sábado, 18 de outubro de 2025

Honesta e leal aplicação da lei

Jamais o Brasil dependeu tanto de tão elementar premissa civilizatória. Pois, sem lei, restam apenas o desgoverno caótico e as injustiças irrefreáveis.

É indubitável que algo não está bem no Brasil. Decididamente, um país continental, com tantas potencialidades humanas, naturais e materiais, não pode ter apenas um único tema a debater: a relação de amor e ódio entre Lula e Bolsonaro em um divórcio litigioso sem fim. Se fosse novela da tarde, o enredo dantesco poderia ser visto com pipoca salgada; todavia, o problema, na crueza de sua expressão, diz respeito a mais de 200 milhões de cidadãos brasileiros, a maior parte em situação de extrema pobreza e necessidades urgentes, sem escolas, sem segurança pública, sem anestésicos para as fundas dores da existência. Enfim, pessoas sem nada, filhos da indignidade política.

Nossa realidade monotemática é reflexo direto de nosso subdesenvolvimento econômico e intelectual. Países prósperos não aceitam institucionalidade baixa, pois, onde há inteligência, ignorantes não se criam. Infelizmente, o caminho da prosperidade segue sendo um desconhecido brasileiro. Capitalismo de livre mercado, concorrência justa e meritocracia não passam de ecos utópicos de um sistema disfuncional, irrigado por ostensiva interferência estatal nas regras do jogo, benefícios vultosos a amigos e instituições que se servem da – em vez de servir à – República. Tudo como sempre foi, mas com uma diferença sentencial.

Objetivamente, ao longo da quadra democrática pós-1988, a erosão formadora dos partidos e a progressiva degeneração do capital humano da política colocaram o sistema de poder brasileiro em situação de ingovernabilidade aguda. Nos primeiros sintomas, os lapsos de acefalia política foram sendo contornados com pontuais transferências decisórias ao Supremo Tribunal Federal (STF). Antes discreto, o fenômeno ganhou evidência e se impôs por questão de ordem prática: uma maioria colegiada entre 11 é menos trabalhosa do que a complexa construção com 513 deputados e 81 senadores. Além do quesito pragmático, o gradual deslocamento do núcleo político representava prestígio e poder ao STF, habilitando-o a transpor, por decisões constitucionalmente fundamentadas, a legitimidade parlamentar do voto popular.

Veio, então, a temporada de macrocriminalização da política. Os famigerados esquemas delitivos do “mensalão” e “petrolão”, entremeados pela severa campanha punitiva da Lava Jato, deram um tiro no peito da política institucionalizada, colocando-a de joelhos no banco dos réus. Se a expressão adquirida em Curitiba legitimou Sérgio Moro ao Ministério da Justiça, sua atrapalhada renúncia ao cargo criou condições para o STF, já sem a sóbria presença do ministro Teori Zavascki, retomar as rédeas condutoras do processo decisório. Diante dos movimentos erráticos do governo Bolsonaro, num tecido político esgarçado pela confusa gestão da pandemia, restou aberta a porta da experimentação jurídica que levou ao resgate eleitoral de Lula e, ato contínuo, à corrente ingovernabilidade absoluta.

Sim, embora eleito, o presidente não manda e nada de importante decide. Tem auditório e mídia, mas não tem poder. Ou seja, a suprema subjugação da política é traço alto da institucionalidade brasileira contemporânea. Para além de teóricas discussões sobre déficit de democracia ou usurpação da separação de Poderes, o fato existe e aí está, expondo novidades de causas e efeitos. Ilustrativamente, jamais na história política do Brasil um magistrado supremo sofreu sanções diplomáticas da maior potência mundial. Tal ineditismo, além de despertar preocupações, traz alertas importantes ao núcleo de poder brasileiro.

Sem cortinas, as injunções geopolíticas da circunstância – com especial destaque para a postura direta e vertical do presidente Trump sobre elos de interesse da Casa Branca – colocam o País em vulnerabilidade sem precedente. Ao invés da ousadia de gestos histriônicos, a gravidade do momento histórico exige tato, prudência e máximo exercício da razão pensante. A dificuldade estratégica ganha pressão adicional diante da necessidade de soluções diplomáticas em adversa situação de desequilíbrio interno. Em outras palavras, o Brasil não sabe para onde ir nem com quem deve ir e nem sequer dispõe da capacidade de estabelecer diálogos estreitos de orientação mínima.

No vácuo da política, a bússola democrática gira sem norte definido. Aqui, o atalho não faz caminho. Entre os muitos poderes da colenda Suprema Corte não está o de indicar pontos cardeais da democracia. Até mesmo porque dirigismo político – seja qual for – pode ser tudo, menos liberdade constitucional. Em homenagem ao livre pensar sobre o futuro, a memória fez lembrar a autoridade de Paulo Brossard em página alta do STF: “Se eu fosse legislador, é possível que não incluísse o preceito em tela na Constituição; mas eu, que já fui, deixei de sê-lo. Agora, como juiz, não faço leis, antes lhes devo obediência e precipuamente à Lei Maior, goste ou não goste de suas regras, devendo dar-lhes honesta e leal aplicação”.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr, o autor deste artigo, é Advogado, é chairman do Instituto Millenium. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 18.10.25

Nenhum comentário: