quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

A radicalização dos idosos

Ao abraçarem seita bolsonarista, encontram novo propósito de vida e senso de pertencimento

Idoso bolsonarista no prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

É fácil desdenhar e afirmar que entre os golpistas há um bando de velhos que deveria voltar para o bingo. Falamos em delírio coletivo, saudosismo ou demência sobre gente que acampou em frente aos quartéis e participou da quebradeira, mas a radicalização dos idosos precisa ser olhada com lupa.

Manipulação, abuso e controle emocional são ingredientes usados pela extrema direita para cooptar seguidores, e os idosos foram alvo fácil da seita bolsonarista. Os não ativos digitais têm ainda mais dificuldade de lidar com notícias falsas, teorias da conspiração, trolls e deep fakes.

Não à toa "gaslighting" foi eleita a palavra de 2022 pelo dicionário Merriam-Webster, impulsionada pelo aumento de tecnologias usadas para dominar as pessoas, especialmente em contextos políticos. Sem tradução literal, pela definição é a prática de enganar alguém de forma rudimentar e ter alguma vantagem.

"Gaslighting" começou a ser usada há poucos anos para definir abuso em relacionamentos amorosos, inspirada na peça "Gas Light", de 1938. O personagem principal tenta convencer a mulher de que ela está ficando louca quando reclama que a luz está mais fraca —o marido diz que é sua imaginação.

Exatamente o que acontece sempre que Bolsonaro, parlamentares e blogueiros apoiadores dizem algo inacreditável para a maioria de nós, mas que passa a ser verdade entre seus seguidores. Ao contestarem encontrarão resistência em seus próprios grupos, então passam a aceitar o inaceitável.

Há, obviamente, gente mau-caráter, consciente do que faz, dos danos que provoca à democracia. Mas a massa de manobra, importante para manter o bolsonarismo ativo, não ficou alienada da noite para o dia. O que a extrema direita fez foi lhes dar a ilusão de que participam de algo grandioso. Ao abraçarem a seita bolsonarista, os idosos suprem carências afetivas, encontram um novo propósito de vida, o senso de pertencimento que muitos perderam à medida que envelheciam, inclusive pelo abandono da própria família.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é Jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.01.23.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

É preciso investigar Bolsonaro

Minuta de decreto é mais um elemento a indicar envolvimento do governo Bolsonaro em atos antidemocráticos. Não cabe impunidade a quem viola acintosamente as leis e a Constituição


Na pandemia, cloroquina até para as emas do Palácio

Jair Bolsonaro deixou o País no dia 30 de dezembro. Mas nem por isso está imune às leis brasileiras. Suas ações e omissões continuam passíveis de ser responsabilizadas juridicamente. No domingo passado, hordas de bolsonaristas – acampados desde o resultado do segundo turno das eleições – invadiram as sedes dos Três Poderes, destruindo e vandalizando o patrimônio público. Ainda que o ex-presidente tenha tentado se distanciar do caráter violento dos atos de 8 de janeiro, é evidente a conexão entre a ação dos vândalos no domingo passado e a reiterada campanha de Bolsonaro contra as instituições republicanas, em concreto contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Uma das autoridades cuja omissão se mostrou mais decisiva nos acontecimentos de domingo passado em Brasília foi o ministro da Justiça do governo Bolsonaro, Anderson Torres, que havia sido nomeado neste ano Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Na segunda-feira, Anderson Torres, que estava nos Estados Unidos, foi exonerado do cargo. No dia seguinte, a pedido da Polícia Federal, o ministro Alexandre de Moraes decretou sua prisão preventiva.

A reiterar o vínculo entre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro e o governo Bolsonaro, nas diligências de busca e apreensão na casa de Anderson Torres, agentes da Polícia Federal encontraram uma minuta de decreto presidencial a respeito de um estapafúrdio estado de defesa no TSE, com o objetivo de “garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022″. Segundo o texto, seria constituída uma “Comissão de Regularidade Eleitoral” composta por 17 membros, dos quais 8 seriam militares oriundos do Ministério da Defesa.

Uma rigorosa investigação se impõe. Se for confirmada, a tentativa de atropelar o processo eleitoral, usando as atribuições da Presidência da República, é algo muito grave, que viola os fundamentos da República. Não cabe impunidade a quem desrespeita tão acintosamente a Constituição e as leis do País.

Em novembro do ano passado, dissemos neste espaço e agora, diante de novos e mais graves indícios, reiteramos: “É preciso apurar a responsabilidade jurídica de Jair Bolsonaro e, nos casos cabíveis, aplicar as penas correspondentes. Toda impunidade é prejudicial ao País, mas ainda mais grave seria a eventual impunidade de quem ocupou o mais alto posto da República. Representaria um tremendo mau exemplo para toda a sociedade” (A responsabilidade jurídica de Bolsonaro, 14/11/2022).

A apreensão da minuta de um decreto de estado de defesa com o exclusivo propósito de alterar o resultado das eleições presidenciais é gravíssima. Expõe a audácia e prepotência da cúpula do governo Bolsonaro, que, pelo visto, não queria ser apeada do poder pelo voto popular. Mas é preciso reconhecer: o texto é absolutamente coerente com o espírito antidemocrático e antirrepublicano que Jair Bolsonaro vem demonstrando ao longo de toda sua vida pública.

Não se pode tapar o sol com peneira. A cada dia que passa, surgem mais elementos a indicar o envolvimento de Jair Bolsonaro e membros do primeiro escalão do seu governo no desenho e realização de atos que atentam contra o regime democrático. É preciso investigar, indo até o fim na apuração de tais condutas. O Estado Democrático de Direito – em concreto, o respeito aos direitos e liberdades de cada cidadão – merece esse cuidado.

Na trajetória de responsabilizar os agressores do regime democrático, há um aspecto especialmente importante. Seguindo o devido processo legal, todos aqueles que tiverem comprovada sua participação em atos criminosos e antidemocráticos devem ser alijados do processo eleitoral. Merecem tornar-se inelegíveis. A Constituição prevê essa possibilidade precisamente para que a defesa da democracia seja efetiva.

A barbárie de 8 de janeiro não foi fruto de geração espontânea. É preciso investigar não apenas os loucos acampados, mas também os graúdos – estejam onde estiverem.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.01.23

O contribuinte está mais indefeso

MP que dá à Fazenda superpoderes contra o contribuinte no Carf é problemática em sua forma, motivação e conteúdo

O governo Lula reinstituiu, pela Medida Provisória (MP) 1.160/2023, o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a última instância administrativa para contribuintes questionarem a validade de autuações fiscais. Vinculado ao Ministério da Fazenda, o Carf é formado por quatro conselheiros: dois indicados pela Receita e dois por setores econômicos. Originariamente, em caso de empate, prevalecia o “voto de qualidade”, ou seja, valia por dois o voto do presidente da Turma. Como ele é necessariamente um representante da Receita, na prática o voto de Minerva pesava sempre a favor do Fisco. Em 2020, esse modelo foi alterado: em caso de empate, a decisão passou a ser favorável aos contribuintes, conforme o princípio in dubio pro reo.

A medida é problemática em sua forma, motivação e conteúdo.

Segundo a Constituição, a edição de MPs exige relevância e urgência, sendo vedada em matérias de direito penal e processual civil. Muitos juristas afirmam que sanções administrativas, como as penas tributárias decididas pelo Carf, têm uma dimensão penal e que as leis disciplinadoras das funções e capacidades dos julgadores integram o sistema processual.

Ao justificar a MP 1.160/2023, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, alegou que o desempate pró-contribuinte gerou perdas para os cofres públicos, que o novo Carf tem ignorado jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em favor da União e que seu modelo é fonte de corrupção. Ora, os casos de malfeitos identificados pela Operação Zelotes envolviam justamente conselheiros da Fazenda durante a vigência do voto de qualidade. Além disso, não há evidências de que as decisões do Carf favoráveis ao contribuinte sejam antijurídicas. De resto, o apetite arrecadatório não pode se sobrepor aos princípios de justiça que devem reger a atuação do poder público.

A decisão do Congresso pelo fim dos superpoderes do conselheiro da Receita, com o desempate a favor do contribuinte, foi questionada na Justiça e o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria pela constitucionalidade. O julgamento está suspenso.

A MP 1.160/2023 traz ainda outra grave disfunção, permitindo que, em caso de o Carf dar razão ao contribuinte, a Fazenda recorra à Justiça. Tal possibilidade ignora que o Carf é um órgão da Fazenda. Não faz sentido que a Fazenda acione o Poder Judiciário contra uma decisão que ela mesma proferiu. Trata-se de evidente violação do princípio da unidade da administração pública.

A complexidade do sistema tributário brasileiro é uma das principais causas dos altos índices de litigância judicial. Não há dúvida de que o modelo do Carf pode ser avaliado e discutido no âmbito de uma reforma tributária. No entanto, não é gerando desequilíbrio a favor do Fisco, por meio de mudança abrupta imposta por medida provisória, que se aprimora o seu funcionamento. A representação do contribuinte no Carf não pode ser de fachada, como mero meio de dar ares de legitimidade ao apetite arrecadatório do Estado.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.01.23

Exército terá de reconstruir disciplina e controle da reserva após golpe bolsonarista

Simpatia pelos extremistas pode ter impedido análise correta do cenário de radicalização dos que tomaram a sede dos três Poderes, em Brasília

Blindado e tropa de choque do Exército cercam acampamento em frente ao QG, em Brasília, na noite do dia 8

Um dos piores dias da história do Brasil. É assim que generais ouvidos pelo Estadão classificaram o que houve na Esplanada dos Ministérios, no dia 8, em Brasília. Uma semana antes, o Comando Militar do Planalto (CMP) havia mobilizado 6 mil homens para garantir a segurança da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, sem que estes pudessem ser vistos ou simplesmente aparecer. E tudo saiu como planejado. Nada estragou a festa do presidente eleito.

O que houve, então, para que a segurança falhasse e a chamada “tomada de poder” levada a cabo pelos extremistas pudesse ser concluída com a invasão e depredação das sedes do três Poderes? Houve um apagão na área de inteligência, e o cenário que o CMP tinha era o de mais uma manifestação, como tantas outras levadas a cabo pelo bolsonarismo nos últimos dois anos. Todas, apesar de muitas de suas palavras de ordem serem manifestamente golpistas – intervenção militar, fechar o STF e o Congresso, etc – não haviam passado da palavra para a ação.

O cenário que a chefia da Segurança Pública do Distrito Federal e que os militares do Exército trabalhavam estava errado. Faltou aos responsáveis pela segurança e pelos órgãos de inteligência a correta leitura da tempestade que se avizinhava. E havia raios e trovoadas que a anunciavam nas últimas semanas. Episódios de violência haviam sido registrados em dezenas de atos e protestos dos que estavam inconformados com a eleição de Lula. Eles se repetiram na estradas, com tentativas de assassinato de policiais rodoviários, nas cidades com as agressões a estudantes e em outros atentados à ordem pública.

Até que, na véspera do Natal, bolsonaristas tentaram explodir uma bomba em um caminhão-tanque em Brasília. A tentativa frustrada podia causar caos e mortes no aeroporto de Brasília. Mas não foi suficiente para alertar as autoridades. Muitos dos que tinham responsabilidade institucional continuaram a escalar a crise, como o almirante Almir Garnier Santos, que se recusou a passar o comando da Marinha ao sucessor, o almirante Marcos Sampaio Olsen. Garnier empregara mulher e filho no governo Bolsonaro. E esqueceu que a continência se presta à Presidência e não ao presidente, adubando o extremismo.

Era evidente que a radicalização dos perdedores na eleição lentamente deixava o campo das palavras para passar ao das ações. Saía da arena política para “continuá-la” nas ações armadas. Foi assim que se convocou a intentona do dia 8. Chamada pelos radicais de “tomada do poder”, seus organizadores pediam a participação de militares da reserva que tivessem experiência para enfrentar policiais na manifestação. Deixavam claro que a intenção era acampar na sede dos três Poderes para forçar a ação das Forças Armadas a fim de derrubar Lula. Seguiam o modelos dos golpes registrados recentemente na Bolívia e no Sri Lanka.

Para ter sucesso, a intentona bolsonarista contava com a simpatia que o movimento despertava nos quartéis. Assim também outros radicais no passado tentaram tomar o poder por meio de insurreições armadas nos anos 1920 e 1930. A última vez que um partido político tentara usar essa fórmula foi em 1938, quando o tenente Severo Fournier liderou os fascistas da Ação Integralista Brasileira no assalto ao Palácio da Guanabara, no Rio, então residência oficial da Presidência. Três anos antes, os comunistas, liderados por Luiz Carlos Prestes, haviam tentado tomar o poder, rebelando unidades militares no Rio e no Nordeste.

Fournier e Prestes apostavam no apoio que teriam no Exército e na Armada. E falharam. O mesmo se passou agora com a intentona bolsonarista. É possível que a simpatia pelos acampados na frente dos quartéis tenha levado muitos dos generais a subestimar a ameaça representada pelos extremistas, o que os impediu de analisar corretamente o processo de radicalização acelerada desse grupo. A ideia de que os episódios de fanatismo se reproduziam sem maiores consequências ajudou a criar a avaliação errada.

Agora, confrontados com o fracasso da estratégia para desmobilizar os acampamentos na frente dos quartéis, os generais se veem diante da desconfiança de que teriam sido lenientes com os extremistas. Trata-se de julgamento açodado. Se alguém queria dar um golpe – e a minuta apreendida na casa do ex-ministro Anderson Torres mostra que havia sim quem desejasse isso –, é necessário dizer que a ruptura constitucional só não ocorreu porque os criminosos não obtiveram o apoio que esperavam nas Forças Armadas.

É necessário ainda estabelecer as responsabilidades sobre o que aconteceu em Brasília. E as Inteligências Policial e Militar são as principais responsáveis pelo que houve. Ou por incompetência de ver o que qualquer jornalista já sabia desde sexta-feira, dia 6 – os planos violentos do bolsonarismo –, ou por conivência criminosa. Em qualquer dos casos, o bom senso exige que seus chefes sejam mudados. É preciso apurar as responsabilidades e isolar os extremistas.

Mas também se deve fazer Justiça. O golpe só não teve sucesso também porque, desde os coronéis até o Alto Comandos das Forças, os chefes militares não aceitaram a ruptura desejada pelos extremistas. Eles cumpriram com seu dever. Em tempos extremos, de polarização, a decisão desses homens deve ser reconhecida. Por mais que a simpatia passada dos generais pelo que hoje é chamado de bolsonarismo exista e por mais que esse projeto de poder tenha se mostrado um desastre, é preciso dizer que, no dia 8, só os que se deram bem no governo ou que se fanatizaram aderiram ao projeto de tomada de poder dos radicais.

Os militares têm, agora, a missão de reconstruir as relações com os civis e a disciplina entre os milhares de integrantes da reserva. O caso do coronel Adriano Testoni não é único. Após ofender o Exército e seus generais no dia 8, o coronel bolsonarista foi indiciado em Inquérito Policial Militar (IPM), concluído em 3 dias, depois de ter sido aberto por ordem do general Gustavo Henrique Dutra Menezes, comandante do CMP. Enfrentar o extremismo será uma das principais missões da atual geração de oficiais. Com o devido processo legal, mas sem passar a mão na cabeça ou anistiar os bandidos que envergonharam o País.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é Jornalista especializado em assuntos militares. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.01.23

A democracia militante

Na ascensão de Hitler houve uma extrema complacência em nome de um formalismo jurídico ancorado na defesa das liberdades

Situações de exceção exigem medidas excepcionais. Não se combate a violência, especialmente de cunho autoritário ou totalitário, com instrumentos paliativos, como se se tratasse de um mero acidente de percurso de pessoas inocentes ou supostamente bem-intencionadas. A defesa da democracia requer atitudes firmes, que não compactuem com o crime, a desordem e, enfim, com a sublevação ou insurreição. Houve sim uma tentativa de golpe conduzida pela extrema direita, pelo bolsonarismo e seus apoiadores, que se insurgiram contra o resultado das eleições, o que vale dizer contra a própria Constituição.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tomou as medidas acertadas dada a gravidade da crise institucional que se armou. Não compactuou com a violência e chamou à responsabilidade os agentes políticos e policiais, assim como apoiadores financeiros, que sustentaram a tentativa de subversão das instituições. Alguns o fizeram por convicção, outros por omissão, outros ainda por mero oportunismo. Não importa. Puseram assim a democracia em risco, sob o manto de uma suposta tolerância com as “manifestações”.

Na ascensão de Adolf Hitler ao poder, houve uma extrema complacência com um projeto liberticida que já mostrava toda sua face aterradora, e o fizeram em nome de um formalismo jurídico ancorado na defesa das liberdades. Os liberticidas foram sustentados pelos defensores das liberdades e do Estado Democrático de Direito. A democracia marcha para a sua extinção quando se curva a formalidades carentes de substância, que assumem, então, a função de desintegração das instituições republicanas. Projetos autoritários e totalitários frequentemente se utilizam de instrumentos democráticos para minar a própria democracia.

O roteiro estava claro, só não viu aquele que não quis ver. Ato primeiro, a suposta defesa das liberdades e da Constituição, o jogar dentro daquelas quatro linhas, quando todo o jogo era já instrumentalizado de fora. A defesa das liberdades se delineava como liberdade para transgredir. Ato segundo, manifestações ditas democráticas em todo o País e, em particular, no entorno dos quartéis, como se fosse próprio da democracia acolher discursos cujo único objetivo consiste em destruir essa mesma democracia. Um regime que transige com seus fundamentos cessa progressivamente de existir. Ato terceiro, sentindo-se suficientemente fortes e apoiados, os “manifestantes” abandonaram a sua máscara democrática e assumiram a sua verdadeira natureza autoritária e golpista. Vandalizaram e destruíram os símbolos mesmos da República: o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

Cabiam sim medidas excepcionais, como as tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes e pelo presidente Lula da Silva. Manifestantes/golpistas devem ser sim presos e julgados, não podendo haver aqui nenhuma tergiversação. Se isso não for feito, dá-se ainda mais força para que tais atos se repitam. Ou se para agora, ou o futuro se tornará ainda mais incerto. Que mais de mil pessoas sejam presas, é da natureza da defesa democrática, fundada na responsabilização desses supostos “revolucionários”, boa parte deles já solta uma vez identificados, sobretudo crianças e idosos. A analogia com campos de concentração é literalmente grotesca. Alguém foi morto? Alguém foi torturado? Quem são esses pais e mães que levam seus filhos a manifestações golpistas? Não deveriam ser eles também responsabilizados? Quando a polícia cumpre o seu dever, procura-se denunciá-la.

Os dirigentes do Distrito Federal, governador, secretário de Segurança Pública e comandantes militares, foram responsabilizados. É propriamente intolerável que golpistas tenham sido protegidos, se não apoiados, pela Polícia Militar. Responsabilidades devem ser apuradas e, em particular, o governador deveria ser reinstituído em suas funções se nada for provado contra ele. Dito isso, não se deve tomá-los como bodes expiatórios, pois a responsabilidade é compartilhada, pois, dentre outras questões, convém destacar: onde estava o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável pelos palácios presidenciais? Por que não reforçou ou chamou o Batalhão da Guarda Presidencial antes de a violência ganhar aquela proporção? Onde estava a Agência Brasileira de Inteligência (Abin)? Onde estava a Polícia Rodoviária Federal (PRF) quando ônibus de todo o País levavam os golpistas para Brasília?

Como muito bem lembrado por Marcelo Godoy, em artigo neste jornal, citando Karl Loewenstein, a propósito de seu texto clássico Democracia militante e direitos fundamentais, publicado em 1937, a defesa da democracia não pode transigir com a destruição de seus fundamentos utilizando-se de meios democráticos e de mero formalismo jurídico. Judeu alemão, teve ele de fugir de sua terra natal, refugiando-se nos EUA, onde se tornou professor universitário e consultor do Departamento de Estado. Sob os auspícios deste, escreveu dois livros que merecem ser lidos para melhor compreendermos o Brasil atual: Brasil sob Vargas e A Alemanha de Hitler.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.01.23

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Atos terroristas aumentam riscos de prisão de Bolsonaro, avaliam aliados

Os atos terroristas que culminaram com a invasão e a depredação das sedes dos três poderes da República elevaram os temores entre aliados de Jair Bolsonaro de que o ex-presidente vai acabar preso em algum momento ao longo dos próximos meses.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (Alexandre Cassiano/O Globo)

Antes de centenas de extremistas bolsonaristas invadirem e depredarem as instalações do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso, interlocutores de Bolsonaro avaliavam que havia um risco médio de prisão.

Mais de 200 bolsonaristas radicais foram presos em flagrante durante intento golpista em Brasília — Foto: Uelsei Marcelino/Reuters

Agora, a leitura compartilhada por aliados do ex-presidente e por ministros de tribunais superiores ouvidos pela equipe da coluna é de que a situação de Bolsonaro ficou delicadíssima.

“Eu acho que, a médio prazo, ele não escapa”, avalia um magistrado que acompanhou perplexo os desdobramentos em Brasília.

Esses aliados de Bolsonaro e magistrados avaliam que os protestos golpistas farão desmoronar o capital político do ex-chefe do Executivo, já desgastado pela viagem dele aos Estados Unidos enquanto centenas de extremistas ficaram acampados debaixo de chuva na frente de quartéis contra o resultado das urnas.

No cálculo político de fiéis aliados, quanto mais vulnerável Bolsonaro estiver e menos apoio popular reunir, maiores as chances de ele se tornar uma “presa fácil” para o Judiciário e acabar na cadeia.

O maior temor no círculo bolsonarista é com duas investigações que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF), ambos nas mãos de Alexandre de Moraes: o inquérito das fake news e o das milícias digitais.

Foi no âmbito desses dois inquéritos que a Advocacia-Geral da União (AGU), comandada por Jorge Messias, pediu a Moraes a prisão de todos os envolvidos na invasão de prédios públicos federais, inclusive a do ex-secretário de segurança pública do DF Anderson Torres.

“Depois de hoje, Alexandre vai ter todo o respaldo de que precisar”, afirma um colega de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O sinal de alerta soou mais forte entre bolsonaristas nos últimos dias, depois que Moraes determinou a quebra de sigilo telefônico e de dados de apoiadores de atos antidemocráticos e permitiu a extensão da medida a todos os que tiveram contato com eles, conforme revelou o site Metrópoles.

Só na noite de domingo, depois de horas de quebra-quebra e tumulto em Brasília, Bolsonaro rompeu o silêncio e escreveu no Twitter que “depredações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017, fogem à regra”.

Antes disso, ainda, os canais e redes sociais do ex-presidente seguiam fazendo publicações sobre sua gestão, como se nada de anormal estivesse acontecendo.

Ao comparar os protestos de agora com os do passado, Bolsonaro buscou uma falsa equivalência. Nos atos do passado, ao contrário dos deste domingo, a polícia estava presente para conter os invasores, o que não se viu desta vez.

“Multidão sem líder vira turba, vão surgir ‘lideranças’ mais malucas. Este sempre foi o meu medo”, avalia um influente interlocutor de Bolsonaro, temeroso sobre o futuro do ex-chefe. “Se Bolsonaro virar um avestruz e fingir que nada disso que está acontecendo é com ele, vai ter problemas.

Rafael Moraes Moura, originalmente, para O Globo, em 09.01.23, às 04h00

Até onde irão os órfãos de Bolsonaro?

Dependerá da diplomacia e firmeza do governo Lula que as tentativas nada pacíficas dos últimos golpes do bolsonarismo radical sejam diluídas ou fortalecidas com o consentimento de parte das Forças Armadas.

Um homem com uma bandeira brasileira se manifesta contra Lula no Planalto neste domingo durante a tomada de várias instituições por apoiadores de Bolsonaro. (Adriano Machado, Reuters)

Quando tudo parecia uma lua de mel para o novo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vencedor das eleições, e quando as forças democráticas do país comemoravam a notícia de seu governo , de repente a mais radical serpente de Bolsonaro ergueu a cabeça e ousou contra todas as proibições e ameaças de tentar invadir o Congresso Nacional no estilo Trump .

O mais estranho é que tudo parecia em paz e que até ontem políticos partidários de Bolsonaro, após sua nada gloriosa decisão de deixar o país , abordavam Lula e seu novo governo sem xales. Sua vitória parecia completa e os dirigentes de seu Gabinete consideravam as escaramuças brasilienses dos fanáticos de Bolsonaro que se recusavam a deixar a capital um resíduo inócuo que acabaria cansando seus protestos e desistindo de seus ares golpistas.

O que aconteceu neste domingo em Brasília, contrariando todas as expectativas e desafiando as ameaças do novo governo, acabou alarmando, porém, pois ainda não se sabe quem está por trás desses milhares de bolsonaristas que chegaram à capital em uma centena de ônibus, especialmente de o sul rico do país, aparentemente pago por empresários ainda leais a Bolsonaro do grupo conservador e fascista do agronegócio.

É possível que o novo governo e as boas relações de Lula com os militares acabem por dissipar os temores e as tentativas dos manifestantes que querem que os militares deem um golpe para derrubar o novo governo progressista. É a hipótese dos mais otimistas que veem nas manifestações o último golpe do descontentamento que vai desembocar nas águas da borragem.

Há, porém, latente, desde antes da vitória de Lula, uma teoria sutil e perigosa sobre os limites entre protestos de rua e liberdade de expressão. É o argumento que os militares mais simpatizantes dos bolsonaristas abraçam que alegam que o direito aos protestos, desde que não sejam violentos, é garantido pela Constituição. E aí reside neste momento o difícil equilíbrio entre o protesto democrático e as tentativas de derrubar nas urnas o novo governo democraticamente sancionado.

Daí a importância de como podem terminar as tentativas de invadir o Congresso, ainda que hoje vazio, e continuar com atos de violência física e peticionar aos militares que declarem a ilegalidade das eleições e atuem contra o novo governo. Um governo ao qual não emprestam autoridade, pois continuam com a ladainha de que as eleições não foram justas e a vitória de Bolsonaro foi roubada, nada mais parecido com o que já vimos nos Estados Unidos com a derrota de Donald Trump.

Tudo isso indica que Bolsonaro segue na ativa desde seu exílio voluntário nos Estados Unidos e daqui, no Brasil, por meio de seus mais fiéis seguidores, principalmente o mundo dos empresários que desaprovaram a volta de Lula, a quem seguem. ".

Na hora de despachar essa análise, toda a atenção está voltada para o que os militares mais próximos de Bolsonaro podem pensar e decidir. Se não houver surpresas, a esperança do novo governo, disposto a usar a força contra os golpistas, é que ajam com pés de chumbo para que, sem ter que enfrentar os manifestantes com a força das armas, consigam convencê-los a voltem para suas casas.

Tudo isto para evitar um confronto violento com as forças policiais que poderia manchar o clima de diálogo e paz política e social criado pela esperança de que se abre a chegada de um novo Governo, no qual, pela primeira vez, representantes de todas as fazendas do país, mesmo aquelas até agora sempre deixadas na sarjeta. Entre os 37 ministros do novo governo de Lula há, de fato, representantes das camadas mais baixas da sociedade que nunca haviam feito parte de um governo nacional no passado.

O resultado da diplomacia e da firmeza do governo Lula vai depender se as tentativas nada pacíficas dos últimos golpes do bolsonarismo radical, que já começam a se espalhar de Brasília a São Paulo e que podem se multiplicar nos próximos dias, acabem se diluindo sem consequências maiores ou podem ser fortalecidas com o consentimento da parte das Forças Armadas que continuam, ainda que nas sombras, apoiando o apetite golpista do bolsonarismo. Um bolsonarismo que não se confunde com a direita que, embora com nojo, aceitou democraticamente o resultado das urnas.

Juan Árias, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS no Rio de Janeiro. Publicado originalmente em 08.01.23, às 18:39hs

Brasil precisa da ação dos três poderes para erradicar o sectarismo de Bolsonaro

Além de parasitar a democracia, a extrema direita brasileira se apoderou da República e dos símbolos nacionais, abrigada por uma falsa sensação de onipotência

A polícia brasileira detém uma série de apoiadores de Bolsonaro após o assalto à Presidência, no Brasil, neste domingo. (Ueslei Marcelino, Reuters)

A versão brasileira do atentado ao Capitólio , ocorrido há exatos dois anos, é tão aviltante para a política, cínica para a república e prejudicial para a democracia quanto o original americano, mas contém elementos ainda mais alarmantes no caso do Brasil.

O populismo de extrema direita que levou Bolsonaro ao poder em 2018 tem uma relação parasitária com a democracia. Bolsonaro e seus seguidores dizem defender a liberdade e a têm usado para embalar a população com desinformação; Dizem que defendem a democracia e elogiam o regime militar. No Brasil de Bolsonaro, como nos Estados Unidos de Trump , as palavras liberdade e democracia não são mais bens comuns: são instrumentos desse novo tipo de fascismo. Basta ver como rejeitam os resultados das pesquisas, como atacam seus adversários, como não aceitam o que os contradiz. As cenas deste domingo falam por si.

Além de parasitar a democracia, a extrema direita se apoderou da República e de seus símbolos. A bandeira brasileira tornou-se o símbolo de uma festa; Os uniformes camuflados, restritos ao uso militar pela legislação brasileira, viraram fetiche. O hino nacional é interpretado não como símbolo de uma comunidade imaginada, mas como afirmação moral de um grupo que exclui outros nacionais. A tentativa de tomada da República encontra eco vergonhoso entre os militares da reserva que querem usá-la para ver as Forças Armadas envolvidas em um golpe. É, sem dúvida, uma corrupção de uma ordem moral.

O bolsonarismo apresenta vários elementos sectários: o culto à personalidade, o estado de graça expresso no carisma, a percepção de um ambiente hostil, a leitura religiosa extremista, a ilusão de acesso à verdade. A camada social do bolsonarismo atinge uma parcela da população que não está acostumada a sentir o rigor da lei em um país desigual como o Brasil: geralmente brancos, pertencentes às camadas médias-altas, muitos deles militares da ativa e na reserva das Armadas Forças, da polícia.

Isso dá aos bolsonaristas uma falsa sensação de onipotência e a percepção delirante de serem a reserva moral da nação. Neste domingo, em Brasília, alguns deles confraternizaram com os policiais e publicaram fotos e vídeos comemorando o feito . Eles não têm medo de serem punidos, porque para eles a lei só se aplica aos outros. Historicamente, e infelizmente, eles não estão errados.

Apoiadores do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, durante assalto ao Palácio do Planalto, sede do Executivo federal. (Stringer, Reuters)

Desde o fim das eleições, grupos de extrema-direita se mobilizaram para protestar em Brasília. Em dezembro, a capital foi palco de um incêndio criminoso e quase foi alvo de um ataque a bomba. Pouco foi feito. Centenas de pessoas permaneceram semanas em frente ao quartel, sob a omissão dos comandantes militares, alimentando seus corpos com churrasco e seus espíritos com o canto de falsas notícias sobre uma possível intervenção. Sob a proteção dos policiais uniformizados, outros grupos chegaram neste fim de semana em uma caravana de 100 ônibus.

Inteligência, segurança ou polícia? A capital do maior país do hemisfério sul foi entregue. O secretário de Segurança do Distrito Federal, o ex-policial Anderson Torres, estava nos Estados Unidos. Ministro da Justiça do Governo de Bolsonaro, Torres acabou sendo exonerado do novo cargo nesta tarde pelo governador de Brasília, Ibaneis Rocha.

Enquanto a população assistia ao show de terror pela televisão, o presidente Lula esteve na cidade de Araraquara, interior de São Paulo, devastada pelas fortes chuvas dos últimos dias, prestando apoio ao prefeito Edinho Silva. Ao saber o que estava acontecendo em Brasília, rapidamente se formou um gabinete de crise. Em breve e tensa coletiva de imprensa, o novo presidente informou que havia decretado a intervenção federal na capital. Sem pedir o apoio das Forças Armadas, Lula terá que contar com a ajuda dos demais governadores, que deverão fornecer policiais, e da Força Nacional de Segurança.

A reação das outras potências será decisiva para conter esse novo fascismo. O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, e os ministros do STF já se posicionaram a favor de Lula. Se a extrema direita pretender uma estratégia de desgaste e tensão permanente com o governo eleito, caberá aos três poderes culpar os patrocinadores, influenciadores e agentes públicos envolvidos na tentativa de golpe. Ou a república e a democracia brasileira sairão fortalecidas, ou ficarão à mercê do sectarismo de Bolsonaro.

Eduardo Heleno, o autor deste artigo. é cientista político e professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST-UFF) no Brasil. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 08.01.23, às 21:43hs

Um lúmpen de extrema direita

O que aconteceu em Brasília nos fala de uma espécie de extrema-direita que, com um discurso de lei e ordem, dinamita o quadro institucional e gera imagens que rimam com a anarquia pura e simples.

Apoiadores de Bolsonaro durante o assalto ao Congresso, ao STF e ao Planalto neste domingo. (Adriano Machado, Reuters)

A era Bolsonaro havia terminado sem um fim verdadeiro. O presidente não organizou a esperada rebelião contra o parecer das urnas que deu a vitória a Luiz Inácio Lula da Silva por margem estreita, mas também não entregou a faixa presidencial “de forma republicana”. Ao contrário, o ex-presidente brasileiro apareceu em uma foto curiosa em Orlando comendo frango frito em uma famosa rede americana enquanto Lula se preparava para assumir seu terceiro mandato. Mas, ao final, Bolsonaro – que insistia em encarnar uma espécie de trumpismo sul-americano – teve sua versão brasileira do assalto ao Capitólio, dois anos depois daquele “ato”.

Além dos detalhes, que serão revelados, sobre quem fretou os ônibus, como foi organizada a mobilização, quais os recursos logísticos disponíveis e como operou o laxismo policial/militar inicial, a verdade é que o que aconteceu em Brasília nos fala de uma espécie de extrema-direita que, com um discurso de "lei e ordem", faz explodir as actuais instituições formais e informais e gera imagens que rimam com a anarquia pura e simples. Uma extrema direita “lumpen” que teve no bolsonarismo uma de suas expressões máximas. Esses direitos podem acabar sendo -ao contrário da opinião de muitos progressistas- mais uma ameaça do que uma garantia para o "sistema". A emoção insurrecional, o estranho folclore, a conspiração, substituem qualquer cálculo político. O que aconteceu no Brasil se encaixa em um clima da época,

Em 2020, vimos tentativas de tomada do Parlamento alemão por grupos ultra (o governo considerou esses eventos um ataque insuportável ao coração da democracia). Durante a violenta confusão, cânticos de direita foram entoados e bandeiras do antigo Reich alemão, faixas com o Q de QAnon (uma famosa plataforma de conspiração) e emblemas neonazistas foram exibidos, causando uma forte onda de indignação na opinião pública democrática alemã . E, recentemente, os serviços de segurança alemães fecharam uma rede de extrema-direita que planejava um golpe extravagante. Na Itália, grupos antivacinas infiltrados pela extrema direita tentaram tomar o Palazzo Chigi, sede do governo, em 2021. "Esta noite tomaremos Roma", ameaçou então o grupo neofascista Forza Nuova.

Em tom um pouco diferente, o fracassado ataque -quase- contra a vice-presidente argentina Cristina Kirchner , cometido por integrantes de uma quadrilha de vendedores de açúcar em flocos, mostrou vínculos entre haters e grupos políticos informais organizados por meio do WhatsApp, imersos em curiosas formas de radicalização.

Será necessário ver, num futuro próximo, como operam as tendências opostas à normalização/demonização e à ruptura do status quo que se aninham na extrema direita do século XXI; e a dinâmica de muitas forças desencadeadas que são difíceis de controlar.

No caso brasileiro, as imagens de Brasília parecem um bumerangue do bolsonarismo. O fato de a principal mídia brasileira ter se referido aos bolsonaristas radicais como terroristas mostra o quanto o país mudou desde os dias da prisão de Lula aos de sua volta triunfante ao poder ( O Estado de S. Paulo sustentou em editorial que "os golpistas se rebelam e aqueles que os apoiam devem ser punidos de forma exemplar"). E essa mudança operou graças ao próprio Bolsonaro. Com seu estilo vulgar de extrema direita de gangue, que, ao invés de construir um regime autoritário, degradava ad infinitumvida cívica, quebrou suas pontes com parte das elites e acabou isolando o Brasil do mundo, conseguiu que grande parte dos grupos de poder acabassem "anistiando" Lula após tê-lo demonizado impiedosamente. Enquanto isso, negociou uma frente democrática "até doer" para tirar Bolsonaro do poder.

O problema, no caso do Brasil, é que o bolsonarismo obteve quase a metade dos votos e deixou um rastro de lunáticos em ação. Aliás, hoje em dia vimos pessoas invocando o apoio de extraterrestres com as lanternas dos celulares voltadas para o céu, acampamentos na porta dos quartéis pedindo golpe, apelos à guerra santa... e até quem negou que Lula fosse o presidente e destacou que o general Augusto Heleno já estava no comando. Que o Brasil passa por grupos de poder locais, forças de segurança, igrejas, setores do agronegócio... e neste 8 de janeiro apareceu uma amostra disso vandalizando instituições como o Congresso; um Congresso onde os bolsonaristas terão uma grande representação.

O editor-chefe da revista Piauí resumiu a tensão atual: "Nunca foi tão fácil e nunca foi tão difícil organizar um golpe". Os golpistas conseguiram, aparentemente com a aquiescência de setores das forças de segurança, entrar em diversas instituições; mas um golpe é outra coisa. Precisamente o que surpreende neste novo tipo de movimento insurrecional, que tem como expressão máxima o assalto ao Capitólio, é a sua extrema incompetência estratégica. Algo que pode nos tranquilizar e nos inquietar ao mesmo tempo.

Pablo Stefafoni, originalmente, do Rio de Janeiro para o EL PAÍS, em 08.01.23, às 22:32 hs.

Ibaneis se isola no MDB e tem pedido de prisão defendido por membros do Judiciário

Governador do DF teve poderes esvaziados com decreto de Lula de intervenção na segurança pública

Os atos golpistas em Brasília neste domingo (8) deixaram o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), isolado, inclusive dentro do seu partido.

A omissão das autoridades na capital, que não conseguiram impedir os ataques a prédios públicos, gerou críticas abertas entre correligionários e, até mesmo, a defesa da prisão do emedebista por ministros de tribunais superiores.

Para esses magistrados, a percepção é de que as cenas de barbárie vistas neste domingo são resultado da leniência com a qual as forças de segurança vêm tratando as manifestações golpistas, não só em Brasília. Eles defendem a prisão de Ibaneis e criticam o Ministério Público Federal, que não agiu com mais contundência para coibir a escalada da violência.

No MDB, algumas críticas a Ibaneis são públicas. "O chefe da Segurança do GDF [Anderson Torres] e a leniência local do governo exigem uma intervenção federal imediata. Os golpistas não passarão e a ordem prevalecerá", escreveu o senador Renan Calheiros (MDB-AL) em uma rede social.

Juliana Braga no Painel da Folha de S. Paulo, em 08.01.23, às 19h26

Punhado de idiotas

Líderes da malta golpista de Brasília precisam ser punidos no limite da lei

Vândalos bolsonaristas atacam o Palácio do Planalto - Ueslei Marcelino/Reuters

O punhado de imbecis criminosos que vandalizou prédios da cúpula dos três Poderes em Brasília não conta com o apoio da imensa maioria da sociedade brasileira, que endossa os valores democráticos e respeita o resultado das urnas.

Sua causa, um golpismo tacanho, não dispõe de respaldo político entre as forças legitimamente eleitas e representadas no Parlamento. Vociferam em nome de si mesmos e, quando muito, de um ex-presidente que se escafedeu em silêncio para o exterior.

Os celerados talvez acreditem que atacar monumentos de concreto, esvaziados num domingo, signifique alguma conquista sinistra. Na realidade, apenas manifestam covardia, estupidez e espírito de manada. As instituições do Estado de Direito, que se fortalecem há quatro décadas, estão a salvo da boçalidade de poucos vândalos.

A capital federal já foi palco de protestos violentos, do badernaço de 1986 às jornadas de 2013. Nunca antes, porém, manifestantes chegaram com tal ferocidade aos interiores de palácios, e por motivo tão vil. Afrontam a democracia, perturbam a paz e depredam patrimônio público por nada além de terem suas taras rejeitadas pela maioria dos concidadãos.

A marcha dos idiotas será em um futuro próximo apenas um parágrafo vexatório da história do país. Não pode, no entanto, ser minimizada agora. O que fizeram os arruaceiros de Brasília, por patéticos que se mostrem, foi gravíssimo.

Os líderes da malta devem ser identificados, investigados e punidos nos limites máximos da lei. Eventuais financiadores e apoiadores instalados em cargos públicos, idem, com agravantes.

A desídia das forças de segurança, em particular do governo do Distrito Federal, é indesculpável e merece apuração rigorosa. O governador Ibaneis Rocha (MDB), um bolsonarista dissimulado, exonerou o secretário responsável, Anderson Torres, ex-ministro e sabujo de Jair Bolsonaro (PL). É pouco.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretou intervenção federal na segurança brasiliense, o que a esta altura não pode ser considerado um despropósito. Restam grupelhos acampados em frente a quartéis; deve-se supor que parte dos energúmenos tenha acesso a armas e nenhum escrúpulo.

O trabalho de desmobilização dos bandos precisa ser conduzido com inteligência e sem hesitação. O governo, que dispõe dos meios para tanto, deveria abster-se de proselitismo político na tarefa.

Cumpre demonstrar à população que a normalidade democrática está e será preservada, a despeito de rosnados de minorias raivosas que imitam os derrotados do Capitólio americano. O país tem problemas mais importantes a enfrentar.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 09.01.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

Fracasso bolsonarista na tomada dos palácios em Brasília beneficia Lula e Alexandre Moraes

Petista receberá apoio dos presidentes dos outros Poderes contra a tentativa de tomada do poder ensaiada por extremistas; Moraes deve ganhar fôlego para conduzir os polêmicos inquéritos no STF

Lula visita Palácio do Planalto após atos terroristas. Foto: Wilton Junior/Estadão 

O bolsonarismo deu um tiro no pé ao promover a chamada “tomada do poder” em Brasília, com a invasão e depredação dos prédios dos três Poderes da República. A ação dos extremistas que levaram o caos ao coração do Estado terá como consequência o fortalecimento, ainda que passageiro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de emprestar novo apoio aos atos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em seu polêmico inquéritos sobre os atos antidemocráticos.

Essa é a análise feita ontem por oficiais generais e coronéis consultados pelo Estadão. A repulsa deles ao que aconteceu em Brasília foi unânime. “O que aconteceu hoje é muito sério! Para mim, não é surpresa. Extremismo e fanatismo político sempre acabam em violência. Agora é aplicação da lei, com o devido processo legal, com muita presteza.”, afirmou à coluna o general Carlos Alberto dos Santos Cruz. “Isso é o resultado de longo tempo de tolerância, com irresponsabilidade, desrespeito, fanfarronice, indústria de fake news criminosas e impunidade.”, disse. Apesar disso, muitos em Brasília acreditam que o Exército precisa deixar claro de que lado está. Não haveria mais espaço para tergiversações.

Lula nesta segunda-feira, 9, se reunirá com os chefes dos outros dois Poderes – Legislativo e Judiciário – , que vão lhe dar apoio para medidas, como a intervenção na Segurança Pública do Distrito Federal (DF). Se antes o mundo político já desenhava um apaziguamento em torno do novo presidente que não se via na sociedade, esse fosso entre os dois tende a ficar maior ainda. A preservação da democracia no País será a força que deve selar essa união, da qual devem ficar de fora apenas os parlamentares que representam o bolsonarismo radical, como Carlos Jordy (RJ), que insiste na mentira de que a destruição em Brasília foi obra de infiltrados.

Trata-se de argumento não só escandalosamente mentiroso como, se levado a sério, poderia levar seu autor a ser alvo de investigação por obstrução de Justiça. É que no mundo das investigações criminais os testemunhos têm efeito – ninguém tem liberdade para mentir sobre autoria de crimes, ainda mais quem, potencialmente, pode conhecer fatos relacionados à investigação, sob a pena de ser acusado de falso testemunho ou de obstrução da Justiça.

Como o deputado tem a coragem de defender ladrões e vândalos do patrimônio público? Bandidos que roubaram armas, destruíram prédios. Quo usque tandem, Catilina abutere patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? Quem ad finem sese effrenata iactabit audacia? Até quando abusarás de nossa paciência?, perguntava Cícero na primeira oração contra Catilina. Por quanto tempo ainda esse teu comportamento faccioso nos enganará? Até que ponto você levará a tua desenfreada audácia? Cicero pensava em proteger a República contra os que pretendiam matá-la.

Os tempos são outros. É da fase de seus linossignos que Cassiano Ricardo escreveu a Pequena Saudação ao Ano 2000, série de cinco poemas dedicada ao diplomata e amigo José Guilherme Merquior. Ricardo abre o segundo poema da série com os versos: “Ícaro morreu,/ não por voar/ junto ao sol/ mas de obsoleto”. Os mitos de então conversavam com o poeta na rua e o convidavam a assistir a Antonioni no cinema. Ele conclui com outros três versos geniais, uma antevisão de nossos tempos: “Tudo o que foi/ ontem é/ outra era”. A ação dos bolsonaristas teve esse condão. E é Moraes quem parece anunciar uma outra era no despacho em que decretou o afastamento do governador distrital Ibaneis Rocha.

“A Democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a ser portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois como ensinava Winston Churchill, ‘um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado’”, escreveu Moraes.

O ministro Alexandre de Moraes deu seu mais duro despacho no inquérito dos atos antidemocráticos 

Moraes aproveitou o momento. Não apenas afastou Ibaneis. Também determinou o desmonte de todos os acampamentos na frente de quartéis, coisa que o Exército relutou fazer até domingo, bem como a prisão em flagrante de todos os acampados com base na lei antiterror, por tentativa de golpe de estado e de abolição do estado democrático de direito, além dos delitos de formação de quadrilha, ameaça e incitação ao crime. Se for levada ao pé da letra, a ordem poderá pôr na cadeia milhares de pessoas.

Também pôs a corda no pescoço das autoridades responsáveis para que sua ordem não se torne letra morta. Mandou intimar a todos os governadores, prefeitos e comandantes militares, que devem se envolver nessa operação. Os governadores devem cuidar para que suas polícias cumpram a ordem, os prefeitos devem auxiliar as polícias e os militares não devem se opor. Quem não obedecer ao ministro será responsabilizado. Também mandou apreender todos os ônibus usados nas caravanas dos extremistas, proibiu novos protestos até o dia 31 em Brasília e mandou retirar do ar 17 contas, páginas e perfis de bolsonaristas das redes sociais.

É o mais duro despacho do ministro até hoje no inquérito dos chamados atos antidemocráticos. “Com as imagens das câmeras de segurança, esse pessoal vai ser identificado e vai responder processo.... e os incitadores covardes estão longe. Tenho certeza que nenhum que estimulou a violência estava lá”, afirmou Santos Cruz. “Agora é inquérito, identificação de autoria de quem fez incitação à violência, financiamento, planejamento, execução e omissões. Isso é crime. Isso não é oposição política”, disse o general.

A reação de Moraes demorou poucas horas para se fazer sentir. Hoje, ela deve ser referendada pelos demais ministros do Supremo, todos horrorizados com o atentado contra o prédio da Corte, o vilipêndio de seus armários e cadeiras, onde um manifestante chegou a defecar. O ultraje à Justiça nunca chegou a esse ponto, nem quando o regime militar aposentou compulsoriamente ministros da Corte.


HR SÃO PAULO/SP 09/11/2019 - INTEGRALISMO ESPECIAL DOMINCAL POLITICA - Integrantes do Movimento Integralista Brasileiro se reunem no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo. FOTO: HÉLVIO ROMERO / ESTADÃO

O mesmo pode se dizer sobre o Palácio do Planalto. A última vez que um Palácio presidencial fora atacado por golpistas ligados a um movimento político foi em 1938, quando a Ação Integralista do Brasil (AIB) atacou o Palácio da Guanabara, no Rio, com seu lema Deus, Pátria e Família, ressuscitado 80 anos depois pelo bolsonarismo. O putsch comandado pelo tenente Severo Fournier estourou no dia 11 de maio. Naquela madrugada, o então ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, recebeu um telefonema do chefe de polícia, Filinto Muller. Estavam assaltando o palácio, residência do presidente da República, Getulio Vargas.

Ao lado de Muller estava o então coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, então interventor no Rio Grande do Sul. Foi Cordeiro de Farias quem socorreu o ditador Vargas com cinco policiais armados – mais tarde receberia outros 40 soldados. Às cinco horas da manhã, conseguiu entrar pelos fundos do palácio e encontrou o presidente. “Vá descansar. Deixe o resto por minha conta.” Cordeiro tinha homens suficientes para resistir. No fim, os atacantes foram rendidos – acabaram fuzilados nos fundos do palácio. Seu líder, o tenente Furnier, fugiu. E se asilou na embaixada da Itália. O integralismo foi esmagado.

Após os atos de domingo, o general Santos Cruz afirmou que “a responsabilização rigorosa também tem que ser acompanhada de uma política de resolução de conflito. O Brasil não pode continuar em conflito, com baixíssimo nível de responsabilização (impunidade) e desunido”. De fato, o que não se sabe ainda é quais serão todas as medidas e passos do presidente Lula após a derrota da insurreição bolsonarista. Ele pode usar o episódio para tentar pacificar o País e obter consenso em torno da defesa da democracia, das instituições e de seu governo. O povo quer paz, não quer viver sob contínuos atropelos e sobressaltos.

Em seu despacho do domingo à noite, Moraes citou Churchill uma segunda vez. “A defesa da Democracia e das Instituições é inegociável, pois como ainda lembrado pelo grande primeiro-ministro inglês, ‘construir pode ser a tarefa lenta e difícil de anos. Destruir pode ser o ato impulsivo de um único dia’.” Tem razão o ministro. Mas essa é uma lição que deve ser dada não só aos que se deixaram iludir pelos extremismos, mas também a todas as autoridades, inclusive às que se dizem comprometidas com a democracia.

Marcelo Godoy, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 09.01.23, às 7h20

Invasão criminosa a sede dos Poderes estava anunciada; Ibaneis foi omisso; leia análise

Governador do DF tinha dado suficientes indícios, dias atrás, de que sabia que tudo podia acontecer, e não fez nada, literalmente nada

Mas a gravidade do que aconteceu em Brasília neste domingo, 8, não se restringe às responsabilidades das autoridades do DF. Foto: Eraldo Peres/AP

A pergunta que grita e não quer calar, em face da criminosa invasão das sede dos poderes da República brasileira, é como explicar que todas as autoridades públicas responsáveis não tenham levado a sério as notícias que há dias circulavam nas redes sociais e anunciavam que haveria nesses dias – próximos da data da simbólica da invasão do Capitólio nos Estados Unidos – um novo e grave atentado contra a democracia brasileira?

Lula avalia que atos terroristas têm financiamento de empresários até no exterior

Os chamados “bolsonaristas radicais” não esconderam nada, anunciaram com antecedência que estavam preparando caravanas de centenas de ônibus em direção a Brasília para realizar uma mudança de estratégia de sua ação de contestação golpista dos resultados da eleição de 2022. A desmobilização dos acampamentos em frente dos quartéis militares não foi uma ação política de reconhecimento que seus participantes estavam errados, mas uma ação de preparo para o que aconteceu neste domingo, 8, o questionamento e a deslegitimação das instituições democráticas – Executivo, Legislativo e STF. Só não viu que isso estava sendo preparado quem não quis.

Diante disso é um erro que a intervenção federal no governo do DF seja apena sobre o setor de segurança. O governador Ibaneis Rocha tinha dado suficientes indícios, dias atrás, de que sabia que tudo podia acontecer, e não fez nada, literalmente nada – a não ser demitir o seu secretário de Segurança depois que o leite tinha sido derramado. Houve omissão do governador e, nesse sentido, não se justifica que tenha sido poupado da intervenção federal.

Mas a gravidade do que aconteceu em Brasília neste domingo, 8, não se restringe às responsabilidades das autoridades do DF. Com relação ao que se revelou nas últimas horas é sabido que o governo federal também sabia que a ação golpista estava sendo preparada. É estranho que em face dessas informações a Polícia Federal não tenha sido mobilizada para enfrentar a situação com os seus recursos. Outra pergunta delicada se refere ao setor de inteligência do governo federal: esse setor não foi acionado? O que explica que não tivesse produzido as informações para que o Ministro da Justiça, e mesmo o presidente da República, pudessem agir com a antecedência devida em preparação à loucura coletiva que ocorreu em Brasília. Foi inexperiência ou incompetência das novas autoridades?

A democracia brasileira sobreviveu bem aos atentados que o ex-presidente Jair Bolsonaro tentou contra ela em seus quatro anos de mandato, e isso em grande parte pela ação das instituições democráticas. Mas sempre se soube que os que não aceitaram os resultados das eleições de 2022 se preparavam para atacá-las. A invasão deste domingo, 8, de suas sedes teve um significado simbólico claro, o de contestar a democracia e o estado de direito democrático. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve levar isso em conta se quiser responder de maneira correta ao que está acontecendo no País.

José Alvaro Moisés, o autor deste artigo, é cientista politico. Publicado originalmente por O Estado de S. Paulo, em 01.01.23, às 23h42

Extremistas bolsonaristas articulavam invasão de sedes dos três Poderes nas redes desde 3 de janeiro

Radicais divulgaram mensagens em aplicativos como o Telegram para trazer manifestantes de todo o País para Brasília, com todas as despesas pagas desde terça-feira

Depredação da Praça dos Três Poderes em Brasília  Foto: REUTERS/Adriano Machado

A invasão do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso vinha sendo preparada por extremistas leais ao ex-presidente Jair Bolsonaro desde a terça-feira, 3, quando radicais começaram a divulgar com grande intensidade mensagens em aplicativos como o Telegram e o WhatsApp para trazer manifestantes de todo o País para Brasília, com todas as despesas pagas.

As viagens de diversos quartéis que ainda abrigavam bolsonaristas que contestam o resultado da eleição começaram na sexta-feira, 6. As mensagens falavam também em enfrentamento às forças policiais caso fosse necessário, com pedidos a mobilização de ex-policiais, militares e pessoas com porte de arma.

O plano era tomar os palácios dos três Poderes, acampar no interior, além de bloquear refinarias de combustível em todo País. E assim provocar o caos para levar a uma intervenção militar com a deposição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), eleito democraticamente em 30 de outubro.

Oferecia-se ônibus de graça – a maioria saiu da frente de quartéis de todos o país. Em Jundiaí, por exemplo, os radicais partiram para Brasília da frente do 12.º Grupo de Artilharia de Campanha. Em Campinas, os bolsonaristas se reuniram diante da Escola preparatória dos Cadetes do Exército.

“Tudo pago. Água, café, almoço e janta. Ficará acampado no Planalto.” Mensagem publicada em grupos bolsonaristas mobilizando radicais para invadir Brasília

Em mensagem, os bolsonaristas radicais queriam unir policiais militares e militares da reserva das Forças Armadas. Também convocaram caçadores, atiradores e colecionadores de armas e bombeiros militares. Queriam pessoas com experiência militar para enfrentar as forças de segurança caso fosse necessário. Prometiam aos que fossem para Brasília: “Tudo pago. Água, café, almoço e janta. Ficará acampado no Planalto.”

“O povo do agro me chamou e já me contratou 3 mil ônibus de diferentes áreas do Brasil”, disse um organizador de protestos bolsonaristas em áudio produzido e divulgado nesta quarta-feira, 4. “A gente vai tomar o poder. Agora vamos mostrar o que é gente do bem quando resolve ser do mal. Iremos fazer uma reintegração da posse das casas do Poder.”

“Hoje teremos a tomada dos três Poderes! E invasão no Congresso. Será um dia de guerra." Convocação de extremistas para invasão de Brasília

Neste mesmo dia, mensagens apareceram em diversos grupos de WhatsApp e Telegram com convocações para caravanas de todas as capitais nacionais e de grandes cidades do interior. Um dos conteúdos afirmava que a participação dos manifestantes era “crucial ou será a escravidão e miséria para todos”. A publicação ainda exibia armas.

Num dos grupos centrais dos manifestantes no Telegram, uma mensagem publicada na quinta-feira falava de uma “operação” em três “trincheiras”: na primeira, a tomada do Congresso, do Palácio do Planalto, do Palácio da Alvorada e outros prédios em grande contingente. Num outro, o fechamento de rodovias e refinarias por caminhoneiros. Na terceira, ocupar os QGs. “Alinhar para concluir a missão”, finalizava o texto com a estratégia.

Na sexta-feira, mensagens ensinavam como fazer uma máscara caseira para resistir a bombas de gás lacrimogêneo. Durante os atos com vandalismo nos prédios federais em Brasília, diversos manifestantes usavam equipamentos de proteção individual.

Mobilização em larga escala

Desde a terça-feira, as mensagens que convocavam apoiadores de Bolsonaro para o Congresso foram crescendo em volume. Ao longo do sábado, alguns vídeos circulavam pedindo a presença na frente do Congresso Nacional. “Pessoal, o povo em massa deve ocupar todo esse espaço (o entorno da Esplanada), dentro e fora do Congresso. Aí sim derruba o governo”, dizia uma mensagem compartilhada em grupos ao longo da noite de sábado.

Durante a manhã deste domingo, a estratégia já se desenhava. “O Congresso é nosso! Vamos tomar posse dele!! Com cavalaria ou sem cavalaria, nada vai nos parar”, disse um usuário na filial organizadora dos manifestos de São Paulo, às 9h59 deste domingo.

“Foco, galera. Tomar a Praça dos Três Poderes”, dizia uma mensagem que começou a circular por volta das 10h da manhã. “Tomar o STF, o Planalto e o Congresso.” Outra mensagem, publicada às 10h43 da manhã dizia falar para o pessoal na frente do QG para marchar ao Congresso.

Às 10h58, uma convocação. “Hoje teremos a tomada dos três Poderes! E invasão no Congresso. Será um dia de guerra. O primeiro passo para a a rebelião de resistência civil.”

Levantamento

De acordo com levantamento da empresa de monitoramento Torabit, os brasileiros realizaram 795,5 mil menções nas redes sociais sobre a invasão de golpistas aos prédios dos Três Poderes, em Brasília entre às 16h e às 20h deste domingo, 8, com baixo apoio.

O sentimento favorável às manifestações durante a tarde foi caindo dos iniciais 25% e chegou à noite abaixo dos 10%. Predominou entre os usuários um sentimento de receio sobre o que pode acontecer nos próximos dias – desde aumento nos incidentes de violência até a preocupação com a economia e a alta do dólar. O número representa menos da metade de publicações realizadas no dia da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (1,6 milhão).

O sentimento registrado por usuários às 20h foi de 67,5% de críticas, 9,2% de apoio e 23,3% neutro. O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDF), foi mencionado em 7% das postagens, associando-o à responsabilidade e cumplicidade aos atos deste domingo. Para as redes, agora ele estaria com medo das consequências. A polícia foi mencionada no mesmo volume de publicações. Uma publicação que exibe agentes tirando foto das manifestações viralizou nas redes sociais e teve mais de 3,6 milhões de visualizações.

Brasília se manteve desde às 16h nos assuntos mais comentados no Twitter. Os termos “Congresso Nacional”, “Ibaneis”, “terroristas”, “Anderson Torres (secretário de Segurança Pública do DF, exonerado neste domingo)”, “Capitólio”, “SEM ANISTIA”, “Distrito Federal”, “Bolsonaristas”, “Congresso”, “Planalto”, “Esplanada” e “Xandão” completam os destaques.

Levy Teles e Marcelo Godoy, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 08.01.23, às 23h53

Intolerável assalto à democracia

Um a um, os golpistas que se insurgiram contra a ordem constitucional em Brasília, assim como os que lhes dão apoio político, material e financeiro, devem ser punidos de forma exemplar

É estarrecedora a facilidade com que baderneiros que não se conformam com a derrota de Jair Bolsonaro na eleição passada invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília na tarde de domingo, no maior ataque à democracia brasileira desde o fim da ditadura militar.

Só há uma explicação para isso: a leniência das chamadas autoridades para identificar e punir os golpistas desde os primeiros crimes que cometeram após a confirmação da vitória do presidente Lula da Silva. Não foram poucas as oportunidades para que agentes do Estado fizessem valer as leis e a Constituição do País. Cada um desses agentes, no limite de sua responsabilidade, há de responder pela prevaricação perante a Justiça.

Ao que parece, uma malta de bolsonaristas só conseguiu tomar de assalto o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal porque conta com aliados muito poderosos, a começar pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o maior responsável pela intentona. Ora, o País não assistiria atônito àquelas cenas de violência na capital federal caso os golpistas não tivessem recebido apoio político, material e financeiro para fazer o que fizeram.

Acoitado na Flórida, incapaz de se curvar ao princípio mais comezinho da democracia – a transferência pacífica de poder –, Bolsonaro jamais emitiu uma palavra que pudesse ser entendida por seus radicais como uma ordem de desmobilização e respeito à Constituição e à supremacia da vontade popular. Ao contrário: desde a derrota, o ex-presidente abusou de meias palavras e insinuações para açular seus camisas pardas em uma escalada de violência que culminou na tentativa de golpe ocorrida em Brasília.

Sabe-se agora que aquele quebra-quebra promovido por bolsonaristas no dia da diplomação de Lula da Silva e Geraldo Alckmin pelo Tribunal Superior Eleitoral foi apenas uma espécie de ensaio geral para a intentona. Aparentemente, o objetivo final dos insurgentes, segundo sua lógica doidivanas, era promover uma desordem tal que levasse as Forças Armadas a intervir, restituir a Presidência a Bolsonaro e prender o presidente Lula da Silva. Nada menos.

Que haja amalucados no País capazes de conceber uma urdidura dessa natureza já é lamentável por si só. Mas ainda pior é saber que eles contam com o apoio, expresso ou tácito, de autoridades e líderes políticos.

Assim como Bolsonaro, as Forças Armadas jamais emitiram uma ordem firme para desmantelar os acampamentos golpistas que foram montados em frente a quartéis País afora. Esse silêncio acalentou os delírios golpistas dos bolsonaristas. Houve até militares que classificaram os atos contra o resultado das urnas – e, portanto, contra a Constituição – como “manifestações democráticas”. O próprio ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, mostrou-se tolerante com o intolerável, tergiversando sobre a gravidade desses acampamentos.

Mas não foram apenas Bolsonaro e alguns militares que não honram a farda que fizeram dos golpistas os idiotas úteis a desideratos liberticidas. Igualmente, o governador do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha (MDB), deverá responder pela falta de preparo das forças policiais sob seu comando para conter uma invasão que há muito tempo já vinha sendo preparada. A GloboNews exibiu uma imagem chocante de policiais militares do DF fazendo selfies enquanto uma súcia de bolsonaristas invadia o Congresso Nacional. Diante da manifesta tibieza de Ibaneis Rocha, fez bem o presidente Lula em decretar intervenção federal na segurança do DF.

A bem da democracia brasileira, a insurreição deve receber uma resposta à altura das autoridades constituídas. A Polícia Federal, sem prejuízo da atuação de outras instituições, deve identificar, um a um, os responsáveis pela violência contra o Estado e pela depredação do patrimônio público. Se a invasão do Capitólio, há dois anos, serviu de inspiração para os golpistas no Brasil, a diligência das autoridades dos Estados Unidos na persecução criminal de seus responsáveis deve servir de exemplo para as autoridades brasileiras. A democracia se defende, como já dissemos nesta página, lançando sobre os que atentam contra ela todo o peso da lei.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 09.01.23

Entenda a decisão de Moraes que afastou Ibaneis, determinou centenas de prisões e proibiu protestos

Ministro decreta prisão em flagrante de extremistas acampados em frente dos quartéis e intimação de prefeitos, governadores e generais, além da proibição de protestos até o dia 31

Terroristas durante atos de domingo. Foto: Wilton Junior/Estadão

A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou o afastamento cautelar do governador do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha, tem 18 páginas e todos os fundamentos usados para justificar os nove grupos de medidas.

Trata-se do mais duro despacho já proferido pelo ministro desde que se tornou relator do inquérito dos atos antidemocráticos. Ele reúne desde a determinação de centenas de prisões em flagrante, manda intimar governadores, prefeitos e comandantes militares e determina até a realização de diligências para identificar todos os extremistas que invadiram os prédios dos três Poderes, em Brasília. Relatório do Exército mostra que haveria cinco mil deles nos acampamentos de todo o País. Quem permanecer neles, poderá ser preso. 

Afastamento

A primeira medida é o afastamento do governador. Ele tem como base no artigo 319 do Código de Processo Penal. Moraes entendeu existirem indícios veementes de omissão dolosa criminosa do governador. O afastamento é uma medida cautelar diferente da prisão, que consiste na suspensão do exercício da função pública pelo prazo inicial de 90 dias. Ou seja, se estiverem presentes os motivos para manter Ibaneis afastado, a medida pode ser prorrogada como alternativa à prisão do acusado para a garantia da ordem pública.

Desocupação e prisões em flagrante

Moraes determinou no item 2 da decisão um prazo de 24 horas para que todos os acampamentos de extremistas bolsonaristas em frente de quartéis sejam desocupados e dissolvidos. Não só. Desta vez ele foi além: mandou prender em flagrante todos os acampados pela prática dos crimes previstos nos artigos 2ª, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios), da Lei nº 13.260 (Antiterror), e pelos artigos 288 (associação criminosa), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito e 359-M (golpe de Estado), 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III (perseguição) e 286 (incitação ao crime). O total de presos pode passar de mil.

Governadores, prefeitos e comandantes podem ser responsabilizados

No mesmo item 2 da decisão, o ministro mandou que a operação de desocupação e prisão dos acusados seja feita pelos PMs dos Estados e do DF, com apoio da Força Nacional e Polícia Federal se necessário. Deve o governador do Estado ser intimado para efetivar a decisão, sob pena de responsabilidade pessoal. As autoridades municipais deverão prestar todo o apoio necessário para a retirada dos materiais existentes no local. O comandante militar do QG deverá, igualmente, prestar todo o auxílio necessário para o efetivo cumprimento da medida. Ambos deverão ser intimados para efetivar a decisão, sob pena de responsabilidade pessoal. O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, deverá ser intimado para, sob sua responsabilidade, determinar todo o apoio necessário às Forças de Segurança.

Desocupação de vias

No terceiro item da decisão, Moraes mandou desocupar em 24 horas todas as vias públicas e prédios públicos estaduais e federais em todo o território nacional que estiverem ocupados por extremistas. Nos Estados e DF, as operações deverão ser feitas pelas PMs, com apoio da Força Nacional, Polícia Rodoviária Federal e PF se necessário. Os governadores também devem ser intimados nesse caso para efetivarem a decisão, sob pena de responsabilidade pessoal.

Apreensão de ônibus e bloqueio

No quarto item da decisão, Moraes mandou apreender e bloquear todos os ônibus identificados pela Polícia Federal, que trouxeram os terroristas para o Distrito Federal. Os proprietários deverão ser identificados e ouvidos em 48 horas, apresentando a relação e identificação de todos os passageiros, dos contratantes do transporte, inclusive apresentando contratos escritos, caso existam, meios de pagamento e quaisquer outras informações pertinentes. Entre os ônibus a serem apreendidos deverão estar os 87 que se encontram estacionados na Granja do Torto e imediações.

Proibição de manifestações

No item quinto da decisão, Moraes proíbe até o dia 31 de janeiro o ingresso de quaisquer ônibus e caminhões com manifestantes no Distrito Federal. A PRF e a PF deverão providenciar o bloqueio, a imediata apreensão do ônibus e a oitiva de todos os passageiros, com base no artigo 5º da Lei antiterrorismo, que pune os atos preparatórios.

Identificação dos ônibus

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) deverá enviar ao STF o registro de todos os veículos, inclusive telemáticos, de veículos que ingressaram no Distrito Federal entre os dias 5 e 8 de janeiro de 2023;

No sétimo item, Moraes manda a PF obter todas as imagens das câmeras do Distrito Federal que possam auxiliar no reconhecimento facial dos terroristas que praticaram os atos do dia 8 de janeiro, em todos os hotéis e hospedarias do Distrito Federal, a lista e identificação de hóspedes que chegaram ao DF a partir da última quinta feira, bem como a filmagem do saguão (lobby) para a devida identificação de eventuais participantes dos atos terroristas.

Identificação pelos dados do TSE

Como oitava providência, Moraes manda que o tribunal Superior Eleitoral (TSE), sob a coordenação do assessor da presidência, Eduardo de Oliveira Tagliaferro, utilize a consulta e acesso aos dados de identificação civil mantidos naquela Corte, bem como de outros dados biográficos necessários à identificação e localização de pessoas envolvidas nos atos terroristas do dia 8 de janeiro. Os dados deverão manter o necessário sigilo.

Exclusões de contas de redes sociais

O nono e último item da decisão de Moraes manda a expedição de ofício ao Facebook, ao Tik Tok e ao Twitter para que em duas horas elas façam o bloqueio de 17 contas, perfis e canais de bolsonaristas acusados de instigar os atos antidemocráticos, sob pena de multa diária de R$ 100 mil em caso de desobediência. Elas também deverão fornecer os dados cadastrais das contas ao STF e preservar integralmente seus conteúdo. Entre os atimngidos está o blogueiro bolsonarista Bernardo Kuster.

Marcelo Godoy, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 09.01.23, às 07h42

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Primeira semana do governo Lula é marcada por confusões de atos e equívocos

Em boa hora, presidente resolveu colocar ordem na casa, afinal quem não se comunica, se trumbica

Lembrei de Abelardo Barbosa e Sergio Porto nesta primeira semana de governo. Chacrinha usava muito o bordão “eu vim para confundir, e não para explicar”. Foi exatamente o que se passou nas idas e vindas sobre o Marco do Saneamento. Uma enorme confusão sobre o papel da Agência Nacional de Águas (ANA), que deixou no ar a possibilidade de retrocesso numa das mais importantes reformas regulatórias dos últimos anos. O novo marco gerou um aumento significativo do investimento privado e impôs metas de universalização, dando esperanças de acesso a água e esgoto à população de baixa renda abandonada na lama por anos de atuação estatal.

Stanislaw Ponte Preta criou a expressão Febeapá (“Festival de Besteiras que Assolam o País”). A semana foi pródiga. Na sua posse, Lupi bradou: “A Previdência não é deficitária”. É terraplanismo puro em governo que promete respeitar a ciência. Sua “antirreforma” foi mais um anúncio a ser desmentido em menos de 24 horas.

A ideia de rever a governança das estatais, anunciada por Esther Dweck, é outro equívoco. A ministra assumiu em evento prestigiado por um discurso de Dilma, que sugeriu a reversão de inúmeras reformas do governo Temer – aquelas que salvaram o País da terra arrasada legada por ela.

A suspensão das privatizações era previsível. Inclusive, a retirada da Petrobras, que não passava de fanfarronice de Guedes. Mas quando até a Ceitec está sendo ressuscitada, nem Pollyanna resolve.

Nesse cenário, a Lei das Estatais se torna ainda mais relevante. A lei não criminaliza a política, simplesmente exige qualificação técnica para cargos na administração das estatais.

Em seu discurso, Lula errou no tempo ao afirmar que as estatais estão sucateadas. Estavam em 2015, quando se registrou prejuízo recorde no seu conjunto. A intervenção nos preços, mais investimentos para lá de duvidosos, geraram um nível de endividamento na Petrobras e Eletrobras que teria levado à falência qualquer empresa privada. Lucros foram registrados já em 2016 com uma nova gestão e, após anos de ajustes, dividendos voltaram a ser distribuídos. Quem mais ganhou com isso foi o dono delas: o governo federal, que representa a todos nós. Não houve rapinagem alguma. E junto ganharam os trabalhadores, que nos anos 2000 acreditaram na empresa e usaram o FGTS para comprar ações da Petrobras. Conseguiram recuperar todo o dinheiro perdido por conta das desastrosas administrações que se seguiram. A tal “nova governança” coloca tudo isso em risco novamente.

Em boa hora, Lula resolveu colocar ordem na casa, afinal quem não se comunica, se trumbica.

Elena Landau, a autora deste artigo, é advogada e economista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.01.23.


A cada ‘forasteiro’, há um petista ou afim como contraponto. Isso causa ruído e agita a oposição

Lula reúne seu Ministério depois de uma primeira semana de emoção, simbologia, muitos anúncios de despesas, nenhum de receitas e ‘algumas divergências’

Lula recebeu ministros no Planalto nos últimos dias. Foto: Ricardo Stuckert/PR

O presidente Lula reúne seu Ministério nesta quinta-feira, 5, depois de uma primeira semana de emoção, simbologia, muitos anúncios de despesas, nenhum de receitas, “algumas divergências” entre ministros, como admitiu Simone Tebet, do Planejamento, e solavancos e um sobe e desce da Bolsa e do dólar.

Tebet (MDB) é liberal e Fernando Haddad (PT), da Fazenda, nem tanto. José Múcio (ex-PFL), da Defesa, tem fala mansa e Flávio Dino (PSB, ex-PCdoB), da Justiça, fala duro. Carlos Fávaro (PSD), da Agricultura, tem de pacificar o agronegócio, já Paulo Teixeira (PT), do Desenvolvimento Agrário, e Marina Silva (Rede, ex-PT), do Meio Ambiente, precisam pôr as “boiadas” de volta no curral.

Vejam que, nesta “frente ampla”, onde há um “forasteiro” de MDB, PSD, União Brasil, há um petista ou aliado de primeira hora como contraponto, lembrando a verdadeira origem e a alma do terceiro governo Lula. E o presidente vai deixar claro, hoje, que quem manda é ele.

Lula não apresentou plano de governo na campanha e na transição, mas já no discurso de posse sinalizou que vai estar mais à esquerda do que nos dois primeiros mandatos. Henrique Meirelles foi ao ponto: “Parece que o Lula não vai repetir o governo dele, mas o de Dilma” (que gerou dois anos de recessão). Pano rápido.

Em uma semana, Lula demonizou o teto de gastos, sem apresentar alternativa; Luiz Marinho (Trabalho) acenou com revisão da reforma trabalhista; Carlos Lupi (Previdência), com a previdenciária. E Jean Paul Prates declarou que o governo é quem define a política de preços da Petrobras – empresa com regras e acionistas.

Prates diz que foi “mal interpretado”, mas a coceira da intervenção vem de longe e o que jogou a Petrobras no fundo do poço não foi só o petrolão, mas também o represamento político de preços na era Dilma. Bolsonaro, tosco e inábil, demitiu uns tantos presidentes, até jogar a conta para os Estados. Lula não é tosco nem inábil e, ainda por cima, cobra “a função social da Petrobras”. O que fará?

Já o “conflito” entre Dino e Múcio é jogo combinado. PT e esquerda em geral não podem exigir que Múcio chegue atirando nas Forças Armadas, tão danificadas por Bolsonaro. Ele foi posto lá exatamente para o oposto: apaziguar os ânimos e recolher as armas e balas.

Tudo isso causa ruídos e dá carne aos leões, que falam em Estado inchado, intervencionismo, desastre e, assim, mobilizam as abatidas tropas bolsonaristas na internet. É melhor deixar leões e tropas à míngua. Haddad, cauteloso, e Rui Costa (Casa Civil), desautorizando reformas das reformas, cuidam disso. Com a palavra, Lula!

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.01.23