quinta-feira, 30 de outubro de 2025

‘Nenhum bandido importante no Brasil mora em uma favela’, diz especialista em segurança pública

Ricardo Balestreri, que tem atuação federal e estadual na área, critica lógica de combate em operação contra o crime organizado e alerta que facções estão cada vez mais ricas e infiltradas nas instituições

Ricardo Balestreri: ex-secretário nacional de segurança pública — Foto: Leandro Santana/Agência Pará

Ex-secretário nacional de Segurança Pública, e com atuação também nessa área nos governos dos estados de Goiás e do Pará, Ricardo Balestreri reconhece que as facções criminosas exercem “poder tirânico” sobre largas porções do território do Rio e que “não se pode permitir o domínio desses bandidos, exercido com armas longas”, que foram apreendidas na operação — 91 fuzis foram tirados das mãos dos criminosos pelas forças de segurança.

Para o pesquisador, porém, o poder público vem se escorando somente numa lógica de combate, sem dar sequência a iniciativas que poderiam levar à retomada efetiva de territórios.

Balestreri, que é coordenador do núcleo de Urbanismo Social e Segurança Pública do Insper, enfatiza que combater o crime organizado “apenas na favela é enganar a população” — segundo ele, a operação Carbono Oculto mostrou arrecadação bilionária em setores formais da economia. A seguir os principais trechos da entrevista.

O governo do Rio costuma argumentar que as operações ostensivas são necessárias para “cortar capim”, isto é, frear periodicamente o avanço do crime organizado. Esse argumento se sustenta em uma operação como a de anteontem?

Combater o crime dessa maneira desinteligente é como bater em massa de bolo: ela só vai crescer cada vez mais. O discurso do poder público é de que “é melhor isso do que não fazer nada”, que não pode “ficar de braços cruzados”, mas eles na verdade não estão fazendo nada, exceto espetáculo. A única consequência é o pânico na população humilde e trabalhadora. E isso não é culpa da polícia. Ela acaba sendo usada por maus gestores, que inclusive expõem as vidas dos próprios policiais.

Eu lamento que os policiais, muitos deles sem expertise, sejam mergulhados nessa dinâmica de guerra, em operações mal planejadas. Algumas pessoas se irritam quando digo isso, mas o domínio territorial do crime, embora lembre uma guerra, não é uma situação de guerra. O problema de abordar segurança com a lógica da guerra é que reduz essas mortes a meros “danos colaterais”. E mesmo assim, se o poder público ainda pudesse dizer que “pragmaticamente o sacrifício foi necessário”… Mas não pode, porque são milhares de operações grandes, e o Rio está cada vez pior.

Operações como esta do Rio ajudam de alguma forma a punir integrantes do crime organizado?

Tivemos uma operação recente, a Carbono Oculto (do governo federal, em parceria com o governo de São Paulo), que teve apreensões e não deu nenhum tiro. Todo criminoso tem que ser punido. Os bandidos que dominam as favelas do Rio exercem um poder tirânico e maltratam a população empobrecida no seu dia a dia. Eles precisam ser combatidos, mas é preciso estar atento às consequências sociais, econômicas, aos serviços públicos, e até ao turismo que essas operações causam.

O número de mortos, superando até o de episódios como o massacre do Carandiru, se explica pela força das facções ou pelo tipo de abordagem das forças de segurança nesse episódio?

O crime está cada vez mais armado, mais rico, mais infiltrado nas instituições. E todos esses mais de cem bandidos abatidos, supondo que sejam todos bandidos, amanhã estarão repostos no crime por outros jovens de 14, 15, 16 anos. O que explica esse número de mortos é uma busca frenética e não razoável por causar impacto na opinião pública. Não estou amaciando para bandido, defendo inclusive que as penas para faccionados sejam agravadas, mas o fato é que combater o crime só na favela é enganar a população.

De que maneira?

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou uma pesquisa recente sobre o que é conhecido da receita anual do crime organizado no Brasil: mais de R$ 140 bilhões desde 2022, ou R$ 30 bilhões por ano. A maior parte disso estava no mercado de combustíveis, com R$ 60 bilhões. Afirmo com convicção que nenhum bandido realmente importante no Brasil mora em uma favela, com esse nível de arrecadação. A população mostra um cansaço legítimo com a falta de segurança, mas o governo deveria se guiar pela sobriedade, e não pela busca do impacto ou por cortinas de fumaça.

O Rio já ensaiou tentativas para retomar territórios no longo prazo, como as UPPs do governo Cabral, que fracassaram, e mais recentemente o Cidade Integrada, iniciado em 2022 e que até agora não vingou. O que deveria ser feito em paralelo ou em alternativa à ostensividade policial?

Se o crime penetra na favela, é porque o Estado de Direito se retirou. A experiência das UPPs, em seu início, foi um breve sopro de inteligência em meio a três ou quatro décadas de políticas desastrosas. A polícia entrou corretamente, mas sozinha. E o modelo cresceu sem ter condições de funcionamento. As políticas de segurança precisam de escala, mas com sobriedade. Em geral, as iniciativas não se sustentam quando são feitas de forma apressada para mostrar algo à opinião pública às vésperas de eleições.

O discurso de combate à criminalidade a qualquer custo vem pautando eleições em vários países da América Latina, como El Salvador e Equador. No Brasil, ele também está mais forte hoje?

Aqui a rotina de megaoperações vem desde a década de 1990, e vejo que muita gente segue propagando essa ideia, que mexe com emoções desordenadas, mas compreensíveis, da população. É uma ilusão. O caso de El Salvador é sintomático de que a falta de solução para o crime organizado não se explica por falta de brutalidade. Houve um clamor popular para resolver um problema antigo, e o atual presidente, Nayib Bukele, propôs a fórmula de instituir um regime sem direito ao contraditório, de certa forma “vender a alma” da democracia em prol da segurança. Mas o que se vê hoje, e que foi relatado em documentos do governo dos EUA, é que o governo de Bukele mantém negociações por baixo dos panos com o crime organizado, sem a população saber.

Entrevista concedida a Bernardo Mello Franco publicada originalmente pelo O GLOBO, em 30.10.25

Três razões pelas quais o catolicismo está voltando à moda

A combinação de jovens, baby boomers e tecnologia confere à prática da fé um novo significado público.

Leão XIV, na quarta-feira, na Praça de São Pedro, em Roma. (Guglielmo Mangiapane - REUTERS)

Apesar das estatísticas indicarem uma tendência contrária há anos, é muito provável que a Espanha esteja começando a registrar um ressurgimento significativo da prática do catolicismo. Isso é mais do que um mero renascimento estético e público; é um movimento silencioso, porém profundo. Três fatores, entre outros, convergem para tornar isso possível: a chegada das gerações Baby Boomer e X em idades em que estudos sociológicos demonstram o aumento da religiosidade; uma revolução tecnológica que — com suas vantagens e desvantagens — multiplica o acesso à educação, à oração e à comunidade; e uma juventude que, paradoxalmente, por praticamente não ter tido contato prévio com o catolicismo, se aproxima dele sem preconceitos e com genuína curiosidade.

As grandes gerações nascidas entre o final da década de 1950 e a década de 1970 — os baby boomers e o início da Geração X — estão entrando em uma fase da vida em que questões sobre o sentido da existência e a necessidade de comunidade ganham maior importância. De acordo com o Pew Research Center, na maioria dos países, as pessoas mais velhas são mais religiosas e a prática religiosa tende a aumentar com a idade. Por exemplo, nos Estados Unidos, a idade mediana dos cristãos chegou a 55 anos em 2024, e a frequência a cultos religiosos aumenta significativamente após os 60 anos. Na Espanha, onde a geração dos baby boomers é particularmente numerosa, esse fenômeno já pode ser observado em um aumento visível na participação paroquial, no voluntariado e em uma vida litúrgica mais ativa, que inclui o renascimento de práticas devocionais que haviam caído em desuso nas últimas décadas. De uma perspectiva puramente matemática, isso não é apenas uma questão de idade, mas também de números absolutos. Muitas pessoas estão simultaneamente chegando a um momento crucial em suas vidas, no qual um senso de transcendência volta a ser relevante.

O segundo grande motor de mudança é a tecnologia. Nos últimos anos, e especialmente desde a pandemia, a Igreja Católica passou por uma verdadeira transformação digital em todo o mundo. O que começou como uma necessidade emergencial — missas transmitidas pelo YouTube, grupos de oração no Zoom, catequese via WhatsApp — tornou-se uma forma estável de presença pastoral. Hoje, qualquer católico, em qualquer idioma, pode acessar homilias, retiros, formação teológica e acompanhamento espiritual pelo celular. O exemplo paradigmático é, sem dúvida, o aplicativo Hallow, criado nos EUA e disponível em mais de 150 países. Em poucos anos, alcançou 14 milhões de usuários cadastrados e registrou mais de um bilhão de downloads de seu conteúdo. Na Espanha — seguindo os passos de seus pares americanos, que estão vários anos à frente — numerosos bispos e padres embarcaram com sucesso no que se conhece como evangelização digital . No entanto, esse progresso apresenta um desafio sem precedentes: o risco de os pastores atenderem às necessidades individuais. Em outras palavras, a abundância de opções online permite que os fiéis escolham padres, bispos ou comunidades de acordo com suas preferências ideológicas ou estéticas, alterando assim a ordem hierárquica estabelecida. No entanto, os defensores desse modelo argumentam que ele facilita o alcance de públicos muito diversos, desde os idosos que não podem se deslocar até os jovens que descobrem a fé por meio do TikTok, Spotify ou YouTube.

O terceiro fator é precisamente uma juventude sem ideias preconcebidas sobre o catolicismo. Num país onde uma grande parte dos jovens com menos de 30 anos não recebeu instrução religiosa significativa, o catolicismo é apresentado como algo quase exótico. De acordo com o Pew Research Center, nos EUA apenas 45% dos jovens entre os 18 e os 29 anos identificam-se como cristãos, e na Europa o número é ainda menor; mas esta falta de autoconhecimento está a ser vista como uma oportunidade por uma parte significativa da Igreja. Por não terem crescido sob um catolicismo socialmente obrigatório, muitos jovens aproximam-se da Igreja sem qualquer aversão prévia, atraídos pelo testemunho pessoal, pelo silêncio da oração numa época ruidosa ou pela sua mensagem ética.

A tudo isso se soma a influência cultural de um renovado interesse pela espiritualidade. Na última década, filmes, séries e documentários com temas católicos têm sido muito bem recebidos, trazendo de volta ao debate público questões sobre Deus sob diversas perspectivas, sejam elas favoráveis ​​ou contrárias. " Sundays" é apenas o exemplo mais recente de títulos como " The Two Popes" , "The Young Pope" , "Jesus of Nazareth" , "The Chosen" , "Conclave " e " Free ".

Nesse contexto, a Espanha encontra-se numa posição singular. A sociedade é inequivocamente laica — segundo o Pew Research Center, apenas 23% dos europeus consideram a religião “muito importante” em suas vidas —, mas as condições sociológicas, tecnológicas e culturais favorecem a possibilidade de um crescimento real da religiosidade na esfera pública. Não é por acaso que dioceses com forte presença digital ou pastoral adulta estejam registrando um aumento nas conversões, nos cursos de formação e na participação comunitária. A maturidade demográfica como base sólida, a tecnologia como rede de disseminação e uma renovação juvenil comprometida apontam para uma mudança no discurso público sobre o catolicismo nos próximos anos.

Jorge Marirrodriga, jornalista, para o EL PAÍS, em 30.10.25

Como fuzis importados chegam às mãos do crime organizado no Brasil

Um dos destaques anunciados pelo governo foi a apreensão de ao menos dezenas de fuzis — o número oficial é de 93, mas o governador falou em mais de 100.

Policiais escoltam um suspeito preso durante a Operação Contenção, na favela da Vila Cruzeiro, no complexo da Penha, no Rio de Janeiro, em 28 de outubro de 2025 (Crédito,AFP via Getty Images)

Uma megaoperação policial feita no Rio de Janeiro nesta terça-feira (28/10), resultou em ao menos 81 prisões e 64 mortes. Outras 54 mortes estão sendo investigadas, de acordo com o governador do Estado, Claudio Castro.

A ação, que envolveu cerca de 2,5 mil policiais, tinha como alvo a facção Comando Vermelho, nos complexos do Alemão e da Penha, na capital.

Castro comemorou os resultados com uma imagem publicada em suas redes sociais, que mostra algumas dessas armas apreendidas, e divulgou um número ainda maior do que o informado pela polícia.

"O Rio de Janeiro termina o dia com uma imagem que fala por si: mais de 100 fuzis apreendidos pelas Polícias Civil e Militar."

Mas como esses fuzis chegam em grandes quantidades às mãos do crime organizado?

O aumento da apreensão de fuzis

Fuzis representam uma pequena parte do total de armas apreendidas no país, mas o número total de apreensões vem crescendo.

É o que aponta um artigo com dados inéditos sobre o tema, dos pesquisadores Bruno Langeani e Natalia Pollachi, publicado em setembro deste ano no periódico Journal of Illicit Economies and Development.

Esse tipo de arma, explicam os pesquisadores, é crucial para que as facções criminosas exerçam poder de controle dos territórios, possam ameaçar moradores, consigam enfrentar outras facções e tenham poder de fogo contra a polícia.

"Como resultado, as forças estatais são cada vez mais obrigadas a utilizar veículos blindados e grandes contingentes para entrar nessas áreas, enfrentando frequentemente uma resistência armada significativa", explicam.

"O fuzil traz uma preocupação adicional em áreas densamente povoadas. O tipo de ferida que a bala de fuzil produz é muito mais grave, com menor chance de sobrevivência", diz Natália Pollachi, diretora de projetos no Instituto Sou da Paz e uma das autoras do artigo.

"Fuzis têm como característica o disparo com muita energia, que pode atingir o alvo com precisão a mais de 500 metros de distância, além da possibilidade de disparo automático ou semiautomático, muito mais perigoso", diz.

A pesquisa analisou dados de apreensões de armas entre 2019 e 2023 no país, tanto de policiais estaduais quanto da federal.

O número de fuzis apreendidos foi de 1.139, em 2019, para 1.650 em 2023, o mais mais alto na série histórica analisada.

Só no Rio de Janeiro foram 797 armas do tipo apreendidas em um único ano. No país são apreendidas mais de 100 mil armas por ano, segundo os dados oficiais.

De onde vieram os fuzis?

Infografia mostra os caminhos de contrabando de fuzis para o Brasil, destacando os Estados Unidos como principal fabricante

Os pesquisadores apontam ao menos três origens conhecidas dos fuzis: os fabricados no Brasil e desviados, os importados e aqueles fabricados de forma clandestina, tanto com peças importadas quanto produzidas dentro do país.

A pesquisa diz que alterações legislativas feitas durante o governo Bolsonaro flexibilizaram as regras de quem pode comprar armas no Brasil, inclusive de calibre antes restritos aos militares.

Além de ter impulsionado o mercado legal, dizem os pesquisadores, houve também "um notável desvio" para o ilegal.

"Ao longo de quatro anos foi permitido para pessoas cadastradas como CACs [sigla para um registro oficial de armas por pessoas físicas: Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador] comprar fuzis. Uma única pessoa podia comprar 30 armas", diz Pollachi.

A facilidade teria auxiliado no desvio para o crime. "Nem todo mundo tem acesso a um esquema de tráfico internacional, mas qualquer um tem um primo com o CPF limpo. É muito mais fácil cooptar um laranja do que participar de um esquema de tráfico."

Essas alterações foram revogadas em 2023, mas quem comprou armas nos anos anteriores não tem obrigação de devolvê-las. Houve também uma alteração sobre quem monitora os CACs: a atribuição foi transferida do Exército para a Polícia Federal.

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou, a pedido do Congresso, uma série de fragilidades nesse controle.

Um dos problemas encontrados foi que o Exército não checava a veracidade de informações apresentadas por quem faz os registros. Também não havia informações sobre fiscalizações feitas aos clubes de tiro.

Fabricação nos EUA e Europa

A Polícia Militar do Rio também fez um levantamento com base nas armas que apreendeu em 2024 (sem qualquer relação com a atual operação, portanto) e identificou que praticamente todas (94,7%) tinham sido fabricados no exterior, principalmente nos Estados Unidos (60% das apreensões). Outros países citados são Israel, Alemanha, Áustria e República Tcheca.

"Por isso, a importância de a indústria produtora de armas também fazer parte do enfrentamento ao crime organizado, com a gerência sobre o caminho dos armamentos e atuando em conjunto com o governo federal no controle do tráfico internacional de armas", disse o governador Claudio Castro, em resposta aos dados, quando foram divulgados.

Os dados nacionais apontam também predominância dos EUA, com fabricantes como Colt e Armalite na lista das mais aprendidas.

Uma rota comum vista por autoridades é importar armas de forma legal dos EUA via Paraguai, e depois transportá-las ilegalmente para o Brasil.

Houve também casos de envio direto dos EUA ao Brasil, como quando policiais apreenderam 60 fuzis no Aeroporto Internacional do Rio (Galeão), em 2017. O valor de cada arma era estimado em R$ 70 mil.

O arsenal incluía modelos AR-10 e AK-47 e estava disfarçado em contêineres com aquecedores para piscinas. A carga foi enviada por um brasileiro que morava nos EUA, dono de empresa de importação e exportação de produtos.

Outro fluxo envolve empresas sediadas em países europeus. Em dezembro de 2023, a Reuters noticiou que autoridades brasileiras e paraguaias fizeram operações para apreender armas enviadas da Europa para serem vendidas a grupos criminosos no Brasil.

Uma empresa baseada no Paraguai era responsável por importar armas de Croácia, Eslovênia e República Tcheca.

Depósito com fuzis fabricados de forma clandestina, no interior de São Paulo

Fabricação clandestina e comércio de peças avulsas

Um detalhe que chama a atenção nos dados de apreensões é que uma parte das armas é registrada sem um fabricante ou origem.

Para os pesquisadores, isso pode ter acontecido por falta de treinamento dos profissionais que fazem o registro das apreensões ou ainda por serem armas fabricadas de forma clandestina.


No levantamento feito pela Polícia do Rio (com dados de apreensões de 2024) há a informação de que parte das armas apreendidas no Estado chegou em peças avulsas ao custo de cerca de R$ 6 mil. Depois de montado, o fuzil passa a valer cerca de R$ 50 mil.

Uma das formas de fabricação clandestina é a importação das peças separadas dos EUA.

"Lá as peças são vendidas com pouco controle. Há até kits para você montar seu próprio fuzil, sem número de série", diz Natalia Pollachi, do Instituto Sou da Paz.

Um dos sites vistos pela BBC News Brasil mostrava até mesmo uma "promoção de Halloween" para comprar um desses kits por US$ 400 (cerca de R$ 2,1 mil).

Há ainda montagem de armas com peças fabricadas de forma artesanal. Se no passado isso era feito de forma rudimentar, hoje esse modelo também se especializou, com peças sendo produzidas em máquinas profissionais.

Um caso recente desse modelo foi registrado por policiais no interior de São Paulo em agosto deste ano.

As autoridades encontraram uma fábrica clandestina em Santa Bárbara d'Oeste, que se apresentava como uma produtora de peças aeronáuticas. A investigação descobriu a fabricação usava "equipamentos industriais de alta precisão."

Luiz Fernando Toledo* da BBC News Brasil, em Londres (UK). (*Gráficos feitos por Caroline Souza, da Equipe de Jornalismo visual da BBC News Brasil)

sábado, 18 de outubro de 2025

Apuração sobre venda de sentenças no STJ fortalece o Judiciário

Inquérito é essencial num momento em que a Justiça está vulnerável à infiltração do crime organizado

O prédio do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

As investigações da Polícia Federal (PF) sobre um esquema de venda de sentenças criado em gabinetes de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) são graves não apenas pelos fatos que têm revelado, mas também pelo que significam no atual contexto de combate ao crime organizado.

Já seriam preocupantes, por si sós, as evidências de ilegalidade em sentenças da penúltima instância do Judiciário, abaixo apenas do Supremo Tribunal Federal (STF). Quando se multiplicam evidências da infiltração de organizações criminosas na economia formal, a investigação precisa servir de referência para proteger o Judiciário de interferências externas. Só uma Justiça íntegra terá capacidade de enfrentar as máfias.

Investigação: PF identifica três núcleos em esquema de venda de sentenças judiciais no STJ

O inquérito tramita em sigilo no STF e é presidido pelo ministro Cristiano Zanin. Tem como alvos advogados, empresários e ex-servidores de gabinetes dos ministros Og Fernandes, Isabel Gallotti e Nancy Andrighi. É fundamental destacar que a PF não encontrou nenhuma evidência de envolvimento dos ministros — eles não são sequer investigados. Tudo transcorreu, de acordo com o que se apurou até agora, sem o conhecimento deles.

A PF divide a investigação em três núcleos. O primeiro apura a atuação no esquema de servidores do STJ, incluindo ex-chefes de gabinete dos ministros. O segundo trata de advogados e lobistas, responsáveis por aliciar clientes para o esquema, principalmente no agronegócio e entre donos de empresas em processo falimentar. O terceiro núcleo reúne os beneficiados pela compra de sentenças.

Operação: PF cumpre mandado de buscas na casa de lobista investigado em esquema de venda de sentenças do STJ

Em apenas um caso, revelado pelo blog da colunista Malu Gaspar, do GLOBO, há menção a um parente de ministro, a advogada Catarina Buzzi, filha do ministro Marco Buzzi, acusada de ter recebido uma transferência de R$ 1,12 milhão, segundo indícios descobertos no celular do lobista Andreson de Oliveira Gonçalves. Relatório preliminar da PF identifica o advogado Roberto Zampieri, assassinado em Cuiabá (MT) em dezembro de 2023, e o empresário Haroldo Augusto Filho como próximos de Catarina. O conteúdo do celular de Zampieri foi essencial para o início das investigações — há nele uma mensagem de Catarina que despertou a suspeita da PF. Haroldo, sócio de consultoria especializada no agronegócio, é investigado sob a acusação de comprar sentenças também no Tribunal de Justiça de Mato Grosso.

Caso se confirmem ramificações do esquema em Cortes estaduais, o inquérito ganhará ainda mais relevância para ajudar a blindar a Justiça contra a influência de organizações criminosas. O Judiciário sairá mais forte das investigações se elas elucidarem os fatos de modo exaustivo e se, confirmados os crimes, as condenações forem exemplares.

Editorial d'O Globo, em 18.10.25

Como preencher uma vaga no STF

Há dois flamenguistas, um corintiano, um palmeirense e um são-paulino, um placar justo. Mas santistas ocupam 18% das vagas

O Supremo Tribunal Federal (STF) — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

É só abrir vaga no STF que o assunto volta à tona: em nome da representatividade, passou da hora de ser indicada uma mulher preta.

Está implícito que deva ser uma mulher preta com reputação ilibada e notável saber jurídico — critérios assaz subjetivos, mas é o que diz a lei. Para ter o direito de ser a última a errar — e fazer jus a um assessor que lhe sirva cafezinho, carregue os processos e a ajude a vestir e desvestir a toga —, a aspirante ao cargo deve ter caráter íntegro e conduta ética e moral irrepreensível, além de reconhecido domínio do cipoal das nossas leis. E, claro, ser brasileira nata e ter entre 35 e 70 anos (alguma objetividade tinha de haver). Não há menção a outros atributos.

Segundo o Censo 2022, as mulheres representam 51,5% da população brasileira. No STF, não chegam a um quinto disso, considerando a composição da corte até ontem, quando Luís Roberto Barroso deixou o cargo. Pela lógica da proporcionalidade, faltam cinco mulheres (além da ministra Cármen Lúcia), não apenas uma. O próximo presidente poderá indicar outros três juízes e, a menos que haja renúncias, a meta da representatividade feminina não será atingida antes de 2030 (a probabilidade de algum dos atuais ministros se declarar trans é relativamente remota).

Existe também a questão étnica: pelo mesmo Censo, somos um país com 55,5% de pretos e pardos — proporção que chega, com muita boa vontade, a 18% no STF. Os próximos quatro indicados precisariam ser afrodescendentes — ou alguns dos atuais ocupantes se autodeclararem não brancos. Os indígenas ou de origem asiática carecem de lobby para pleitear a cota de1% das vagas.

Mas não são só esses os grupos sub-representados. Temos hoje sete sudestinos (estatisticamente, deveriam ser apenas quatro), dois nordestinos (deveriam ser três), um sulista (era para ser o dobro), um centro-oestino (ok!) e nortista, nenhum (deveria haver um número infinitamente maior: um).

Em termos de religião, o desequilíbrio aumenta: são nove católicos, um evangélico e um judeu. No fiel da balança, era para haver seis católicos (há 50% mais), três evangélicos (só há um terço disso), um praticante de outras religiões (de matriz africana, judeus, muçulmanos, budistas etc.) e um ateu (ou agnóstico, que é um ateu ainda em estágio de negação).

Nem só de gênero, crença ou origem étnica e geográfica vive a representatividade. Há dois flamenguistas, um corintiano, um palmeirense e um são-paulino no STF — um placar justo. Mas santistas ocupam 18% das vagas, mesmo correspondendo a apenas 3% da população.

Vinte e sete por cento da Corte são de Touro; 18%, de Sagitário; 18%, de Escorpião — Peixes, Áries, Aquário e Capricórnio têm 9% cada. Não há um único ministro de Leão (não, o Fux é de Touro), de Libra (que ironia, não?), Virgem, Gêmeos ou Câncer. Isso significa que o plenário é composto por 36% de terra, 27% de água, 27% de fogo e só 9% de ar. Depois não entendem quando o ambiente fica irrespirável.

Proponho esta questão para o próximo Enem:

— Considerando que, graças ao esforço de seus cabos eleitorais, Donald Trump e Eduardo Bolsonaro, o atual presidente tem grandes chances de ser tetraeleito em 2026, e que um de seus compromissos é com a diversidade e a representatividade, de que gênero, cor, orientação sexual, time, signo, região e religião devem ser os seus indicados ao STF?

Não, não precisa levar em conta que o único critério real será o da fidelidade canina. A pergunta é meramente retórica.

Eduardo Affonso, o autor deste artigo, é Arquiteto e Cronista. Publicado originalmente n'O Globo, em 18.10.25

Ascensão e queda de um mau militar

O capitão que fez política nos anos 1980 e 1990 como uma espécie de sindicalista de policiais e militares de baixa patente jamais compreendeu a liturgia republicana


Há 35 anos perícia da Policia Federal mostrou que Bolsonaro fez plano de por bombas em quartéis. Acima, reprodução do croqui no plano para explodir a adutora do guandu, no Rio e Janeiro.

A trajetória pública de Jair Bolsonaro mostra como a História, de vez em quando, pode ser tomada de assalto por personagens medíocres, cuja irrelevância de origem pode ser explorada, no momento oportuno, como plataforma para um projeto de poder.

Desde que passou à reserva remunerada do Exército, em 1988, por meio de um arranjo condescendente com a indisciplina e o espírito insurrecto que marcaram sua passagem pela Força Terrestre, Bolsonaro construiu uma longeva carreira política – a bem da verdade, um bem-sucedido empreendimento familiar – com base na irresignação com o advento da Nova República e na permanente hostilidade aos valores democráticos consagrados pela “Constituição Cidadã”. Mais de três décadas depois, o ex-presidente e capitão da reserva foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 27 anos e três meses de prisão por ter liderado uma conspiração golpista que pretendeu subverter o resultado legítimo da eleição presidencial de 2022.

Após a condenação penal na Justiça comum, Bolsonaro deverá enfrentar outro julgamento em breve. No Superior Tribunal Militar (STM), como dispõe a Constituição, provocado pelo Ministério Público Militar, poderá perder a mesma patente que, no início de sua vida pública, serviu de trampolim para sua carreira política. Ao que tudo indica, o ciclo político de Bolsonaro está prestes a se encerrar do modo como começou: em confronto com a lei, em rebeldia contra a ordem constitucional e na reafirmação de sua natureza insubmissa aos princípios democráticos.

Não se trata apenas do ocaso pessoal de Bolsonaro, mas, muito provavelmente, o de um movimento que se articulou em torno de seu nome e absorveu seu estilo. O bolsonarismo emergiu como a resposta visceral à crise de representação política que incendiou o Brasil após os escândalos de corrupção durante os governos lulopetistas. Em 2018, em meio ao desencanto generalizado da população com a política dita “tradicional”, Bolsonaro foi alçado à Presidência da República apregoando ser um outsider, coisa que nunca foi. Assim, explorou um mal-estar social legítimo, mas mal orientado, ao ser escolhido pela maioria dos eleitores como um símbolo de negação: contra o PT, contra a corrupção, contra o establishment político, contra o “sistema”.

Na chefia de Estado e de governo, Bolsonaro foi fiel à sua natureza, frustrando os que esperavam que o peso da institucionalidade o contivesse. O obscuro deputado do baixo clero – que, sem nada digno a oferecer, mostrava-se sempre disponível para escandalizar o País com sua retórica violenta em defesa da ditadura militar – passou a comandante em chefe das Forças Armadas sem nunca deixar de ser um agitador. Hostilizou as instituições, manipulou a verdade factual, insultou a ciência, desprezou a vida dos brasileiros na pandemia, sabotou a boa administração pública e, ao fim, tentou um golpe, como constatado ao final da Ação Penal 2.668, para se aferrar ao poder, malgrado ter sido derrotado em uma eleição limpa.

Não houve surpresas. O capitão que fez política nos anos 1980 e 1990 como uma espécie de sindicalista de policiais e militares de baixa patente jamais compreendeu a liturgia republicana.

A condenação imposta pelo STF e o futuro julgamento no STM representam não só a tardia responsabilização de Bolsonaro por seus atos – que deveria ter sido punido politicamente a tempo certo, como bem destacou o Estadão no editorial Dejetos da democracia (8/1/2000, A3) –, como também uma mensagem clara à sociedade: a democracia brasileira se consolidou. A perda da patente, nesse sentido, seria um evento simbólico a reafirmar que as Forças Armadas, enfim, encerraram o longo capítulo de leniência com o golpismo na caserna que marca nossa experiência republicana. Afinal, Bolsonaro sempre se apresentou e foi tratado por seus aliados como “capitão”, título usado para angariar legitimidade entre os fardados. Ademais, referia-se ao Exército como o “seu” Exército. Destituí-lo da patente, portanto, será desmascará-lo como o “mau militar” (Geisel) que Bolsonaro sempre foi.

Nada disso, no entanto, deve ser motivo de regozijo. O triste capítulo Bolsonaro na história nacional é, a rigor, um luminoso alerta. Alguém como ele só foi alçado à condição de líder da Nação porque muitos cidadãos passaram a descrer na política e nas instituições – em particular nos partidos políticos – e se encantaram pela perspectiva de uma solução rápida para problemas complexos. Nada indica que essa malaise esteja superada. O populismo autoritário só prospera em crises de confiança. Portanto, é dever das forças políticas genuinamente comprometidas com a democracia zelar para que esse terreno nunca mais fertilize ervas tão daninhas.

No crepúsculo de sua vida política, Bolsonaro caminha para o ponto de partida: um militar da reserva indisciplinado, ora condenado pela Justiça comum e prestes a ser declarado indigno da patente pela Justiça Militar. Uma carreira política que começou como afronta ao Exército termina com um golpe contra a República. Ao menos no ponto final desse arco, a sociedade e as instituições souberam reagir. Talvez seja esse o legado positivo da tragédia bolsonarista. Ainda que tarde, a democracia brasileira mostrou força para se defender de seu pior inimigo na história recente.

Itamar Montalvão, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Pulo, em 18.10.25

Honesta e leal aplicação da lei

Jamais o Brasil dependeu tanto de tão elementar premissa civilizatória. Pois, sem lei, restam apenas o desgoverno caótico e as injustiças irrefreáveis.

É indubitável que algo não está bem no Brasil. Decididamente, um país continental, com tantas potencialidades humanas, naturais e materiais, não pode ter apenas um único tema a debater: a relação de amor e ódio entre Lula e Bolsonaro em um divórcio litigioso sem fim. Se fosse novela da tarde, o enredo dantesco poderia ser visto com pipoca salgada; todavia, o problema, na crueza de sua expressão, diz respeito a mais de 200 milhões de cidadãos brasileiros, a maior parte em situação de extrema pobreza e necessidades urgentes, sem escolas, sem segurança pública, sem anestésicos para as fundas dores da existência. Enfim, pessoas sem nada, filhos da indignidade política.

Nossa realidade monotemática é reflexo direto de nosso subdesenvolvimento econômico e intelectual. Países prósperos não aceitam institucionalidade baixa, pois, onde há inteligência, ignorantes não se criam. Infelizmente, o caminho da prosperidade segue sendo um desconhecido brasileiro. Capitalismo de livre mercado, concorrência justa e meritocracia não passam de ecos utópicos de um sistema disfuncional, irrigado por ostensiva interferência estatal nas regras do jogo, benefícios vultosos a amigos e instituições que se servem da – em vez de servir à – República. Tudo como sempre foi, mas com uma diferença sentencial.

Objetivamente, ao longo da quadra democrática pós-1988, a erosão formadora dos partidos e a progressiva degeneração do capital humano da política colocaram o sistema de poder brasileiro em situação de ingovernabilidade aguda. Nos primeiros sintomas, os lapsos de acefalia política foram sendo contornados com pontuais transferências decisórias ao Supremo Tribunal Federal (STF). Antes discreto, o fenômeno ganhou evidência e se impôs por questão de ordem prática: uma maioria colegiada entre 11 é menos trabalhosa do que a complexa construção com 513 deputados e 81 senadores. Além do quesito pragmático, o gradual deslocamento do núcleo político representava prestígio e poder ao STF, habilitando-o a transpor, por decisões constitucionalmente fundamentadas, a legitimidade parlamentar do voto popular.

Veio, então, a temporada de macrocriminalização da política. Os famigerados esquemas delitivos do “mensalão” e “petrolão”, entremeados pela severa campanha punitiva da Lava Jato, deram um tiro no peito da política institucionalizada, colocando-a de joelhos no banco dos réus. Se a expressão adquirida em Curitiba legitimou Sérgio Moro ao Ministério da Justiça, sua atrapalhada renúncia ao cargo criou condições para o STF, já sem a sóbria presença do ministro Teori Zavascki, retomar as rédeas condutoras do processo decisório. Diante dos movimentos erráticos do governo Bolsonaro, num tecido político esgarçado pela confusa gestão da pandemia, restou aberta a porta da experimentação jurídica que levou ao resgate eleitoral de Lula e, ato contínuo, à corrente ingovernabilidade absoluta.

Sim, embora eleito, o presidente não manda e nada de importante decide. Tem auditório e mídia, mas não tem poder. Ou seja, a suprema subjugação da política é traço alto da institucionalidade brasileira contemporânea. Para além de teóricas discussões sobre déficit de democracia ou usurpação da separação de Poderes, o fato existe e aí está, expondo novidades de causas e efeitos. Ilustrativamente, jamais na história política do Brasil um magistrado supremo sofreu sanções diplomáticas da maior potência mundial. Tal ineditismo, além de despertar preocupações, traz alertas importantes ao núcleo de poder brasileiro.

Sem cortinas, as injunções geopolíticas da circunstância – com especial destaque para a postura direta e vertical do presidente Trump sobre elos de interesse da Casa Branca – colocam o País em vulnerabilidade sem precedente. Ao invés da ousadia de gestos histriônicos, a gravidade do momento histórico exige tato, prudência e máximo exercício da razão pensante. A dificuldade estratégica ganha pressão adicional diante da necessidade de soluções diplomáticas em adversa situação de desequilíbrio interno. Em outras palavras, o Brasil não sabe para onde ir nem com quem deve ir e nem sequer dispõe da capacidade de estabelecer diálogos estreitos de orientação mínima.

No vácuo da política, a bússola democrática gira sem norte definido. Aqui, o atalho não faz caminho. Entre os muitos poderes da colenda Suprema Corte não está o de indicar pontos cardeais da democracia. Até mesmo porque dirigismo político – seja qual for – pode ser tudo, menos liberdade constitucional. Em homenagem ao livre pensar sobre o futuro, a memória fez lembrar a autoridade de Paulo Brossard em página alta do STF: “Se eu fosse legislador, é possível que não incluísse o preceito em tela na Constituição; mas eu, que já fui, deixei de sê-lo. Agora, como juiz, não faço leis, antes lhes devo obediência e precipuamente à Lei Maior, goste ou não goste de suas regras, devendo dar-lhes honesta e leal aplicação”.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr, o autor deste artigo, é Advogado, é chairman do Instituto Millenium. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 18.10.25

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

É urgente retomar território crescente em poder do crime

Quase um em cinco brasileiros diz conviver com organizações criminosas em sua vizinhança, revela pesquisa

Domínio: Facção criminosa dita suas regras em muro de Barra Mansa, no interior do estado do Rio — Foto: Gabriel de Paiva/Agência O Globo

O domínio de vastas extensões do território brasileiro por facções criminosas e milícias tem se agravado. Praticamente um em cinco brasileiros (19%) diz conviver com o crime em sua vizinhança, segundo pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). São ao menos 28,5 milhões de cidadãos expostos ao crime organizado. No levantamento anterior, do ano passado, eram 23 milhões, ou 14% da população. Os dados refletem, no entender de Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP, a ampliação e o controle de territórios e mercados pelas facções.

A presença dos grupos criminosos é mais sentida em cidades com mais de 500 mil habitantes, capitais e municípios do Nordeste. O crime, diz a pesquisa, cerca tanto os moradores de baixa renda (19%) quanto os de renda mais alta (18%). Mais de um quarto (27%) da população dessas áreas afirma conhecer cemitérios clandestinos, onde são sepultados mortos que não aparecem nas estatísticas oficiais.

A pesquisa traduz a maior angústia que aflige os brasileiros. O cenário se revela em saraivadas de tiros nas guerras entre quadrilhas, na interdição de vias importantes em decorrência da violência, no fechamento constante de escolas e unidades de saúde, na cobrança de taxas ilegais, no medo que impõe mudanças de comportamento, restringindo o direito de ir e vir.

Os métodos usados até agora não têm dado resultado contra o crime organizado, a despeito dos altos investimentos em segurança. Não dão conta de facções cuja atuação ultrapassa a divisa dos estados e as fronteiras do país. Só serão combatidas com engajamento do governo federal e ação conjunta e coordenada de todas as forças da lei.

Organizações criminosas: Levantamento do GLOBO mostra que Brasil tem 64 facções em atuação no país

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança, que tramita no Congresso, é um primeiro passo no rumo certo. Ela amplia a participação do governo federal no combate a facções e milícias, aumenta as atribuições das polícias Federal e Rodoviária Federal, reforça o financiamento, unifica bases de dados e propõe ações integradas sob coordenação federal. A oportunidade não pode ser desperdiçada. Divergências com os estados, que temem interferência de Brasília, não podem travar projeto tão relevante. Parlamentares podem até aperfeiçoar o texto, como quer o relator, deputado Mendonça Filho (União-PE), ao vetar a progressão de regime para líderes de facções. Mas sua essência precisa ser mantida.

É fundamental também que o governo acelere o pacote antimáfia, que ganhou relevância após a operação que expôs a infiltração do crime no mercado formal, usando postos de gasolina e instituições financeiras para lavar dinheiro. As ações previstas incluem aumento de penas e atualização da legislação para tornar mais célere a investigação de organizações criminosas.

É urgente que essas propostas avancem. A situação é crítica — e se agrava a cada dia. Um levantamento do GLOBO mostrou que o Brasil tem pelo menos 64 facções criminosas espalhadas pelas 27 unidades da Federação. Cada vez mais, elas se infiltram em atividades formais. A população está assustada. A preocupação do brasileiro com segurança pública tem crescido e se consolidou como a maior de todas, bem à frente de economia e saúde, revela a última pesquisa Quaest. Quanto mais tempo governo e Congresso levarem para agir, mais difícil será retomar os territórios do crime.

Editorial d'O GLOBO, em 16.10.25

Lula sobe no salto e rebaixa a Presidência

Ao classificar o Congresso como de ‘baixo nível’, o presidente afronta a legitimidade das urnas e sobrepõe seu interesse eleitoral ao interesse público e à institucionalidade do cargo que ocupa


Hugo Motta foi vaiado por apoiadores de Lula, mas exaltou o presidente como 'o que mais fez pela educação do Brasil' / Foto Mariana Ramos - Câmara dos Deputados.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a confundir sua posição de chefe de Estado e de governo com a de líder de facção política. Ao afirmar, diante do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que o Congresso “nunca teve o baixo nível como tem agora” e que a “extrema direita que se elegeu em 2022 é o que existe de pior”, Lula não só cometeu uma descortesia institucional, como afrontou o princípio basilar da democracia representativa: o respeito à legitimidade das urnas.

O discurso foi proferido em ambiente confortável, um evento pelo Dia dos Professores no Rio de Janeiro, diante de uma plateia simpática ao presidente da República e ao PT. Lá, à vontade entre apoiadores históricos, Lula fez o que sabe fazer melhor: transformar um ato oficial em palanque eleitoral. O antagonismo com o Congresso certamente será uma das linhas de sua campanha pela reeleição em 2026. O discurso maniqueísta está pronto: de um lado, o “povo”, que Lula diz representar; de outro, as “elites”, encarnadas nas instituições que impõem limites ao seu voluntarismo ou simplesmente não seguem a cartilha petista.

Com seus erros e acertos, o Congresso é a expressão da pluralidade social e política do País. Seus 513 deputados e 81 senadores foram eleitos pelo voto popular e gozam da mesmíssima legitimidade da qual está investido o sr. presidente da República. Nesse sentido, o Congresso não é “bom” nem “ruim” por natureza; apenas é o que é, reflexo das escolhas dos eleitores. Portanto, ao desqualificá-lo em bloco, Lula desrespeita não apenas os parlamentares que não comungam de sua ideologia, mas também os milhões de brasileiros que os elegeram.

É natural que Lula discorde de posições assumidas por parte do Congresso, sobretudo da Câmara, que, sob nova direção, tem imposto derrotas ao governo e aprovado medidas de autoproteção que soam escandalosas à opinião pública. A aprovação da chamada PEC da Blindagem, que levou milhares de cidadãos às ruas em protesto no dia 21 de setembro, é exemplo disso. Mas discordar é uma coisa, desqualificar é outra. Cabe ao chefe do Executivo se portar com a serenidade e o senso de responsabilidade que seu cargo exige, e não fomentar o descrédito em uma instituição quando esta contraria seus desejos ou não se alinha às suas visões de mundo.

A descortesia de Lula com Hugo Motta, a quem atribuiu erroneamente a presidência do Congresso – cargo que pertence ao senador Davi Alcolumbre (União-AP) –, é mais do que uma “gafe”. É um sintoma da soberba de quem parece ter se deixado inebriar pela retomada da popularidade e pela conveniência política de ter os bolsonaristas, que sofrem alta rejeição, como adversários preferenciais. A imposição de sanções políticas e econômicas ao Brasil pelos EUA tem sido explorada por Lula como a oportunidade perfeita para voltar à retórica do confronto: ele, o líder do “Brasil soberano”, contra as forças do atraso que conspiram contra o País – as quais o presidente, genericamente, empacota como “extrema direita”.

Ocupadíssimo com a campanha eleitoral, o presidente parece ter esquecido que tem um país para governar. E, para isso, não pode prescindir do Congresso. Lula governa em um regime presidencialista multipartidário, que ele conhece bem como poucos. Não é possível aprovar reformas, avançar em políticas públicas nem ao menos fingir buscar a estabilidade fiscal sem construir pontes com as forças políticas presentes no Legislativo – de todos os matizes.

O discurso do confronto institucional, além de irresponsável, isola o governo em um momento em que a economia clama por cooperação entre os Três Poderes. A agenda de equilíbrio fiscal, a reforma administrativa e a segurança pública, entre outras pautas prioritárias para o País, exigem pactos que, por óbvio, não virão dos insultos. Ao subir no salto e atacar genericamente o Congresso, Lula não enfraquece seus adversários políticos – rebaixa a própria Presidência da República.

É sintomático que Lula tenha escolhido um palanque cercado por apoiadores para expressar seu desrespeito por um Poder. Surdo pelos aplausos fáceis, deu vazão à empáfia de quem já se vê reeleito e, portanto, pode prescindir de alianças. Azar do País.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 17.10.25

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

PF identifica três núcleos em esquema de venda de sentenças judiciais no STJ

Servidores e assessores internos do STJ “exerciam papel estratégico, introduzindo alterações em minutas e promovendo ajustes em despachos e decisões, criando condições objetivas para a manipulação de resultados”.

Fachada do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília — Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo

As investigações da Polícia Federal envolvendo um esquema de venda de sentenças judiciais no Superior Tribunal de Justiça (STJ) apontaram a existência de três núcleos atuando por anos na Corte e recorrendo a uma série de artimanhas, como o uso de mensagens cifradas e o uso de aparelhos telefônicos de fachada, em nome de terceiros, para tentar ocultar a engrenagem criminosa.

A informação consta de um relatório parcial da PF anexado aos autos do inquérito sigiloso que que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria do ministro Cristiano Zanin, e mira uma rede de lobistas, advogados, empresários e ex-servidores de gabinetes dos ministros Og Fernandes, Isabel Gallotti e Nancy Andrighi. Os ministros não são investigados.

Segundo a apuração, um primeiro núcleo seria o dos agentes públicos vinculados a gabinetes de ministros do STJ, como Daimler Alberto de Campos e Rodrigo Falcão, ex-chefes de gabinete de Gallotti e Og, que seriam responsáveis pelo vazamento de informações sensíveis e antecipação de minutas.

Um segundo núcleo era o dos advogados e lobistas, como Andreson de Oliveira Gonçalves, pivô das investigações, que eram incumbidos de captar clientes interessados em decisões favoráveis. E por fim, o grupo dos empresários e agentes econômicos, sobretudo ligados ao agronegócio, beneficiários diretos das manipulações de decisões judiciais, que concentravam em processos sobre falência de empresas do setor.

“À medida que as análises avançaram, o material probatório trouxe a revelação de um cenário muito mais amplo e complexo do que o inicialmente esperado, apontando robustos indícios da existência de uma rede criminosa sistêmica, composta por múltiplos operadores, camadas de atuação e fluxos financeiros sofisticados, refutando, assim, a ideia de fenômeno criminal isolado ou de uma relação pontual dos envolvidos”, aponta a PF.

Mensagens cifradas

Para tentar esconder as pistas do esquema criminoso, a PF constatou que os investigados salvavam contatos do esquema com “designações genéricas”, como "pedreiro", "piscineiro", "veterinária "ou "advogado", para tentar dar uma “aparência trivial a conversas estratégicas do grupo” e mascarar a identidade dos interlocutores.

“Assim, diálogos que, à primeira vista, pareciam triviais, assumiam significados relevantes no contexto da investigação. Expressões como ‘a obra está pronta’ correspondiam a uma minuta finalizada; ‘faltam os retoques do patrão’ indicavam a necessidade de assinatura pelo magistrado; ‘orçamento’ era utilizado para se referir a valores ajustados”, aponta o relatório.

A investigação sobre os servidores do STJ começou quando a Polícia Federal apreendeu uma série de mensagens no celular do advogado Roberto Zampieri, morto com 10 tiros dentro do próprio carro, em frente ao próprio escritório, em dezembro de 2023.

Ao longo da apuração, os investigadores identificaram registros de negociações de venda de sentenças judiciais, envolvendo a citação a gabinetes do STJ.

De acordo com a PF, o esquema envolvia a atuação de advogados que recorriam a intermediários com bom trânsito nos gabinetes que “movimentavam valores milionários apenas pela promessa de influenciar o resultado dos julgamentos”. De outro lado, servidores e assessores internos do STJ “exerciam papel estratégico, introduzindo alterações em minutas e promovendo ajustes em despachos e decisões, criando condições objetivas para a manipulação de resultados”.

A nuvem do lobista

No aparelho celular de Andreson, por exemplo, foi encontrada uma lista de processos sob a relatoria de Gallotti, com anotações sobre o andamento dos casos, acompanhadas da expressão “voto pronto e enviado para vc”, o que, para a PF, indica uma espécie de “controle paralelo das atividades jurisdicionais”.

“Os dados extraídos da nuvem de Andreson, além de confirmarem sua condição de articulador das manipulações judiciais, revelaram novos elementos de relevância probatória. Entre eles, destacam-se os contatos mantidos com servidores, chefes de gabinete e Magistrados, as tratativas financeiras e a concessão de empréstimos de aeronaves para uso particular de autoridades, bem como indícios de influência em indicações de magistrados para cargos públicos”, diz a PF, frisando que o relatório não encerra a investigação, mas estabelece uma base para o avanço das diligências.

Procurada pelo blog, Gallotti disse que “desconhece o conteúdo da investigação, porque tramita em sigilo” e frisou “que seu gabinete está à disposição, para auxiliar, no que seja necessário, a fim de que sejam cabalmente apurados os fatos ocorridos e responsabilizados todos os envolvidos”.

Já o gabinete de Nancy Andrighi afirmou que os processos de responsabilização “se encontram em andamento, a fim de que os fatos sejam devidamente esclarecidos e os responsáveis punidos de forma exemplar”.

A defesa de Anderson, por sua vez, informou que irá aguardar o relatório final da PF para se pronunciar.

O ministro Og Fernandes não havia respondido ao blog até a publicação desta reportagem.

Rafael Moraes Moura, Jornalista, de Brasília - DF originalmente para O GLOBO, em 16.10.25

Governo Lula vive 'dia da marmota' com novo plano para salvar Correios

O único dado concreto é que a empresa precisará de um socorro de R$ 20 bilhões para não quebrar.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva — Foto: Andreas SOLARO/AFP

Já virou lugar-comum para quem acompanha o noticiário no Brasil dizer que vivemos mergulhados num recorrente Dia da Marmota. A expressão, para os não familiarizados, é uma referência ao filme “Feitiço do tempo”, com Bill Murray, em que o protagonista acorda toda manhã para viver o mesmo dia em que os mesmos fatos se repetem, mas só ele percebe. Há vários “Dias da Marmota” rolando no Brasil neste momento, mas poucos vêm de tão longe e são tão sintomáticos quanto o dos Correios.

A estatal divulgou ontem um plano de reestruturação com medidas genéricas, de corte de despesas, demissões e venda de ativos a renegociação de contratos com fornecedores para recuperar a competitividade. Não foi informado quantas demissões, qual a economia estimada, se haverá metas de eficiência ou em que prazo se daria a tal recuperação.

O único dado concreto é que a empresa precisará de um socorro de R$ 20 bilhões para não quebrar. Como o governo Lula briga neste momento com o Congresso por mais recursos, alegando dificuldades fiscais, fica feio dizer que enterrará uma bolada dessas numa estatal obsoleta e deficitária. Ficou combinado então que o empréstimo será feito por um consórcio de bancos, com garantia do Tesouro. Na prática, se os Correios derem o calote, o contribuinte pagará a conta. Não é dinheiro da União, mas é.

Considerando que esse já é o segundo plano de demissão voluntária desde o início do ano e que o empréstimo de R$ 20 bilhões já vem para cobrir outro de R$ 1,8 bilhão feito agora em junho, fica evidente que a reestruturação é cortina de fumaça para esconder um fato eloquente: os Correios são “insalváveis”. Ao longo das últimas décadas, suas funções mais relevantes foram as de cabide de emprego e foco de corrupção.

Para que fique clara a dimensão desse Dia da Marmota, foi ali que nasceu o primeiro escândalo de corrupção do primeiro mandato de Lula, lá em 2005, quando veio à tona um vídeo mostrando um apadrinhado do hoje bolsonarista Roberto Jefferson enfiando no bolso maços de dinheiro de propina recém-recebida. Pressionado, Jefferson revidou revelando o mensalão, e o resto é História.

Em 2010, a direção dos Correios, já franqueada por Lula e Dilma Rousseff ao PMDB, aplicou o dinheiro do fundo de pensão dos funcionários, o Postalis, em títulos da Venezuela e da Argentina e numa série de empreendimentos fraudulentos que se tornaram alvo de operações da Polícia Federal, com prisões e delações premiadas. O rombo, estimado em mais de R$ 15 bilhões, é pago até hoje pela estatal, por seus funcionários e pelos aposentados, que chegam a sofrer 80% de desconto no contracheque.

Depois do trauma, Michel Temer e Jair Bolsonaro incluíram os Correios no plano de privatizações e começaram a preparar a empresa para a venda, com planos de demissão voluntária, fechamento de agências, automatização e encerramento de operações deficitárias — exatamente o mesmo cardápio de agora.

Combinados com a explosão do comércio digital na pandemia, os ajustes fizeram a companhia passar a dar um lucro que chegou a R$ 2,3 bilhões em 2021. A partir de 2022 — ano eleitoral e o último da gestão Bolsonaro —, a coisa voltou a degringolar.

Ao assumir, Lula anunciou concurso para contratar mais 3,5 mil funcionários, botou quadros do PT para mandar na companhia e sepultou a ideia de privatização. Quem defende a decisão diz que os Correios preenchem uma função social porque vão aonde ninguém vai, como comunidades conflagradas pela violência ou muito longínquas, em que entregar encomendas não dá lucro. Por isso, dizem, são insubstituíveis.

É o mesmo argumento usado nos anos 1990 contra a privatização da telefonia. Naquela época, os celulares e a internet engatinhavam, mas era claro que estatais obsoletas e corruptas não teriam a menor condição de competir com a nova tecnologia. Hoje ninguém mais sente falta dos orelhões, das fichas, nem de receber herança em ações da Telebras, e o Brasil é um dos países do mundo com mais celulares per capita.

É graças a esses aparelhos que boa parte da população das periferias, das favelas e até dos ermos da Floresta Amazônica faz negócios, enviando e recebendo encomendas não só pelos Correios, mas também pelos mercados livres e amazons da vida.

A experiência já mostrou que, com regulação bem feita, é possível estimular a competição e evitar a exclusão social. Dá até para obrigar as companhias a criar um sistema eficiente de distribuição de CEPs para que nenhum brasileiro fique sem endereço formal. O que não dá é para continuar torrando dezenas de bilhões do meu, do seu, do nosso para manter uma operação claramente insustentável. Nem a marmota de Bill Murray merece isso.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é jornalista e escritora. Especialista em análises e informações exclusivas sobre política e economia, trabalha n'O GLOBO. Publicado originalmente em 16.10.26

Lula e as emendas presidenciais

Há que melhorar muito a representatividade política dos parlamentares

O caderno de Economia e Negócios deste jornal (O Estado de S. Paulo) estampou na sua primeira página no domingo passado, a manchete: Lula prevê “pacote de bondades” de R$ 100 bi, mas falta verba (Estadão, 12/10, B1). E completa: “Medidas previstas para ano eleitoral necessitam de manobras no Orçamento.”

Segundo a matéria, o pacote inclui a “ampliação da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês, aprovada na Câmara e ainda pendente no Senado, a distribuição de gás de cozinha de graça, isenção na conta de luz para 17 milhões de famílias e o pagamento de bolsas do Pé-de-Meia para estudantes do ensino médio”. Resolvi chamar estas propostas de emendas, pois guardam certa semelhança com as parlamentares, exceto na sua escala bem maior; correm no Parlamento e há essa preocupação comum com falta de verbas. Os dois tipos de emendas têm olho no ganho eleitoral.

O leitor que acompanha meus artigos sobre as emendas parlamentares sabe que as considero inconstitucionais, pois só conferem essas emendas a candidatos que já têm mandato, tratando-os com vantagem que não cabe aos sem mandatos, violando o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei, a eleitoral. O presidente, que busca a reeleição, tem o mesmo privilégio. Seria o caso de proibir a reeleição, uma ideia também recomendável por outras razões, como a perspectiva de gestão mais eficiente de quem exerça seu mandato sem reeleição.

Sobre a ampliação da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês, aprovada na Câmara e ainda pendente no Senado, vale lembrar que a parte que não foi aprovada na Câmara era a que tratava do seu financiamento. Sem sua aprovação, até onde sei, a lei seria prejudicada, pois, no site do Senado, vi que a Emenda Constitucional (EC) 128, de 2015, proíbe a legislação federal de criar despesas sem que haja previsão de fontes orçamentárias e financeiras ou transferência dos recursos necessários para a prestação do respectivo serviço público. Também no mesmo site, soube que as únicas despesas ressalvadas são as decorrentes do salário mínimo e as obrigações assumidas espontaneamente pelos entes federados.

Segundo Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado à época da aprovação da Emenda Constitucional 128, “trata-se de uma alteração constitucional da mais importância para os entes federativos, pois prestigia sua saúde orçamentária e fortalece a sua capacidade de financiamento de políticas públicas na medida em que impede que os entes tenham as suas finanças oneradas por criação de programas que não venham acompanhados das fontes de recursos necessários ao seu custeio”.

O fato é que a sociedade brasileira tem muito pouca noção do que se passa no Congresso, pois seus representantes, os parlamentares, eleitos em eleições proporcionais, com votos por toda a unidade federativa de onde vêm, o que cria uma dificuldade de o eleitor escolher um candidato, há centenas deles e, em geral, só aparecem perante o eleitor a cada quatro anos e depois somem. Chamo-os de candidatos-cometas. Vivi em países com voto distrital e percebi que é muito mais eficaz. São Paulo teria 70 distritos (o número de deputados do Estado no Congresso), cada um reunindo municípios com número de eleitores aproximadamente igual entre os distritos. Num distrito, cada partido político apresentaria seu candidato e seria mais fácil escolher um para votar durante os debates pré-eleitorais. O mais votado seria o representante do distrito, de todos os eleitores distritais, e não apenas dos que votaram nele. Com isso, ele teria de se relacionar e prestar contas a esses eleitores para reduzir o risco de não voltar no próximo pleito.

Já houve propostas de adoção do voto distrital pelo Congresso, mas sua probabilidade de aprovação é próxima a zero, pois, em sua maioria, os parlamentares atuais não seriam reeleitos no novo sistema. Mas acho que seria possível melhorar a representatividade do sistema atual mediante a adoção das seguintes providências: cada parlamentar teria um site na internet contendo sua foto e menção do partido político a que está associado, bem como seu Estado de origem. O site também daria acesso, inclusive para download, à ação legislativa do parlamentar (seus projetos de lei, e como votou nos projetos que foram ao plenário para essa finalidade, seus discursos, viagens e outras formas de atuação. Os interessados teriam acesso ao e-mail do parlamentar para perguntas, sugestões e questionamentos. Ou seja, o parlamentar estaria prestando contas do seu trabalho à sociedade, bem como dando o direito a seus eleitores e a outros interessados de elogiar, criticar e sugerir mais temas para a atuação do parlamentar. Tudo poderia ser feito dentro da estrutura atual do Congresso. Com as devidas adaptações, esses aspectos poderiam ser aplicados às assembleias legislativas estaduais e às câmaras municipais.

Roberto Macedo, o autor deste artigo, é Economista (UFMG, USP e Harvard). Consultor econômico e de ensino superior. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 16.10.25

A bancarrota dos Correios

A estatal precisa de empréstimo de R$ 20 bilhões para sobreviver, mas resultados ruins só serão revertidos com um radical corte de despesas, tipo de política de que o PT não pode nem ouvir falar

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está liderando negociações para viabilizar um empréstimo de R$ 20 bilhões para impedir a bancarrota dos Correios. Sem esses recursos, a empresa não terá condições de arcar com seus gastos neste ano e no ano que vem. A operação terá garantia da União, condição necessária para que os bancos privados aceitassem dividir com o Banco do Brasil e a Caixa o risco de financiar uma empresa que está praticamente quebrada.

Não se trata de exagero retórico. Os Correios tiveram um prejuízo de R$ 2,64 bilhões no segundo trimestre deste ano, quase cinco vezes maior que no mesmo período de 2024. A empresa acumula rombos desde 2022, mas a derrocada se agravou no ano passado, quando o prejuízo atingiu R$ 2,59 bilhões, e no primeiro semestre deste ano, quando alcançou R$ 4,37 bilhões.

Funcionário de carreira do Banco do Brasil, o novo presidente dos Correios, Emmanoel Schmidt Rondon, disse que o empréstimo dará condições para a empresa se reequilibrar e iniciar o ano de 2027 no azul. Tanto otimismo talvez se explique pelo fato de o executivo estar há pouco mais de 20 dias no cargo. Que o diga seu antecessor, o advogado Fabiano Silva dos Santos.

Em janeiro, ao lado da ministra da Gestão e da Inovação, Esther Dweck, Fabiano minimizou os problemas e assegurou que a empresa estava “em processo de franca recuperação”. A empresa, segundo ambos, foi sucateada pelo governo Jair Bolsonaro, mas havia retomado os investimentos para ampliar sua atuação e finalmente se tornar lucrativa. O caixa foi torrado, o plano não funcionou e o executivo caiu em julho, após admitir que os Correios precisariam de um socorro para se manter.

É conveniente atribuir os resultados ruins dos Correios à perda da exclusividade sobre a importação de remessas do exterior e à “taxação das blusinhas”, mas o problema é bem maior do que o governo está disposto a admitir. Tanto o avanço da concorrência quanto a queda nas importações de produtos chineses de pequeno valor eram previsíveis, e o correto teria sido ajustar as despesas para enfrentar esse cenário de redução de receitas.

Enquanto as receitas minguavam, seus gastos avançavam. Em 2024, os Correios se comprometeram a transferir R$ 7,6 bilhões para cobrir metade do rombo do fundo de pensão de seus funcionários, o Postalis. Boa parte disso se deve aos péssimos investimentos realizados pelo fundo entre 2011 e 2016, durante o governo de Dilma Rousseff.

Os Correios têm um custo fixo elevado, estimado entre R$ 20 bilhões e R$ 25 bilhões anuais. Com uma estrutura de mais de 80 mil empregados, dezenas de imóveis ociosos e com alto custo de manutenção e a obrigação constitucional de atender a todo o território nacional, a despeito do desinteresse crescente pelos serviços postais, a estatal tem perdido espaço para empresas privadas que atuam no ramo de encomendas. Ainda assim, no fim do ano passado, os Correios acharam que era um bom momento para realizar um concurso público para contratar mais funcionários.

O empréstimo de R$ 20 bilhões será usado para honrar dívidas com fornecedores, quitar um financiamento de R$ 1,8 bilhão contratado no primeiro semestre deste ano e que vence no ano que vem e financiar medidas de ajuste, entre elas um Programa de Demissões Voluntárias (PDV) e mudanças no plano de saúde. Até agora, não foram divulgadas metas de redução de despesas nem uma estimativa de obtenção de novas receitas.

São muitos os problemas dos Correios, e eles não serão enfrentados se o governo Lula não reconhecer que o desequilíbrio da empresa é grave. É até irônico, portanto, que Rondon tenha descartado a privatização nos planos do governo para a estatal – como se houvesse alguma companhia com interesse em comprá-la na situação em que ela está.

A paciência dos bancos tem limite. Um calote, se houver, recairá sobre o Tesouro Nacional e, em última instância, sobre os contribuintes. Resultados tão ruins só serão revertidos se houver um radical corte de despesas, o tipo de política de que administrações petistas não podem nem ouvir falar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.10.25

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

PF vê padrão de organização criminosa em venda de decisões e suspeita de mais servidores do STJ

Ministros não são investigados e dizem que fatos devem ser esclarecidos e responsáveis, punidos. Relatório aponta suspeita de 'estrutura organizada voltada à manipulação de decisões judiciais'

Fachada do prédio do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em Brasília - Pedro Ladeira - 28.mar.2023/Folhapress

A Polícia Federal suspeita que outros servidores do STJ (Superior Tribunal de Justiça), além de três já identificados, tenham participado de um esquema de venda e vazamento de decisões da corte e pretende ampliar as suas investigações para saber quem são essas pessoas.

Os indícios são apontados em relatório preliminar da operação Sisamnes, que investiga irregularidades cometidas em gabinetes do tribunal e menciona a reprodução de "padrões típicos de atuação de organizações criminosas".

Os três servidores já identificados trabalhavam com ministros da corte e estão entre os principais investigados da operação. A desconfiança da PF é que haja outros.

"O conjunto de diligências realizadas permitiu identificar, em tese, que o esquema não se restringia aos servidores Daimler, Márcio e Rodrigo Falcão e nem ao núcleo Andreson/Zampieri, mas integrava estrutura organizada voltada à manipulação de decisões judiciais, reproduzindo padrões típicos de atuação de organizações criminosas", afirma o relatório da PF obtido pela Folha.

O trecho se refere ao lobista Andreson de Oliveira Gonçalves, pivô das investigações, ao advogado Roberto Zampieri, que atuaria com ele, e aos servidores Daimler Alberto de Campos, que foi chefe de gabinete da ministra Isabel Gallotti; Márcio José Toledo Pinto, que trabalhou para a ministra e para outros integrantes da corte e foi exonerado após sindicância do STJ; e Rodrigo Falcão, que foi chefe de gabinete do ministro Og Fernandes.

No documento, são apontados indícios de que outras pessoas teriam compartilhado informações internas com Andreson. Essas suspeitas foram apontadas, sobretudo, em processos que estavam sob a relatoria de Gallotti.

A PF aponta que interlocutores do lobista demonstravam pleno conhecimento sobre a tramitação interna do gabinete da ministra, "antecipando informações a respeito de pautas e movimentações processuais antes mesmo de sua divulgação oficial".

"Os diálogos apontam que o envolvimento funcional não se restringia a Daimler, alcançando outros servidores vinculados ao gabinete", diz a polícia no relatório.

"Diante desses indícios, a investigação ampliará o foco para identificar eventuais outros servidores que possam ter participado das tratativas e da elaboração das minutas, mediante a análise detalhada dos possíveis sinais e códigos camuflados nas mensagens trocadas entre os interlocutores."

O relatório policial tem como principal linha de investigação suspeitas sobre ações que tramitaram nos gabinetes das ministras Gallotti (sete processos) e Nancy Andrighi (cinco processos) e também sobre vazamento de informações da Operação Faroeste, de relatoria do ministro Og Fernandes.

Marcio Toledo, que trabalhou com Gallotti, também passou pelo gabinete de Nancy e é o principal suspeito de vazamentos de informações e de ter relações próximas com Andreson.

Nenhum ministro da corte é investigado no inquérito, que está sob condução de Cristiano Zanin no STF (Supremo Tribunal Federal).

Procurada, a ministra Nancy Andrighi afirma, em nota do seu gabinete, que "já prestou informações à imprensa, no ano de 2024, sobre os processos" e que "os processos de responsabilização encontram-se em andamento, a fim de que os fatos sejam devidamente esclarecidos e os responsáveis punidos de forma exemplar".

A ministra Isabel Gallotti afirmou que "desconhece o conteúdo da investigação, porque tramita em sigilo, e que seu gabinete está à disposição, para auxiliar, no que seja necessário, a fim de que sejam cabalmente apurados os fatos ocorridos e responsabilizados todos os envolvidos".

Questionado se gostaria de se manifestar, o ministro Og Fernandes afirmou que, "respeitando o direito ao contraditório, quem cometer ato ilícito deve assumir as consequências legais cabíveis".

O advogado de Daimler, Bernardo Fenelon, afirmou que a investigação comprova a inocência de seu cliente, já que os contatos telefônicos salvos pelo grupo como sendo do servidor na realidade pertencem a outras pessoas, e que a sindicância interna do STJ afastou qualquer participação dele.

"A apuração mostra claramente que inexiste qualquer indício mínimo que vincule nosso cliente aos atos ilícitos sob investigação. Nenhuma mensagem, nenhum encontro e nenhuma transferência valores. Absolutamente nada", disse Fenelon.

A defesa de Falcão foi procurada, mas não se manifestou. A reportagem não localizou a de Marcio Toledo.

No relatório, são comparadas movimentações processuais e movimentações financeiras de suspeitos com trocas de mensagens do advogado Roberto Zampieri, assassinado no fim de 2023, e Andreson.

Além dos três auxiliares dos ministros que são alvos de inquérito, também são citadas outras pessoas ainda não identificadas ou que acessaram internamente os processos como possíveis alvos de futura investigação.

A análise da polícia faz ainda outras observações. Por exemplo, ao analisar o conteúdo de dados de nuvem de Andreson, a PF identificou que um contato salvo com o nome de Daimler não era o número do celular do chefe de gabinete, mas de um advogado.

A polícia diz que "a prática de salvar números telefônicos sob nomes de terceiros é expediente recorrente em contextos de ocultação e dissimulação de ilícitos, justamente para despistar eventual vinculação entre o interlocutor real e as comunicações mantidas".

No caso em questão, afirma a PF, os elementos indicavam que, embora a linha estivesse em nome de outra pessoa, "o controle prático do terminal e a condução das tratativas cabiam, em verdade, ao servidor Daimler, então chefe de gabinete da ministra Isabel Gallotti".

"Essa hipótese se robustece pelo teor das mensagens e pela correlação temporal com outros achados investigativos, que já vinham apontando Daimler como elo central no fluxo de informações e de valores em favor do grupo investigado."

No caso da suspeita de vazamento pelo ex-chefe de gabinete de Og Fernandes, a PF ainda não tem clareza se Falcão realmente teria vazado minutas para Andreson. Isso porque a polícia trabalha com a possibilidade de que uma decisão de Og que estava no celular do lobista era falsa.

A investigação ainda apura se foram repassadas outras informações relacionadas à Operação Faroeste.

Os dados obtidos na nuvem do celular de Andreson, diz a polícia, confirmam a sua condição de articulador de manipulações judiciais e também trazem novos elementos relevantes como provas.

"Entre eles, destacam-se os contatos mantidos com servidores, chefes de gabinete e magistrados", afirma o relatório.

Andreson está em prisão domiciliar em Primavera do Leste, no interior de Mato Grosso, desde julho. Zanin autorizou a prisão domiciliar após um parecer positivo da PGR (Procuradoria-Geral da República) pela saída do lobista de uma prisão federal em Brasília, devido ao seu estado de saúde. Sua defesa não tem comentado informações sobre a operação.

José Marques, jornalista, de Brasília - DF, originalmente, para a Folha de S. Paulo, em 14.10.25

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Todos os negócios do presidente: é assim que Trump fica muito mais rico na Casa Branca

A riqueza do presidente dos EUA se multiplicou em apenas alguns meses. Seu império familiar abrange desde imóveis até criptomoedas e gera inúmeros conflitos de interesse.

A tênue linha ética que Trump fecha

Em 1996, o jornalista Mark Singer foi contratado pela The New Yorker , revista onde trabalhou por 20 anos , para acompanhar Donald Trump por alguns meses e escrever um perfil detalhado do então empresário americano, com grande influência na mídia. Singer escreveu o que se tornaria um dos artigos lendários da revista : um retrato angular no qual concluiu que o magnata havia alcançado "o luxo supremo: uma existência livre do murmúrio perturbador de uma alma". Em 2005, ele republicou o artigo para um livro que compilava nove de seus melhores perfis dos últimos anos, e o The New York Times publicou uma resenha elogiosa. Trump decidiu enviar uma carta ao jornal, chamando Mark Singer de "perdedor" e acrescentando algumas outras sutilezas, uma publicidade que impulsionou as vendas do livro.

Com todo o sarcasmo do mundo, o repórter decidiu escrever a Trump para agradecê-lo e, como prova de sua gratidão, enviou-lhe um cheque de US$ 37,82. A empresa de Trump devolveu a carta alguns dias depois com um bilhete do então presidente insultando-o novamente. No entanto, um lançamento negativo de US$ 37,82 apareceu na conta bancária do jornalista. Trump havia descontado o cheque.

Há muitas histórias para descrever o gênio empreendedor de Donald Trump , mas nenhuma captura sua essência como esta: um amor febril, apaixonado e constante pelo dinheiro, transmitido de geração em geração. De Fred Trump — seu pai, um construtor de casas no Queens e no Brooklyn que costumava incentivar o filho a seguir uma carreira como esta: "Seja um matador"; "Você é um rei" — ao atual presidente, incluindo seus filhos, como Ivanka, com seus próprios negócios, ou Donald Jr. e Eric, administrando o império da família.

O gene já emergiu na próxima geração, e até mesmo uma das netas do presidente, Kai Trump, de 18 anos, começou a vender moletons com suas iniciais por US$ 130, com a inestimável promoção de fotografá-los nos gramados da Casa Branca, o enésimo potencial conflito de interesses deste governo. São roupas, alerta a jovem empreendedora em seu site, "feitas por trabalhadores americanos qualificados", caso alguém esteja procurando maliciosamente pelo selo " Made in China" .

Donald Trump não é o primeiro presidente dos EUA a chegar à Casa Branca vindo do mundo empresarial, mas certamente não há precedentes para alguém cuja fortuna tenha aumentado tanto durante sua presidência, em grande parte devido a críticas razoáveis ​​aos seus oponentes, auxiliadas pela mesma aura presidencial. Porque em meio ao barulho das guerras comerciais, às farsas sobre o uso de paracetamol em gestantes e — também — ao acordo de paz para Gaza, o conglomerado Trump está ganhando dinheiro, dinheiro pessoal, aos montes.

Uma versão 2.0

O Trump de seu primeiro mandato (2017-2021) foi o conhecido magnata imobiliário, dono de hotéis, resorts, clubes de golfe e edifícios residenciais em todo o mundo, que gerava receita colocando sua marca Trump em inúmeros produtos e não se opunha a ganhar alguns dólares com livros ou televisão. Trump 2.0 é muito mais diversificado: além de um crescente portfólio imobiliário, ele administra sua própria rede social, a Truth Social, de propriedade do Trump Media & Technology Group, e um novo e próspero negócio de criptoativos, com sua memecoin , uma criptomoeda recém-cunhada que é altamente volátil e não tem valor subjacente. Ele lançou $TRUMP em janeiro passado, dois dias antes de assumir o cargo, e durante esse período atingiu um valor de mercado de US$ 40.000, pelo menos no papel.

Quanto cresceu a fortuna de Trump desde que se tornou presidente do governo mais poderoso do mundo ? De quantos dólares estamos falando? De acordo com dados da Forbes desta semana, entre 2024 e 2025, a riqueza do empresário-presidente saltou de US$ 2,3 bilhões para US$ 7,2 bilhões, um salto amplamente atribuído às suas novas atividades. O New York Times, por outro lado, estimou em julho passado que o valor absoluto era de cerca de US$ 10 bilhões, embora grande parte desse montante estivesse localizado em ativos ilíquidos (ou seja, difíceis de converter em dinheiro). E o Bloomberg Billionaires Index, o maior banco de dados financeiro do mundo, estimou neste verão que sua riqueza mais que dobrou durante sua administração, para US$ 6,4 bilhões.

Uma vista do Trump Hotel em Las Vegas, Nevada, em uma imagem tirada em 3 de julho. / Crédito:DANIEL SLIM (AFP / GETTY IMAGES)

Não é possível determinar os números exatos porque, em primeiro lugar, nem todos os negócios de Trump estão listados em bolsas de valores e, em segundo lugar, a maior parte de seus ativos permanece em imóveis e é compartilhada com familiares e parceiros. Quanto à maré de milhões que circula por meio de criptoativos, muitos estão completamente vinculados à sua marca pessoal, dificultando uma estimativa independente de seu valor. Outras receitas vêm de licenças de livros ou outros produtos. Há um problema adicional: Trump foi acusado de inflar o valor de seus ativos em mais de uma ocasião para obter mais linhas de crédito, algo que chegou a ser levado à justiça, embora ele tenha sido absolvido.

O que é palpável em relação à sua primeira presidência, em termos de dinheiro vivo, é que a máquina entrou em overdrive. Quando chegou à Casa Branca, anunciou que se desfaria da gestão de suas empresas e as colocaria sob um fundo fiduciário, o que significa que seriam administradas por outra pessoa. Foi o que Jimmy Carter fez, por exemplo, com sua empresa agrícola, mas com uma diferença fundamental: Carter a colocou nas mãos de um independente, e o conglomerado de Trump é liderado por Donald Jr., o principal gerente, e seu irmão, Eric, que, claro, têm contato constante com o pai. Eles também o ajudam a espalhar a mensagem política MAGA (Make America Great Again) pelo mundo e a inaugurar novos edifícios com ele.

Como aponta um advogado especializado em governança e ética, que prefere permanecer anônimo devido ao seu emprego atual em uma empresa privada: " Para evitar quaisquer acusações de má conduta, o que ele deveria ter feito era se desfazer de todos os seus negócios nos Estados Unidos e no exterior, mas isso não vai acontecer. Na verdade, ele está se expandindo tanto nacional quanto internacionalmente." Seus filhos sempre afirmaram que estiveram envolvidos no mundo dos negócios e investimentos a vida toda, que não são novatos procurando ganhar dinheiro do zero no aconchego do Salão Oval e que não faria sentido para eles abandonarem suas carreiras empresariais agora.

Os negócios originais dos Trump, imóveis de luxo, propriedades residenciais, hotéis, campos de golfe e outros edifícios comerciais ou clubes controlados pela Organização Trump, oferecem a imagem mais simbólica dessa mistura de poder político avassalador com os negócios habituais de seus filhos . Por exemplo, no final de julho, Trump fez uma viagem supostamente privada aos seus campos de golfe na Escócia, um refúgio que usou para se encontrar com o primeiro-ministro britânico Keir Starmer e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Como toque final, ele inaugurou um novo campo de golfe com seus dois filhos, evento que também contou com a presença do primeiro-ministro escocês, John Swinney.

Entre campos de golfe, resorts e edifícios para diversos usos, Trump possui quase vinte grandes propriedades imobiliárias. A lista inclui estabelecimentos icônicos como o resort Mar-a-Lago, na Flórida, a Trump Tower na Quinta Avenida, em Nova York, e os campos de golfe mencionados na Escócia, entre outros. A Forbes os avaliou em cerca de US$ 2,5 bilhões, mas o valor, mais uma vez, está sujeito a inúmeras ressalvas. Por exemplo, o Gabinete do Procurador-Geral de Nova York observou que Trump comprou um campo de golfe em Jupiter, Flórida, por US$ 5 milhões e, menos de um ano depois, em sua declaração de imposto de renda de 2013, o avaliou em US$ 62 milhões.

Chegada dos petrodólares

Além do valor dos ativos em si, há a renda gerada anualmente por esses negócios, que também tem sido fonte de controvérsia tanto neste quanto no último mandato, já que a decisão de Trump de se hospedar em seus próprios hotéis e resorts nos Estados Unidos forçou sua comitiva de longa data a fazer o mesmo, usando dinheiro do contribuinte. Soma-se a isso o fato de que muitos milionários pagam para se filiar justamente a esses clubes para ter acesso ao presidente.

Uma enxurrada de petrodólares está sendo investida no setor imobiliário, com os descendentes do presidente impulsionando a atividade no Golfo Pérsico. O grupo fechou vários acordos multimilionários com a incorporadora saudita Dar Global, o mais recente de US$ 1 bilhão para desenvolver um projeto residencial e comercial em Jidá. A Trump Organization também fechou acordos de licenciamento com a Dar Global para outros projetos em Dubai, Omã, Catar e Riad. Vários desses acordos foram finalizados após as viagens do presidente à região.

Durante seu primeiro mandato, Trump prometeu não lançar novos projetos fora dos Estados Unidos para evitar suspeitas ou qualquer potência estrangeira que buscasse beneficiar seus negócios em troca de influência junto ao presidente. Agora, o conglomerado busca lucrar no exterior, embora evite realizar projetos com governos.

Além de questões éticas e de imagem, os processos que recebeu durante seu primeiro mandato foram rejeitados na Justiça. As leis de conflito de interesses dos EUA não se aplicam a presidentes da mesma forma que a outros funcionários públicos. Há uma disposição na Constituição que, desde o século XVIII, proíbe o presidente ou qualquer outro funcionário do governo de aceitar presentes ou doações de governos estrangeiros sem o consentimento expresso do Congresso, mas Trump desafiou essa disposição ao aceitar um jato Boeing 747 de luxo avaliado em US$ 400 milhões do Catar, que ele usará como avião presidencial, um novo Air Force One.

Embora os edifícios sejam o setor mais consolidado do portfólio de investimentos de Trump e aquele em que ele mais imprime sua marca pessoal (grandeza, luxo e seu nome em negrito), o universo das criptomoedas se tornou um império em questão de meses e merece um capítulo à parte. Se a mencionada memecoin $TRUMP estava sendo negociada a US$ 7,48 no mercado nesta sexta-feira, o valor total dessa moeda pode ser estimado em US$ 1,4 bilhão, de acordo com dados da Coinmarketcap, embora obviamente não seja propriedade do magnata.

Novos horizontes

Os Trumps operam nesse mercado volátil por meio da World Liberty Financial, uma plataforma fundada por seus filhos — incluindo o mais novo, Barron Trump, já rico aos 19 anos — juntamente com outros investidores como Steven Witkiff, Zac Folkman e Chase Herro, chamados pela imprensa americana de "criptopunks". A própria plataforma também lançou seu próprio token digital, $WLFI, que estava sendo negociado a US$ 0,17 na manhã de sexta-feira, representando um valor total de US$ 4,34 bilhões.

O mercado de criptomoedas está particularmente no centro das atenções da oposição democrata. O Fundo de Defensores da Democracia Estatal, uma plataforma de oposição, monitora de perto suas atividades no setor, justamente por coincidirem com uma abordagem abertamente "favorável às criptomoedas" em relação a esse tipo de ativo financeiro de alto risco e alta volatilidade. Segundo seus cálculos, em meados de março, esses ativos já representavam US$ 2,9 bilhões para Trump, 37% de toda a sua fortuna.

“Em vez de se desfazer de seus criptoativos para evitar potenciais conflitos de interesse, o presidente Trump parece ter se posicionado para maximizar seus benefícios, adotando um programa regulatório menos agressivo do que seus antecessores”, segundo Virginia Canter, chefe da prática anticorrupção do grupo. “A redução da supervisão nessa área pode comprometer a segurança nacional dos EUA”, afirmou ela em um comunicado.

A história do Trump Media & Technology Group também fala da genialidade irredutível do presidente dos Estados Unidos. Quando em janeiro de 2021, após o ataque ao Capitólio, o Twitter de Jack Dorsey (hoje X, de Elon Musk) decidiu suspender permanentemente a conta de Donald Trump, ele começou a trabalhar na ideia de lançar sua própria rede social para evitar o que considerava a censura do establishment. A Truth Social foi lançada em outubro daquele ano. A empresa, que está listada na bolsa, tem uma capitalização, nesta sexta-feira, de US$ 4,78 bilhões e, segundo dados de julho do The New York Times , Trump controlava 115 milhões de ações, o que hoje equivaleria a cerca de US$ 2 bilhões. No entanto, este é um tipo de ativo tão intimamente ligado à sua figura que é difícil ver se seu valor se sustentaria com um eventual desinvestimento pelo republicano.

Trump, como se sabe, acabou retornando ao que hoje é o X, de propriedade de Elon Musk. O relacionamento do presidente com o bilionário fundador da Tesla — embora ele já tenha deixado o governo — também atraiu uma enxurrada de críticas. Em uma impressionante mistura de negócios, política e governo, em março passado, Trump exibiu cinco veículos elétricos da marca diante da imprensa ao lado de Musk, em sinal de apoio ao empresário, que na época via as ações da empresa despencar em meio à tempestade política causada por seu cargo e sua missão: ele era responsável por enxugar a administração e demitir dezenas de milhares de funcionários públicos.

“Acho que ele foi tratado de forma muito injusta por um grupo muito pequeno de pessoas, e eu só quero que as pessoas saibam que ele não pode ser penalizado por ser um patriota, e ele é um grande patriota, e ele fez um trabalho incrível com a Tesla”, disse Trump na época, e logo depois anunciou sua intenção de comprar um de seus carros.

A primeira-dama Melania Trump ladeada pelos filhos do presidente, Eric e Ivanka (acima) e Tiffany e Donald Jr. (abaixo) em Ohio, EUA, em 2020. / Crédito: JIM WATSON (AFP/GETTY IMAGES)

Os negócios estão prosperando em torno da família Trump, não apenas por causa dos moletons que sua neta começou a vender. O marido de Ivanka, Jared Kushner, também empresário, foi fundamental, por exemplo, na megacompra da Electronic Arts, a empresa por trás dos jogos FIFA e The Sims, pela empresa americana de capital de risco Silver Lake e pelo fundo soberano da Arábia Saudita (Fundo de Investimento Público, PIF). De acordo com o The Wall Street Journal , o genro de Trump usou suas conexões na Arábia Saudita para ajudar no negócio. A Amazon, por outro lado, pagou US$ 40 milhões pelos direitos de um documentário sobre Melania Trump, uma das primeiras-damas mais discretas que os Estados Unidos já tiveram. Seu marido nunca foi avesso a audiovisuais; muito pelo contrário, algo que gerou uma renda suculenta e colocou seu rosto em milhões de lares americanos — um dos ingredientes de seu sucesso político — foi justamente o reality show The Apprentice, que ele apresentou.

E, enquanto isso, as vendas de produtos licenciados sob sua marca, desde os famosos bonés, diversas coleções de roupas (uma das mais recentes, intitulada "Golfo da América", em referência à renomeação do Golfo do México dessa forma) ou tênis, continuam gerando outras fontes de renda por meio de royalties .

A Organização Trump chama seu patriarca de "a própria definição de uma história de sucesso americana". "O arquétipo de um empresário e negociador sem igual". Uma de suas frases favoritas, que ele usa há décadas, está em destaque em seu site, embora seja difícil imaginar o significado que ela poderia assumir neste estranho 2025: "Se você tiver que pensar, pense grande".

Amanda Mars, a autora deste artigo, é Jornalista e correspondente de economia do EL PAÍS, onde trabalha desde 2006. Começou no escritório de Barcelona, ​​passou para a seção de Economia e foi correspondente em Nova York e Washington (2015-2022). Foi diretora do Cinco Días e vice-diretora da seção de economia do EL PAÍS. Anteriormente, trabalhou na La Gaceta de los Negocios e na agência Europa Press. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 11.10.25