quarta-feira, 24 de abril de 2024

Populismo judicial

A Nação precisa de juízes serenos, moderados e discretos, que só manifestem suas opiniões nos autos e sejam capazes de fazer cumprir a lei para frear jacobinismo de esquerda e de direita

A democracia brasileira vem sendo dilacerada por governos populistas há 20 anos. O populismo é a dengue que debilita o funcionamento da democracia, a credibilidade das instituições e a confiança no Estado de Direito. Sua proliferação demanda a alimentação da polarização política, o fomento do ressentimento popular e o cultivo do mito do “salvador da Pátria”, um líder carismático que atua como o protetor do povo contra os interesses da elite corrupta. Por isso, populistas fomentam o antagonismo cívico para dividir o País; atacam a liberdade de expressão para silenciar a crítica e a oposição e rotulá-las de “fascistas” e “comunistas”; e usam o poder para deturpar o espírito das leis e debilitar os freios e contrapesos institucionais, capazes de conter o voluntarismo do presidente da República.

O populismo tem várias facetas. A mais conhecida é a do populismo presidencial, mas existem também o populismo legislativo e o populismo judicial. Quando o Poder Judiciário é capturado pelo populismo, a rápida degeneração do Estado Democrático de Direito torna-se iminente. A Venezuela de Hugo Chávez e a Rússia de Vladimir Putin, por exemplo, abandonaram os vestígios de democracia e se tornaram Estados autoritários quando o Judiciário sucumbiu aos desígnios dos líderes populistas. O Judiciário se transformou num meio para revestir de legalidade os atos autoritários do governo. Felizmente, o Brasil ainda está distante desse perigoso percurso. Mas o populismo judicial já disparou o sinal de alerta no País.

O populismo judicial emana do sentimento messiânico de que os togados são os salvadores da democracia. Nos devaneios de alguns membros da Suprema Corte, a urgência do momento demanda medidas excepcionais, decisões arbitrárias e resoluções monocráticas que violam a Constituição. Este é o caso emblemático de inquéritos genéricos e sem prazo determinado que transformaram a Suprema Corte num tribunal de Inquisição. Cidadãos são presos, coagidos e tolhidos de seus direitos fundamentais sem o devido processo legal e o amplo direto à defesa. Esses abusos se estendem do morador de rua preso sob suspeita de ser um perigoso conspirador contra o Estado democrático (o que provou ser infundado) ao indiciamento do bilionário sul-africano que teve a ousadia de criticar as atitudes de um ministro do Supremo. No Brasil do populismo judicial, qualquer crítica endereçada ao ungido de toga torna-se imediatamente um ataque ao Estado Democrático de Direito. Trata-se de um disparate, digno de regime autoritário.

Outro sintoma preocupante do populismo judicial é a invasão do Poder Judiciário sobre as competências do Poder Legislativo. O protagonismo legislativo da Suprema Corte conflita com a autonomia do Congresso Nacional e o entendimento da maioria dos parlamentares em torno de temas importantes, como marco temporal, drogas e aborto. Enquanto o Congresso debate a regulamentação das mídias digitais, a Justiça avança perigosamente para cercear a liberdade de expressão, como retratam as decisões da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), órgão ligado ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Expressões genéricas como “discurso de ódio” ou “condutas, informações e atos antidemocráticos” permitem a atuação ampla e arbitrária de juízes para censurar conteúdos, em nome da “defesa da democracia”. A insegurança jurídica fomenta a imprevisibilidade, a judicialização e a desconfiança em relação ao cumprimento das leis e da Constituição.

Neste momento de polarização política e de descrença nas instituições, o Brasil necessita de uma Suprema Corte que zele pela Constituição e pelos princípios basilares do Estado Democrático de Direito. Se exercesse de maneira exemplar essa função, contribuiria para diminuir a polarização política e a insegurança jurídica – dois atributos vitais para os partidos recriarem alternativas político-eleitorais capazes de vencer o populismo nas urnas.

A Nação precisa de juízes serenos, moderados e discretos, que manifestem suas opiniões apenas nos autos e que sejam capazes de fazer cumprir a lei para frear jacobinismo de esquerda e de direita que afronta a ordem democrática, intoxica a política com sua intolerância e incivilidade e debilita a confiança na liberdade com a sua ignorância e radicalismo.

Após 20 anos de desastrosos governos populistas, a última coisa que o Brasil precisa é de populismo judicial. Não precisamos de tribunal de Inquisição, tampouco necessitamos de Robespierres que guilhotinam a liberdade de expressão e desrespeitam os direitos individuais garantidos pela Constituição para “salvar” a democracia. As recentes manifestações do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, parecem estar alinhadas com esse propósito. Resta saber se terá força e firmeza para enquadrar os Robespierres da Suprema Corte, que parecem ter mais vocação para a política partidária do que a serenidade e a discrição necessárias para o exercício de guardião da Constituição.

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é cientista político, também autor do livro ‘10 Mandamentos – Do Brasil que Somos para o País de Queremos’. Foi candidato à Presidência da República, na última eleição. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.04.24

O custo político da falta de rumo

De nada adianta Lula da Silva repreender seus ministros por falhas na articulação política se o presidente não tem um plano de governo digno do nome, em torno do qual se possa negociar

O presidente Lula da Silva deu uma demonstração pública de que não é capaz de suportar sozinho, na condição de chefe de governo, as pressões políticas exercidas pelos líderes do Congresso. Sua irritação ficou particularmente visível diante da ameaça fiscal representada pela “pauta-bomba” encampada neste ano eleitoral pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco.

No dia 22 passado, no ato de lançamento do programa Acredita, Lula desandou a repreender alguns de seus ministros mais próximos pela claudicante articulação política do governo nas Casas Legislativas. Ora, seus auxiliares diretos talvez até pudessem ser mais engajados na defesa dos interesses do Executivo, mas é de Lula, em primeiro lugar, a responsabilidade de ditar o tom do diálogo institucional com o Legislativo.

Lula foi preciso ao diagnosticar uma das causas das agruras por que passa o governo no Congresso, malgrado a obviedade: seu partido, o PT, é minoria entre os 513 deputados e 81 senadores. Entretanto, ao presidente faltou a grandeza de se assumir como o maestro dessa orquestra desafinada. Mais confortável lhe pareceu distribuir pitos para todos os lados, até para o pacato vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin.

Para Lula, “Alckmin tem de ser mais ágil, tem de conversar mais” com os parlamentares. Já o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome no Brasil, Wellington Dias, e o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, “têm de passar uma parte do tempo conversando”, afirmou o presidente.

Nenhuma das admoestações de Lula, no entanto, foi mais injusta do que a direcionada ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad – logo ele, que tem sido talvez o único articulador político do governo minimamente hábil junto ao Congresso. Segundo Lula, Haddad, “ao invés de ler um livro”, tem de “perder algumas horas conversando no Senado e na Câmara”. Além de reafirmar seu conhecido anti-intelectualismo, Lula sugeriu que Haddad fica lendo em vez de trabalhar. Diante da cobrança absolutamente disparatada, Haddad não conteve seu desconforto ao ser questionado por jornalistas. “Eu só faço isso da vida”, disse o ministro, a respeito de suas frequentes conversas com deputados e senadores.

Esse descompasso político entre governo e Congresso é decorrência de dois problemas fundamentais. O primeiro, de contornos mais nítidos, é a absoluta falta de um projeto de governo digno do nome, por meio do qual Lula pudesse engajar a sociedade e seus representantes no Legislativo para negociar termos e prioridades. Quando o presidente cobra de seus ministros mais participação na articulação política com os parlamentares, a que, exatamente, se prestaria essa articulação? Aonde Lula pretende levar o Brasil? Que país deseja legar ao sucessor? Não se sabe, provavelmente porque nem Lula saiba, preocupado que está em apenas chegar em 2026 em condições de concorrer à reeleição.

O segundo problema, não menos preocupante, é a recalcitrância de Lula em enxergar as transformações pelas quais passaram o Brasil e o mundo desde a sua primeira eleição para a Presidência da República. Talvez acreditando que neste terceiro mandato estaria liberado para brincar de grande estadista mundo afora após “salvar a democracia” no Brasil, Lula terceirizou a tarefa de governar a um punhado de ministros. Não surpreende, nesse sentido, que, quando os problemas começam a bater à sua porta com mais força, o presidente saia dando broncas nesses auxiliares – que, como tais, dependem diretamente do envolvimento do chefe para ter sucesso em suas atribuições.

Nesse afã de posar como um líder capaz de influenciar questões globais sobre as quais tem pouca ou nenhuma influência, ao mesmo tempo que, no plano interno, quer ser visto como o presidente que recolocou o Brasil nos trilhos do desenvolvimento, usando para isso modelos que já se provaram equivocados no passado, Lula corre o sério risco de não conseguir nem uma coisa nem outra. Irritar-se com seus ministros não vai mudar essa realidade.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.04.23

Maranhão continua campeão da pobreza no Brasil

Pobreza cai em 25 estados e no DF em 2023; veja ranking. Média nacional recua a 27,5%; Acre foi o único estado com aumento do índice

Vista aérea da favela de Paraisópolis, em São Paulo (SP) - Eduardo Knapp - 15.set.2021/Folhapress

As taxas de pobreza e extrema pobreza do Brasil caíram em 2023 para os menores patamares de uma série histórica iniciada em 2012 (27,5% e 4,4%, respectivamente), aponta estudo do IJSN (Instituto Jones dos Santos Neves).

Segundo o órgão, vinculado ao Governo do Espírito Santo, a redução dos indicadores foi disseminada nas diferentes regiões do país.

Enquanto a taxa de pobreza recuou em 26 das 27 unidades da Federação no ano passado, a de extrema pobreza diminuiu em 25 estados, indica o levantamento.

A análise do IJSN foi produzida a partir de dados da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua): Rendimento de Todas as Fontes 2023. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou a Pnad na sexta-feira (19).

Na média do Brasil, a taxa de pobreza caiu de 31,6% em 2022 para 27,5% em 2023, o menor patamar da série iniciada em 2012. A redução foi de cerca de 4,2 pontos percentuais.

Em termos absolutos, a população considerada pobre diminuiu de 67,8 milhões em 2022 para 59,2 milhões em 2023. A baixa foi de 8,6 milhões, número semelhante à população inteira de um estado como o Ceará (8,8 milhões).

Entre as 26 unidades da Federação com queda na taxa de pobreza, o Amapá registrou a maior redução. O indicador local recuou 14,8 pontos percentuais, ao sair de 47,8% em 2022 para 33% em 2023.

Roraima (-9,5 pontos percentuais) e Amazonas (-9,3 pontos percentuais) vieram na sequência das maiores baixas em pontos percentuais.

Conforme o IJSN, o único estado com variação positiva da taxa de pobreza foi o Acre (0,4 ponto percentual). O indicador local passou de 51,1% em 2022 para 51,5% em 2023. Isso significa que mais da metade da população do Acre era considerada pobre.

O outro estado com taxa superior a 50% foi o Maranhão. O indicador baixou de 56,8% em 2022 para 51,6% em 2023, uma redução aproximada de 5,1 pontos percentuais.

Apesar da queda, o Maranhão seguiu com a maior taxa de pobreza do Brasil (51,6%), seguido pelo Acre (51,5%).

Por outro lado, os menores percentuais de 2023 foram registrados em Santa Catarina (11,6%) e Rio Grande do Sul (14,4%). Em São Paulo, o estado mais populoso do país, o indicador foi de 16,5%.

O diretor-presidente do IJSN, Pablo Lira, associa a redução da pobreza no país a uma combinação de fatores.

Geração de empregos, melhora da renda do trabalho, ampliação do programa Bolsa Família e concessão de outros benefícios sociais pelos estados fazem parte dessa lista, conforme o pesquisador.

"Por mais que a gente esteja reduzindo a pobreza no país, ainda há o desafio de conseguir diminuir as desigualdades regionais", afirma Lira, citando as dificuldades maiores em estados do Norte e do Nordeste.

O estudo usa linhas de pobreza e extrema pobreza do Banco Mundial. As referências são de US$ 6,85 per capita (por pessoa) ao dia e US$ 2,15 per capita ao dia, respectivamente.

Os dados foram convertidos por meio de critérios de PPC (Paridade de Poder de Compra). Assim, os valores mensais das linhas de pobreza e extrema pobreza ficaram em R$ 664,02 e R$ 208,42.

Pessoas que viviam com quantias inferiores a essas foram consideradas pobres ou extremamente pobres.

No Brasil, a taxa de extrema pobreza caiu de 5,9% em 2022 para 4,4% em 2023, o menor nível da série iniciada em 2012. A redução foi de 1,5 ponto percentual.

Em termos absolutos, a população considerada extremamente pobre diminuiu de 12,7 milhões em 2022 para 9,5 milhões em 2023. A baixa foi de 3,1 milhões, número semelhante à população inteira de Alagoas (3,1 milhões).

Em pontos percentuais, o estado nordestino teve a maior queda da taxa de extrema pobreza entre os 25 do país com redução em 2023. O indicador alagoano recuou 4,3 pontos percentuais, ao sair de 13,2% para 8,8%.

Amapá (-3,9 pontos percentuais) e Paraíba (-3,7 pontos percentuais) vieram na sequência das maiores baixas no ano passado.

De acordo com o IJSN, os únicos locais com variações positivas nas taxas de extrema pobreza foram Rondônia (0,3 ponto percentual) e Distrito Federal (0,2 ponto percentual).

Os maiores indicadores foram registrados pelo estudo no Acre (13,2%), no Maranhão (12,2%) e no Ceará (9,4%).

Por outro lado, Rio Grande do Sul (1,3%), Goiás (1,3%) e Santa Catarina (1,4%) registraram as menores taxas de extrema pobreza em 2023. Em São Paulo, o percentual foi de 2,2%.

Leonardo Vieceli, Jornalista, originalmente, do Rio de Janeiro para a Folha de S. Paulo, edição impressa, em 23.04.24 (NR. O título principal desta publicação foi aposto pelo editor do blog.  O titulo original da publicação da Folha de S. Paulo é a primeira frase do substitulo que encima o texto).

Democracia avaliada

Em 11 de 19 países, minoria acha eleições justas; Brasil não está entre eles

Manifestantes invadem o Capitólio após derrota de Donald Trump nas eleições de 2022, em Washington (EUA) - Leah Millis/Reuters

De modo paradoxal, a democracia pode ser vítima de seu próprio sucesso. Avanços econômicos, dos direitos humanos, científicos e culturais nos países que primeiro a adotaram fazem com que se espere muito desse sistema político —que, na sua definição mais simples, se restringe à realização de eleições livres e justas.

Exemplo de ampliação da concepção de democracia está na pesquisa "Perceptions of Democracy", que avaliou o prestígio desse modelo em 19 países.

Menos de 50% dos cidadãos estão satisfeitos com seus governos em 17 deles, Brasil incluso, o que os torna mais vulneráveis a líderes populistas e/ou autoritários.

Mas, provavelmente, é exigir demais da democracia que ela assegure prosperidade. Ela pode ou não fazê-lo. Mesmo democracias consolidadas enfrentam problemas sociais, seja por intempéries ou por más escolhas do eleitorado.

Ademais, nações que primeiro aderiram ao sistema abrigaram outras instituições, como a liberdade de expressão e o amplo acesso à Justiça, que tendem a gerar efeitos sociais positivos e também foram avaliados pelo levantamento.

Só 12% dos brasileiros confiam na Justiça e 50% sentem ter liberdade para se expressar publicamente.

Tais elementos constituem um bônus além das eleições. Em teoria, um déspota esclarecido poderia assegurá-los sem votos.

Fato é que o regime democrático funciona porque previne a violência política. Ou seja, vale mais a pena para o grupo derrotado nas urnas esperar nova chance de assumir o poder do que tentar impor-se pela força, com risco de perder e ver-se eliminado do jogo.

O fator básico e inafastável da democracia, portanto, é a realização de pleitos tidos como livres e justos. E aí a pesquisa acende um sinal de alerta, que vai além de ampliações da definição do termo.

Em 11 dos 19 países, menos de 50% dos cidadãos consideram que as eleições são livres e justas; em 8, há mais pessoas favoráveis do que contrárias a um líder "forte que não tem de se preocupar com o Parlamento ou eleições". É a receita para o desastre —felizmente, o Brasil não está nesses grupos.

Editorial d Folha de S. Paulo, em 23.04.24. (Edção impressa). / editoriais@grupofolha.com.br

Promotor acusa Trump de “orquestrar uma conspiração criminosa para corromper” as eleições de 2016

A acusação afirma na sua declaração inicial que o agora ex-presidente dos Estados Unidos cometeu um crime “para influenciar as eleições presidenciais”.

Donald Trump, esta segunda-feira, antes do início da sessão de julgamento. (Yuki Iwamura - Via Reuters)

O primeiro julgamento de um ex-presidente dos Estados Unidos já está em curso. Numa audiência para sempre, Matthew Colangelo, promotor público assistente, ficou encarregado de apresentar a acusação contra Donald Trump enquanto balançava a cabeça. “Este caso é sobre uma conspiração criminosa e um encobrimento”, disse Colangelo. “O acusado Donald Trump orquestrou uma conspiração criminosa para interferir nas eleições presidenciais de 2016. Ele então encobriu essa conspiração criminosa mentindo repetidamente em seus registros comerciais de Nova York”, afirmou ele no início de sua declaração de abertura. uma espécie de introdução ao julgamento. O advogado de Trump, Todd Blanche, começou o seu argumento dizendo: “O presidente Trump é inocente. “O presidente Trump não cometeu nenhum crime.”

No caso O Povo do Estado de Nova York contra Donald Trump, o ex-presidente é acusado de falsidades comerciais em pagamentos para esconder escândalos na campanha presidencial de 2016. O mais conhecido deles é o pagamento de US$ 130 mil à atriz pornô Stormy Daniels. feita por Michael Cohen, ex-advogado de Trump, para silenciar um suposto caso extraconjugal na reta final da campanha.

Colangelo afirmou em sua declaração inicial que Cohen fez o pagamento para silenciar a atriz pornô “sob a direção do réu” e “para influenciar a eleição presidencial”. Trump então o reembolsou e “eles disfarçaram a finalidade dos pagamentos”, segundo o promotor. O réu “disse nos registros comerciais que estava pagando a Cohen por serviços jurídicos sob um contrato de retenção [minutos]”. Mas eles eram mentiras. Não houve acordo de retenção”, acrescentou, conforme noticiado pelos meios de comunicação presentes em tribunal.

“Nem Trump nem a Organização Trump poderiam simplesmente preencher um cheque para Cohen com um memorando que dizia ‘reembolso por pagamento a uma estrela pornô’. “Então concordaram em manipular os livros e fazer parecer que o pagamento era na verdade uma compensação, um pagamento por serviços prestados”, argumentou.

Sem “dúvida razoável”

Cohen é agora a principal testemunha da acusação, cuja credibilidade a defesa tentará minar. O promotor alertou o júri sobre isso: “Suspeito que a defesa fará todo o possível para que o seu depoimento seja rejeitado, justamente por ser tão devastador”, disse Colangelo. Pouco depois, o advogado de defesa disse que Cohen está “obcecado” por Trump e que guarda rancor dele porque não lhe deu um cargo no seu governo “Toda a sua subsistência financeira depende da destruição do Presidente Trump”, disse. argumentou. “Não se pode tomar uma decisão séria sobre o presidente Trump com base nas palavras de Michael Cohen”, acrescentou Blanche.

Por se tratar de um caso criminal, opera a presunção de inocência. Para ser condenada, os jurados devem concluir que ela cometeu os crimes de que é acusada, sem sombra de dúvida razoável. A acusação e a defesa têm posições opostas: “No final do caso, estamos confiantes de que não terão dúvidas razoáveis ​​de que Donald Trump é culpado de falsificar registos comerciais com a intenção de ocultar uma conspiração ilegal para minar a integridade de uma eleição presidencial”. ”, disse o promotor. Exatamente o oposto foi sustentado pelo advogado de Trump. Blanche disse que os promotores contaram “uma história muito clara e bonita”, mas que “não é tão simples” e que o júri encontrará “muitas dúvidas razoáveis”.

Trump se declarou inocente dos 34 crimes de falsificação de registros comerciais pelos quais está sendo julgado. O ex-presidente sempre negou ter tido relações sexuais com Stormy Daniels e, mais relevante para o caso, os seus advogados argumentam que os pagamentos a Cohen foram despesas legais válidas. O próprio Trump, ao sair do tribunal, referiu-se a isto, afirmando que figuravam como despesas legais porque se tratavam de pagamento a um advogado. Cohen representa muitas pessoas, disse ele, e resumiu o caso à sua maneira: “Ele apresenta uma fatura ou conta e eles pagam e chamam isso de despesas legais e me cobram por isso”, disse ele. Onde se refletiu que se tratava de despesas judiciais, “é uma fila muito pequena”, acrescentou, onde mal havia espaço para algumas palavras, não bastava contar “a história da sua vida”.

O seu advogado disse esta segunda-feira na sessão que o escândalo Daniels “foi uma tentativa de constranger o Presidente Trump, de envergonhar a sua família” e que “antes das eleições de 2016, ela viu a sua oportunidade”. Sobre as acusações de que os pagamentos tentaram influenciar ilicitamente as eleições de 2016, a defesa respondeu: “Tenho um spoiler : não há nada de errado em tentar influenciar uma eleição. Isso se chama democracia." Trump não é cobrado pelos pagamentos em si, mas pelas supostas falsidades para ocultá-los.

Todd tentou simpatizar com os 12 jurados (sete homens e cinco mulheres) e os seis suplentes, que tomaram posse na última sexta-feira, após quatro dias de seleção. “Usem o bom senso”, disse-lhes ele. “Se o fizerem, haverá um veredicto de inocência muito rapidamente”, acrescentou.

Na sessão desta segunda-feira, antes dos argumentos iniciais e do júri entrar na sala, o juiz Juan Merchan disse que permitirá que seja mostrada uma transcrição do que Trump diz num vídeo em que se referiu às mulheres em termos profanos e sexistas, embora não permitirá que seja reproduzido na sala. “Quando você é uma estrela, eles deixam você fazer qualquer coisa com eles. Agarre-os pela boceta”, disse Trump naquela gravação. A tese da acusação é que após a divulgação daquele vídeo na campanha de 2016, era vital que Trump silenciasse Stormy Daniels.

Ao entrar no edifício do tribunal, Trump repetiu a sua habitual série de desqualificações infundadas do processo, que considera “interferência eleitoral” na campanha presidencial de novembro. “Estou aqui em vez de poder estar na Pensilvânia, na Geórgia e em muitos outros lugares fazendo campanha e isso é muito injusto”, disse ele. Ele havia planejado um comício na Carolina do Norte no sábado, mas teve que cancelá-lo devido a uma tempestade.

Também sem fundamento, Trump afirmou à sua chegada à sede do tribunal que tudo é uma “caça às bruxas” e uma “vergonha” que está “coordenada com Washington” para favorecer Joe Biden, o “pior presidente do mundo”, no história das eleições”, posição que os historiadores na verdade atribuem a ele. Na saída, repetiu o mesmo discurso, sem aceitar perguntas.

Miguel Jiménez e Maria Antonia Sánchez-Vallejo, de Washington / Nova York  para o EL PAÍS, em 22.04.24

Jon Bon Jovi: “O retorno de Trump é assustador”

A lendária banda lança um documentário que conta sua história e mostra sua roupa suja. O cantor conta como perdeu a voz e a cirurgia e reabilitação que fez

Jon Bon Jovi, em imagem recente cedida por sua gravadora.

Se um garoto de 17 anos começa a tocar a música The Promised Land com sua banda em um bar de motoqueiros em Nova Jersey e o próprio autor da música, Bruce Springsteen, sobe no palco para cantá-la em dueto, não há dúvida que aquele garoto foi tocado pela varinha da fortuna. Aos 62 anos, John Francis Bongiovi, universalmente conhecido como Jon Bon Jovi, não tem escrúpulos em admitir que a vida lhe sorriu de uma forma pelo menos tão brilhante quanto o seu próprio sorriso.

Ele recebe o EL PAÍS em um quarto do Corinthia Hotel, no bairro londrino de Whitehall. Ele imediatamente se levanta para cumprimentá-lo, e a camisa preta impossivelmente justa revela o mesmo corpo atlético com que o líder do Bon Jovi percorreu incansavelmente o palco durante os shows espetaculares daquela lendária banda. Hoje em dia eles estão lançando um documentário, Thank You, Goodnight, The Bon Jovi Story, no dia 26 de abril na Disney +, bem como um novo álbum com seu grupo, Forever, que será lançado no dia 7 de junho, embora você já possa ouvir. uma prévia, Lendário.

Compositor, cantor, ator e estrela do rock, filho de uma segunda geração de imigrantes nos Estados Unidos – pai italiano e eslovaco, militar; Mãe alemã e russa, dona de uma floricultura – é especialista na arte de se reinventar e ter sucesso a cada nova versão. Mas os últimos anos foram difíceis. Diagnosticado com atrofia das cordas vocais, ele precisou passar por uma cirurgia, e já faz dois anos que faz reabilitação vocal intensiva. “Tive que passar por uma cirurgia e ainda estou em processo de recuperação, mas consigo cantar sem problemas. Estou numa altura em que tenho de ter condições para poder cantar duas horas e meia seguidas, quatro noites por semana. Só assim poderei dizer que vou sair em turnê novamente”, explica.

E se ele não conseguir chegar nesse nível, adeus ao Bon Jovi? Os concertos são tão importantes? “Não, não é que a estrada seja o que mais me motiva. Na verdade, sempre foi a terceira das minhas prioridades. Para mim, escrever músicas sempre foi a coisa mais importante. Percebi há muito tempo que uma música que sobrevive a você é o que pode aproximá-lo da imortalidade. Aí, quando você achar que uma música está boa o suficiente, você a grava. E se, no final, você puder tocá-la diante de um público e fazer com que eles compartilhem essa diversão com você, você é um cara de sorte", explica Bon Jovi com uma voz que não parece quebrada e que transmite isso. tom de optimismo e vitalidade que a banda, e o seu líder, souberam projectar várias gerações durante décadas. “Sou muito bom nisso há anos. Mas posso te dizer, com toda sinceridade, que não sentiria mais falta. A ideia de outro quarto de hotel, outro avião, outro sanduíche de serviço de quarto... Já fiz tudo isso. Embora eu não me importasse de poder continuar fazendo isso”, admite.

A banda vendeu, ao longo de quatro décadas, 120 milhões de discos. Mas é muito mais interessante e surpreendente que atualmente tenham mais de 30 milhões de visitas mensais no Spotify. “O documentário vai nos apresentar novamente a toda uma geração. Já aconteceu comigo em outros momentos da minha vida. Runaway [música de estreia do Bon Jovi em 1983] foi a primeira fase. Depois nos reinventamos com Keep the Faith [o quinto álbum, de 1992], quando o boom da música grunge chegou . Fizemos isso de novo em 2000 com It's My Life , quando as pessoas pensavam que éramos mais velhos. E nos Estados Unidos eu tinha uma música que ocupava o primeiro lugar na lista de música country [Who Says You Can't Go Home, dueto com Jennifer Nettles]. Sempre abrimos novos territórios e sei que isso vai acontecer novamente com esse documentário”, afirma. Sua segurança não é ilusória. Vem de um esforço contínuo e da intuição de que a boa música pode saltar sem problemas de geração em geração.

“Quando éramos crianças, os álbuns eram importantes”, explica ao correspondente, em busca de uma cumplicidade que, por que negar, foi conquistada desde o primeiro minuto. “Mas qualquer jovem hoje, graças ao streaming , pode não ter acesso à arte daquelas capas de discos que a gente curtia. Mas quando você ouve uma música, você a julga pelo que ela é, uma música nova. Para eles é algo atemporal. Se um garoto de 14 anos ouve Livin' On A Prayer hoje , no início de sua jornada musical, para eles é uma música de 2024. Eles não entendem toda a história de fundo que tivemos com o aparecimento de um novo álbum”, argumenta.

Sem panos quentes

Em 2013, com mais de oitenta shows antes de mais uma turnê mundial de sucesso, o guitarrista da banda, Richie Sambora, anunciou que não tocaria naquela noite em Calgary, no Canadá. A desculpa era que ele queria passar mais tempo com a filha, mas Jon deixou claro que o abuso de substâncias viciantes e as tensões internas haviam cobrado seu preço. Sambora não voltou. A banda seguiu em frente. O documentário, que pretende ser contundente, expõe as luzes e sombras de uma das maiores histórias de sucesso do rock. Os quatro adolescentes que começaram juntos falam separadamente diante das câmeras.

“Não achei que fosse simplesmente uma demonstração de vaidade, que faria muita gente perder tempo. Se vamos fazer isso, eu disse, vamos dizer a verdade. Isso de cada um de nós”, diz Jon. “Posso não concordar com algo em particular, mas não vou discutir isso. “Cada um contribuiu à sua maneira para esta jornada que nos trouxe até aqui.”

Uma consciência social

Sua jornada foi feita de mãos dadas com sua namorada do ensino médio, Dorothea Hurley, com quem divide mais de quarenta anos de casamento e quatro filhos. Os pais de Jon eram trabalhadores incansáveis, mas distantes da política. Foi Dorothea quem apresentou ao cantor, aos poucos, um mundo de compromisso social, de preocupação com a deriva do seu país e de plena consciência de que tanto sucesso exige retribuir aos outros. Juntos lançaram a fundação JBJ Soul Kitchen , quatro restaurantes onde metade dos clientes paga o menu ou ajuda lavando a louça ou limpando o local, para que a outra metade, moradores de rua, possam desfrutar de uma boa refeição quente. “Fizemos a diferença na vida de muitas pessoas. Não temos o mesmo sentido de comunidade que imagino que tenhas em Espanha. Se alguém estiver com fome, deve ir a esses lugares chamados Soup Kitchens . Não temos essas diferentes gerações familiares que se ajudam”, afirma, enquanto se deixa levar pelo entusiasmo ao descrever o projeto.

Richie Sambora e Bon Jovi em um show coletivo no Japão em 1984.

“Eu sei, é assustador, não poderia concordar mais com você”, diz ele quando menciona a perspectiva de Donald Trump se tornar presidente dos Estados Unidos novamente. Mas ele recusa-se a pensar que o seu país é uma causa perdida ou que o melhor ficou para trás. “Certa ocasião perguntei a John Lewis [ex-congressista negro dos Estados Unidos, intimamente ligado a Martin Luther King e figura de destaque na luta pelos direitos civis] se ele achava que o mundo estava chegando ao fim quando sofremos os assassinatos do Dr. King, o presidente Kennedy ou seu irmão Bobby Kennedy. E ele me disse que não, que ainda havia oportunidades para otimismo”, Jon Bon Jovi relata seus desejos políticos. "Eu também acho isso. As crianças de hoje são mais inteligentes do que nós em muitos aspectos e terão uma forma de encontrar as suas próprias soluções. Nós dois ainda somos dois velhos brancos que vão acabar morrendo. E talvez isso não seja uma coisa ruim. Saímos do caminho e abrimos caminho para uma geração mais compreensiva e compassiva que a nossa”, afirma, com um sorriso capaz de convencer qualquer um.

Rafael de Miguel, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS para o Reino Unido e Irlanda. Ele foi o primeiro correspondente da CNN+ nos EUA, onde cobriu o 11 de setembro. Dirigiu os Serviços de Informação do SER, foi Editor-Chefe da Espanha e Diretor Adjunto do EL PAÍS. Graduado em Direito e Mestre em Jornalismo pela Faculdade EL PAÍS/UNAM. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 24.04.24

O conselho de uma neurocientista para 'desabituar' o cérebro e evitar situações que nos fazem mal

Se você mora perto dos trilhos do trem e eles passam no mesmo horário todas as manhãs, é muito provável que você nem ouça o barulho que pode incomodar ouvidos desacostumados.

Tali Sharot é professora de neurociência cognitiva da University College London (Crédito: Tali Sharot)

O mesmo acontece se você entrar, por exemplo, em uma cafeteria: por mais agradável que seja o aroma do café moído na hora, quanto mais tempo você passar ali, aquele determinado perfume vai desaparecendo até ficar imperceptível ao seu olfato.

Essa tendência do nosso cérebro de deixar de prestar atenção às coisas que estão presentes o tempo todo ou que mudam de maneira gradual é conhecida como habituação.

"Há uma razão evolutiva adaptativa para isso. É a de que precisamos conservar nossos recursos", explica Tali Sharot, professora de neurociência cognitiva da University College London, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).

"Responder a algo novo que vemos, cheiramos ou sentimos pela primeira vez faz sentido. Mas, quando depois de um tempo você percebe que ainda está vivo e que está tudo bem, você não precisa mais responder tanto quanto antes."

"É melhor poupar esses recursos e preparar-nos para a próxima situação que teremos de enfrentar", acrescenta Sharot, coautora do livro Look Again: The Power of Noticing What Was Always There… ("Olhe novamente: o poder de perceber o que sempre esteve lá…", em tradução livre).

Superação

Este mecanismo ajuda, por um lado, a nos motivar, a seguir em frente.

Sharot dá como exemplo uma situação de trabalho.

"Pense no seu primeiro emprego, no nível inicial. Você provavelmente estava animado e feliz. Mas, se você ainda estivesse tão animado 10 anos depois, não estaria tão motivado em busca de uma promoção."

A habituação também nos permite superar situações difíceis, como perder um emprego ou um ente querido.

"É bom que com o tempo nos acostumemos, porque isso nos permitirá continuar funcionando", afirma o neurocientista.

"Seria muito difícil se você se sentisse tão irritado e triste como no início."

A habituação permite-nos avançar, por exemplo, no mundo do trabalho (Getty Images)

Mas, assim como nos ajuda a seguir em frente, essa tendência de habituar-se, de deixar de responder a situações que se tornam estáveis, pode se voltar contra nós.

Ficamos tão acostumados que, mesmo que uma situação ou relacionamento nos machuque, deixamos de considerá-lo tóxico porque se tornou um hábito e nos falta perspectiva.

Isso também acontece conosco em situações prazerosas: com o tempo, damos como certo o que nos acontece e isso diminui a intensidade da emoção que costumavam provocar em nós.

No entanto, aponta Sharot, é possível enganar seu cérebro para que ele supere essa tendência natural de se habituar às coisas e ignorá-las.

Tomar distância

O truque é simplesmente fazer uma pausa, distanciar-se da situação para poder vê-la com novos olhos.

A ideia é fazer com que "as coisas se destaquem, sejam elas boas ou ruins", explica Sharot.

Para isso, a especialista diz que há dois caminhos a serem tomados, relacionados entre si.

"Um deles é fazer pausas. Ou seja, se você se afastar de uma situação, mesmo que por um curto período de tempo — pode ser um final de semana, alguns dias ou mais —, você vai se desabituar até certo ponto e vai ser capaz de perceber melhor as coisas que te rodeiam."

Um exemplo que Sharot utiliza no seu livro é a nossa ligação às redes sociais, onde sentimos que elas têm um impacto negativo sobre nós.

"As pessoas sabem que [as redes] causam algum estresse, mas não sabem exatamente por que e não conseguem medir a magnitude e ter certeza porque estão sempre presentes nelas."

“O que foi descoberto é que quando as pessoas fazem uma pausa — digamos, de um mês —, o estresse é reduzido e as pessoas sentem-se mais felizes."

"Se você fizer uma pausa em sua vida cotidiana — pode ser no trabalho, fazendo um rodízio em departamentos diferentes ou trabalhando em projetos distintos —, quando você voltar, poderá ver as coisas com mais clareza, tanto as ruins quanto as boas", diz Sharot.

O bom, quando é breve, é ​​melhor ainda

A habituação afeta até as nossas férias (Getty Images)

Manter distância ou fazer uma pausa quando estamos em um bom momento pode parecer uma medida totalmente contraintuitiva mas, segundo pesquisas, isso aumenta o prazer.

Durante uma de suas pesquisas, a cientista descobriu, por exemplo, que o momento mais feliz das férias chegava às 43 horas.

Isto é, assim que as pessoas tivessem algum tempo para desfazer as malas e se instalar. Depois, com o passar dos dias, o prazer diminuía.

“Não é que não estivessem felizes no dia 7 ou 8, mas os momentos mais felizes vieram após 43 horas e depois diminuíram.”

O mesmo aconteceu quando os participantes do estudo foram questionados sobre os melhores momentos das suas férias: a palavra que se repetiu inúmeras vezes foi “primeiro”.

A primeira vez que viram o mar, o primeiro coquetel, o primeiro castelo de areia que construíram na praia e assim por diante.

Por esse motivo, embora normalmente aspiremos ao contrário — pensar que férias prolongadas são a melhor forma de descansar, porque nos desconectam completamente do trabalho —, tirar uma série de férias curtas produziu melhores resultados.

Isso porque também existem as expectativas que as férias geram.

Quando Sharot mediu o grau de felicidade antes da viagem, descobriu que o dia anterior foi o mais feliz, “porque você está imaginando como serão as férias".

E quando ocorrem, são boas, "mas não tão boas quanto na imaginação".

Resumindo, o truque é simples: distanciar-nos das situações a que estamos habituados, quebrar a rotina e introduzir mudanças.

Laura Plitt, jornalista, originalmente, para a BBC News Mundo,em 23.04.24

terça-feira, 23 de abril de 2024

Não, o Brasil não está sob uma ditadura

No Rio, Bolsonaro insiste na falácia de que estamos sob ‘ditadura do Judiciário’. Mas o País sabe o que é uma ditadura: é justamente aquela que os bolsonaristas tanto querem restabelecer

A manifestação bolsonarista ocorrida no domingo passado, na orla de Copacabana, esteve alicerçada em uma grande mentira, qual seja: o País estaria submetido a uma “ditadura”, em particular uma “ditadura do Judiciário”, materializada por uma série de decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Alexandre de Moraes.

Em que pesem as legítimas críticas que possam ser feitas aos métodos de Moraes, nada poderia estar mais distante da realidade. O Brasil não está sob “ditadura do Judiciário” nem sob qualquer outra forma de ditadura. Essa falácia, que de resto banaliza o horror de um estado de violência política real, mal consegue esconder seus desígnios antidemocráticos.

Os simpatizantes que atenderam ao chamado de Jair Bolsonaro para sair de suas casas para defendê-lo naquele dia ensolarado ouviram o ex-presidente questionar em alto e bom som a higidez da democracia no País. Na visão maliciosa de Bolsonaro, só sob uma “ditadura”, afinal, ele poderia ter sido julgado e condenado à inelegibilidade pelo TSE – e não como consequência de seu envolvimento pessoal e direto, na condição de presidente da República, em uma aberta campanha de desinformação sobre a lisura das eleições brasileiras, com o intuito de deslegitimar uma vitória da oposição.

Naquele seu idioma peculiar, Bolsonaro deixou claro à plateia reunida em Copacabana que a democracia, ora vejam, teria sido golpeada no País com sua derrota na eleição de 2022. Como corolário natural dessa “ditadura” inventada, a liberdade de expressão teria sido cassada por nada menos que o Supremo Tribunal Federal, malgrado se tratar de um dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição de 1988 como cláusula pétrea.

Não é de hoje que Bolsonaro tem recorrido à turvação do conceito de liberdade de expressão como subterfúgio para expor o que é a sua natureza liberticida. Nesse sentido, pregar o fechamento do Congresso, tecer loas à ditadura militar, exaltar torturadores e defender publicamente o fuzilamento de opositores, entre outras barbaridades, são exemplos típicos do que Bolsonaro entende ser nada mais do que a livre manifestação de opinião e pensamento.

É disso, e apenas disso, que se trata quando o ex-presidente e seus apoiadores sobem em um carro de som para denunciar a “ditadura” a que estariam submetidos os brasileiros. Ora, aqui se sabe muito bem o que é uma ditadura. Sabe-se muito bem o que é ter a voz cassada. Sabe-se muito bem o que é não poder manifestar críticas ao governo ou às instituições. Sabe-se muito bem o que é viver com medo do poder estatal. Tudo isso acontecia sob a ditadura militar, aquela que os bolsonaristas tanto querem restabelecer, inconformados que são com o restabelecimento da democracia em 1985.

O que se descortina diante dos olhos não obnubilados pelas paixões ideológicas é a usurpação do conceito de liberdade de expressão como esteio de uma campanha desavergonhada que nem remotamente passa por uma genuína defesa da democracia – ao contrário, é uma campanha que visa à desmoralização das instituições e da própria Constituição, com vista ao estabelecimento de um regime autoritário.

Os que se apresentam ao País e ao mundo como orgulhosos campeões da liberdade de expressão – como se viu no constrangedor pedido de Bolsonaro para que o público em Copacabana desse “uma salva de palmas” para um oportunista como Elon Musk, chamado de “mito da liberdade” – são os mesmos que não cansam de emitir sinais de que ainda não se resignaram com o fim da ditadura militar. Para esses democratas de fancaria, liberdade de expressão é a liberdade para que eles, e apenas eles, possam dizer o que bem entendem.

A esse respeito, não causam estranheza os apelos recorrentes dos bolsonaristas a uma certa mística religiosa, divisionista e identitária por definição. Tratado como uma espécie de instrumento da Providência Divina, Bolsonaro se considera, nessa condição, acima do bem e do mal. Se prestará contas por isso no Reino dos Céus, não se sabe. Aqui na Terra, o juízo está próximo.

Editorial / Notas & Informações, O  Estado de S. Paulo, em 23.04.24

Herman Benjamin é eleito o próximo presidente do STJ

Escolha é feita levando em consideração o critério de antiguidade. Luís Felipe Salomão será vice-presidente

Ministro Herman Benjamin, do STJ - (crédito: Divulgação/STJ)

O ministro Herman Benjamin foi eleito o próximo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no biênio 2024-2026. Além dele, Luís Felipe Salomão, atual Corregedor Nacional de Justiça, foi eleito vice-presidente. Eles substituem a ministra Maria Thereza de Assis Moura e Og Fernandes, que deixam os cargos no final de agosto, em razão do término do mandato.

Mauro Campbell foi eleito para o lugar de Salomão, para assumir a corregedoria nacional. No entanto, para ser confirmado no cargo, Campbel ainda precisa passar por sabatina no Senado e deve ser nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

Também foi eleita a diretoria da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Efam). A entidade será presidida por Benedito Gonçalves. Além dele, ministra Isabel Gallotti será vice-diretora e o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva será membro do Conselho Superior.

Benjamin assume a presidência da corte por aclamação, ou seja, chegou ao posto por ser o ministro mais antigo - a maneira tradicional de revesamento no comando do tribunal. No entanto, ao contrário dos demais, ele optou por não ocupar a corregedoria e a vice-presidência nas últimas eleições. 

Também foram escolhidos os nomes do STJ para compor o TSE. Foi eleito como membro efetivo o ministro Antônio Carlos Ferreira, e a ministra Isabel Gallotti, como corregedora. O ministro Sebastião Reis Jr. será ministro substituto na corte eleitoral.

Publicado originalmente pelo Correio Braziliense, em  23.04.24

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Estudo mostra desconfiança no mundo em relação à democracia

Pesquisa ouviu cidadãos de 19 países, incluindo Brasil, e revelou que instituições estão aquém das expectativas

Manifestantes protestam em frente à Suprema Corte dos EUA, em Washington, em defesa da democracia - Olivier Douliery - 7.dez.2022/AFP

Um estudo global sobre as percepções a respeito da democracia no mundo publicado neste mês pinta um quadro de alta desconfiança com os processos eleitorais, além da preferência por líderes antidemocráticos. De forma geral, eleitores de 19 países se mostraram céticos em relação ao fato de as eleições serem livres e justas.

Segundo a pesquisa Perceptions of Democracy, que avalia o que as pessoas pensam sobre o sistema político, os dados deixam claro que as instituições democráticas estão aquém das expectativas. O levantamento foi feito pela organização intergovernamental International Idea (Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral, na sigla em inglês).

Em muitos casos, as avaliações públicas das instituições fundamentais dos sistemas democráticos são fracas, com dúvidas sobre a legitimidade dos processos eleitorais, o acesso livre e igualitário à Justiça e a capacidade de as pessoas expressarem livremente as suas crenças. "Neste contexto, não é surpreendente que as pessoas tendam a estar insatisfeitas com o desempenho dos seus governos", diz o relatório.

Para desenvolver o entendimento sobre a imagem da democracia no mundo, os pesquisadores selecionaram um conjunto diversificado de 19 países e fizeram cerca de 1.500 entrevistas em cada um deles —tanto online quanto por telefone. Para incluir uma vasta gama de contextos geográficos, econômicos e políticos, os países analisados incluem três das maiores democracias do mundo (Brasil, Índia e Estados Unidos), além de Chile, Colômbia, Dinamarca, Gâmbia, Iraque, Itália, Líbano, Lituânia, Paquistão, Romênia, Senegal, Serra Leoa, Ilhas Salomão, Coreia do Sul, Taiwan, Tanzânia.

Em 17 dos países analisados, menos da metade da população está satisfeita com os seus governos. Essa postura leva a um risco para o sistema democrático, segundo o estudo, o que é reforçado pelos dados a respeito da percepção sobre lideranças autoritárias. Em oito países, "mais pessoas têm opiniões favoráveis sobre 'um líder forte que não tem de se preocupar com o Parlamento ou eleições'", afirma o relatório.

O estudo destaca que em nenhum dos países analisados houve uma rejeição marcante em relação a líderes autoritários. O apoio a lideranças fortes é maior em países como Índia, Tanzânia e Iraque, mas mesmo em países como a Dinamarca, a Coreia do Sul e os Estados Unidos, a visão sobre governantes não democráticos é favorável para mais de um quarto da população.

Os dados são evidentes em relação à confiança nos sistemas de votação. Em 11 dos 19 países onde a pesquisa foi feita, menos da metade dos entrevistados expressaram confiança nas eleições mais recentes. A proporção é mais baixa em países como Colômbia, Índia, Paquistão, Iraque e mesmo em Taiwan e nos EUA. Em países como Brasil, Dinamarca e Chile, mais da metade da população disse confiar no pleito.

Em relação ao acesso à Justiça, os entrevistados de forma geral expressaram muita insatisfação com os tribunais. Apenas na Dinamarca, entre os 19 países, a maioria das pessoas sente que as cortes frequentemente ou sempre fornecem acesso igualitário. Na maioria dos países, menos de um terço dos entrevistados pensa dessa maneira.

O estudo avaliou ainda a percepção sobre progresso intergeracional, e apontou que as pessoas estão bastante pessimistas sobre o quanto as coisas melhoraram ao longo do tempo. Em apenas quatro países a maioria dos entrevistados acredita que a vida está melhor do que na época dos seus pais.

Os dados são mais positivos em relação à percepção de liberdade de expressão. A maioria dos entrevistados sente que geralmente ou sempre tem liberdade para dizer o que pensa publicamente. As exceções são Colômbia, Paquistão, Romênia e Senegal. No Brasil, metade dos entrevistados diz sentir que pode falar livremente.

Além da análise geral sobre a desconfiança dos eleitores em relação ao desempenho das suas instituições políticas e do acesso a elas, o estudo ressalta que as minorias, as mulheres e as populações mais pobres tendem a perceber mais obstáculos ao acesso e geralmente duvidam mais do desempenho institucional.

Outro ponto importante é que as opiniões dos especialistas e as percepções populares sobre o desempenho das instituições políticas nem sempre estão alinhadas. As pessoas geralmente são muito mais céticas do que os especialistas.

Com sede em Estocolmo, na Suécia, a International Idea foi fundada em 1995 com o objetivo de identificar diferenças importantes, mas muitas vezes negligenciadas, entre as avaliações e atitudes de vários grupos em relação à democracia.

O estudo alega que os dados levantam questões importantes sobre quem decide como a democracia está se saindo e quem, em última análise, tem o poder de conceder legitimidade (ou não) às instituições e governos. O relatório ressalta que "a saúde de uma democracia depende em grande parte das percepções das pessoas", e por isso é importante entender essas visões de mundo para buscar formas de aprimorar o funcionamento da democracia e a maneira como ela é vista.

Daniel Buarque, originalmente, para a Folha de S. Paulo, edição impressa, em 21.04.23

Brasil não terá estabilidade sem direita responsável com ambição presidencial

Não me parece óbvio que Tarcísio, Caiado ou Zema sequer tenham interesse em moderar o bolsonarismo

Lula (PT) recebe a faixa presidencial de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) na posse do primeiro mandato do petista - Lula Marques - 1º.jan.03/Folhapress

Poucas coisas fazem mais falta ao Brasil do que uma direita responsável que, como o PT e o falecido PSDB, se especialize em ganhar eleições presidenciais.

Desde os anos 1990, os partidos brasileiros se especializaram em coisas diferentes. O PT e o PSDB, cada um com seus aliados mais tradicionais (PC do B, PFL, etc.) disputavam a Presidência. Outros partidos, como o PMDB ou o PP, se especializaram em vender apoio no Congresso a quem elegesse o presidente.

Entre 1994 e 2014, PT e PSDB discordaram sobre quase tudo, mas mantiveram ao menos um interesse comum: a Presidência da República, como instituição, tinha que continuar forte.

Com a crise do PSDB, a liderança da direita passou para os bolsonaristas. Mas o bolsonarismo não se especializou em vencer eleições presidenciais. Especializou-se em golpe de Estado.

Enquanto o golpe não vinha, Jair evitava o impeachment entregando para o Congresso absolutamente tudo que o centrão queria. E quando um Rodrigo Maia da vida aprovava alguma reforma por iniciativa própria, isso até lhe ajudava: dava a impressão de que o Guedes trabalhava.

Desde a crise do PSDB, portanto, o PT não tem um rival com quem compartilhe o interesse em preservar a instituição da Presidência da República. E isso é ruim, porque a esquerda não tem força para fazer isso sozinha. E o Executivo ainda é o único Poder que tem algum incentivo eleitoral para, por exemplo, manter o equilíbrio das contas públicas.

Sim, às vezes o STF pode ajudar a preservar a Presidência, até pela promiscuidade do centrão com o golpismo. Mas isso não é um arranjo estável, e tem potencial de descarrilhamento.

Não vejo cenário de estabilização institucional sem que a direita brasileira volte a ser liderada por um partido ou movimento não golpista com ambições presidenciais.

E isso não está acontecendo.

Para começar, a direita precisa decidir que sistema de governo defende. As propostas de "semiparlamentarismo" deram uma sumida, mas muita gente no centrão parece confortável com a tendência de progressivo enfraquecimento da Presidência da República dos últimos anos.

Afinal, a direita sempre controlou o Congresso, graças à gambiarra de começar nossa democracia com a classe política herdada da ditadura. Já que não dá para ganhar a Presidência, pensam, vamos levar o poder para o lugar onde a gente sempre ganha.

Do outro lado, os principais presidenciáveis de direita até agora são postes do golpe. Até entendo que candidatos conservadores busquem os votos bolsonaristas, ou o apoio das igrejas bolsonaristas. Mas nenhum parece disposto a construir um movimento dentro do qual os bolsonaristas sejam uma minoria disciplinável.

Não me parece óbvio que Tarcísio, Caiado ou Zema sequer tenham interesse em moderar o bolsonarismo. Quando têm, topam terceirizar a tarefa para Alexandre de Moraes.

Em algum momento dos anos 1990, o social-democrata Fernando Henrique Cardoso olhou para a direita brasileira, suspirou de desgosto e disse "OK, dá aqui essa porcaria, vocês não sabem fazer". Quem teria disposição para assumir essa tarefa civilizatória hoje em dia? Por que, com as emendas dando grana e as igrejas dando voto, a direita de hoje se deixaria civilizar?

Celso Rocha de Barros, o autor deste artigo, é servidor federal, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de "PT, uma História". Publicado originalmente na edição impressa da Folha de S. Paulo, em 20.04.24.

Voçorocas: os gigantescos buracos que engolem bairros inteiros pelo mundo

 Esse tipo de cânion nasce de uma das formas mais agressivas de degradação do solo, causada pela água da chuva e de outras fontes.

E avança em uma velocidade preocupante, destruindo milhares de casas na América Latina e na África.

Essa já foi uma rua movimentada de Buriticupu, uma cidade do interior do Maranhão.



Agora se tornou um abismo de 80 metros de profundidade: a altura de um prédio de 20 andares.

É o resultado de um fenômeno conhecido como voçoroca, palavra que significa "terra rasgada" em tupi-guarani.

Tenente José Ribamar Silveira quase morreu quando caiu dentro de uma voçoroca

Em maio de 2023, o ex-policial militar de 79 anos se perdeu quando voltava para casa de carro, depois de uma festa.

Tenente Silveira, como é mais conhecido na região, percebeu o engano, freou seu veículo e engatou marcha à ré. Eram 2h da manhã e a escuridão escondia a voçoroca. Após alguns segundos, Silveira caía em um grande vazio.

"Quando eu vi o carro deslizando, mesmo caindo com rapidez, lembrei do meu filho mais novo", ele conta à BBC News Brasil.

O bebê Gael completava, no dia anterior, quatro meses de vida. "Pedi a Deus que me protegesse, para criar meu filho pequeno.”

Tenente Silveira desmaiou e acordou no fundo da voçoroca três horas depois. Após um resgate com muitos obstáculos e meses de convalescência, ele já consegue andar sem muletas.

O episódio ilustra os riscos existentes para os 70 mil habitantes de Buriticupu.

Com o crescimento das voçorocas, há a preocupação de que a cidade possa rachar em duas partes. Buriticupu está a 350 metros acima do nível do mar e tem quase 30 dessas grandes erosões. As duas maiores estão separadas por menos de 1 km.

“Sem intervenção das autoridades, elas vão se encontrar e formar um rio no futuro”, afirma Edilea Dutra Pereira, geóloga e professora da Universidade Federal do Maranhão.

Voçorocas são parte da história geológica da Terra há milhões de anos.

Mas Dutra Pereira e outros cientistas que a BBC News Brasil ouviu afirmam que elas estão se expandindo mais rápido e temem que novas voçorocas surjam com a mudança climática — que influencia a intensidade das chuvas.

Imagens de satélite de Buriticupu

Os riscos aumentam se a cidade não conta com infraestrutura específica (para evitar a chegada da água da chuva até a região da erosão) e nem saneamento básico (a água do esgoto muitas vezes corre para as voçorocas).

O Brasil é o país mais afetado na América Latina, mas Argentina, Colômbia, Equador e México também enfrentam problemas com esse fenômeno geológico. E em países da África como Angola, República Democrática do Congo e Nigéria, o problema já tem status de crise nacional.

Mapa-múndi mostrando o risco de voçorocas causadas por erosão pelo mundo. Esse tipo de erosão também ameaça áreas agrícolas férteis em partes da China, Europa e dos Estados Unidos.

‘É perigoso demais viver aqui’

A prefeitura não tem dados oficiais sobre mortes relacionadas a voçorocas, mas há registro de ao menos 50 casas engolidas. Centenas de pessoas abandonaram suas residências, criando “quarteirões fantasmas” em Buriticupu.

A casa de Marisa Cardoso Freire foi classificada de “alto risco” pela Defesa Civil local. A construção ainda permanece à beira de uma voçoroca larga e profunda.

Marisa, assim como outras 100 famílias, teve que deixar o imóvel para trás e se mudar para outra parte da cidade.

A prefeitura se comprometeu a pagar o aluguel das casas provisórias, mas ela diz que o repasse do dinheiro atrasa constantemente, o que leva a ameaças de despejo.

A BBC News Brasil procurou diversas vezes o prefeito de Buriticupu, João Carlos Teixeira da Silva (PP), mas não foram enviados esclarecimentos sobre o caso.


Foto de Marisa Cardoso Freire em sua antiga casa em Buriticupu.  Marisa diz que é difícil aceitar que ela perdeu a casa que construiu. Na antiga casa, dois cães da família caíram no fosso e morreram.

Um episódio com Enzo, seu filho de 10 anos diagnosticado com autismo, foi determinante para a saída definitiva.

"Às vezes eu falava alto com ele, gritava para entrar em casa e ele se irritava. Um dia ele saiu correndo para beira da voçoroca e disse: 'Se tu gritar de novo comigo, eu me jogo no buraco'”, conta Marisa.

“Foi aí que eu falei para o meu marido que não dava mais para a gente ficar aqui. É muito perigoso."

“Quando a gente foi embora, saí com o coração doendo porque a gente lutou tanto para conquistar.”

Como chegou a esse ponto?

O desmatamento é um fator que contribui decisivamente para o surgimento de voçorocas.

Buriticupu, área de floresta amazônica, hoje em dia tem um aspecto árido e pedregoso. Mas já foi rica em árvores como cedro, jatobá e ipê de diversas cores.

Nos anos 1990, a indústria madeireira se instalou na região. Mais de 50 serrarias trabalhavam 24 horas por dia.

"A questão da vegetação é primordial, porque durante um evento chuvoso ela diminui o impacto da gota de chuva no solo." Edilea Dutra Pereira, geóloga e professora da Universidade Federal do Maranhão

Quando a água da chuva não é absorvida no solo por plantas e árvores…


ela empurra partículas do solo e varre a superfície.


Canais se formam e desgastam o solo.

Isso leva ao desenvolvimento de ravinas e voçorocas.

A mudança climática, por meio de chuvas extremas, pode agravar o processo em áreas vulneráveis ao aparecimento de erosões.

Buriticupu tem registrado mais tempestades do que no passado, diz Juarez Mota Pinheiro, climatologista da Universidade Federal do Maranhão.

Nos primeiros meses de 2023, o Estado do Maranhão enfrentou uma das piores enchentes de sua história. Mais de 60 cidades entraram em estado de emergência, milhares de pessoas ficaram desabrigadas e houve dezenas de mortes.

Voçoroca em Buriticupu

Uma das principais voçorocas das quase 30 existentes em Buriticupu

“A intensidade da chuva tem previsão de subir de 10% a 15% (globalmente, até o fim do século). Pode não parecer muito, mas se você tem cada vez mais episódios de chuva extrema, a dinâmica da erosão muda”, afirma o pesquisador Matthias Vanmaercke, da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica.

Ele e seu colega Jean Poesen analisaram dados de mais de 700 voçorocas ao redor do mundo e concluíram que, se a intensidade da chuva aumentar nesse nível, o risco de erosões como as de Buriticupu podem dobrar (e até triplicar, em caso de um cenário ainda pior).

“É difícil encontrar um cientista decente que não vá concordar que a mudança climática piora o problema”, diz Vanmaercke

Medo da chuva

O fenômeno atinge milhões pelo mundo, principalmente na África.

Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, tem centenas de voçorocas — uma delas de 2 km de extensão. São mais de 165 km desse tipo de erosão em uma cidade de 12 milhões de habitantes.

Rodovia do distrito de Mont Ngafula, em Kinshasa, virou uma voçoroca em 2021

Em dezembro de 2022, em uma noite de forte chuva, 60 pessoas morreram após suas casas serem engolidas por uma gigantesca erosão.

Alexandre Kadada acordou no meio daquela madrugada.

“Aconteceu em um espaço de 30 a 40 minutos. A voçoroca começou a abrir e todas as casas desapareceram. O bairro ficou irreconhecível”, ele relata.

“Minhas coisas, minha casa, tudo foi embora. Só consegui salvar meus filhos e minha mulher.”

Uma vizinha dele e os quatro filhos dela morreram na tragédia. O marido dela ficou paralítico.

Alexandre Kadada se tornou presidente do grupo que representa vítimas da tragédia

Os filhos de Kadada agora temem qualquer sinal de chuva forte.

“Foi a chuva que perturbou tudo. A chuva trouxe morte e desespero”, ele diz.

“Nós realmente consideramos isso um novo risco geológico do Antropoceno”, afirma Vanmaercke. Antropoceno é um termo usado por alguns cientistas para se referir aos tempos atuais, quando as atividades humanas exercem influência profunda sobre o planeta.

A população de Kinshasa deverá alcançar 20 milhões de habitantes em 2030 e 35 milhões em 2050, de acordo com o Banco Mundial. A cidade se tornará a maior megalópole da África.

O crescimento urbano descontrolado envolve quase sempre perda da vegetação — uma barreira natural para a erosão — e ocupação ilegal de áreas de risco.


Imagens de satélite mostram Kinshasa em 2004 e 2023

Em Buriticupu, as pessoas também já sentem medo da chuva.

"Tem vezes que cai algo do tamanho de uma casa. Faz um barulhão. Estremece tudo. Aí os olhos de todo mundo enchem de água. A tristeza é uma coisa louca", diz João Batista, de 52 anos, dono de uma oficina que está bem perto de uma voçoroca.

“Eu perdi 40% dos meus clientes. Muita gente tem medo de parar”, conta. Mas ele se recusa a deixar o local.

Onde hoje há uma espécie de minicânion, no passado ficava uma rua onde crianças brincavam, relembra João Batista. Mas tudo foi engolido pela erosão.

Outras casas perto da oficina de João Batista foram abandonadas

Ele decidiu plantar taboca (bambu) com o objetivo de frear o avanço da erosão. Mas dada a escala do problema, a cidade vai precisar de soluções mais amplas.

O que pode ser feito?

Planejamento, obras adequadas e investimentos conseguem evitar desastres, afirma Vanmaercke.

Para interromper o avanço da erosão, as cidades necessitam de bons sistemas de drenagem e escoamento, além de saneamento básico, explica o pesquisador Jean Poesen. Tudo com o intuito de evitar que a água atinja a área das voçorocas.

Imagens de satélite mostram as voçorocas de Buriticupu em 2014 e 2022

Mas são obras de grandes custos que desafiam o orçamento de cidades menores.

O Ministério Público do Maranhão está cobrando na Justiça a execução dos termos de um Acordo Civil Público em que o município se compromete a fazer obras de prevenção e ajudar as pessoas que tiveram suas casas atingidas.

O prefeito João Carlos Teixeira da Silva não quis comentar o processo, mas disse que pediu ajuda financeira ao governo federal para realizar as obras.

Em nota, por meio de dois ministérios diferentes, o governo federal diz que analisa a liberação de R$ 300 milhões para Buriticupu. E afirma que já foram repassados cerca de R$ 630 mil para obras de contenção, restauração de rodovias e demolição de casas.

O Ministério do Meio Ambiente declarou que possui um programa para implementar “sistemas resilientes em cidades”, mas que não há projetos atualmente em Buriticupu.

“Buriticupu não corre risco de desaparecer. Sim, são obras complexas, obras de grandes recursos“, diz o prefeito. “O que nós precisamos é de responsabilidade. Em nível municipal, estadual e federal.”

Mas João Batista sabe que se a voçoroca avançar mais em direção a sua oficina mecânica, ele vai precisar sair do local.

“Isso aqui é a natureza mostrando que se nós não tomarmos conta deste mundo, ele vai se acabar. Se continuar chovendo desse jeito, aí a gente entrega na mão do Senhor. A gente não pode fazer mais nada.”

Shin Suzuki, Jornalista, da BBC News Brasil. Publicado originalmente em 22.04.24

Créditos

Reportagem: Shin Suzuki

Colaboraram na reportagem: Stephanie Hegarty e Emery Makumeno

Editores: Tamara Gil, Alison Gee e Carol Olona

Design: Caroline Souza

Modelo em 3D: Daniel Arce López

Programação: Matthew Taylor, Marta Martí e Simon Frampton

Gerentes de projeto: Holly Frampton e Carol Olona

Produtor: Paul Ivan Harris

Fotografia: Vitor Serrano, Paul Ivan Harris, Dareck Tuba e Alex Huguet/AFP via Getty Images

Outras fontes consultadas: Antonio Guerra, Universidade Federal do Rio de Janeiro; Fernando Bezerra, Universidade Estadual do Maranhão; Gilberto Salviano Almeida Filho e Claudio Luiz Ridente Gomes, Instituto de Pesquisas Tecnológicas; Marco Antônio Gomes e Helena Filizola, Embrapa; Ryan Anderson, University of South Africa Mapa global de erosão: Vanmaercke, M., Chen, Y., De Geeter, S., Poesen, J., Campforts, B., Borrelli, P., and Panagos, P.: Data-driven prediction of gully densities and erosion risk at the global scale, EGU General Assembly 2022, Vienna, Austria, 23–27 May 2022, EGU22-2921 Borrelli, P., Alewell, C., Yang, J. E., Bezak, N., Chen, Y., Fenta, A. A., Fendrich, A.N., Gupta, S., Matthews, F., Modugno, S., Haregeweyn, N., Robinson, D.A., Tan, F. Vanmaercke M., Verstraeten, G., Vieira, D.C.S., Panagos, P. (2023). Towards a better understanding of pathways of multiple co-occurring erosion processes on global cropland. International Soil and Water Conservation Research, 11(4), 713-725.

Como juízes podem divergir tanto?

Só uma possibilidade: não se trata mais de questão jurídica, mas de política

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso (à esq.), e o corregedor do CNJ, Luis Felipe Salomão — Foto: Cristiano Mariz/O Globo e G. Dettmar/Agência CNJ

Divergências entre juízes de Cortes superiores são normais, isso no campo das interpretações jurídicas. Por isso não foi normal a divergência verificada na semana passada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre os ministros Luis Felipe Salomão, do STJ, e Luís Roberto Barroso, do STF. Passou longe do âmbito jurídico.

Tratava-se do caso de Gabriela Hardt, juíza que, em fevereiro de 2019, condenou Lula a 12 anos e 11 meses de reclusão, por corrupção, no caso do sítio de Atibaia. Foi o momento mais importante da Lava-Jato. O CNJ julgava o comportamento profissional de Hardt, mas não pelo processo de Lula. E sim pela acusação de envolvimento dela na criação de uma fundação para administrar recursos provenientes de pagamento de multas por empresas apanhadas na Lava-Jato.

A fundação não saiu, mas Salomão entendeu, em resumo de leigo, que a intenção de criá-la já era forte indício de faltas disciplinares e violações de deveres funcionais. Mais que isso. À juíza podem ser atribuídos crimes de peculato-desvio, prevaricação, corrupção privilegiada e passiva.

Com base nessa argumentação, o desembargador determinou o afastamento da juíza, isso na segunda-feira desta semana. Um dia depois, em reunião do plenário, o presidente do CNJ e do STF, Barroso, definiu com palavras duras a decisão de Salomão: ilegítima, arbitrária, desnecessária, sumária, prematura, injusta e perversa.

Como podem divergir tanto?

Só uma possibilidade: não se trata mais de questão jurídica, mas de política. De um lado, a tentativa de arrasar tudo o que se refere à Lava-Jato. De outro, o entendimento de que, problemas à parte, a operação de Curitiba deixa um legado importante, a demonstração da existência de grossa corrupção no país. E no exterior.

A maioria do CNJ acompanhou Barroso, e a punição a Hardt foi suspensa. Foi o melhor. A acusação contra a juíza parte de uma suposição perversa: que o pessoal da Lava-Jato queria meter a mão no dinheiro das multas e que tudo foi feito para encher os bolsos de procuradores e juízes da operação.

Já está praticamente consumado o cancelamento das condenações da Lava-Jato. De novo, não se inocentam os acusados, mas anulam-se processos. O pessoal, entretanto, quer sangue. Não basta desmontar a operação, é preciso cassar e condenar promotores e juízes do caso. Daí a bronca de Barroso. Parece dizer: calma aí, pessoal.

Foi correto. Mas o ponto é outro: não é normal esse movimento radical para eliminar qualquer possibilidade de combate à corrupção. A quem interessa? Também não é normal o modo tolerante, para ser educado, com que se tratam ações de autoridades.

A Controladoria Geral da União (CGU) negocia com empreiteiras um bom desconto nas multas que haviam concordado em pagar, por meio de acordos de leniência. O chefe da CGU, ministro Vinícius Marques de Carvalho, é dono de um escritório de advocacia que representa a Novonor, ex-Odebrecht, em negociações com o Cade. Ele diz que não tem nada de mais, porque se afastou totalmente do escritório para assumir o cargo público. Está longe de parecer normal.

O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, também parece ter uma noção particular da normalidade na gestão pública. Ele abriu seu gabinete para o sogro, Fernando Fialho, que lá despachava sem ter cargo algum. O caso foi parar na Comissão de Ética da Presidência da República, que considerou normal essa ajudazinha administrativa do sogro.

Outra: tendo seu gabinete informado que ele estava em missão oficial, o que lhe dava direito a voar no jato da FAB e ainda receber diária, o ministro passou três dias acompanhando leilões de cavalos. Revelado o fato, veio a explicação do gabinete: falha no sistema, que registrou indevidamente o pagamento de diárias para dias de folga. O jato da FAB? Estava de carona. Afinal, é o que fazem muitos ministros.

E fica tudo por isso mesmo. Não pode ser normal.

N. da R.: Uma versão anterior deste texto informava incorretamente que a Novonor (antiga Odebrecht) é representada em negociações na CGU pelo escritório do ministro-chefe da CGU, Vinícius Marques de Carvalho. Ele já havia divulgado nota informando que seu escritório, de que está licenciado, representa a Novonor apenas no Cade, e não na CGU. O texto foi corrigido.

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em  20.04.24.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

‘É absurdo que grandes fortunas escapem de tributos’, diz economista que propõe taxar bilionários

Francês Gabriel Zucman quer tributar em 2% riqueza acima de US$ 1 bilhão. Ideia foi levada ao G20 e mira 3 mil pessoas no mundo, com potencial de arrecadação de US$ 250 bilhões por ano

Gabriel Zucma, economista francês que propõe taxar em 2% riqueza acima de US$ 1 bilhão — (Foto: Nelson ALMEIDA / AFP)

Tributar bilionários e grandes multinacionais é tarefa moral, econômica e política, na avaliação do diretor do Observatório Fiscal Europeu, Gabriel Zucman. Apontado como “guru tributário" do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o economista francês de 37 anos se desvencilha da alcunha por considerar-se jovem demais.

Em entrevista ao GLOBO, ele defende não apenas a criação de um imposto mínimo de 2% sobre a fortuna de pessoas com patrimônio superior a US$ 1 bilhão, mas também o aumento da alíquota aplicada às multinacionais, de 15% para 20%. Juntas, segundo ele, as duas medidas arrecadariam pelo menos US$ 500 bilhões ao ano. Suas propostas foram apresentadas aos pares de Haddad no G20.

Em fevereiro, a convite do Ministério da Fazenda, você apresentou aos G20 a proposta de tributar as grandes riquezas. Quem são elas?

O ponto de partida são os super-ricos, pessoas que têm US$ 1 bilhão, sobre as quais incidem alíquotas de impostos significativamente mais baixas do que as que pagam outras categorias sociais. Uma série de estudos confirma este fato em vários países.

Por que isso ocorre?

Os ultrarricos têm tudo planejado. Quando você é extremamente rico, é muito fácil estruturar seu patrimônio de forma que gere pouco ou até nenhum lucro tributável. A noção de rendimento não está muito bem definida em se tratando dos muito ricos. É precisamente assim que conseguem evitar o imposto sobre o rendimento.

Em 2021, a mídia americana revelou que, por vários anos, bilionários como Jeff Bezos (dono da Amazon) e Elon Musk (dono de Tesla e X) pagaram zero ou quase zero de Imposto de Renda. Pesquisas acadêmicas mostram que isso vai muito além de casos isolados. É uma realidade global.

Como é sua proposta?

Consiste em criar um imposto mínimo sobre os ultrarricos igual a 2% de sua fortuna por ano. Se um bilionário paga hoje muito Imposto de Renda, e isso existe, não teria de pagar nada mais. Mas, se alguém como Bezos e Musk paga zero, teria de pagar um tributo igual a 2% de sua fortuna. Se seu patrimônio for de US$ 100 bilhões, recolheria US$ 2 bilhões em imposto.

Vivian Oswald, jornalista, originalmente, de Brasília - DF para O Globo,em 19.04.24