sábado, 18 de outubro de 2025

Ascensão e queda de um mau militar

O capitão que fez política nos anos 1980 e 1990 como uma espécie de sindicalista de policiais e militares de baixa patente jamais compreendeu a liturgia republicana


Há 35 anos perícia da Policia Federal mostrou que Bolsonaro fez plano de por bombas em quartéis. Acima, reprodução do croqui no plano para explodir a adutora do guandu, no Rio e Janeiro.

A trajetória pública de Jair Bolsonaro mostra como a História, de vez em quando, pode ser tomada de assalto por personagens medíocres, cuja irrelevância de origem pode ser explorada, no momento oportuno, como plataforma para um projeto de poder.

Desde que passou à reserva remunerada do Exército, em 1988, por meio de um arranjo condescendente com a indisciplina e o espírito insurrecto que marcaram sua passagem pela Força Terrestre, Bolsonaro construiu uma longeva carreira política – a bem da verdade, um bem-sucedido empreendimento familiar – com base na irresignação com o advento da Nova República e na permanente hostilidade aos valores democráticos consagrados pela “Constituição Cidadã”. Mais de três décadas depois, o ex-presidente e capitão da reserva foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 27 anos e três meses de prisão por ter liderado uma conspiração golpista que pretendeu subverter o resultado legítimo da eleição presidencial de 2022.

Após a condenação penal na Justiça comum, Bolsonaro deverá enfrentar outro julgamento em breve. No Superior Tribunal Militar (STM), como dispõe a Constituição, provocado pelo Ministério Público Militar, poderá perder a mesma patente que, no início de sua vida pública, serviu de trampolim para sua carreira política. Ao que tudo indica, o ciclo político de Bolsonaro está prestes a se encerrar do modo como começou: em confronto com a lei, em rebeldia contra a ordem constitucional e na reafirmação de sua natureza insubmissa aos princípios democráticos.

Não se trata apenas do ocaso pessoal de Bolsonaro, mas, muito provavelmente, o de um movimento que se articulou em torno de seu nome e absorveu seu estilo. O bolsonarismo emergiu como a resposta visceral à crise de representação política que incendiou o Brasil após os escândalos de corrupção durante os governos lulopetistas. Em 2018, em meio ao desencanto generalizado da população com a política dita “tradicional”, Bolsonaro foi alçado à Presidência da República apregoando ser um outsider, coisa que nunca foi. Assim, explorou um mal-estar social legítimo, mas mal orientado, ao ser escolhido pela maioria dos eleitores como um símbolo de negação: contra o PT, contra a corrupção, contra o establishment político, contra o “sistema”.

Na chefia de Estado e de governo, Bolsonaro foi fiel à sua natureza, frustrando os que esperavam que o peso da institucionalidade o contivesse. O obscuro deputado do baixo clero – que, sem nada digno a oferecer, mostrava-se sempre disponível para escandalizar o País com sua retórica violenta em defesa da ditadura militar – passou a comandante em chefe das Forças Armadas sem nunca deixar de ser um agitador. Hostilizou as instituições, manipulou a verdade factual, insultou a ciência, desprezou a vida dos brasileiros na pandemia, sabotou a boa administração pública e, ao fim, tentou um golpe, como constatado ao final da Ação Penal 2.668, para se aferrar ao poder, malgrado ter sido derrotado em uma eleição limpa.

Não houve surpresas. O capitão que fez política nos anos 1980 e 1990 como uma espécie de sindicalista de policiais e militares de baixa patente jamais compreendeu a liturgia republicana.

A condenação imposta pelo STF e o futuro julgamento no STM representam não só a tardia responsabilização de Bolsonaro por seus atos – que deveria ter sido punido politicamente a tempo certo, como bem destacou o Estadão no editorial Dejetos da democracia (8/1/2000, A3) –, como também uma mensagem clara à sociedade: a democracia brasileira se consolidou. A perda da patente, nesse sentido, seria um evento simbólico a reafirmar que as Forças Armadas, enfim, encerraram o longo capítulo de leniência com o golpismo na caserna que marca nossa experiência republicana. Afinal, Bolsonaro sempre se apresentou e foi tratado por seus aliados como “capitão”, título usado para angariar legitimidade entre os fardados. Ademais, referia-se ao Exército como o “seu” Exército. Destituí-lo da patente, portanto, será desmascará-lo como o “mau militar” (Geisel) que Bolsonaro sempre foi.

Nada disso, no entanto, deve ser motivo de regozijo. O triste capítulo Bolsonaro na história nacional é, a rigor, um luminoso alerta. Alguém como ele só foi alçado à condição de líder da Nação porque muitos cidadãos passaram a descrer na política e nas instituições – em particular nos partidos políticos – e se encantaram pela perspectiva de uma solução rápida para problemas complexos. Nada indica que essa malaise esteja superada. O populismo autoritário só prospera em crises de confiança. Portanto, é dever das forças políticas genuinamente comprometidas com a democracia zelar para que esse terreno nunca mais fertilize ervas tão daninhas.

No crepúsculo de sua vida política, Bolsonaro caminha para o ponto de partida: um militar da reserva indisciplinado, ora condenado pela Justiça comum e prestes a ser declarado indigno da patente pela Justiça Militar. Uma carreira política que começou como afronta ao Exército termina com um golpe contra a República. Ao menos no ponto final desse arco, a sociedade e as instituições souberam reagir. Talvez seja esse o legado positivo da tragédia bolsonarista. Ainda que tarde, a democracia brasileira mostrou força para se defender de seu pior inimigo na história recente.

Itamar Montalvão, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Pulo, em 18.10.25

Nenhum comentário: