quinta-feira, 9 de maio de 2024

Falta preparo para lidar com desastres no país

Enfrentamento eficiente de calamidades como a que atinge o RS precisa entrar para rotina do poder público e da sociedade

Ruas inundadas em São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre (RS) - Pedro Ladeira/Folhapress

Dos debates despertados pela catástrofe das chuvas no Rio Grande do Sul, o sobre como liberar verba pública emergencial preocupa menos. Há longa tradição nos regimes orçamentários governamentais para facilitar, muitas vezes sem o devido controle, despesas urgentes e inesperadas.

O que deveria mobilizar as atenções é a falta de preparo e organização do poder público e da sociedade para salvar vidas e mitigar os estragos materiais nesses episódios frequentes no Brasil.

Não seria preciso mudança climática nem variações cíclicas na temperatura das águas do oceano Pacífico para declarar o Sul do país como uma área de risco de inundações e deslizamentos. A história natural do planeta escavou ali uma gigantesca calha de escoamento hídrico exposta a tempestades.

Sobretudo Rio Grande do Sul e Santa Catarina deveriam ter o mesmo nível de organização para lidar com dilúvios que Japão, Chile e Califórnia desenvolveram em relação aos riscos de sismos e maremotos.

Regras de ocupação do solo e métodos construtivos, sistemas de alerta e evacuação, simulações periódicas das reações a desastres, protocolos que centralizam, disponibilizam e disparam informações, núcleos de gestão que estabelecem prioridades e coordenam as diversas burocracias envolvidas.

Pouco disso transparece na resposta das autoridades municipais, estaduais e federais à elevação das águas no Rio Grande do Sul, o que não é problema apenas gaúcho. O improviso, o excesso de confiança no voluntarismo e a falta de informações tempestivas caracterizam a reação a desastres no país.

O objetivo nas primeiras horas após uma catástrofe é reduzir danos, evitar mortes e internações, abrigar desalojados e preservar a infraestrutura de abastecimento de bens e serviços essenciais.

Para cumprir bem essa tarefa, é preciso organização. Os recursos físicos e os humanos devem chegar no volume adequado aos locais mais necessitados no menor tempo possível. A informação tem de ser precisa e circular depressa.

Trata-se de uma operação análoga à de uma guerra, e quem vai despreparado para uma guerra no mínimo terá mais perdas do que teria caso houvesse se precavido.

É preciso melhorar rapidamente a efetividade das ações no Rio Grande do Sul, pois é provável que outros temporais e ondas de frio se abatam sobre regiões gaúchas.

A lição que fica, para o estado e o país, é que não é mais tolerável que autoridades e sociedade esperem os desastres acontecerem para tomar medidas óbvias de planejamento e cautela para situações emergenciais. Pois é certo como o nascer do Sol que elas voltarão a ocorrer em breve.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 09.05.24 (editoriais@grupofolha.com.br)

Ministério Público Eleitoral no TSE contra cassação de Moro

Vice-procurador-geral eleitoral afirma que não existe comprovação de desvio ou omissão de recursos por senador

O senador Sergio Moro (União Brasil-PR) - Pedro Ladeira - 1º.abr.24/Folhapress

A Procuradoria-Geral Eleitoral se manifestou ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) pela rejeição de ações do PT e PL que pedem a cassação do senador Sergio Moro (União Brasil-PR) sob alegação de abuso de poder econômico, uso indevido dos meios de comunicação e caixa dois nas eleições de 2022.

Moro é ex-juiz e ficou conhecido por ser o responsável pela vara federal na qual tramitavam os processos da Operação Lava Jato. Ele também é ex-ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro (PL).

O documento do Ministério Público foi juntado nesta terça-feira (7) à ação, que é relatada pelo ministro Floriano de Azevedo Marques. Floriano é próximo ao presidente da corte, Alexandre de Moraes.

Moro foi absolvido em abril pelo TRE-PR (Tribunal Regional Eleitoral do Paraná) por 5 votos a 2. A maioria entendeu que não houve abuso de poder econômico durante a pré-campanha eleitoral do ex-juiz da Lava Jato, em 2021 e 2022.

Além disso, todos os sete juízes rejeitaram a acusação de uso indevido dos meios de comunicação social e também não reconheceram indícios de caixa dois e triangulação de recursos.

As acusações contra Moro tratam, principalmente, de temas relacionados aos gastos no período que antecedeu a campanha oficial ao Senado.

PT e PL argumentaram que os gastos do ex-juiz na pré-campanha, justamente porque ele almejava a Presidência da República, foram desproporcionais, gerando desequilíbrio entre os concorrentes.

As duas siglas começam a somar os gastos de Moro desde novembro de 2021, quando Moro se filiou ao Podemos, de olho na cadeira de presidente.

Ao TSE o Ministério Público disse que "não há indicativos seguros de que houve desvio ou omissão de recursos e tampouco intencional simulação de lançamento de candidatura ao cargo de presidente com pretensão de disputa senatorial no Paraná".

"Também inexiste comprovação de excesso ao teto de gastos na pré-campanha (fase sequer regulamentada), inclusive se adotado o precedente de 10% do teto de campanha", afirma a manifestação, assinada pelo vice-procurador-geral eleitoral, Alexandre Espinosa.

Espinosa nega semelhanças em relação ao caso da ex-senadora Selma Arruda, de Mato Grosso, que foi juíza e teve atuação comparada a Moro.

O TSE cassou por 6 a 1 o mandato de Arruda ao entender que houve abuso de poder econômico e captação ilícita de recursos ligados à campanha eleitoral de 2018.

A Justiça Eleitoral concluiu que ela e seu primeiro suplente omitiram quantias expressivas usadas para pagar despesas de campanha no período pré-eleitoral.

O Ministério Público Eleitoral afirma que "não há similitude fática entre o caso analisado e o precedente 'Selma Arruda', fundamentalmente porque no julgamento já realizado pelo TSE a imputação em desfavor da então senadora se deu por irregularidades no autofinanciamento da sua campanha eleitoral (por meio de um mútuo realizado com seu suplente) e pela constatação de que a pré-candidata realizou antecipadamente gastos tipicamente eleitorais –o que não é a hipótese dos autos".

Ainda não há data marcada para o julgamento de Moro no TSE.

Moro se filiou ao Podemos no final de 2021 de olho na cadeira do Planalto. Em abril de 2022, migrou para a União Brasil, mas não conseguiu viabilizar uma pré-candidatura a presidente.

Optou por se lançar a senador por São Paulo, mas a Justiça Eleitoral vetou a troca de domicílio eleitoral. Em função das mudanças de planos, Moro se volta ao eleitorado paranaense somente a partir de 8 de junho de 2022. A campanha oficial começou em agosto, seguindo até outubro.

PT e PL entraram com propostas de Aije (Ação de Investigação Judicial Eleitoral) contra Moro no final de 2022, mas as duas representações acabaram tramitando em conjunto no TRE em função das semelhanças das acusações.

O julgamento do caso no TRE durou quatro sessões e, em 9 de abril, terminou com um placar de 5 a 2 a favor de Moro. Em 22 de abril, os partidos recorreram ao TSE contra a decisão da corte regional.

José Marques,Jornalista, de Brasília - DF para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente  na edição impressa em 08.05.24

‘Tragédia no RS é responsabilidade também de senadores e deputados que desmontam legislação ambiental’, diz secretário do Observatório do Clima

“A gente pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder do Observatório do Clima.

253 municípios foram afetados por chuvas no Sul  (EPA - EFE/REX/SHUTTERSTOCK)

As fortes chuvas que atingem o Rio Grande do Sul, as mais intensas registradas em território gaúcho em décadas, já deixaram dezenas de mortos, causaram estragos em 300 municípios, romperam uma barragem e desalojaram milhares de pessoas. Há ainda mais mais de uma centena de pessoas desaparecidas.

Os governos federal e estadual criaram uma força-tarefa e tentam evitar mais mortes promovendo evacuações e retirando pessoas de áreas de risco.

Mas a responsabilidade não é apenas dos governos estaduais e federal, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), mas também do Congresso — pois as tragédias são resultado da falta de adaptação e de combate às mudanças climáticas, duas áreas onde os Executivos precisam fazer mais e onde o Legislativo têm promovido ativamente retrocessos, na opinião dele.

"A maioria conservadora tem aprovado diversos projetos considerados nocivos para o meio ambiente. Nunca tivemos um Congresso tão dedicado a desmontar", afirma o especialista em políticas públicas à frente do Observatório do Clima, rede de entidades que monitora a questão climática no Brasil.

Além disso, segundo Astrini, ações que se limitam às respostas de emergência em situações de crise não são suficientes. Eventos extremos como esse — cada vez mais comuns por causa das mudanças climáticas — não podem mais ser tratados como “imprevistos”.

Embora nem sempre seja possível prever com precisão a intensidade de um evento extremo, já sabemos que eles se tornarão mais frequentes — e quais as medidas que precisam ser tomadas para nos adaptarmos a eles, afirma o especialista.

Modelos climáticos preveem há décadas um aumento de chuvas extremas no sul da América do Sul, incluindo toda a bacia do Prata (formada pelos rios Paraná e Uruguai), lembra Astrini.

“O maior problema que a gente enfrenta neste momento não é a previsão, é a aceitação”, afirma Astrini. “A gente precisa aceitar que, infelizmente, esse é o novo normal. Mas não basta aceitar pacificamente, é preciso aceitar e tomar atitudes.”

“Todo ano o governo do Rio Grande do Sul fica extremamente espantado que as chuvas são intensas. O governo do Rio de Janeiro fica super surpreso quando acontece em Petrópolis. É uma surpresa em São Sebastião (SP), no norte de Minas Gerais, em Recife (PE), no sul da Bahia. Só que acontece que já faz nove anos consecutivos que as médias de temperatura do planeta são as mais quentes já registradas. Não tem mais surpresa. A gente precisa se preparar para isso”, afirma Astrini.

Dinheiro investido em prevenção evita tragédias, diz Astrini (Diego Vara / Reuters)

Mitigação, adaptação e redução de danos

Astrini explica que existem três tipos de resposta possíveis diante da crise climática: a mitigação das causas, a adaptação em preparação para as consequências e a redução de danos diante das tragédias.

“Mitigação é quando você ataca o problema: é quando você interrompe o desmatamento, quando você tira uma termoelétrica de operação, quando substitui uma fonte poluente por uma fonte renovável”, afirma o especialista.

“A adaptação é quando o problema vai acontecer e você começa a adaptar principalmente as populações mais vulneráveis ao problema. Por exemplo, quando tira as populações da área de risco, quando dá mais assistência para um pequeno agricultor lidar com uma seca.”

As ações também são necessárias contra problemas que não necessariamente são causados pelo aquecimento global, embora agravados por ele, explica Astrini.

“Adaptação é também quando você reforça a rede de saúde, porque vão aumentar os casos de dengue, porque o ciclo de reprodução do mosquito vai ficar mais longo por causa de chuvas desproporcionais e do calor prolongado.”

Já lidar com as perdas e reduzir os danos é promover as respostas emergenciais às tragédias.

“Perdas e danos é o que se faz normalmente: desbarrancou, você vai procurar sobreviventes, vai construir casas”, diz Astrini. O problema, na visão do especialista, é que as ações tomadas por autoridades federais, estaduais e municípais tendem a se concentrar apenas nesse terceiro estágio de resposta.

“O pessoal só age quando já está no nível da desgraça”, diz Astrini.

“O dinheiro investido na primeira camada vale muito mais, porque ele evita a adaptação e evita o desastre.”

Ações que estão sendo tomadas tanto pelo governo federal quanto pelo governo estadual e pelos municípios no caso das chuvas no Rio Grande do Sul — alertas da Defesa Civil, evacuação de pessoas de áreas de emergência, restabelecimento de serviços etc — se encaixam no terceiro tipo.

Após a região ser atingida por um ciclone em setembro do ano passado, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional repassou R$ 82 milhões para o governo do Estado e outros R$ 243 milhões aos municípios gaúchos para lidar com a crise. Segundo reportagem da CNN Brasil, a maior parte do dinheiro foi usada em ações emergenciais, como compra de mantimentos e desobstrução de estradas.

“A gente pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder do Observatório do Clima.

Embora o aquecimento global seja um problema em escala mundial, ações de mitigação não são responsabilidade apenas de entidades internacionais e governos nacionais. Elas podem — e precisam — ser alvo também dos governos locais, diz Astrini.

“A mitigação é uma agenda de responsabilidade, não de ganho político. Vou pegar um exemplo aqui no Cerrado, que bateu o recorde de desmatamento nesse último período: mais de 60% de aumento de agosto do ano passado para cá. E quem dá as autorizações de desmatamento são os governos estaduais”, diz ele.

“E há vários outros exemplos, como legislações de licenciamento ambiental mais frouxas nos Estados, a responsabilidade com o saneamento básico, com a transição energética.”

O governo do Rio Grande do Sul não respondeu inicialmente ao pedido de informações sobre ações de mitigação e adaptação da BBC News Brasil. O governador Eduardo Leite (PSDB) tem dado atualizações diárias sobre as medidas emergenciais tomadas no Estado, que incluem alertas e remoção das pessoas das áreas de risco.

Após a publicação desta reportagem, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado enviou nota em que "reforça a necessidade de adaptação para garantir a sobrevivência na Terra" e afirma que as ações de mitigação, adaptação e resiliência são parte do programa ProClima2050, lançado em 2023.

O programa, diz a pasta, criou o Gabinete de Crise Climática, "que tem como principal função conectar as secretarias de Estado, instituições e pesquisadores no monitoramento e implementação de ações práticas de resposta à crise do clima".

Segundo a secretaria, entre as medidas em andamento estão "a contratação de serviço de radar meteorológico pela Defesa Civil; melhorias na Sala de Situação, responsável pelo monitoramento das chuvas e dos níveis dos rios; e a implementação do roadmap climático dos municípios, que mapeará as ações relacionadas ao clima em esfera municipal".

Chuvas foram as piores já registradas no Estado (Reuters)

‘Deputados e senadores também são responsáveis’

Astrini diz ainda que é preciso lembrar da responsabilidade do Congresso em relação à situação climática que leva à tragédias como a sofrida pelo RS neste momento.

"Deputados trabalham dia e noite para destruir a legislação ambiental do Brasil com afinco. Neste momento estão querendo acabar com a Lei de Licenciamento Ambiental, querem acabar com a reserva legal na Amazônia, querem acabar com as reservas indígenas”, diz Astrini.

Ele se refere a um um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, permitindo que Estados e Municípios determinem os projetos que precisam ou não fazer uma análise de impacto, entre outras medidas.

Os defensores do PL argumentam que ele “diminuirá a burocracia” e por isso facilitaria o desenvolvimento econômico.

Mas Astrini diz que o projeto não só não resolve o problema da burocracia como pode comprometer metas de desenvolvimento sustentável.

“A gente nunca teve um Congresso tão agressivo nesse esforço para desmontar a legislação ambiental no Brasil”, afirma.

Deputados e senadores contrários a pautas importantes para ambientalistas argumentam que a legislação ambiental atrapalha o desenvolvimento econômico e, em alguns casos, negam dados científicos sobre o aquecimento global ou sobre desmatamento no Brasil.

“Tem dois momentos em que o Congresso ajuda o Brasil na área ambiental: no recesso do meio do ano e no recesso do final”, diz Astrini.

Para Astrini, o governo federal vem falhando na disputa com os deputados e senadores pelas pautas ambientais, embora tenha um bom projeto para a área.

Ele cita, por exemplo, o fato de a bancada governista ter sido liberada para votar em qualquer sentido (em vez de receber a orientação para votar contra) o marco temporal para as terras indígenas.

“A gente nunca teve um Ministério do Meio Ambiente com tanto apoio no governo. É a primeira vez que um presidente fala em desmatamento zero e tolerância zero para desmatadores. Você tem um ministro da Economia que faz conversas sobre o meio ambiente, um Ministério dos Povos Indígenas... Mas mesmo assim as coisas não estão andando como deveriam”, afirma.

Além na tragédia no Sul, há outras notícias negativas na área. O Norte registra número recorde de queimadas de janeiro a maio deste enquanto a greve de servidores dos dois principais órgãos de fiscalização ambiental do país —Ibama e ICMBio— já dura mais de 100 dias.

Para o especialista, não se trata apenas de uma questão de orçamento mais robusto para ministérios da área —que também é importante — mas da capacidade de integrar essa visão em todos os setores.

“Quem causa o problema de emissões do Brasil? São os atores no setor do Ministério da Agricultura. E no Ministério das Minas e Energia. São esses ministérios que têm que ter programas e investimentos para diminuir as emissões de seus setores”, afirma Astrini. “O Ministério do Ambiente pode multar uma área que já foi desmatada, mas para as ações de mitigação você precisa da ação de todos os agentes.”

A BBC procurou o governo federal para falar sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

O governo, que apesar de não ter maioria no Congresso conseguiu aprovar agendas suas como o novo arcabouço fiscal, não tem “comprado a briga” nas pautas ambientais, opina Astrini.

No caso do marco temporal para as terras indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até tentou barrar a aprovação da lei que limita a demarcação, mas seu veto foi derrubado pelo Congresso.

A tese do marco temporal é de que apenas áreas ocupadas por indígenas em outubro de 1988, momento em que a Constituição Federal foi promulgada, poderiam ser demarcadas.

Movimentos indígenas questionam a tese porque havia terras que, naquele momento, não eram ocupadas porque seus habitantes originários haviam sido expulsos por invasores. Já os ruralistas alegam que não estabelecer um marco temporal criava insegurança jurídica.

Além de um direito dos povos originários, a demarcação de terras indígenas é considerada por ambientalistas e pesquisadores uma das principais formas de preservação da mata nativa brasileira — hoje as reservas impedem o desmatamento de diversas áreas cujo entorno foi devastado.

Astrini também critica o fato de pautas ambientais terem entrado no cabo de guerra entre o Supremo e o Legislativo, virando parte de uma disputa de poder mais do que uma discussão sobre políticas públicas.

O Senado e Câmara têm entrado em rota de colisão com o STF em diversos temas, em uma disputa sobre os limites de cada poder.

A questão do marco temporal, inclusive, só teve a sua votação acelerada como resposta da bancada ruralista a uma decisão do STF de 2023.

Na época, a Corte rejeitou a tese do marco, que era baseada em uma situação jurídica ambígua. Logo em seguida o Congresso aprovou uma nova legislação determinando a existência de um marco temporal.

“Em algumas áreas, como essa do marco temporal, o Congresso tem usado a questão para atacar os indígenas e o Supremo.”

Além das decisões recentes tomadas pela maioria conservadora do Congresso e de projetos em tramitação, Astrini critica a postura pública de deputados e senadores em relação a temas ambientais.

“São os homens privilegiados, com espaço, que falam com seus eleitores e formam opinião pública. Eles não cansam de repetir que essa coisa de meio ambiente, de regra ambiental, é uma besteira”, diz Astrini. “Mas aí as consequências chegam e a responsabilidade é de quem?”

Para o secretário-executico do OC, esses parlamentares "incentivam quem quer desrespeitar a leis ambientais e prejudicam quem quer fazer certo”. “Então eles têm enorme responsabilidade por situações como essa (no Rio Grande do Sul) e têm que ser cobrados por isso.”

Letícia Mori, Jornalista, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 07.05.24

quarta-feira, 8 de maio de 2024

“Pomposo” e “arrogante”, disse a atriz pornô que Trump subornou em troca de silêncio, depõe no julgamento criminal contra o ex-presidente

Stormy Daniels descreveu detalhadamente o encontro sexual com o republicano, ocorrido em 2006, embora o pagamento pelo seu silêncio tenha ocorrido uma década depois, no final da campanha eleitoral que levou o conservador à presidência.

Donald Trump cumprimenta jornalistas com o punho erguido no corredor que dá acesso à sala, esta terça-feira em Nova Iorque. (David Dee Delgado (Reuters)

Stormy Daniels, cuja história de um encontro sexual com Donald Trump em 2006 está na origem do primeiro julgamento criminal contra um ex-presidente dos EUA , investigou esta terça-feira, perante um tribunal de Manhattan, detalhes obscenos sobre uma alegada relação extraconjugal que o republicano sempre negou. . O depoimento da atriz pornográfica, que nas vésperas das eleições de 2016 recebeu 130 mil dólares (121 mil euros) de Michael Cohen, advogado pessoal de Trump, em troca do seu silêncio, é o ponto alto da terceira semana de julgamento, depois de um dia, Segunda-feira, marcada pela apresentação de uma dezena de cheques relativos ao pagamento e pela nova multa por desacato aplicada ao arguido .

Sob juramento, Daniels descreveu o relacionamento detalhadamente: como o sexo com Trump a deixou confusa, como se o quarto estivesse girando, enquanto ela se perguntava como havia acabado seminua em um hotel em Lake Tahoe, Nevada, com quem estava então uma estrela de reality show. Trump olhou para frente quando a testemunha entrou na sala, depois sussurrou para seus advogados e desviou a cabeça do depoimento enquanto ela testemunhava. Sem que a defesa tivesse oportunidade de interrogá-la, a sessão foi suspensa para o intervalo para almoço após o depoimento apressado, por vezes tenso, da mulher.

Daniels também contou como Trump sugeriu que ela participasse de seu reality show, O Aprendiz —seu trampolim para dar o salto para a política— , e a impressão que o então magnata lhe causou: um ser “pomposo” e “arrogante”. O encontro teria ocorrido em 2006, mas só 10 anos depois, na reta final da campanha eleitoral que o levou à Casa Branca, é que, diante da ameaça da mulher de contar a história, a máquina da censura - orquestrada desde o início - menos de um ano antes por Trump, Cohen e o editor do tablóide David Pecker para silenciar qualquer informação potencialmente prejudicial contra os interesses eleitorais do Republicano - foi novamente posta em acção. Isto, além de pagar a Stormy Daniels pelo seu silêncio, também silenciou duas outras mulheres.

Daniels afirmou que não foi motivado por dinheiro e por isso não negociou o acordo de pagamento. Finalmente, recebeu 130 mil dólares, cujo registo irregular nas contas da Organização Trump é o verdadeiro cerne do caso. As mensagens de texto entre seu representante na época e o editor Pecker demonstram o contrário, pois ambos entraram em uma negociação semelhante a um leilão para aumentar o valor. Quando o editor do National Enquirer , amigo de Trump, não quis licitar mais, Cohen acabou se encarregando da negociação e do pagamento. A falsificação de registros comerciais para encobrir o reembolso de dinheiro de Trump a Cohen – ele devolveu um total de US$ 420 mil: o valor pago a Daniels, mais impostos e um extra generoso – também é fundamental para o caso, já que foi registrado como “despesas legais ”. Os procuradores consideram que ele violou completamente as leis de financiamento eleitoral, uma vez que o objetivo não era outro senão evitar um escândalo prejudicial aos interesses políticos do republicano .

Depois de ter sido avisado pelo juiz de que será enviado para a prisão se continuar a criticar juízes e testemunhas, Trump, que aproveita as suas entradas e saídas do tribunal criminal de Manhattan para fazer proclamações, dirigiu-se esta terça-feira aos jornalistas a partir do corralito metálico vedado. grades - quase uma metáfora para grades - habilitadas como corredor de entrada da sala, para não responder o que lhe perguntavam e, em vez disso, descrever o julgamento do caso Stormy Daniels , o primeiro dos quatro processos criminais que enfrenta, como “injusto, muito injusto”, como vem fazendo desde que foi acusado. Por menos de três minutos – em outros dias ele prolonga seus discursos por muito mais tempo – ele não respondeu às perguntas dos jornalistas sobre por que ele havia excluído uma mensagem de sua plataforma Truth Social esta manhã.

De manhã cedo, Trump publicou uma mensagem na sua rede social num tom marcadamente irritado, dizendo que tinha acabado de saber da chegada de uma testemunha – Stormy Daniels? – e que os seus advogados “não tiveram tempo” para se prepararem. Em 30 minutos, ele excluiu a postagem, provavelmente porque arriscou que os promotores dissessem que ele violou novamente a ordem de silêncio, que o proíbe de atacar testemunhas e outras pessoas ligadas ao julgamento. O candidato republicano à reeleição foi multado duas vezes, num total de US$ 10 mil, por violar a ordem de silêncio imposta pelo juiz Juan Merchan para impedi-lo de criticar as pessoas envolvidas no processo. Apenas o próprio juiz e o promotor de Manhattan, Alvin Bragg, que investigou o caso, estão expostos às suas injúrias.

Depois de um dia, segunda-feira, concentrado na análise das dezenas de cheques para reembolso do dinheiro adiantado por Cohen a Daniels, Trump, fiel ao seu costume, lançou bolas ao ar em vez de responder às perguntas dos informadores no animado passeio que forma cada momento em que você entra e sai da sala. “O país está em chamas. Há protestos em todo o país. Eu nunca vi nada assim. “Muitas cerimónias de formatura estão a ser canceladas, como sabem, a Columbia está a cancelar muitas delas, e temos um presidente que simplesmente se recusa a falar porque não pode falar”, trovejou o republicano, que já se manifestou a favor da repressão dos protestos. . dos campi em solidariedade com Gaza .

Trump também rejeitou a hipotética falsificação de lançamentos contábeis para encobrir o pagamento irregular à atriz. “Algumas das declarações feitas sobre isso são notícias falsas. Ouvimos dizer que os pagamentos de despesas a advogados são despesas legais. Você paga pagamentos de despesas de advogado. Não colocamos como despesas de construção. A compra de gesso, as despesas elétricas... As despesas legais que pagamos foram registradas como despesas legais. Você não pode dizer mais nada. Acho que você não precisa escrever nada. Mas incorremos em despesas legais”, explicou ele com sua eloquência muito limitada.

Em relação à ordem de silêncio imposta pelo juiz, o réu aproveitou um comentário da rede ultraconservadora Fox: “Então a Fox News… disse que a ordem de silêncio é inconstitucional, o que é claro que é. A ordem de silêncio é inconstitucional. Então, com tudo isso, eles não têm sentido. Todos os juristas que vejo – talvez haja alguém por aí, algum maluco [que pensa o contrário] – mas praticamente todos que vejo disseram que não há absolutamente nenhum caso, é um caso que não deveria ter sido arquivado.”

Trump voltou a acusar o seu rival democrata em Novembro próximo, o presidente Joe Biden, de instigar uma acção judicial contra ele . “Porque sou o número um da turma. Tudo isso vem da Casa Branca e do corrupto Joe Biden; É um ataque ao seu adversário político que não ocorreu neste país. Acontece em países do terceiro mundo, mas não neste país. “É uma pena”, concluiu.

Maria Antonia Sánchez Vallejo,  Jornalista, de Nova York (NY), em 07.05.24 para o EL PAÍS. 

O juiz avisa Trump que pode prendê-lo se continuar a descumprir suas ordens

O ex-presidente cometeu desacato pela décima vez ao questionar em entrevista a imparcialidade do júri no ‘caso Stormy Daniels’

Donald Trump aguardando o início da sua sessão de julgamento em Nova Iorque. (Júlia Nikhinson - Reuters)

Silenciar Donald Trump não é fácil e menos ainda com multas de mil dólares. O ex-presidente dos Estados Unidos tem uma fortuna de vários bilhões de dólares, por isso as sanções financeiras por desacato o afetam pouco. Trump desobedeceu repetidamente às ordens do juiz Juan Merchan de não insultar ou questionar as partes no julgamento criminal que está a sofrer em Nova Iorque. Esta segunda-feira, depois de cometer desacato pela décima vez, o juiz fez um forte alerta: se continuar a descumprir as suas ordens, ele pode mandá-lo para a cadeia, mesmo que seja “a última coisa” que ele gostaria de fazer .

“O réu fica avisado que, se apropriado e justificado, futuras violações de suas ordens legais serão puníveis com prisão”, diz uma decisão de cinco páginas divulgada pelo juiz.

Na sua resolução, Merchan lembra que o desacato é punível com multa não superior a 1.000 dólares, prisão não superior a 30 dias, ou ambas as penas, a critério do tribunal. “No entanto, dado que esta é agora a décima vez que este tribunal considera o réu por desacato criminal”, continua, “é evidente que as multas pecuniárias não foram e não serão suficientes para dissuadir o réu de violar as ordens legais deste tribunal. tribunal".

Durante a sessão de julgamento, Merchan emitiu o aviso diretamente a Trump – sentado no banco dos réus – que abanou a cabeça e cruzou os braços. “Parece que multas de US$ 1.000 não servem como dissuasão. Portanto, a partir de agora, este tribunal terá de considerar uma pena de prisão”, disse o juiz antes de os jurados entrarem na sala, segundo a Associated Press. As declarações de Trump, acrescentou o juiz, “ameaçam interferir na administração adequada da justiça e constituem um ataque direto ao Estado de direito”, argumentou. “Não posso permitir que isso continue”, disse ele, mesmo reconhecendo que é a última coisa que gostaria de fazer.

“Sr. Trump, é importante que você entenda que a última coisa que quero fazer é colocá-lo na prisão. “Você é o ex-presidente dos Estados Unidos e possivelmente também o próximo presidente”, disse-lhe o juiz esta segunda-feira.

“A magnitude desta decisão não passou despercebida para mim, mas no final das contas tenho um trabalho a fazer. Por isso, por mais que não queira impor uma pena de prisão, quero que compreendam que o farei se for necessário e apropriado", continuou, salientando que parte do seu trabalho é "proteger a dignidade" do poder judicial. sistema.

O juiz já fez um primeiro alerta sobre a possibilidade de prender Trump na semana passada, quando lhe impôs nove multas de mil dólares por desacato a nove comentários nas redes sociais que, na sua opinião, violaram as suas ordens de silêncio ou silêncio para evitar criticar jurados, testemunhas. e funcionários judiciais. Trump teve que excluir sete comentários em sua plataforma, Truth Social, e dois em seu site de campanha.

Nesta ocasião, os procuradores acusaram Trump de quatro novas violações das ordens de silêncio emitidas pelo juiz, mas a resolução indica que o desacato só é provado “além de qualquer dúvida razoável” numa das declarações, relativamente ao júri e à forma como foi selecionado. . “O arguido não só pôs em causa a integridade e, portanto, a legitimidade deste processo, mas mais uma vez levantou receios pela segurança dos jurados e dos seus entes queridos”, diz a resolução.

A violação ocorreu numa entrevista concedida em 22 de abril ao canal de televisão Real America's Voice, na qual Trump criticou a rapidez com que o júri foi escolhido e afirmou que este estava repleto de democratas. “Esse júri foi escolhido muito rapidamente: 95% democratas”, disse Trump então. “A área é de maioria democrata. Você pensa nisso como uma área puramente democrática. “É uma situação muito injusta”, disse ele.

Trump é acusado de 34 acusações de falsificação de registos comerciais relacionadas com pagamentos feitos para abafar histórias potencialmente embaraçosas. Os promotores dizem que a empresa de Trump, a Trump Organization, reembolsou Michael Cohen, ex-advogado do ex-presidente, por pagamentos à atriz pornô Stormy Daniels e deu a Cohen bônus e pagamentos adicionais. Os promotores alegam que essas transações foram falsamente registradas nos registros da empresa como despesas legais.

Cohen, que se declarou culpado de crimes relacionados com os pagamentos, é agora a principal testemunha da acusação, numa altura em que o julgamento entra na sua terceira semana de depoimentos. Resta saber também se o próprio Trump, que afirma ser inocente, finalmente se declara, como garantiu que faria.

Entre as testemunhas que testemunharam até agora está um editor de tablóide e amigo de Trump que comprou os direitos de várias histórias sórdidas sobre o então candidato presidencial para evitar que viessem à luz. Também um advogado de Los Angeles que negociou acordos para silenciar Daniels e a modelo da Playboy Karen McDougal.

Miguel Jiménez,  jornalista, de Washington (DC), em 06. 05.24 para o EL PAÍS

Paz, uma palavra em declínio na Rússia

Os líderes russos não querem o fim do conflito, como um compromisso, mas a vitória na Ucrânia como a imposição da sua própria agenda

Soldados russos, durante o ensaio geral do desfile militar do Dia da Vitória na Praça Vermelha de Moscou, neste domingo. (Maxim Shipenkov - EFE)

A palavra paz foi um elemento-chave no discurso oficial da União Soviética e respondeu a um sentimento sincero entre os habitantes daquele país, que havia perdido dezenas de milhões de vidas após ser invadido por Hitler em 1941. A palavra paz estava no na vida privada e na vida pública dos cidadãos soviéticos que, nos feriados, a brindavam nas suas casas com os seus familiares e amigos e que, por ocasião do Dia Internacional do Trabalho, Primeiro de Maio, saíam às ruas após o slogan de “ Paz, Trabalho, Maio” (nessa ordem).

Mesmo após a desintegração da URSS em 1991 , ao discutir acontecimentos negativos com um russo, um ucraniano ou um bielorrusso, aqueles eslavos que carregavam a memória ou a história da guerra provavelmente cortariam o seu interlocutor com a exclamação: "Com para que haja não há guerra!”, indicando assim que esta era a pior coisa que poderia acontecer a alguém, muito pior que qualquer infortúnio.

No uso soviético da palavra paz houve certamente nuances e os representantes oficiais acrescentaram uma dose de oportunismo à rejeição do horror deixado pela guerra. Oficializado em instituições como o Comitê de Paz – em slogans e retóricas – serviu para justificar a participação da URSS na corrida armamentista com os Estados Unidos, que foi apresentada como um instrumento para alcançar um estado de paz, entendido como meta indiscutível . O desarmamento promovido pelos presidentes da Rússia, Mikhail Gorbachev , e dos Estados Unidos, Ronald Reagan, na década de oitenta, foi precedido por massivas manifestações pacifistas internacionais contra a instalação de mísseis na Europa e os acordos alcançados por esses líderes foram passos em direção à paz .

Hoje a situação é diferente. A palavra paz e o seu conteúdo têm sido desvalorizados num processo de degradação global que não afecta apenas a Rússia, país onde o fenómeno tem características particulares relacionadas com a guerra na Ucrânia. Os líderes russos não querem a paz, como um compromisso, mas a vitória, como a imposição da sua própria agenda. A partir de 2022, os russos poderão ser presos e condenados a penas até sete anos por “desacreditarem o exército” , um crime de interpretação ambígua em que podem incorrer aqueles que se declaram a favor da paz. Por este conceito, 4.440 pessoas foram multadas em 2022 e outras 2.361 em 2023, segundo estatísticas judiciais. Nesse segundo ano de guerra, 50 pessoas foram julgadas criminalmente e nove delas foram condenadas a dois anos de prisão.

O medo da paz chega ao absurdo. O ativista Konstantin Goldman foi preso em abril de 2022 por permanecer nos jardins anexos ao Kremlin com um volume de Guerra e Paz, de Leo Tolstoy, e em dezembro de 2023 a polícia pediu a uma livraria de São Petersburgo que retirasse uma inscrição com a palavra paz preso na janela por mais de um ano. Portanto, não é surpreendente que, depois de aumentar a consciência sobre os riscos da palavra paz, nas marchas populares por ocasião do Primeiro de Maio deste ano na Rússia, o termo tenha desaparecido do slogan clássico, “Paz, Trabalho, Maio”, que foi reduzido para “Trabalho, maio”. Em diferentes locais, em vez de paz, apareceu a palavra krut (traduzida nesse contexto como cool, super ou cool), segundo jornalistas e espectadores que acompanharam o dia ou publicaram fotografias de acontecimentos em declínio. Desde 2022, as autoridades russas têm sido evasivas ao receber mensagens de desejo de paz, por exemplo, para o Ano Novo. Um amigo russo diz que quando um funcionário com quem ele mantinha um relacionamento o parabenizou pelo seu aniversário, ele respondeu: “É melhor você me desejar paz”. Depois de um silêncio, o oficial acrescentou secamente: “Paz, só depois da vitória!”

Mesmo nas igrejas ortodoxas da Rússia hoje eles oram pela vitória, o que aparece em uma nova oração divulgada pelo Patriarca Kirill em homenagem à Santa Rússia. E os sacerdotes que ousaram substituir a palavra vitória pela paz sofrem represálias e são afastados dos serviços religiosos. Pouco depois da invasão da Ucrânia, o Presidente Vladimir Putin deixou claro que não quer a paz, mesmo como conselho. Isto foi vivido por quatro altos funcionários de vários institutos de política internacional da Academia Russa de Ciências, que estavam entre os 126 especialistas nacionais e estrangeiros que assinaram uma carta pública a favor da cessação das hostilidades, ou seja, a favor da paz. Pela sua assinatura, Alexei Gromiko, diretor do Instituto Europa; Alexandr Panov, ex-vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia; Sergei Rogov, diretor acadêmico do Instituto EUA-Canadá; e Alexandr Nikitin, diretor do Centro de Segurança Euro-Atlântico do MGIMO [Instituto Estatal de Relações Internacionais], foram excluídos de um órgão consultivo, o Conselho de Segurança da Rússia, por decreto de Putin.

Os quatro respeitados especialistas não eram dissidentes, mas o seu instinto natural era procurar uma solução pacífica para o conflito ucraniano; Ou seja, agiram no espírito que emergiu da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, o Kremlin permanece impassível face à atroz agressividade verbal de pessoas como o empresário Konstantin Maloféev e o filósofo Alexandr Dugin, ou face à retórica incendiária dos propagandistas televisivos que exigem a aniquilação do inimigo. A guerra na Ucrânia continua a gozar de amplo apoio social na Rússia. Em janeiro deste ano, 77% dos russos apoiavam (total ou parcialmente) a ação das suas Forças Armadas e apenas 16% eram contra, segundo um inquérito do centro Levada. 52% eram a favor de conversações de paz e 40% eram a favor da continuação da acção militar. Dados anteriores indicavam que, a grande maioria, partidária da paz, a desejava sem abrir mão das conquistas territoriais.

Agora que se comemora o 79º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, seria desejável voltar às lições dessa guerra sem esperar novos horrores e que a paz não fosse sinónimo de vitória a qualquer preço, como encenam os líderes russos após deformando e privatizando a dor e os sacrifícios que a Rússia partilhou com a Ucrânia e outras repúblicas da União Soviética.

Pilar Bonet, a  autora deste artigo, é jornalista e analista. Durante 34 anos foi correspondente do EL PAÍS na URSS, na Rússia e no espaço pós-soviético. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 08.05.24

Enchentes mergulham Porto Alegre no caos: “Tem famílias que estão há três dias no telhado”

As equipes de resgate, que já contabilizam 95 mortos e 131 desaparecidos, temem que tudo se complique com a chegada de mais chuva e frio esta semana



Aeroporto de Porto Alegre, neste dia 7 de maio. (Wesley Santos / Reuters)

A tempestade de chuvas fortes e persistentes que atinge o estado brasileiro do Rio Grande do Sul deixou um panorama devastador em sua capital, Porto Alegre, uma cidade próspera de 1,3 milhão de habitantes que nunca viu nada parecido. O rio Guaíba inundou alguns bairros mais centrais, obrigando ao corte de pontes e estradas e ao encerramento do aeroporto pelo menos até ao final de maio. Dezenas de milhares de moradores deste estado brasileiro que faz fronteira com Argentina e Uruguai não têm eletricidade nem água potável. Existe até o risco de escassez de alimentos. “O que você vê na televisão não é nem metade do que está acontecendo. “Este é o nosso Katrina, o nosso tsunami , uma catástrofe enorme”, Fernanda de Carvalho, uma jovem que, como muitos outros moradores da capital, tem passado dias sem pregar o olho, ajudando no trabalho de socorro, diz Fernanda de Carvalho, à beira das lágrimas, do resgate de Porto Alegre.


Segundo o último balanço oficial da Defesa Civil, até a tarde desta terça-feira, em todo o estado do Rio Grande do Sul havia 95 mortos, 131 desaparecidos e 372 feridos. Além disso, há 207 mil pessoas fora de casa. Não chove há dois dias, mas a situação não melhora. O caudal dos rios mantém-se estável ou continua a subir ligeiramente e agora o temor é a chegada de uma nova frente fria que previsivelmente trará mais chuvas e uma descida drástica das temperaturas.


De Carvalho, analista de comunicação, mora num bairro que não é dos mais afetados, por isso aproveitou a sua situação relativamente segura para arregaçar as mangas e ajudar. Participe de um grupo de WhatsApp em que 400 pessoas trocam informações sobre pessoas isoladas que precisam ser resgatadas. “Tem famílias que estão dois ou três dias abrigadas no telhado, sem comida, sem remédio (…) num bairro de Canoas [cidade próxima] temos uma casa com 13 pessoas sem água potável”, diz. A sua missão é contrastar a informação que chega – lamenta que abunde a desinformação – e movimentar contactos, porque há sempre alguém que conhece alguém, desde um militar com botes salva-vidas até indivíduos com pequenas embarcações. Recentemente ela e seus amigos conseguiram trazer 15 jet skis de uma cidade costeira.


As equipes de Defesa Civil do Governo do Rio Grande do Sul fazem o que podem, mas não conseguem dar conta. Em Porto Alegre a situação começou a ficar dramática a partir de sexta-feira, com a enchente do rio Guaíba, a pior desde 1941. O rio atingiu 5,33 metros de altura, bem acima dos três metros que marcam o limite a partir do qual a cidade pode inundar. A tradução é visível a partir de uma vista aérea, como mostram as imagens aéreas: boa parte da cidade literalmente submersa, incluindo edifícios simbólicos como o Mercado Municipal ou os seus estádios de futebol.


Na segunda-feira, as autoridades locais evacuaram os bairros Menino Deus e Cidade Baixa, adjacentes ao centro histórico. De Carvalho estava no local ajudando nos resgates com sua motocicleta, mas teve que deixar o local com medo de ficar preso.


Só na cidade de Porto Alegre são 9,8 mil pessoas abrigadas em escolas, centros esportivos ou shopping centers. Muitos outros procuraram abrigo temporário em casas de amigos ou familiares. Longe de melhorar com o passar dos dias, o número de pessoas despejadas continua a aumentar. Nesta terça-feira, o prefeito de Eldorado do Sul, cidade vizinha a Porto Alegre, afirmou que toda a sua população deve ser evacuada: mais de 40 mil pessoas que não têm para onde ir.


A situação não é apenas desesperadora para aqueles que perderam a sua casa ou tiveram que abandoná-la temporariamente, mas também para os milhares de vizinhos que permanecem nas suas casas sem electricidade ou água, a grande maioria. Embora haja água por toda parte, paradoxalmente, em 85% da cidade não sai uma gota das torneiras porque as estações de bombeamento estão danificadas.


Um porta-aviões da Marinha do Brasil (o maior da América Latina) carregado com duas estações móveis de tratamento de água, com capacidade para produzir 20 mil litros de água potável por hora, deverá chegar a Porto Alegre na quarta-feira.


As comunicações em todo o Rio Grande do Sul são muito precárias e a gota d’água foi o fechamento do aeroporto de Porto Alegre. As companhias começaram a cancelar voos na sexta-feira, dia 3, quando a pista começou a inundar, mas a empresa que administra o aeroporto jogou a toalha definitivamente na segunda-feira, com o terminal totalmente inundado. Numa primeira fase, o aeródromo estará encerrado “por tempo indeterminado”, embora a concessionária espere poder reabri-lo por volta de 30 de maio. Enquanto isso, a pequena base aérea de Canoas, próxima à capital, é utilizada para receber ajudas que chegam de todo o Brasil.


Os moradores de Porto Alegre estão com um olho na água marrom que inunda suas ruas e outro no céu. A chuva deu uma trégua nos últimos dois dias, mas no meio da semana a instabilidade deverá voltar e um novo inimigo aparecerá: o frio. As temperaturas podem cair entre quatro e oito graus no sudoeste do estado e ficar em torno de 12 graus Celsius em Porto Alegre. As autoridades temem que as pessoas despejadas que perderam as suas casas e mal têm comida e água sofram de hipotermia.

Publicado originalmente po EL PAÍS

Como justificar 53 bilhões em emendas parlamentares?

O presidencialismo é vulnerável à chantagem parlamentar – um problema não apenas brasileiro. Que tal mudar para o parlamentarismo, em que o chefe do Executivo tem a maioria necessária para governar?

Presidente da Câmara, Arthur Lira, teve um Carnaval especial no Rio, com contribuição de verba de emenda parlamentar (Foto: Wilson Dias/Agência Brasil)

Arthur Lira, o todo-poderoso chefão da Câmara dos Deputados, teve um Carnaval mais do que especial. No Sambódromo do Rio de Janeiro, ele desfilou pela Beija-Flor, que homenageou a cidade de Maceió, parte do "reino de Lira”. Para isso, o prefeito maceioense, João Henrique Caldas, conhecido como JHC, um amigo político de Lira, mandou 8 milhões de reais para a escola de samba carioca. Parte dessa grana, segundo comunicado da prefeitura, viria de emendas parlamentares.

As emendas parlamentares são recursos aplicados conforme a vontade de cada parlamentar, privilegiando suas bases eleitorais. E tais emendas fazem a festa no "reino de Lira”. Para o atual ano de 2024, o Congresso aprovou o valor recorde de 53 bilhões de reais em emendas parlamentares, um grande aumento sobre os já bem gordos 37,3 bilhões de reais do ano passado. O aumento do valor reflete o poder cada vez maior do Congresso sobre o orçamento. Em nenhum outro país do mundo, os parlamentares conseguem interferir tanto no orçamento como aqui no Brasil.

As emendas se fortaleceram em 2015, quando a fraqueza do governo Dilma acordou a fome dos congressistas. Desde então, tal fome dos parlamentares só aumentou. Eles sabem que o presidente Lula precisa da cooperação do Congresso para conseguir realizar suas políticas – fato inerente do presidencialismo brasileiro. O que culminou no mensalão do governo Lula (2005) uma mesada paga a deputados para votarem a favor de projetos de interesse do Poder Executivo. Hoje, o governo procura garantir os votos de forma mais institucionalizada e legalizada.

Mas o problema, no fundo, continua o mesmo. Tanto o presidente quanto os parlamentares foram eleitos de forma direta pelo povo. A ideia era aplicar o sistema de freios e contrapesos, quer dizer: em uma divisão dos poderes, um poder fiscaliza o outro. Mas, na realidade, deixa o sistema vulnerável a bloqueios, que só se resolvem através de barganhas. Pois o partido do presidente não tem maioria no Congresso.

Vemos um cenário semelhante atualmente na Argentina, onde o novo presidente Javier Milei não tem uma maioria para transformar suas ideias libertárias em leis. Partiu, portanto, para a fase 2, que é o xingamento dos parlamentares como "traidores da pátria". E ameaça governar por plebiscitos. Só que eles não são vinculativos quando a iniciativa vem do presidente e não do Congresso. Assim, Milei pode logo virar um "pato manco".

Impasse semelhante se vê nos Estados Unidos, onde partes do Partido Republicano no Congresso bloqueiam os pacotes de ajuda financeira do governo de Joe Biden à Ucrania, Israel, Palestina e Taiwan. Resta ao presidente Biden apenas fazer apelos. Brasil, Argentina e Estados Unidos – três exemplos que mostram como o presidencialismo dificulta a capacidade do Executivo de botar em prática suas políticas.

Diferente do parlamentarismo, em que a maioria do Parlamento elege o chefe do Executivo. Para manter o governo vivo, a maioria parlamentar precisa prevalecer. Pois quando ela se perde, o governo cai. Assim, garante-se que o governo tenha a maioria necessária para tocar o barco da governabilidade. 

Sei que a ideia de trocar o presidencialismo pelo parlamentarismo é um tema antigo no Brasil, discutido e votado há trinta anos, quando uma maioria optou pelo presidencialismo. Escuto muitas vezes que o parlamentarismo não funcionaria no Brasil, devido à má qualidade dos partidos, que, muitas vezes, não têm ideologia, mas seguem os lemas do fisiologismo. Quero dizer: as trocas de favores em detrimento do bem comum. 

 Se isso é verdade, me parece mais um argumento para o parlamentarismo. Pois só a disciplina exigida para manter a base governamental neste sistema pode enfraquecer o fisiologismo – que, no sistema do presidencialismo, corre solto. Ou, melhor dizendo: nestes tempos de Carnaval, samba solto na cara dos brasileiros.

Thomas Milz,  o autor deste artigo, saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos. Publicado originalmente por Deustche Welle Brasil, em 14.02.24

sexta-feira, 26 de abril de 2024

A nova batalha da reforma tributária

Com a alíquota de referência do novo imposto sobre bens e serviços enfim divulgada, parlamentares terão de ter ainda mais cuidado para impedir um aumento da carga tributária

O governo finalmente enviou ao Congresso o primeiro dos três projetos de lei que regulamentarão a reforma tributária sobre o consumo, promulgada no ano passado. Com a apresentação das regras gerais sobre o funcionamento dos impostos que incidirão sobre bens e serviços, o contribuinte finalmente saberá quanto, efetivamente, paga em impostos por cada item que adquire, tarefa impossível dado o cipoal de normas que caracterizam o atual sistema tributário.

Muitas das críticas que a iniciativa tem recebido são descabidas, a começar pela alíquota final do novo Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Da forma como o governo elaborou a proposta, ela ficará entre 25,7% e 27,3%, com média de 26,5%, o que renderia ao Brasil uma das alíquotas mais altas entre os países que adotam o modelo do IVA.

Ora, em primeiro lugar, a carga tributária sobre bens e serviços atual já é, em média, de 34,4%, considerando impostos federais, estaduais e municipais. A diferença é que o novo sistema vai proporcionar a recuperação de créditos ao longo da cadeia, o fim das cobranças “por dentro” e a não cumulatividade de impostos, fundamental para garantir competitividade à indústria nacional.

Tampouco são justas as reclamações sobre o tamanho do texto, que soma 360 páginas e 499 artigos. Uma mudança tão profunda quanto a proposta da reforma tributária aprovada pelo Congresso no ano passado não poderia ter um resultado diferente, considerando a necessidade de regulamentar os novos tributos e os regimes específicos para diversos setores econômicos.

Algo a ser elogiado é a reduzida lista de itens da cesta básica que terão direito à isenção de impostos federais. Pela proposta do governo, serão apenas 15 produtos – arroz, feijão, leite, café e açúcar, entre outros – que refletem o consumo dos mais pobres. Outros itens terão desconto de 60% no valor dos tributos, como carnes, peixes, massas e sucos.

Fato é que não há motivo razoável para manter a isenção da lista atual, com mais 700 produtos, entre eles bacalhau, salmão e nozes. A forma de devolução dos impostos pagos pelas famílias de baixa renda, por meio de descontos automáticos nas faturas de água, esgoto e energia elétrica, é uma medida acertada, que coloca o foco nos mais necessitados e desestimula furtos e ligações clandestinas.

Há, no entanto, muitos temas com potencial de gerar controvérsias e travar as discussões no Congresso. Um dos principais é o Imposto Seletivo, que incidirá sobre itens supostamente danosos à saúde e emissores de poluentes. Segundo propôs o governo, o tributo incidirá sobre cigarros, bebidas alcoólicas, refrigerantes, embarcações, aeronaves, veículos e bens minerais extraídos. O Executivo terá trabalho para manter a lista intacta, uma vez que muitos desses setores são conhecidos pelas excelentes relações que mantêm com os parlamentares.

Há pouco tempo para discutir a reforma no Congresso, e o governo terá de reforçar sua articulação política para garantir sua aprovação ainda neste ano, encurtado em razão das eleições municipais. Embora a proposta entre em vigor apenas em 2033, o período de transição será iniciado em 2026. Em 2025, no entanto, será preciso estabelecer normas infralegais que dependem deste e de outros dois projetos, ainda a serem enviados, que tratarão dos fundos regionais e do comitê gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a ser administrado por Estados e municípios.

Agora que a alíquota de referência do novo imposto foi finalmente divulgada, deputados e senadores terão de ter ainda mais cuidado na análise do texto. Como a reforma é neutra sob o ponto de vista arrecadatório, qualquer benesse adicional para um segmento específico, como a inclusão de novos alimentos na lista de itens isentos da cesta básica, aumentará o imposto pago pelos demais.

A diferença é que, na fase atual, o custo político dessas decisões recairá sobre os parlamentares, e não mais sobre o governo. Será um verdadeiro teste de fogo ao discurso oficial do Legislativo, que se diz contrário a qualquer medida de aumento de impostos.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.04.26

Mulheres reconhecem a velhice mais tarde que homens

De acordo com pesquisa liderada por cientista alemão, mulheres têm a percepção de que a velhice começa, em média, dois anos depois que os homens. Diferença na expectativa de vida e estigmas podem ser a explicação.

Estudo analisa como o sexo e o estado de saúde influenciam as diferenças na percepção da velhice (Foto: Neundorf/Kirchner-Media/picture alliance)

Um estudo publicado pela Psychology and Aging, revista da Associação Americana de Psicologia, traz uma outra percepção sobre a velhice. Segundo a pesquisa, para os adultos de meia-idade (40 a 60 anos) e mais velhos, ter 70 anos já não tem o mesmo significado que antigamente. Para eles, a velhice agora começa mais tarde. O aumento da expectativa de vida e o atraso no ato de se aposentar podem explicar essa mudança na percepção do público sobre a chamada terceira idade.

Em relação à forma como o gênero influencia, o estudo constatou que as mulheres consideram que a velhice começa dois anos mais tarde do que os homens – e esta percepção tem aumentado ao longo do tempo.

Isso pode estar relacionado ao fato de as mulheres geralmente viverem mais tempo e também enfrentarem mais estigmas à medida que envelhecem. Markus Wettstein, da Universidade Humboldt de Berlim, que liderou a investigação, diz que as mulheres podem definir a velhice mais tarde para se distanciarem das conotações negativas associadas a ela.

Em geral, de acordo com Wettstein e sua equipe, os adultos de hoje sentem que a velhice começa mais tarde do que as pessoas nascidas nas décadas anteriores.

"A expectativa de vida aumentou, o que pode contribuir para uma percepção mais tardia do início da velhice. Além disso, alguns aspectos da saúde melhoraram ao longo do tempo, de modo que pessoas de uma determinada idade que eram consideradas velhas no passado podem não ser mais hoje", diz Wettstein.

Duas décadas e meia de pesquisa

A equipe, composta por investigadores das universidades de Luxemburgo, Stanford (Estados Unidos) e Greifswald (Alemanha), examinou dados de 14.056 participantes no Inquérito Alemão sobre o Envelhecimento, um estudo que inclui pessoas residentes na Alemanha nascidas entre 1911 e 1974.

Os participantes responderam perguntas até oito vezes ao longo de 25 anos (1996-2021), enquanto tinham entre 40 e 100 anos. À medida que as primeiras gerações da pesquisa entravam na velhice, a equipe recrutava novos participantes (com idades entre 40 e 85 anos).

Por que jovens de antigamente pareciam mais velhos?

Embora os participantes tivessem que responder muitas perguntas, a principal era: "com que idade você descreveria alguém como velho?"

Assim, os pesquisadores descobriram que, em comparação com os participantes nascidos mais no cedo, os que nasceram mais tarde percebiam a velhice mais tardiamente.

Por exemplo, quando os participantes nascidos em 1911 tinham 65 anos, definiram o início da velhice aos 71 anos. Em contrapartida, quando os participantes nascidos em 1956 tinham os mesmos 65 anos, diziam que a velhice começava, em média, aos 74.

Os investigadores também descobriram que a tendência para perceber o início da velhice mais tarde diminuiu nos últimos anos.

"A tendência para adiar a velhice não é linear e pode não continuar necessariamente no futuro", conclui Wettstein.

Quanto mais velho você for, mais longe estará a velhice

Os pesquisadores também analisaram como a percepção dos participantes sobre a velhice mudava à medida que eles envelheciam

Segundo o estudo, a resposta dos participantes com 64 anos era, em média, a de que a velhice começava aos 74,7 anos. Mas, quando esses mesmos participantes chegaram aos 74 anos, eles passaram a dizer que a velhice começava aos 76,8 anos. Em média, a percepção do início da velhice aumentou aproximadamente um ano para cada quatro ou cinco anos de envelhecimento real.

Foi descoberto também que as pessoas que se sentiam mais solitárias e tinham pior saúde e acabavam se sentindo mais velhas. Elas afirmaram que a velhice começava mais cedo, em média, do que aquelas que se sentiam menos solitárias, que tinham a saúde melhor e, portanto, se sentiam mais jovens.

Para os pesquisadores, os resultados podem ter implicações sobre quando e como as pessoas se preparam para o seu próprio envelhecimento e como encaram os idosos em geral.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 24.04.24

Quando o estresse constante leva à depressão

Ao contrário do que ocorre na síndrome de burnout, ao invés de colapsarem, as pessoas com burnon continuam a correr em suas "rodas de hamster", o que pode causar depressão crônica por exaustão.

Trabalho, família, amigos são importantes, mas o estresse constante pode fazer mal á saúde (Foto: Ursula Deja / Fotolia)

Muitas pessoas parecem estar constantemente eletrificadas. Elas são apaixonadas por suas profissões; seus celulares são suas companhias constantes e elas sempre podem ser encontradas, à noite ou nos finais de semana. Elas gostam do trabalho, embora seus afazeres continuem acumulando cada vez mais. De um lado, os prazos; de outro, os problemas. Isso tudo além da família, crianças e amigos: eles querem tratar todos da maneira correta. Apesar desse ritmo frenético, ainda querem praticar esportes e comparecer a eventos.

Mas, permanecer o tempo todo "aceso" pode ser perigoso. O estresse constante, sem pausas reais, pode adoecer as pessoas. Essa sobrecarga crônica é descrita como um termo relativamente novo: burnon.

Diferenças entre burnon e burnout:

O termo burnon foi criado pelos psicólogos Timo Schiele e Bert te Wildt, da clínica psicossomática em Kloster Dießen, próximo a Munique, que oferece tratamento a pacientes com síndrome de burnout.

Os sintomas de burnout incluem exaustão, performance reduzida e cinismo – uma distância mental do trabalho.

No caso do burnon, os sintomas são diferentes, explica Timo Schiele à DW. "Ao contrário, as pessoas afetadas descrevem uma conexão demasiadamente próxima e entusiástica com seu trabalho, às vezes mais como uma super excitação. Isso fez com que surgisse a descrição da síndrome de burnon."

Sintomas de burnon

As pessoas afetadas possuem paixão pelo trabalho, mas o estresse constante gera tensões constantes. Muitos sofrem inicialmente de dores no pescoço, nas costas, dores de cabeça e bruxismo (ato de ranger os dentes).

A vida exaustiva em suas rodas de hamster os leva ao desespero. Eles perdem a esperança de melhorar suas condições, não conseguem mais se sentir felizes e questionam o sentido das coisas.

"Além das comorbidades psicológicas e doenças secundárias, como depressão, ansiedade ou vícios, também acreditamos que os afetados podem sofrer cada vez mais de fenômenos psicossomáticos, como pressão alta, e suas possíveis consequências", diz, Schiele. A pressão sanguínea alta aumenta significativamente o risco de ataques cardíacos e derrames. 

Causas mais comuns de burnon

Nossas vidas cotidianas estão cada vez mais frenéticas. O sucesso profissional e o reconhecimento social têm importância central. A competição intensa, as crises econômicas e os preços altos podem aumentar o estresse.

Até agora, existem mais dados sobre o burnout. A empresa alemã de seguros de saúde Provona registrou um aumento de 20% nos casos em 2023, em comparação com o ano anterior, sendo que um quinto dos trabalhadores teme adquirir a síndrome.

Qualquer pessoa que queira não apenas concluir vários afazeres em seu cotidiano frenético, mas também completá-los da melhor maneira possível, está especialmente propensa à síndrome de burnon. "Acreditamos que multas das pessoas afetadas possuem alto nível de motivação para realizar funções e se sentem mal ao cometer erros ou não fazer as coisas de maneira perfeita".

Segundo Schiele, essas pessoas pensam ter uma capacidade de ação reduzida devido a determinadas restrições. "Com frequência, vemos pessoas que impõem muitas restrições a si mesmas, por exemplo, através do perfeccionismo."

Como tratar o burnon

Para conseguir escapar da roda de hamster e da tensão crônica constante, é necessário, primeiramente, reconhecer o problema, diz o especialista.

"O primeiro passo no tratamento, como costuma ser o caso, é se tornar consciente do problema. As pessoas com síndrome de burnon com frequência aparentam estar funcionais, motivo pelo qual costumamos nos basear em relatos de familiares ou pessoas próximas. É também importante refletirmos sobre nossos próprios valores pessoais."

O estresse constante sem pausas reais pode levar pessoas ao desespero e à perda de esperança  (Foto: Pond5 Images/IMAGO)

Em particular quando as pessoas são apaixonadas pelo trabalho, elas tendem a negligenciar suas necessidades pessoais em meio ao cotidiano estressante.

"Se isso se torna uma condição permanente, ficamos cada vez mais insatisfeitos. Por isso, é importante parar para perguntar a si mesmo: 'O quão importante para mim são as coisas com as quais preencho minha vida diária? Estou usando minha energia nas áreas adequadas para mim?' Se a resposta for negativa, é porque está na hora de mudar algo e tentar ver quais espaços pequenos somos capazes de criar, interna e externamente. Este é, com frequência, um grande passo", diz Schiele.

Como reduzir o estresse constante

O tipo de relaxamento que é bom para cada pessoa depende das preferências individuais. Podem ser caminhadas, meditação ou ioga. O fundamental é desacelerar a vida diária e se acalmar.

Também faz sentido buscar ajuda profissional, como cuidados terapêuticos ou médicos.

A importância de se dar nome à doença

O burnout é considerado já há algum tempo como uma doença da moda. Até hoje, nem o burnout ou o burnon foram definidos como doenças mentais autônomas, mesmo que seus graves impactos à saúde sejam reconhecidos.

Os sintomas possuem grande variação, o que dificulta classificar as síndromes de maneira uniformizada, como na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), que também relaciona problemas mentais.

Ainda assim, a existência do termo burnon é de extrema importância para as pessoas afetadas para descrever seus sintomas, diz Schiele.

"Encontrar a si mesmo em um fenômeno definido é um alívio bastante grande para muitas das pessoas atingidas, e um primeiro passo rumo a uma mudança. Essas pessoas sentem que não estão mais sozinhas. Eles podem ganhar esperança ao verem que há outras pessoas que também sofrem do mesmo mal."

Alexander Freund, o autor deste artigo, é Jornalista especializado em  Ciência. Publicado originalmente por Deustche Welle Brasil, em 25.04.24

O que deve mudar com a regulamentação da reforma tributária

Projeto detalha como será a simplificação dos impostos sobre o consumo e define desonerações, como a da cesta básica e da atividade de 18 profissões.

Proposta que regulamenta reforma tributária segue para votação na Câmara dos Deputados, presidida por Arthur Lira (Foto: Ueslei Marcelino / Reuters)

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, enviou ao Congresso Nacional nessa quarta-feira (24/04) a primeira proposta de regulamentação da reforma tributária.O projeto de lei complementar trata das regras para os impostos criados pela reforma, aprovada em 2023 e que pretende simplificar o regime de tributação sobre o consumo no país.

No lugar do antigo arranjo de tributos federais, estaduais e municipais, que tinham uma alíquota média total de 34%, o governo propõe um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) de 26,5%.

A regulamentação total da reforma tributária deve ocorrer entre 2024 e 2025, a depender da aprovação de deputados e senadores. A transição para o novo modelo está prevista para começar em 2026.

Confira os principais pontos da proposta do governo:

Novos impostos

O texto define que o IVA será composto por dois tributos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), gerido pela União; e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), gerido por Estados e municípios.

O IVA entrará no lugar de três tributos federais (PIS, Cofins e IPI), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS).  A proposta prevê uma alíquota média de 26,5%, podendo variar entre 25,7% e 27,3%, segundo informou o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy.

Foi criado ainda o Imposto Seletivo (IS), de natureza regulatória, para desestimular o consumo de bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Essa taxa será cobrada sobre veículos, embarcações e aeronaves, produtos fumígenos (cigarros, cigarrilhas, charutos, tabaco, entre outros), bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas e bens minerais extraídos.

A lista não incluiu alimentos ultraprocessados, apesar da indicação de especialistas da área da saúde em defesa da cobrança sobre esses produtos.

Devolução de impostos

O projeto cria também um sistema de devolução personalizada de impostos, popularizado pelo termo em inglês "cashback", para a população mais pobre. 

Famílias com renda per capita de até meio salário mínimo (o equivalente a R$ 706 atualmente) inscritas no Cadastro Único dos programas sociais do governo terão direito a receber de volta até 50% dos tributos na conta de luz, água, esgoto e gás natural, e de até 100% na aquisição do gás de botijão.

Cesta básica e higiene

O governo listou 18 categorias de produtos da cesta básica nacional que serão integralmente desonerados. A seleção considerou a diversidade regional e cultural da alimentação do país e quais alimentos são mais consumidos pela população de baixa renda.

Os produtos com a alíquota zero previstos são: arroz, leite, manteiga, margarina, feijões, raízes e tubérculos, cocos, café, óleo de soja, farinhas em geral, açúcar, massas alimentícias, pão do tipo comum, ovos, produtos hortícolas e frutas.

Já os produtos que terão redução de 60% das alíquotas de IBS e CBS incluem: carnes bovina, suína, ovina, caprina e de aves e produtos de origem animal, peixes (exceto salmonídeos, atuns; bacalhaus, hadoque, saithe e ovas e outros subprodutos), crustáceos (exceto lagostas e lagostim) e moluscos, leite fermentado, bebidas e compostos lácteos, queijos, mel, mate, tapioca, sal, sucos e polpas de fruta.

Também terão desoneração de 60% produtos de higiene pessoal e limpeza, entre eles sabonete, pasta de dente, papel higiênico, água sanitária e sabões em barra.

Desoneração para profissionais

Foi proposta ainda a redução em 30% das alíquotas da CBS e do IBS sobre a prestação de serviços de 18 profissões regulamentadas de natureza científica, literária ou artística. Considerando a alíquota média de 26,5% para os novos tributos, os serviços desses profissionais seriam de 18,6%.

As profissões com desoneração são: administradores, advogados, arquitetos e urbanistas, assistentes sociais, bibliotecários, biólogos, contabilistas, economistas, economistas domésticos, profissionais de educação física, engenheiros e agrônomos, estatísticos, médicos veterinários e zootecnistas, museólogos, químicos, profissionais de relações públicas e técnicos industriais e agrícolas.

Serviços de educação

A proposta ainda reduz em 60% a CBS e o IBS de serviços de educação, como ensino infantil, fundamental, médio, técnico, superior, ensino para jovens e adultos, ensino de sistemas linguísticos, de natureza visual-motora e de escrita tátil, ensino de línguas nativas de povos originários e educação especial destinada a portadores de deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 25.04.24

quinta-feira, 25 de abril de 2024

'Meu pai se matou, e hoje sou padre e especialista em suicídio'

No Brasil, o número absoluto de suicídios vem crescendo ano após ano desde 2016, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Padre Licio Vale conduzindo missa, observado por fiéis de costas

*Esse texto é o primeiro da série "Suicídio & Fé" da BBC News Brasil, que abordará nas próximas semanas o tabu religioso com o suicídio, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil. Acompanhe as publicações no nosso site e redes sociais.

O padre Licio Vale, de 66 anos, viveu na pele a marcante e relativamente recente mudança na posição da Igreja Católica Apostólica Romana em relação ao suicídio.

Quando Licio tinha 13 anos, seu pai se matou aos 43, no ano de 1970. Como era a norma naquele momento para suicidas, não foram feitos os rituais funerários que uma pessoa que morria em outras condições podia receber.

"Minha família, apesar de muito católica, não teve direito de celebrar a missa de corpo presente, nem a missa de sétimo dia, nem missa de mês, nem missa de ano", lembra Licio, que comanda a paróquia Sagrada Família, no bairro da Ponte Rasa, em São Paulo (SP).

"Porque a Igreja Católica dizia naquela época que as almas das pessoas que se matavam iam direto para o inferno. [Segundo a doutrina antiga] Quem se mata peca contra o Quinto Mandamento da lei de Deus, que é não matar. Então, na minha família, nós vivemos isso na carne."

Quando adolescente, a perspectiva do pai "não ter a salvação eterna" era "profundamente angustiante", ele diz.

Essa posição do catolicismo apostólico romano — a religião mais popular do Brasil, com mais de 123 milhões de fiéis (64,6% da população), segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — só mudou após a revisão do Código de Direito Canônico em 1983.

"Hoje, como padre, graças a Deus, nossa doutrina católica evoluiu", diz, garantindo que a rejeição a esses ritos não acontece mais, nem na teoria nem na prática.

A história de padre Lício e as mudanças da doutrina da Igreja Católica sobre suicídio é a primeira da série de reportagens "Suicídio & Fé", que a BBC News Brasil publica nas próximas semanas.

Licio conta que realizou um sonho de infância — anterior à morte do pai — de se tornar padre há 40 anos.

Também é formado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), especializado em prevenção ao suicídio pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), palestrante e autor de vários livros sobre o tema, como E foram deixados para trás: uma reflexão sobre o fenômeno do suicídio.

No Brasil, o tema ganha cada vez relevância apesar do tabu persistente que o envolve, porque, como mostram estudos recentes, o número de suicídios vem aumentando.

Licio avalia que a Igreja Católica atualizou sua doutrina porque "dialoga com a Ciência".

"Estudos mostram que a grande maioria das pessoas que se mata não tem a intenção de tirar sua vida, portanto não tem a intenção de pecar contra o Quinto Mandamento", diz o padre.

"Porque, para que haja pecado, tem que haver intenção. E quem sabe a intenção? Só Deus."

'Eu me tornei especialista em prevenção ao suicídio por causa da morte do meu pai'

Licio é filho único e cresceu na capital paulista em "berço católico", nas suas palavras. A avó materna ia à missa todos os dias, e ele a acompanhava.

Enquanto isso, seu pai lutava com a depressão e o alcoolismo. Licio conta que o pai aceitava receber cuidados, mas acredita que, da forma que eram feitos os tratamentos na época, isso pode ter atrapalhado.

"Ele foi internado no hospital psiquiátrico, que nos anos 1960 era uma prisão. Ele tomou eletrochoque, porque os medicamentos antidepressivos vão surgir no Brasil na metade dos anos 1970. Então, ele sofreu muito, inclusive com as internações", lembra.

Atualmente, o chamado eletrochoque foi adaptado e ganhou novo nome, a eletroconvulsoterapia (ECT).

Alguns especialistas e instituições defendem o seu uso para algumas condições de saúde mental, como a depressão grave, e somente com o uso de anestesia e com correntes elétricas mais baixas do que as usadas antigamente.

Mas, segundo o Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) não preconiza e nem financia esse tipo tratamento.

Licio conta que, para lidar com a perda do pai, fez 30 anos de terapia com psicanálise tradicional.

"Estava na no início da adolescência, aquela fase em que o filho homem se identifica com a figura do pai. Eu me senti abandonado", conta.

"Foram 30 anos, uma vez por semana, no divã para elaborar o estrago emocional que o suicídio dele provocou na minha vida pessoal."

Além da ajuda da psicanálise, Licio se debruçou sobre o trauma na chamada direção espiritual, um acompanhamento que seminaristas recebem em sua preparação para serem padres — ele começou essa formação em 1978.

"Essa morte hoje ressoa como uma grande graça. Tem um texto da Bíblia em que São Paulo diz: 'Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus'. Eu me tornei especialista em suicídio por causa da morte dele", afirma o padre.

"Graças ao cuidado da minha saúde mental por um lado e ao cuidado da saúde espiritual por outro, pude transformar esta morte em vida. E claro que ele está vivo aqui, dentro de mim."

Em uma segunda-feira nublada de novembro do ano passado, o padre Licio chegou à entrevista com a BBC News Brasil com os minutos contados, depois de uma reunião em outro bairro e antes de rezar sua missa semanal na paróquia Sagrada Família.

Na celebração daquele dia, havia mais assentos do que fiéis. Mas o que se via era um grupo unido, que parecia se encontrar ali com frequência e demonstrava uma relação próxima com Licio.

É também ali que o padre dedica três dias na semana para receber pessoas que estejam precisando de ajuda na prevenção de suicídio ou no acolhimento após terem perdido alguém que se matou, a chamada posvenção.

Na verdade, nesses encontros, Licio diz que aciona mais o "lado especialista" do que o "lado padre".

Ele conta que sacerdotes de vários bairros de São Paulo encaminham pessoas — não necessariamente católicas — para lá.

Após cerca de três encontros, caso veja necessidade, Licio recomenda auxílio com psicólogos ou psiquiatras.

"A grande maioria não é ali do bairro", diz o padre, que estima encontrar de cinco a sete pessoas por semana nessa situação.

"Muita gente procura os padres para conversar mesmo não sendo católicos. Estão desesperadas, estão em ideação suicida e procuram um padre. E aí os padres normalmente encaminham para mim."

Como a rígida doutrina católica mudou

O que aconteceu com o pai de Licio, de não ter tido as missas funerárias tradicionais, era parte de uma longa tradição doutrinária na Igreja Católica.

Do século 6 ao final do século 20, a orientação formal da Igreja Católica era não fazer os rituais funerários normais para um fiel que morresse por suicídio, segundo a pesquisadora americana Ranana Dine — nem o funeral cristão, nem enterro em espaços sagrados ou missas.

Dine, que é judia e faz doutorado em Ética Religiosa na Universidade de Chicago, estuda desde a faculdade questões religiosas com o olhar da filosofia.

No mestrado na Universidade de Cambridge, ela analisou as doutrinas católica e judaica sobre o suicídio.

Uma das origens da histórica posição católica sobre o suicídio está nos Dez Mandamentos, cuja base está no Antigo Testamento.

Um destes mandamentos afirma: "Não matarás". A interpretação que vingou por muito tempo é que se matar é uma violação desse princípio.

"Grande parte do problema com o suicídio é que ele era visto como alguém querendo agir intencionalmente contra Deus e o domínio de Deus sobre a vida", explica Dine.

Especialistas apontam também que contribui para a aversão ao assunto no cristianismo o relato de que, segundo os evangelhos canônicos (aqueles reconhecidos como autênticos pela Igreja Católica), Judas Iscariotes, traidor de Jesus Cristo, se suicidou.

As primeiras discussões acerca do suicídio surgiram nos sínodos, reuniões convocadas por uma autoridade da Igreja Católica, do século 5.

A formalização de uma postura punitiva quanto ao ato não demorou a aparecer.

No século 6, durante o Conselho de Braga de 563, um grupo de bispos promulgou alguns decretos, entre eles a proibição de que suicidas recebessem grandes cerimônias ou fossem enterrados dentro de igrejas.

Ao longo da Idade Média, outros documentos reafirmaram essa posição.

Na Europa, isso se combinou com costumes da época. No artigo Christianity and Suicide, os pesquisadores Nils Retterstøl e Øivind Ekeberg afirmam que, em muitas partes do continente, "o corpo [de um suicida] era arrastado pelas ruas e enterrado em uma encruzilhada, com uma estaca cravada e uma pedra colocada sobre o rosto".

O artigo aponta que o Iluminismo, movimento marcado pelo valorização da racionalidade, trouxe no século 18 uma visão menos condenatória do suicídio e mais crítica ao catolicismo — que, no entanto, ainda demoraria alguns séculos para mudar sua posição sobre o assunto.

O Código de Direito Canônico de 1917 reforçou mais uma vez o caráter pecaminoso do suicídio.

Uma das normas desse código afirmava que "a menos que tenham dado sinal de arrependimento antes da morte", aqueles que "se mataram de maneira deliberada" estavam entre aqueles "privados de um sepultamento eclesiástico" — assim como excomungados e pecadores manifestos.

Esse trecho foi retirado na revisão do código em 1983.

"O contexto externo [da mudança] era o desenvolvimento da ideia da depressão e de outras doenças mentais como patologias tais quais a doenças físicas, que não eram culpa do indivíduo", explica a pesquisadora Ranana Dine.

O Código de Direito Canônico, na avaliação de Dine, é o "documento mais importante" de normas da Igreja Católica.

Mas há outros documentos relevantes que também demonstram mudanças na conduta católica sobre o suicídio, como o Catecismo de 1992 — que tem um caráter mais de orientação e educação do que uma função normativa como o código.

Um trecho do Catecismo afirma que o "suicídio contraria a inclinação natural do ser humano para conservar e perpetuar a sua vida" e é "contrário ao amor do Deus vivo".

"Ofende igualmente o amor do próximo, porque quebra injustamente os laços de solidariedade com as sociedades familiar, nacional e humana [...]", diz o documento.

Mas um trecho seguinte reconhece que "perturbações psíquicas graves, a angústia ou o temor grave duma provação, dum sofrimento, da tortura, são circunstâncias que podem diminuir a responsabilidade do suicida".

Por isso, o documento conclui: "Não se deve desesperar da salvação eterna das pessoas que se suicidaram. Deus pode, por caminhos que só Ele conhece, oferecer-lhes a ocasião de um arrependimento salutar. A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida".

Em um discurso de outubro de 2021, no Dia Mundial da Saúde Mental, o papa Francisco defendeu o acolhimento a pessoas que se suicidaram e às suas famílias.

"Gostaria de lembrar dos nossos irmãos e irmãs afetados por distúrbios mentais e também as vítimas, frequentemente jovens, do suicídio", disse o papa.

"Vamos rezar por eles e por suas famílias, para que eles não sejam deixados sozinhos ou sejam discriminados, mas sim bem recebidos e apoiados."

Dine avalia que a doutrina sobre o suicídio não é algo que divida diferentes alas da Igreja Católica tal qual outras questões controversas como, por exemplo, o casamento gay e o aborto.

A pesquisadora vê de forma positiva as mudanças recentes na abordagem católica ao assunto, mas diz compreender o posicionamento anterior.

"Fico satisfeita que a Igreja tenha mudado sua posição sobre o enterro de suicidas, mas acho que as normas anteriores vinham de uma abordagem teológica sincera", afirma.

Dine argumenta que, por haver razões teológicas para a Igreja Católica ser contra o suicídio, faz sentido dentro do catolicismo o suicídio ser visto como um pecado.

"Acho que alguém como [Santo] Agostinho e outras pessoas realmente acreditavam que Deus tem o domínio do mundo, dos nossos corpos, e negar isso a Deus realmente vai contra grandes princípios do cristianismo."

Na sua avaliação, a Igreja Católica ainda considera o suicídio um pecado — mas não um "pecado mortal", aquele em que não há qualquer esperança de salvação da alma.

"Ainda há o sentido de pecado, de falha, mas envolto nessa postura de compaixão, com a ideia de que a pessoa não sabia o que estava fazendo. Então, é um pecado de natureza diferente", avalia Dine.

O padre Licio Vale também não firma uma definição.

"O suicídio continua sendo pecado nesse sentido de que ninguém pode matar a si mesmo, ter a intenção de se matar. Porque a vida pertence unicamente a Deus, então, nesse sentido, a gente diz que é um mal moral", afirma o padre.

"Mas o conceito de pecado tem a ver com intenção. A maioria dos estudos diz que a maioria das pessoas que se mata não tem essa intenção. Por isso, a gente evita dizer hoje que é pecado."

Licio reconhece que o tabu com o suicídio de fundo religioso ainda é "muito presente" na cultura popular.

Durante a apuração dessa reportagem, por exemplo, uma fonte deu um relato que não pôde ser confirmado pela BBC News Brasil de que vizinhos faziam o sinal da cruz toda vez que passavam na frente da casa de uma mãe que perdeu a filha para o suicídio.

"Ainda existe essa cultura errônea de que quem se mata vai para o inferno. Por isso, é importante que a gente fale que não é mais assim, que a Igreja não pensa mais assim", diz o padre.

"A doutrina continua a mesma, ninguém pode se matar, mas ela evoluiu no sentido de que o suicida não quer, não tem a intenção, segundo a ciência, de pecar. Ele quer matar a dor emocional."

Por isso, o padre afirma que a decisão pela salvação da alma de um suicida ficaria a cargo de um "Deus misericordioso".

Perguntado se a Igreja Católica tem responsabilidade nesse tabu persistente, o padre consente.

"Claro, uma doutrina que foi ensinada durante mais de 900 anos, quase mil anos, é óbvio que vai levar muito tempo para que essa doutrina possa ser definitivamente esclarecida", avalia Licio.

"Mas a Igreja Católica, institucionalmente, está aprendendo a lidar com o fenômeno."

Apesar de ainda ser o maior, o segmento católico está diminuindo seu percentual na população desde o primeiro Censo, de 1872.

Por outro lado, no período mais recente, de 2000 para 2010, houve aumento do percentual de espíritas, evangélicos e pessoas sem religião.

Suicídios de padres

Desde 2016, Licio voltou a conviver mais de perto com notícias de mortes por suicídio: ele tem se dedicado a fazer um levantamento detalhado de padres que tiraram a própria vida.

Licio afirma que os dados de mortes entre sacerdotes são ainda mais alarmantes do que na população geral.

Para isso, o especialista compara a média de mortes de padres que ele registrou em relação ao total de padres no Brasil com a taxa de mortes por suicídio na população brasileira — embora esses números não resultem de uma mesma metodologia.

De acordo com os dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, houve 8 suicídios para cada 100 mil habitantes no Brasil.

Em 2022, Licio registrou 5 suicídios de padres. Considerando que o país tinha naquele ano cerca de 21,8 mil padres, segundo a Comissão Nacional de Presbíteros, isso daria aproximadamente 23 suicídios a cada 100 mil padres.

De 2016 a 2022, o pesquisador contabilizou um total de 33 mortes de padres por suicídio, com média de 4,7 por ano.

Os anos em que mais mortes foram registradas foram 2017 e 2021, com 10 suicídios de padres cada um.

Licio reúne esses dados a partir de informações divulgadas por dioceses, pela imprensa ou por fontes da internet.

As dioceses, segundo ele, estão cada vez mais publicando a causa da morte quando há um suicídio comprovado, embora ainda haja muito "mistério" em torno desses dados.

O pesquisador conta que nunca passou pela situação de conhecer pessoalmente algum padre que tenha se matado, mas diz que já foi procurado por dois amigos padres que pediram ajuda por questões de saúde mental, a quem Licio recomendou tratamento psicológico e psiquiátrico.

Mesmo não conhecendo pessoalmente os padres que se mataram, Licio diz que se sente abatido ao documentar as mortes de colegas.

"Por exemplo, um caso de um padre jovem. Isso me impacta porque é alguém que tem uma vida pessoal e uma vida no sacerdote inteira pela frente. Sempre me impacta", desabafa.

Licio afirma que a escolha do sacerdócio "não imuniza" os padres de lutas internas e desafios pessoais.

Há particularidades dessa ocupação que afetam a saúde mental, aponta Licio, como o excesso de trabalho, a solidão e a cobrança excessiva.

"A vida do padre é muito mais complicada do que a gente imagina", ele diz.

"Vou te fazer uma pergunta: onde você vai passar o Natal de 2030? Se eu estiver aqui na paróquia em 2030, às 18h vou ter uma missa numa comunidade e às 20 horas eu tenho missa aqui. Eu já tenho compromisso assumido para daqui a sete anos."

O padre afirma que a solidão é outro fator de risco grande para o suicídio no clero, principalmente os diocesanos — que estão vinculados a uma diocese e não a uma ordem religiosa, como os franciscanos e beneditinos.

"Um padre às vezes mora sozinho na casa paroquial, fica longe da família, tem poucos amigos verdadeiros que gostem da pessoa e não do padre", diz Licio.

"E a gente se cobra em termos de sermos coerentes com aquilo que pregamos, com aquilo que vivemos. O povo nos cobra posturas, comportamentos. A própria Igreja nos cobra posturas e comportamentos."

Licio alerta que o número de suicídios entre padres pode ser muito maior por conta da subnotificação — a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que, para cada morte por suicídio confirmada, há provavelmente mais de 20 tentativas.

A reportagem também buscou dados sobre suicídios entre líderes religiosos — não só católicos — a partir do DataSUS, sistema mantido pelo Ministério da Saúde, mas especialistas consultados afirmaram não ser possível obter informações confiáveis com esse recorte.

A BBC News Brasil procurou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para obter um posicionamento oficial da Igreja Católica no Brasil sobre o cuidado com a saúde mental de padres e a doutrina acerca do suicídio de forma geral.

A CNBB respondeu que não foi encontrado bispo "com disponibilidade para atender à demanda".

'Fala de culpabilização ligada à religião pode causar muita dor'

Segundo a OMS, mais de 700 mil pessoas morrem a cada ano por suicídio no mundo.

De acordo com a organização, a ligação entre suicídio e distúrbios mentais — notadamente a depressão e o alcoolismo — já foi bem demonstrada, mas esse tipo de morte também ocorre após crises pontuais, como términos de relacionamentos e problemas financeiros.

Taxas de suicídio tendem a ser maiores também em cenários de abuso, violência, desastres e vulnerabilidade social — como entre refugiados e migrantes, priosioneiros e pessoas LGBTQIA+.

No Brasil, o número absoluto de suicídios vem crescendo ano após ano desde 2016, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Um outro estudo, publicado na revista científica The Lancet Regional Health Americas, calculou que, entre 2011 e 2022, a taxa de suicídios a cada 100 mil habitantes cresceu em média 3,7% ao ano no Brasil.

Em 2011, a taxa era de 5 por 100 mil, chegando a 7,3 por 100 mil em 2022.

Todas as regiões brasileiras tiveram aumento nas taxas. Entre jovens (10 a 24 anos), o crescimento foi de 6%, significativamente maior do que na população geral.

No mundo, considerando dados da OMS de 2019, a taxa média de suicídios foi de 9 por 100 mil habitan habitantes.

Neste relatório, o Brasil aparece abaixo da média global, com 6,4 suicídios por 100 mil habitantes.

A psicóloga Karen Scavacini, fundadora e diretora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, afirma que as religiões — não apenas o catolicismo — podem ter um papel ambíguo na prevenção e na posvenção do suicídio.

"Os estudos mostram que [a religião] é um fator de proteção, e é, na maioria das vezes", diz Scavacini.

"Até o medo de ir para o inferno, de ir para o umbral, embora muitas religiões não falem mais sobre isso, pode fazer com que a pessoa não se mate. Então, acaba protegendo.”

A sensação de pertencimento a uma comunidade religiosa é outro fator protetor contra o suicídio, aponta a psicóloga.

"Quando a gente põe na balança, a espiritualidade tem um fator mais de proteção do que de risco, porém — e esse é o grande porém —, quando ela se torna um fator de risco, pode ser um risco importante."

Scavacini, que é doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o tabu religioso pode ser danoso em vários estágios relacionados ao suicídio.

"Começando pela prevenção, o que a gente escuta de mais comum é a relação de vergonha quando uma pessoa está pensando em se matar", diz.

"Isso piora toda a situação, porque a pessoa pensa: 'Puxa, além de tudo, eu sou um pecador, porque eu estou pensando em me matar."

A psicóloga cita também casos de pessoas cuja sexualidade não é bem aceita em sua religião, o que agrava o quadro de saúde mental.

Também há aquelas que deixam de procurar ajuda especializada depois que "foram falar com o pastor, com o padre, e a resposta foi de que estava faltando Deus, que estava faltando oração, que psicólogo não resolvia nada, que o que resolve é a igreja".

"Há ainda o caso das pessoas que tentaram [se suicidar]. Então, entram as questões de pecado, de culpabilização, de falta de reza, de estar possuído, e isso de novo vai ser um fator de risco", diz Scavacini.

"Pode ser um gatilho, pode ocasionar um isolamento dessa pessoa da comunidade religiosa, que no geral é um fator de proteção."

A psicóloga lembra também dos enlutados, cenário em que a questão religiosa talvez se torne ainda mais "delicada".

Ela diz ser comum estas pessoas ouvirem, inclusive em velórios, que alguém que elas perderam para o suicídio vai para um lugar de sofrimento após a morte.

"O impacto da fala de um religioso para uma família enlutada é muito grande. O tabu religioso não está só na figura religiosa, ele está em toda uma sociedade."

"Para quem está de luto, que está buscando uma resposta, muitas vezes em choque, que pode estar naquela culpa que é própria do luto por suicídio, uma fala de culpabilização ligada a religião tem um peso muito grande e pode causar muita dor."

*Caso seja ou conheça alguém que apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio, confira alguns locais para pedir ajuda:

- O Centro de Valorização à Vida (CVV), por meio do telefone 188, oferece atendimento gratuito 24h por dia; há também a opção de conversa por chat, e-mail e busca por postos de atendimento ao redor do Brasil;

- Para jovens de 13 a 24 anos, a Unicef oferece também o chat Pode Falar;

- Em casos de emergência, outra recomendação de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);

- Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone 192;

- Na rede pública local, é possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) 24h;

- Confira também o Mapa da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento em saúde mental gratuito em todo o Brasil.

Mariana Alvim, jornalista, originalmente, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 28.02.24