna, graças às ações conjuntas da dupla Trump/Bolsonaro e à esquerdização do governo Lula, não se sabe ao certo o que vai acontecer amanhã, o que dizer dentro de um ano. No entanto, o tempo da política segue o seu ritmo a despeito das intempéries e aproveitando-se delas. De um lado, estamos longe das eleições de outubro de 2026; de outro, não falta muito para o fim do ano, quando começará o embate propriamente eleitoral.

Note-se, preliminarmente, que o acúmulo de pesquisas, com diferentes institutos tentando atrair a atenção, termina por acentuar esse quadro, fazendo com que traços políticos atuais tenham projeção para o futuro. Por exemplo, todas as pesquisas mostram Jair Bolsonaro como candidato, quando isso é praticamente impossível. Está inelegível e será muito provavelmente julgado e condenado nos próximos meses. Acontece que a sua presença nas listas eleitorais vem a fortalecer a polarização vigente. Produz-se, assim, um desencontro com a realidade, uma vez que não mais existirá no próximo ano a oposição Lula x Bolsonaro. Em consequência, os candidatos de centro-direita e direita temem se apresentarem e dizerem o que pensam para não contrariarem o “não candidato” Bolsonaro. Isso não deixa de ser uma certa esquizofrenia política.

Na perspectiva da esquerda, salvo por razões de saúde ou tropeços nas pesquisas de opinião, Lula será candidato à reeleição. Já deixou de governar há bastante tempo para dedicar-se completamente à sua campanha. Não há outro candidato petista viável, ninguém podendo lhe fazer sombra. Haddad não tem mostrado viabilidade eleitoral e seria apenas uma eventual solução de emergência. Ademais, o atual discurso esquerdizante e ideologicamente ultrapassado não deixa de ser uma preparação para o PT passar para a oposição. Não seria difícil fazer essa transição. Quanto à outra candidatura de esquerda, do PSB, na figura de Geraldo Alckmin (embora não se possa dizer que seja propriamente de esquerda), ela não é factível pela simples razão de que o PT é um partido de projeto hegemônico, sempre voltado para exercer solitariamente o poder, sem saber dividi-lo. Nunca aceitaria outro nome que não fosse propriamente seu.

Na perspectiva da extrema direita, Eduardo Bolsonaro, dado o seu posicionamento contrário ao Brasil – tendo contribuído para o tarifaço de Trump – deu literalmente um tiro no pé. Ademais, provavelmente será julgado e condenado, não podendo candidatar-se no próximo ano. O mais provável é sua permanência nos EUA. Michelle Bolsonaro tem forte presença no meio evangélico, ganhando eleitoralmente com isso. As diferenças internas à família Bolsonaro, porém, possivelmente a farão optar por uma candidatura ao Senado pelo Distrito Federal, dada como certa. Flávio Bolsonaro, embora seja da família o mais moderado, ainda não se apresentou como possível candidato, permanecendo refém de uma decisão paterna.

Na perspectiva dos governadores, ainda Bolsonaro-dependentes, a safra é excelente, podendo-se dizer que qualquer um tem qualificações para exercer a função presidencial. O governador Tarcísio tem surgido como candidato com maiores chances, sob a condição de vencer previamente o núcleo bolsonarista, que impede qualquer candidatura de voo próprio. Seria um candidato altamente competitivo. O governador Ronaldo Caiado (GO) é outro excelente candidato, exímio articulador político e sempre alinhado com posições de direita, mostrando coerência em sua trajetória. No Paraná, Ratinho Junior, com ótimo governo, tem se mostrado eleitoralmente competitivo, segundo as pesquisas de opinião, além de contar com o apoio de seu partido, o PSD, e de seu presidente, Gilberto Kassab. O governador Zema (MG), também na mesma linha, está tentando se viabilizar, tendo lançado sua candidatura, alinhando-se com a concepção bolsonarista, embora não tenha sido sacramentado por Jair Bolsonaro. O mesmo se pode dizer do governador Leite (RS), tentando ainda se impor nacionalmente, adotando um perfil distintivo de centro-esquerda.

Por último, não se deveria descartar a candidatura do ex-presidente Michel Temer. Seria a pessoa mais preparada para ultrapassar a polarização vigente, instalando um governo de unificação nacional. Conseguiu, após o fracasso do governo Dilma, recolocar o País no caminho do crescimento, de reformas estruturais, de responsabilidade social e fiscal. Haverá sempre alguém a dizer que a sua idade seria um empecilho. Ora, o argumento não se sustenta. Lula não é nenhum adolescente. Logo terá 80 anos. Trump tem 79 anos. Herdando um país destruído, Adenauer fez da Alemanha o que é hoje, assumindo a chancelaria com 73 anos e deixando o poder com 87 anos.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.08.25

Um código eleitoral horrível

CCJ do Senado fragiliza o que há de bom e reaviva bobagens como o tal ‘voto impresso’

Ao aprovar o novo Código Eleitoral, mudando para muito pior o que já veio ruim da Câmara, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado não só apostou numa agenda que o Supremo Tribunal Federal (STF) já declarou inconstitucional, como abriu a porteira para fragilizar a fiscalização dos partidos nas campanhas eleitorais e, de quebra, ainda descredenciar a Lei da Ficha Limpa.

O texto aprovado libera o autofinanciamento de campanha, atalho fácil para o desequilíbrio de candidaturas, e enfraquece a fiscalização das eleições ao restringir a atuação da Justiça Eleitoral, deixando-a limitada à checagem de aspectos formais das prestações de contas. Também garante maior liberdade no uso de verbas partidárias e altera duplamente as regras previstas na Lei da Ficha Limpa: de um lado, limita a inelegibilidade de políticos condenados a até oito anos, estabelecendo, para seu início, a data de decisão judicial (hoje, o prazo começa a contar a partir do final do cumprimento da pena imposta ou do mandato para o qual o político foi eleito, o que, na prática, resulta em mais de oito anos); de outro, para a cassação do diploma, do registro ou do mandato de um candidato que se beneficiou de compra de voto, passa a ser necessária uma “aferição da gravidade das circunstâncias”, sugerindo um dispensável nexo causal entre a compra de votos e o resultado da eleição.

O mais grave, contudo, foi a retomada do infame “voto impresso”, aquele que os bolsonaristas reivindicam sempre que tentam deslegitimar o processo eleitoral em razão das urnas eletrônicas. O texto prevê que a urna deve imprimir cada voto em uma cédula que será depositada “em local previamente lacrado” e determina que a votação do eleitor só acaba depois de conferir a cédula gerada.

Mas os bolsonaristas são incansáveis. Segundo o senador Carlos Portinho (PL-RJ), “o voto impresso é um ponto de divergência nacional e eu acho que a gente tem que pacificar o País”. Inexiste tal divergência: pesquisas realizadas na eleição passada verificaram que mais de 80% dos eleitores confiam nas urnas eletrônicas. Se realmente estivessem interessados em “pacificar o País”, os bolsonaristas parariam de usar a falsa polêmica sobre as urnas eletrônicas como pretexto para lançar dúvidas sobre eleições em que são derrotados.

Ademais, como acertadamente sublinhou o relator, senador Marcelo Castro (MDB-PI), “estamos incorrendo em uma inconstitucionalidade pela segunda vez”, lembrando que se trata do mesmo texto aprovado em 2015 no Congresso que o STF considerou inconstitucional.

A aprovação na CCJ é uma etapa prévia à deliberação final no plenário do Senado, até ser novamente votada na Câmara dos Deputados, que analisa as alterações feitas pelos senadores, para enfim o novo Código Eleitoral passar a reger o processo eleitoral brasileiro a partir de 2026. Até lá, portanto, há um caminho considerável para corrigir os graves equívocos da comissão e derrubar algumas das péssimas ideias aprovadas, em especial aquelas que só ajudam os inimigos da democracia.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.08.25

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Ruína de Bolsonaro é chance para a direita

Tendo ficado claro que o ex-presidente só pensa em si mesmo e está se lixando até para aliados, cabe aos verdadeiros conservadores abjurar o clã que lesa o Brasil para se safar da Justiça


O ex-presidente Jair Bolsonaro, réu no STF por conta da trama golpista Foto: Wilton Júnior/Estadão

O indiciamento de Jair e Eduardo Bolsonaro pelos crimes de coação no curso do processo e abolição violenta do Estado Democrático de Direito escancarou, de uma vez por todas, aquilo que já estava implícito no comportamento do clã: sua única preocupação é garantir, a qualquer custo, que o ex-presidente jamais seja responsabilizado pela pletora de crimes que o fizeram réu perante o Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Penal 2.668, que trata da tentativa de golpe de Estado. Qualquer outro objetivo, seja de interesse nacional, partidário ou voltado a um movimento político mais amplo, não tem a menor importância para Bolsonaro e sua grei.

O relatório da Polícia Federal (PF), divulgado com autorização do ministro Alexandre de Moraes, indica que Bolsonaro, Eduardo e o pastor Silas Malafaia tramaram desavergonhadamente meios concretos de interferir no bom andamento da Ação Penal 2.668. Do ponto de vista jurídico-penal, a tipificação dessas condutas ainda tem de passar pelo crivo da Procuradoria-Geral da República. Entretanto, do ponto de vista político, o material obtido pela PF não poderia ser mais devastador para os Bolsonaros.

As conversas trazidas a público confirmam a supremacia dos interesses mesquinhos da família sobre o interesse nacional e até mesmo sobre os de seu grupo político, o que atesta a absoluta falta de compromisso do bolsonarismo com o Brasil. A imposição de uma sobretaxa de 40% sobre as exportações brasileiras pelo presidente dos EUA, Donald Trump, somada às sanções impostas ao ministro Moraes pelo governo americano no âmbito da Lei Magnitsky, evidenciam o preço da cruzada delinquente de Jair e Eduardo Bolsonaro, este homiziado nos EUA desde março: incalculável prejuízo para o País em nome da impunidade de um só homem.

Em mensagens ao pai, Eduardo foi explícito ao dizer que a tal “anistia ampla, geral e irrestrita” jamais passou de um artifício retórico. O que importa, disse ele, é tão somente livrar Bolsonaro da cadeia. Caso contrário, segundo Eduardo, Trump poderia sustar suas ações para subjugar o STF em favor do pai. Esse reconhecimento expresso de que uma solução intermediária – o que o vulgo “zero três” chamou de “anistia light”, ou seja, um perdão que aliviasse apenas a situação dos bagrinhos do 8 de Janeiro – não satisfaria ao clã só reforça a convicção de que toda a energia negativa da família sempre esteve direcionada a um único fim: livrar Jair Bolsonaro, e apenas ele, da cadeia.

Nesse projeto personalista, atropelar aliados é fato da vida. O governador Tarcísio de Freitas, por exemplo, tido como candidato a herdeiro do espólio eleitoral de Jair Bolsonaro, tornou-se alvo da fúria de Eduardo apenas por tentar abrir canais de diálogo com autoridades americanas a fim de reduzir os impactos do tarifaço, particularmente duros para São Paulo. Em termos chulos, o filho do ex-presidente não só insultou o pai, como ameaçou desferir mais agressões contra Tarcísio caso Bolsonaro continuasse a defendê-lo em público. Em respeito ao leitor, decidimos não reproduzir a vulgaridade das conversas.

A cada revelação, fica mais evidente que a causa bolsonarista jamais foi a defesa da democracia, da soberania, da liberdade de expressão ou dos idiotas úteis que tomaram Brasília de assalto naquele dia infame. Trata-se de um projeto de autopreservação familiar que explora seguidores e sacrifica o Brasil. É nesse contexto que os verdadeiros conservadores, aqueles que repudiam a ruptura e prezam as instituições democráticas, devem avaliar a conveniência de permanecer ao lado de um golpista desqualificado como Jair Bolsonaro. Com tudo o que se sabe, só o fanatismo explica a fidelidade canina de alguns ao “mito”. Lideranças com pretensões eleitorais que se consideram decentes não podem continuar a se associar a um clã que já demonstrou ser capaz de trair os interesses mais vitais do País em troca da liberdade do líder da facção.

É de justiça reconhecer que, no campo da direita, já há quem se movimente pela construção de uma alternativa política democrática ao governo Lula da Silva, considerando que Bolsonaro é um zumbi político. Que assim seja, pois o Brasil não pode seguir refém de uma família que intoxica o destino nacional com sua desgraça particular.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 22.08.22

Como a Rússia já perdeu a guerra na Ucrânia

Nesse momento, a guerra na Ucrânia está corroendo a própria estrutura da sociedade russa


Soldada do Exército da Ucrânia participa de um treinamento na região de Zaporizhzhia Foto: Andriy Andriyenko/AFP

A guerra na Ucrânia é a maior guerra na Europa desde 1945.

A linha de frente do conflito se estende por mais de mil quilômetros, atravessando campos, cidades e áreas industriais – algo sem paralelo no continente desde a 2ª Guerra Mundial.

Só a Rússia já mobilizou mais de 1,5 milhão de soldados. A Ucrânia colocou outros 700 mil em diferentes funções militares.

O presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, conversa com jornalistas em Roma, Itália Foto: Gregorio Borgia/AP

Não há nada tão violento na Europa nos últimos 80 anos de história. E nada traduz melhor essa violência do que as estatísticas das mortes.

É verdade que a Rússia mantém em segredo os números oficiais de baixas militares no conflito – desde setembro de 2022, o Kremlin não atualiza o seu balanço.

Mas as melhores estimativas nos revelam perdas extraordinariamente altas. Até o último mês de junho, pelo menos 250 mil soldados russos morreram na guerra. Os russos registraram 1 milhão de baixas.

O número de militares russos mortos em pouco mais de três anos de conflito é cinco vezes maior que a soma das mortes combinadas da Rússia e da União Soviética em todas as guerras que o país travou entre 1945 e 2022.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião no Kremlin (Foto: Mikhail Metzel/AP)

Só para colocar em perspectiva: os Estados Unidos perderam pouco mais de 58 mil soldados nos 8 anos da Guerra no Vietnã. A cada ano, a Rússia tem perdido um Vietnã na Ucrânia.

Na verdade, mais do que isso: em míseros 3 anos, morreram mais russos na Ucrânia do que americanos em todas as guerras que os Estados Unidos lutaram desde 1945.

Durante os 10 anos da guerra do Afeganistão, a União Soviética perdeu 15 mil soldados. A Rússia perde isso hoje em um mês de combate na Ucrânia. Com uma diferença considerável: Moscou suportou 15 mil mortos no Afeganistão, sofrendo uma pressão política que tornou o conflito bastante impopular na Rússia. Hoje, o Kremlin lida com o desafio de transportar dezenas de milhares de mortos em muito menos tempo.

O dinheiro, claro, ajuda. Hoje, uma família de um soldado russo morto pode receber, de uma vez, até 14 milhões de rublos em benefícios sociais, o equivalente a R$ 800 mil.

É certamente um dinheiro bem alto para o padrão de vida russo (8 vezes o salário médio anual do país). Só em 2024 o Kremlin destinou o equivalente a US$ 15 bilhões para pagar compensações de morte e invalidez pela guerra – 6% de todo o orçamento federal anual.

E esse buraco não parece ter fim. No ritmo atual, 440 russos estão morrendo todos os dias na Ucrânia.

E não são só os mortos que retornam em caixões: soldados com membros amputados e ferimentos graves também estão voltando para casa, provocando um aumento bem acentuado na produção de próteses na Rússia.

A indústria da morte agradece. Dados do Ministério do Trabalho da Rússia revelam que Moscou subsidiou o fornecimento de 152 mil próteses em 2024, um aumento de 53% em relação a 2023 – quando 99 mil braços e pernas artificiais foram distribuídos –, outro aumento frente às 64 mil próteses de 2022, quando a guerra começou.

Empresas de caixões também relatam crescimento nos negócios. Só nos primeiros quatro meses desse ano, as funerárias russas faturaram quase 40 bilhões de rublos (cerca de R$ 2 bilhões), um aumento de 12% em relação ao ano passado.

E já não morre mais gente com o mesmo perfil de antes.

Enquanto nos primeiros meses da guerra, a idade média dos soldados que lutavam na Ucrânia era de 20 anos, esse número agora é de 36.

Muitos dos mortos não são só soldados, mas profissionais de diversas áreas: engenheiros, médicos, professores, metalúrgicos. Se no começo a guerra era dominada pelos militares de carreira, a Rússia hoje depende cada vez mais de recrutas civis de meia-idade.

Na prática, regiões bem pobres e distantes, onde há pouco emprego e salários baixos, lotados de minorias étnicas, se tornaram o principal reservatório humano do Exército russo.

Em alguns casos, homens são literalmente sequestrados em vilarejos; abordados nas ruas, retirados das suas casas ou capturados em pontos de ônibus, sem qualquer aviso.

Na Buriácia, por exemplo, no extremo leste da Sibéria, a taxa de mortos na guerra é até 30 vezes maior do que em Moscou. Em repúblicas do Cáucaso, como o Daguestão, jovens muçulmanos são convocados em massa, muitas vezes sob pressão direta das autoridades locais.

No fim, a estratégia é coerente: as mortes russas se concentram em regiões com baixo peso político, longe dos centros de poder. O luto de mães buriates ou daguestanesas faz bem menos barulho do que o de uma mãe de Moscou.

A Rússia diz treinar essas pessoas entre 3 semanas e 6 meses, dependendo da função. Mas a verdade é que há muitos relatos de 1 mês de treinamento – e para algumas operações, a quantidade de treino fornecido varia entre dois dias e duas semanas.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cumprimenta o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em Anchorage, Alasca (Foto: Andrew Caballero-reynolds/AFP)

Tudo isso gera carnificina.

A Rússia já tinha uma pirâmide etária deformada por conta da 2ª Guerra Mundial e da crise dos anos 1990. Tanto é assim que o país já vinha em declínio populacional antes da guerra. Mas a situação agora é caótica.

A população economicamente ativa russa está encolhendo. E essa escassez de trabalhadores produzirá, no curto prazo, não só uma queda da produtividade russa, mas uma possível importação forçada de mão de obra estrangeira – principalmente da Ásia Central e de países muçulmanos.

É claro que as perdas da Ucrânia também são bem altas. Em dezembro do ano passado, Zelenski revelou 43 mil soldados ucranianos mortos em combate e 370 mil feridos desde o início da invasão russa.

Além dessas mortes, quase 14 mil civis ucranianos foram mortos no conflito, e 35 mil ficaram feridos.

A Ucrânia é indiscutivelmente a grande vítima desse conflito, mas os russos são os maiores derrotados.

Nesse momento, a guerra na Ucrânia está corroendo a própria estrutura da sociedade russa. Cada caixão que retorna, a cada dia de batalha, significa não só um soldado a menos, mas um pai ausente, uma família quebrada, uma comunidade empobrecida.

Nesses três anos de conflito, centenas de milhares de crianças perderam o pai. Outras centenas de milhares de mulheres ficaram viúvas.

O resultado é uma geração marcada pelo luto.

Hoje, o Kremlin até consegue comprar o silêncio com indenizações, próteses e propaganda. Não há grandes manifestações contra Putin. Mas esse silêncio tem prazo de validade.

A Rússia pode até sustentar a guerra no campo de batalha, mas está perdendo em casa. E quando a poeira baixar, Moscou governará um país menor, mais pobre e mais velho. E nenhum triunfo militar, real ou inventado, será capaz de compensar essa derrota.

Rodrigo da Silva, o autor deste artigo, é  jornalista e criador do canal Spotniks, do YouTube. Em suas colunas, usa texto, vídeo, gráfico, mapa e fotografia para ajudar o público a entender os maiores eventos globais, com clareza e contexto.