terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Governo e sociedade, uma conexão decisiva à democracia

Falência das respostas governamentais às urgências dos cidadãos nutre lideranças salvacionistas e populistas

O ano que acaba de começar não marca apenas a retomada da contagem dos dias sob o signo de janeiro, repetindo a contagem circular dos calendários. O ano se inicia com novo ciclo governamental no País. E aqui, pelo bem de nossa nação, tudo o que menos se precisa é de movimentos repetitivos. Ao contrário, é tempo de reinvenção, com os olhos focados no futuro, especialmente no desafio de governar.

Na sociabilidade das conexões digitais, os governantes precisam, primeiramente, revitalizar aquela pactuação primordial, que justifica mesmo a existência do Estado e suas instituições, que é o diálogo interativo e consequente com os cidadãos. Se há algo decisivo na vida republicana, pode-se identificá-lo na efetiva vinculação entre governo e sociedade.

A afinada sintonia dessa conexão, entre outros, fortalece as instituições democráticas, legitima a ação política e, mais importante de tudo, faz jus à natureza das estruturas governativas, que é a de servir ao interesse comum, observando-se toda a multiplicidade de demandas e a diversidade do existir. E haja desafio nesse caminho.

O pensador espanhol Manuel Castells diagnostica uma “ruptura da relação entre governantes e governados”. “A desconfiança nas instituições, em quase todo o mundo, deslegitima a representação política e, portanto, nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”, avalia Castells.

Não é esse mesmo o ambiente que abre espaço para salvadores da pátria, populistas e radicais? A realidade tem mostrado que sim. Diante da “ruptura da relação institucional entre governantes e governados”, Castells alerta sobre algo gravíssimo, o fato de que a democracia liberal está deixando de existir “no único lugar em que pode perdurar: a mente dos cidadãos”.

Investir na cultura democrática é, especialmente, fortalecer governanças articuladas às demandas, sonhos e projetos da sociedade. Pode parecer óbvio – e é –, mas a politicagem desembestada e prepotente tem aberto imenso atalho na caminhada republicana, ensejando desastres que não só perpetuam problemas históricos, como a desigualdade socioeconômica e a pobreza, mas também comprometem o futuro, como é o caso da criminalidade ambiental sob os auspícios da inépcia estatal.

No caminho do bom governo, deve-se insistir na rota do equilíbrio fiscal, compatibilizando receitas e despesas, sob o princípio de qualificação dos investimentos e jamais perdendo de vista que cuidar das contas é cuidar das pessoas. É a higidez orçamentário-financeira que possibilita entregas contratadas nas discussões e escolhas do processo político-eleitoral.

Gastar onde não se deve, sem foco ou senso de prioridade, amplia o fosso do desencontro entre governo e sociedade, como temos assistido no Brasil e no mundo. Sem capacidade de concretizar promessas e atender às demandas mais críticas da população, a frustração com a política cresce como erva daninha, com alcance e prejuízos dramáticos à contingência democrático-republicana. Não dá para naturalizar clamores por golpes ou atentados à democracia, como a invasão do Capitólio, por exemplo. E, em grande parte, é a falência das respostas governamentais às urgências da sociedade que nutre lideranças salvacionistas e populistas, vendendo terrenos na Lua, em detrimento da normalidade institucional.

Ações governamentais com resultados reais são imprescindíveis para superarmos estes nossos tempos de desafios à democracia. Não basta enfrentarmos as históricas agendas nacionais e subnacionais, que exigem profundas transformações nos campos da educação, saúde, segurança, trabalho e renda. Desafiam-nos também questões globais que tensionam a atualidade planetária, como as disputas entre EUA e China, a invasão russa na Ucrânia, a emergência climática. O panorama internacional em desalinho, com impulsos de desglobalização e desarranjo das cadeias de suprimentos, pode, paradoxalmente, trazer imensas oportunidades para o Brasil.

Uma governança fundamentada na boa política e na boa técnica, em diálogo permanente com a sociedade e com entregas que melhorem a vida de todas e todos, eis o que se esperar neste novo ciclo. Trata-se de momento vital, em que está em jogo não apenas o exercício governativo consequente, mas essencialmente o pacto sociopolítico e cultural que sustenta a democracia como conquista civilizatória.

Bons governos ratificam as democracias. Impõe-se demonstrar que a democracia de fato conduz ao desenvolvimento socioeconômico. Nesse sentido, que 2023 seja de máximo sucesso, marcado pela intensa e efetiva conexão entre governantes e sociedade. Como nessa conversa transformar é o verbo que todos precisamos conjugar, vale lembrar o genial geógrafo Milton Santos, para quem a política é a “arte de pensar as mudanças e torná-las efetivas”.

Paulo Hartung, o autor deste artigo, é economista, Presidente-Executivo Da IBÁ, Membro do Conselho Consultivo do RENOVABR, Foi Governador Do Estado Do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.01.23.

A universidade em xeque

Queda de inscritos no Enem e em vestibulares da USP, da Unicamp e da Unesp tem múltiplos fatores, mas também sinaliza que o ensino superior precisa se reinventar − e logo

Fala alto o fato de que há menos gente disposta a participar de processos seletivos para ingresso no ensino superior. Como noticiou o Estadão, não foi apenas o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que registrou queda de inscritos em relação à última década: os vestibulares da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), referências para o País inteiro, também têm atraído menos candidatos.

Por óbvio, diversos motivos explicam tamanha redução − entre eles, os desdobramentos da pandemia de covid-19, o empobrecimento de boa parte da população e o descaso do governo do presidente Jair Bolsonaro com a área educacional. Mas há uma questão de fundo que não pode passar despercebida: o ensino universitário, da forma como está estruturado, parece incapaz de despertar o interesse de uma parcela da juventude.

Sim, as universidades precisam se reinventar. E logo. Como se sabe, o diploma abre caminho para melhores empregos e maior renda − e continua sendo o sonho de milhões de brasileiros. Mas é inegável que as transformações tecnológicas têm alterado profundamente o mercado de trabalho, em velocidade que subverte até mesmo a lógica da educação. A certificação de competências em cursos de curta duração, por exemplo, vem ganhando força, assim como há empresas que dispensam o diploma ao selecionar seus funcionários.

É nesse contexto que uma parcela da juventude deixa de perceber a universidade como a principal rota para a conquista do emprego. A perspectiva de passar três, quatro ou cinco anos na faculdade, não raro em estruturas engessadas nas quais uma disciplina é pré-requisito para cursar outra, desagrada a muitos jovens. Ainda mais diante do risco de obter o diploma e continuar desempregado. Ou de só conseguir emprego com baixo salário.

Não se trata aqui de desmerecer nem desqualificar o ensino superior. Longe disso. Basta lembrar que a renda média dos profissionais com diploma, no Brasil e no mundo, supera a dos trabalhadores com menos escolaridade. Ou que a formação universitária é insubstituível em diversas carreiras. Mais do que isso, é essencial ter em mente que as universidades são, por excelência, o lugar onde se faz pesquisa e onde se formam pesquisadores. Por último, mas não menos importante, é das universidades que irradia o livre pensar, base para que gerações de filósofos e cientistas ampliem os limites do conhecimento.

Na verdade, são as próprias universidades que já perceberam o alcance das transformações em andamento. Nem poderia ser diferente: a queda do número de inscritos no Enem e nos vestibulares, mesmo que originada por inúmeros fatores, acena com um preocupante desprestígio do ensino superior perante segmentos da juventude − e isso precisa ser mais bem compreendido. Na USP, um grupo de trabalho vinculado à reitoria reúne cientistas e educadores para tratar do tema. Para esses especialistas, a universidade não pode ser refém do academicismo, isto é, deve ter a capacidade de perceber o que está acontecendo na vida das pessoas comuns.

Ele cita os elevados índices de evasão nos cursos de graduação do País, outro problema a ser enfrentado. Um estudo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) monitorou a situação dos estudantes de graduação que ingressaram em 2011 nas faculdades de todo o Brasil: em 2020, apenas 40% tinham se formado no curso original (59% haviam abandonado ou pedido transferência e 1% permanecia matriculado). Por trás da evasão, há situações de todo tipo: desde o jovem que não consegue se manter e deixa de estudar para trabalhar até quem desiste porque o curso é ruim.

O Brasil tem o duplo desafio de aumentar o número de universitários e de garantir a qualidade do ensino. A diminuição de inscrições no Enem e em vestibulares, porém, é um recado a ser ouvido com atenção. O mundo está mudando e as universidades não podem ficar para trás.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 03.01.23

Decreto de Lula não retira armas de circulação, mas freia o crescimento

O recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou, no domingo (1/1), decreto que muda as regras de acesso a armas de fogo e revoga atos flexibilizadores instituídos por seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL)

A criminalista Carla Silene Cardoso Lisboa Bernardo Gomes, professora do Ibmec BH e da PUC Minas, explica que o novo ato "não tem o efeito de retirar de circulação as armas de fogo que já foram adquiridas". Mas, apesar de não diminuir efetivamente o armamento da população, ele impede um novo aumento, como confirmam outros especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Se não há uma efetiva redução, a advogada Márcia Dinis, também criminalista, ainda considera que a suspensão da obtenção de novos registros favorece o desarmamento, pois contém o crescimento desenfreado proporcionado pelos atos da gestão anterior.

Outras medidas seriam imprescindíveis para se alcançar uma diminuição, mas Carla ressalta que o decreto "já indica possíveis mudanças que estão por vir".

A especialista lembra que o próprio ato determina a criação de um grupo de trabalho, com o objetivo de apresentar uma nova regulamentação para o Estatuto do Desarmamento. Assim, "devem ser apresentadas mudanças às normas sobre quem já possui armas em breve".

Fortes sinais

A advogada e socióloga Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz (voltado à segurança pública), classifica como "emblemática" a publicação do decreto logo no primeiro dia útil do ano, pois mostra a prioridade que o novo governo "precisa e quer dar para o tema".

Segundo ela, a norma trata de atribuições mais específicas da Polícia Federal e do Ministério da Justiça e Segurança Pública, sem interferir muito em questões referentes ao Exército. Além disso, busca alinhar as normas a decisões já tomadas pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos.

Para o advogado Renato Stanziola Vieira, que assumiu nesta segunda-feira (2/1) o cargo de presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o decreto não é meramente simbólico, mas sim cauteloso. Isso porque "reflete a dificuldade jurídica de reverter, num só ato, toda a política armamentista que foi adotada pelo governo anterior".

Assim, em vez de eliminar todas as armas que entraram em circulação nos últimos anos, o ato foca em suspender as licenças para colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs) — que "vinham se constituindo em fontes de facilitação para que a população civil se armasse indiscriminadamente".

Na visão de Vieira, o novo decreto "sinaliza que a política armamentista deve ser revista". A tônica da norma é, também, a de que "não há um direito adquirido à aquisição de armas" a partir da flexibilização patrocinada pelo governo Bolsonaro.

Na verdade, o decreto de Lula inaugura um debate para definir, "com calma e responsabilidade", qual a melhor política para fiscalizar de forma mais séria a política de uso de armas pela população civil.

O advogado vê com bons olhos a postura da nova gestão "de frear esse armamentismo sem controle, criminógeno e que acaba transformando a sociedade numa terra de 'salve-se quem puder'".

De acordo com ele, quando o governo incentiva a população a se armar, como vinha acontecendo, a política de segurança pública como um todo é "relegada aos meios individuais de autoproteção". Isso demonstra uma "irresponsabilidade do Estado em atuar, de forma uniforme e com respeito às garantias de todos, em favor de uma sociedade mais segura".

Regras alteradas

O Decreto 11.366/2023 proíbe CACs de comprar e transferir novas armas e munições de uso restrito, até que entre em vigor a nova regulamentação do Estatuto do Desarmamento. O mesmo vale para a renovação de registros. 

Quanto às armas e munições de uso permitido, o ato diminui as quantidades possíveis de serem adquiridas. Agora, cada pessoa poderá comprar somente três armas do tipo, para defesa pessoal. Até então, eram permitidas quatro.

Também foram suspensas as concessões de novos registros de CACs, clubes e escolas de tiro. Além disso, quem responder a inquérito policial ou ação penal por crime doloso deverá entregar sua arma de fogo à Polícia Federal ou ao Exército, ou transferi-la para terceiro, em até 30 dias.

O texto proíbe CACs de transportar armas municiadas. Carolina explica que não será mais possível circular com arma carregada, nem mesmo para se dirigir ao clube de tiro.

A  Diretora-executiva do Sou da Paz também destaca a mudança do prazo para a renovação do registro de arma, que voltou a ser de cinco anos. Bolsonaro havia ampliado esse período para dez anos.

Outro ponto importante é a obrigatoriedade de recadastramento de todas as armas em até 60 dias. Segundo a advogada e socióloga, isso permite uma "fotografia" mais realista da quantidade de armas em circulação.

Ainda conforme o novo ato, será necessário comprovar a efetiva necessidade para adquirir uma arma de fogo de uso permitido. Em outras palavras, o cidadão precisará demonstrar que está "realmente sob algum tipo de risco".

Todas as armas precisarão ser informadas à PF. Carolina realça a importância desta regra, pois atualmente a instituição e as polícias estaduais não conseguem acessar as armas cadastradas no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), administrado pelo Exército. O Sigma registra os dados de armamento de CACs, enquanto o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), gerido pela PF, tem informações sobre armas para defesa pessoal.

A chefe do Sou da Paz ainda indica uma previsão "interessante" sobre a necessidade de segurança e resguardo das armas em casa — "uma medida importante do ponto de vista pedagógico", segundo ela.

O presidente do IBCCRIM explica que essa regra exige não só um lugar seguro para o armazenamento das armas, mas também que esse local seja um cofre, com tranca. "Há, pois, um recado claro e salutar do risco óbvio que é o de ser proprietário de arma de fogo, em política pública acertada e orientada a dificultar, ao invés de estimular, que a população civil se arme", assinala.

Lacunas

Dentre aspectos que ficaram fora do decreto, na avaliação de Carolina, está a categorização de cada arma (em uso restrito ou permitido). De acordo com ela, isso é o que hoje autoriza civis a adquirir armas de alta potência — até mesmo mais potentes do que aquelas portadas pelas polícias.

Para a advogada, também seria importante regulamentar o tiro desportivo: sua possibilidade, suas categorias, as quantidades e os tipos de armas usados etc. Ela lembra que esse foi um canal de entrada de muitas armas atualmente em circulação. Outra definição necessária diz respeito ao controle sobre os CACs — especialmente se o Exército continuará sendo o responsável.

"Apesar deste sinal muito positivo, desta mudança muito concreta, é importante que o governo de fato crie um grupo de trabalho e mantenha como prioridade a estruturação da política de controle de armas, para criar condições de se fiscalizar melhor as armas em circulação no Brasil", conclui.

Em nota, o Instituto Igarapé, também voltado à segurança pública, diz que o decreto "é apenas o primeiro passo para garantir a segurança e paz de toda a população brasileira", mas "se reveste de grande simbolismo na esperança de que o governo que começa possa enfrentar os muitos desafios existentes".

José Higídio, o autor deste artigo, é repórter da revista Consultor Jurídico. Publicado em 02.01.23

As promessas de Lula para o eleitor ficar de olho

Com desafios em diversas áreas do governo, Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse no domingo (1°/1) e deu início a seu terceiro mandato como presidente.

A BBC News Brasil listou promessas feitas por Lula aos eleitores e ouviu analistas sobre as políticas que o presidente deu sinais de que deve priorizar.

Meio ambiente, política externa, políticas redistributivas, combate à fome e saúde estão entre as agendas que o petista demonstrou que deve dar mais atenção, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem.

Ao mesmo tempo, ainda são aguardadas mais sinalizações sobre as diretrizes que serão seguidas na economia, especialmente na área fiscal.

A seguir, veja 30 promessas feitas por Lula em seu plano de governo, entrevistas ou em sua carta de intenções:

Economia e Emprego

- Reajuste do salário mínimo acima da inflação

- Bolsa Família: manutenção do auxílio de R$ 600 + R$ 150 por filho menor de 6 anos

- Isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5.000

- Propor nova legislação trabalhista

- Recriação de ministérios, como o da Pesca e do Planejamento

- Modernizar e ampliar infraestrutura de logística de transporte, social e urbana, com "vigoroso programa de investimentos públicos"

- Retomar o Minha Casa Minha Vida para garantir emprego e moradia para milhões de brasileiros

Política e Corrupção

- Divulgar informações que governo de Jair Bolsonaro colocou sob sigilo de 100 anos

- Resgatar a transparência e garantir o cumprimento da Lei de Acesso à Informação

- Não tentar reeleição em 2026

Fim de sigilo de 100 anos? As decisões de Lula que poderão afetar Bolsonaro após posse

educação

- Aumentar recursos para a merenda escolar

- Expandir ensino técnico profissionalizante

- Implantar programa de recuperação educacional para alunos com déficit de aprendizagem devido à pandemia

Saúde

- Retomada do Mais Médicos caso haja déficit de profissionais

- Mutirão no SUS em todo o país para zerar as filas de consultas, exames e cirurgias acumulados por não terem sido realizados na pandemia

- Investir no atendimento integral à Saúde da Mulher

Segurança

- Nova política de drogas, focada na redução de riscos, prevenção, tratamento e assistência ao usuário

- Política coordenada para redução de homicídios, com investimento, tecnologia e enfrentamento do crime organizado e das milícias

- Programas para proteger mulheres vítimas de violências e seus filhos, e assegurar que não haja a impunidade de agressões e feminicídios

Política Externa

- Recuperar política externa "ativa e altiva", que colocou Brasil "na condição de protagonista global"

- Ampliar participação do Brasil nos assentos de organismos multilaterais

Os países que podem se reaproximar do Brasil no governo Lula

Meio Ambiente

- Combater crime ambiental promovido por milícias, grileiros e madeireiros

- Promover desmatamento líquido zero, com recomposição de áreas degradadas e reflorestamento

Programas Sociais e Direitos Humanos

- Reconstruir programa de cisternas e Luz para Todos

- Tirar o Brasil do mapa da fome

- Políticas para garantir direitos à população LGBTQIA+, como saúde integral, inclusão e permanência na educação e no mercado de trabalho

- Proteção dos direitos e dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais

- Recuperar e fortalecer a Funai

- Amplo conjunto de políticas públicas de promoção da igualdade racial e de combate ao racismo estrutural

- Assegurar às pessoas com deficiência e suas famílias acesso à saúde, educação, cultura, esporte, e inserção no mundo do trabalho; e convocar conferências para debater políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência

'Pressa' de Lula

Ao iniciar o que disse ser seu último mandato como presidente, Lula assume o Palácio do Planalto com "pressa", segundo analistas.

"Para entender o Lula hoje, você tem que ter na cabeça que ele é um cara que tem pressa, principalmente porque ele realmente vê esse próximo ciclo como o último dele", diz o cientista político Leonardo Barreto, citando a avaliação de integrante do núcleo duro do PT.

Entre outras menções a uma não tentativa de reeleição, Lula disse que "não é possível um cidadão com 81 anos (idade que terá em 2026) querer a reeleição" e que será "presidente de um mandato só".

E o novo presidente fez referência ao lema de Juscelino Kubitschek, que assumiu a presidência em 1956 com o discurso de crescer "50 anos em 5".

"Vamos tentar fazer 40 anos em 4, porque o Brasil precisa de urgência para recuperar o emprego e a qualidade de vida do povo", disse Lula.

Barreto, que é diretor da consultoria de risco político Vector Research, questiona se a pressa é positiva.

"Isso pode não ser uma boa notícia porque (a agenda prioritária) pode ser feita numa velocidade e numa intensidade maiores do que o motor do país aguenta", argumenta Barreto.

"Ele pode simplesmente estar gerando um voo de galinha, pensando no curto prazo, e pensando que depois de 2026 o problema não é dele", acrescenta.

Para a economista e cientista política Bárbara Maia Pontes, no entanto, a pressa não é uma má notícia.

"A trajetória dele para chegar até aqui, sobretudo a prisão, foram coisas que impactaram ele — não necessariamente para não produzir coisas mais duradouras, mas o contrário. Ele está justamente atuando como aquela pessoa que quer terminar sua carreira no auge", diz.

Pontes acrescenta que, em um contexto de "recomposição de forças políticas", Lula tem "interesse partidário" de deixar um sucessor. "Não acho que ele vai fazer uma coisa pensando só nos quatro anos."

Campanha 'pobre de propostas'?

A corrida presidencial de 2022, que teve um debate acirrado entre Jair Bolsonaro e Lula, foi criticada por não ter contemplado uma discussão profunda sobre propostas para o país.

Barreto diz que "houve uma campanha pobre do ponto de vista de propostas" e que "o PT dessa vez não veio com a receita pronta como veio em outras ocasiões".

O cientista político diz que o pano de fundo da campanha de Lula "foi todo no sentido de restartar o Brasil" para o fim do último governo petista, de Dilma Rousseff, que terminou em 2016.

"Foi todo nesse sentido de começar de onde paramos, e vários setores econômicos ficam preocupados com essa narrativa porque a coisa mudou muito desde que eles saíram."

As características da última eleição presidencial podem interferir no nível de apoio da população às ações do novo governo, aponta Pontes.

"Houve um voto mais reativo, de repulsa ao outro candidato, muito mais do que por identificação com o candidato em si. E o impacto disso não é só na ausência das propostas, mas também no que chamamos de período de lua de mel — quando um candidato é eleito, no primeiro momento, vai sustentar apoio popular a suas ações. E com eleições com características como as de 2022, com acirramento muito grande, esse período de lua de mel pode diminuir."

Mesmo nesse cenário, diz Pontes, a população deve cobrar que o governo siga as diretrizes indicadas no plano de governo.

"A gente se coloca numa posição muito pessimista e ceticista quando descarta totalmente o plano de governo. Quando pensamos em política, temos que cobrar os nossos eleitos pelo que prometem", diz a pesquisadora, doutoranda na Universidade de Brasília (UnB).

Um ponto crucial para determinar o sucesso ou fracasso do Executivo em aprovar suas propostas é o apoio de deputados e senadores, já que muitas medidas precisam passar pelo Congresso.

Como aponta Pontes, "o sistema político vai colocar todos os interesses à prova, inclusive do presidente".

Barreto destaca que o Congresso tem tido um protagonismo muito forte desde o governo do ex-presidente Michel Temer e diz que o Legislativo "governou junto com o Temer e governou acima de Bolsonaro — às vezes até apesar do Bolsonaro".

"É preciso dividir o poder, a decisão. E isso não é muito estilo do PT, um partido de natureza hegemônica, que gosta de ter o controle de todo o processo", diz Barreto. "[Então] vai depender um pouco de quanto o PT e o Lula estão prontos para dividir o processo decisório com aliados. E essa é uma questão que a gente só vai ver na prática como vai funcionar."

Laís Alegretti, de Londres para a BBC News Brasil, em 02.01.23. - Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64043644

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

O velho Lula está de volta

A posse do petista, sem incidentes, depois de muita tensão, marca a vitória da democracia. Mas em seu discurso sobre o que pretende fazer, Lula reafirma sua agenda retrógrada

Há um novo governo no País. Depois de um período especialmente turbulento da vida nacional, com ameaças ao sistema eleitoral e ao regime democrático, Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin tomaram posse como presidente e vice-presidente da República. A transição pacífica de governo, cumprindo a vontade do eleitor, é um feito honroso a todos os brasileiros, tenham ou não votado na chapa vencedora. A democracia segue viva e forte.

Tal como dispõe a Constituição, Lula e Alckmin prometeram ontem “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. É um compromisso forte com o Direito e com o bem comum, a exigir vigilância constante por parte do Estado e de seus órgãos de controle – em especial, do Congresso, do Judiciário e do Ministério Público –, bem como da população. Numa democracia, a participação política do cidadão não se encerra nas urnas.

Atitude de sempre, essa vigilância é especialmente necessária agora. Se é motivo de orgulho nacional a prevalência da vontade do eleitor, com a consequente transição de poder, é causa de grande preocupação verificar que o presidente petista continua com a mesma agenda retrógrada. Ontem, no Congresso, em seu primeiro discurso após tomar posse, Lula mostrou que segue tendo a mesma visão ultrapassada de Estado. Em suas palavras, sociedade, economia e cultura parecem ser apêndices de uma onipotente ação estatal.

Certamente, depois de quatro anos de um presidente da República dedicado ao caos e à destruição, é consolador ouvir o novo chefe do Executivo federal falar, por exemplo, em garantir o primado da lei, em defender o meio ambiente, em revogar decretos ilegais de acesso às armas ou em assegurar a plena liberdade de expressão. Tudo isso que Lula mencionou no discurso de ontem no Congresso é obviamente muito positivo, mas não é nada mais do que sua estrita obrigação. É mera consequência do compromisso de cumprir a Constituição.

O problema revela-se em toda sua dimensão quando Lula anuncia o que vai fazer em seu governo. Ontem, ele não deu nenhuma oportunidade para se pensar que ele entendeu os erros das administrações petistas passadas e que almeja, em seu terceiro mandato, fazer algo diferente. O presidente prometeu revogar o teto de gastos, ao qual qualificou de “estupidez”, mas não disse o que pretende colocar no lugar. Disse que vai alterar a reforma trabalhista, ignorando que se trata de um dos grandes avanços dos últimos tempos. Reafirmou seu credo no papel indutor do Estado, prometendo bancos públicos e Petrobras alinhados nessa empreitada. Nada disso gera boas lembranças.

Na verdade, o apego à agenda atrasada do PT é contraditório com a ideia, que o próprio Lula vem repetindo desde o final das eleições, de formar um governo de frente ampla. Se o objetivo é seguir com a mesma pauta de sempre, exclui-se de partida a possibilidade de um governo politicamente aberto e plural. Não foi um bom começo.

Ontem, Lula disse que deseja “honrar a confiança e corresponder à esperança” do eleitor. Não há como fazer isso com a pauta petista de governo. Nas urnas, o eleitor não deu aval à estatolatria lulopetista. Ele apenas negou a Jair Bolsonaro um segundo mandato. Basta ver o tamanho modesto da bancada da esquerda no Congresso na próxima legislatura. Além disso, foi justamente a agenda do PT que gerou a crise política, social e econômica que desembocou na eleição de Bolsonaro e na qual o País continua imerso. O novo governo tem o dever de enfrentar as causas da crise. Não tem autorização para repetir os erros – o que revelaria estupidez e indiferença com o povo.

O País tem um novo governo. Precisa agora, o quanto antes, de uma nova oposição. A política, disse Lula, “é o melhor caminho para o diálogo entre interesses divergentes, para a construção pacífica de consensos”. Que as vozes autoritárias se calem. É preciso construir novos consensos, que sejam de fato solução, e não retrocesso.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo,  em 01.01.23

Já viste que um mito teu fugiu à luta

 Em mensagem no TikTok, ‘paulop1983′ faz mais oposição ao novo governo do que o bolsonarismo raiz


Logomarca do novo Governo Lula

O melhor discurso da transição não foi de Jair Bolsonaro, nem de Lula. Foi de “paulop1983″ no TikTok.

No sábado, 31, um dia após a viagem de Bolsonaro para Miami e horas antes do discurso de Hamilton Mourão como presidente em exercício, ele disse em vídeo:

“Acabou, gente. O que nós, bolsonaristas, vamos precisar, a partir de segunda-feira (2/1/23), é procurar um psiquiatra. Porque nós ficamos doentes por causa dessa desgraça desse Bolsonaro. É um desgraçado, covarde, que fugiu. Agora, está todo mundo com essa doença aí, ó. Quem quiser ganhar dinheiro, abre uma clínica de psiquiatria. Vai ficar rico, de tanto bolsonarista que vai ter de procurar um psiquiatra. Porque ficou todo mundo doente, não pensa mais, só ‘Bolsonaro, Bolsonaro, Bolsonaro’.”

O discurso de Mourão, o segundo melhor, não ficou longe dessa linha. Antes tarde do que nunca, o general e senador eleito fechou 2022 como o adulto na sala evacuada pelo fujão.

“Lideranças que deveriam tranquilizar e unir a nação em torno de um projeto de país deixaram que o silêncio, ou o protagonismo inoportuno e deletério, criasse um clima de caos e de desagregação social; e de forma irresponsável, deixaram que as Forças Armadas, de todos os brasileiros, pagassem a conta, para alguns por inação e para outros por fomentar um pretenso golpe. A alternância do poder em uma democracia é saudável e deve ser preservada.”

“Paulop1983″ não gostou, mas reagiu ainda mais contra bolsonaristas que acusaram, ele próprio, de “esquerdista infiltrado para ganhar like”.

“É fácil vocês falarem que são patriotas: na porta do quartel, tem churrasco, uísque, água mineral, internet... Por que ninguém chamou todo mundo para fazer uma greve de fome? (...) Vocês é que ficam fazendo churrasco e vídeo para ganhar engajamento em rede social. Isso é ser patriota? (...) Eu era doente, não sou mais. E vocês continuam doentes.”

“Bolsonaro numa mansão do lutador José Aldo, passeando no condomínio em Orlando, e o povo aqui na porta de quartel. Se ele não está nem aí, o que o povo pode fazer? (...) Bolsonaro está de férias até 30 de janeiro. Ele lavou as mãos.”

“Pelos ministros que o Lula colocou, vai ser um péssimo governo. O que a gente tem de fazer é protestar, falar, gritar, mas não tem mais nada, não. (...) É ignorância, é idiotice achar que Bolsonaro vai fazer alguma coisa. Entendeu? Se você não entendeu, é porque você não quer entender, aí já é problema seu.”

“Paulop1983″ está certo. Mal saiu da bolha e já faz uma oposição melhor do que o bolsonarismo raiz.

Felipe Moura Brasil, Jornalista, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 02.01.23

Bolsonaro sem foro: os processos que o ex-presidente pode enfrentar na Justiça comum

Enquanto Bolsonaro era presidente, o foro privilegiado garantia que ele só fosse alvo de investigações criminais com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). Agora, Bolsonaro volta a responder à Justiça comum, e qualquer promotor do Ministério Público pode apresentar denúncias de crimes contra ele

Bolsonaro perdeu o direito ao foro privilegiado

Ao deixar o cargo neste domingo (1º), o ex-presidente Jair Bolsonaro já não tem mais direito ao foro especial por prerrogativa de função, popularmente conhecido como foro privilegiado. Isso quer dizer que ele passa a responder a processos na Justiça comum.

Enquanto Bolsonaro era presidente, o foro privilegiado garantia que ele só fosse alvo de investigações criminais com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, ele só podia ser denunciado na Justiça pela Procuradoria-Geral da República (PGR), após autorização da Câmara dos Deputados; e só podia ser julgado pelo STF.

Agora, no entanto, Bolsonaro volta a responder à Justiça comum, e qualquer promotor do Ministério Público pode apresentar denúncias de crimes contra ele, que serão analisadas por juízes de primeira instância.

Entenda a seguir quais são as suspeitas de crimes pelas quais Bolsonaro pode ter que responder na Justiça comum a partir de agora.

Inquéritos no STF

Enquanto era presidente, Bolsonaro era investigado em quatro inquéritos autorizados pelo STF e enfrentava acusações de crimes feitas pela CPI da Covid que estavam em apuração pela PGR.

Agora, o mais provável é que esses processos sejam encaminhados à Justiça comum — com exceção dos casos em que há envolvimento de pessoas que continuam a ter foro privilegiado.

Nesses casos, os processos podem continuar a ser julgados nas instâncias superiores ou podem ser desmembrados — com os réus com foro privilegiado sendo julgados por instâncias superiores, e os outros réus respondendo a um processo separado que é encaminhado para a Justiça comum.

Sem o foro privilegiado de Bolsonaro, a Polícia Federal pode continuar as investigações sem autorização do Supremo, as apurações que estão sendo feitas pela PGR passam para a competência de instâncias inferiores do Ministério Público, e os processos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passam para o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) da região onde houve a suspeita.

Bolsonaro também perdeu o direito de ser defendido pela Advocacia-Geral da União (AGU) e vai precisar contratar um advogado particular.

Os quatro inquéritos são:

- Sobre a divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra covid-19 (INQ 4888);

- Sobre o vazamento de dados sigilosos de ataque ao TSE (INQ 4878);

- Inquérito das fake news, sobre ataques e notícias falsas contra ministros do STF (INQ 4781);

- Sobre interferência na Polícia Federal (INQ 4831).

Notícias falsas sobre a vacina contra covid-19

A divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra covid-19 é um dos crimes que a CPI da Covid acusa Bolsonaro de ter cometido.

O pedido de abertura do inquérito foi feito após o presidente ler uma notícia falsa em uma transmissão ao vivo nas redes sociais feita por ele em 21 de outubro de 2021.

A notícia enganosa dizia que pessoas vacinadas contra a covid no Reino Unido estavam "desenvolvendo a síndrome da imunodeficiência adquirida [Aids]", o que não é verdade. Na mesma live, Bolsonaro citou notícias falsas sobre uso de máscaras.

Tanto o Facebook quanto o YouTube, plataformas nas quais Bolsonaro fazia a transmissão, retiraram a live do ar para evitar a disseminação da desinformação.

O caso foi investigado pela Polícia Federal sob supervisão do STF. A PF concluiu que ações de Bolsonaro se enquadram no crime de incitação pública à prática de crime (art. 286), já que, segundo a PF, o discurso teve potencial de alarmar espectadores e incentivá-los a descumprir normas sanitárias compulsórias na época.

Em agosto, o ministro Alexandre de Moraes, que é relator do caso, enviou o pedido de indiciamento de Bolsonaro ao Procurador-Geral da República, Augusto Aras, mas Aras nunca fez denúncia contra Bolsonaro por isso.

Em entrevista à rádio Jovem Pan, Bolsonaro se justificou dizendo que "apenas" mencionou na live uma matéria de revista que fazia a associação enganosa entre imunizantes e Aids. E criticou o fato de estar sendo acusado de crime pela declaração.

"Eu mostrei uma matéria. Não inventei aquilo. Agora falar qualquer coisa de vacina passou a ser crime", criticou o ex-presidente.

Com a perda do foro privilegiado, o caso deixa de ser competência da PGR e passa para o Ministério Público Federal, que pode então enviar denúncia à Justiça Federal.

Divulgação de dados sigilosos sobre ataque ao TSE

Bolsonaro também é investigado em um inquérito aberto em 2021 como um desmembramento do inquérito das fake news. A partir de uma notícia-crime enviada pelo TSE, o ministro Alexandre de Moraes determinou a abertura de uma investigação separada.

O inquérito desmembrado é sobre a divulgação de dados de uma investigação sigilosa sobre ataques ao TSE. Os dados foram divulgados por Bolsonaro e pelo deputado Filipe Barros com o envolvimento do delegado da Polícia Federal Victor Neves Feitosa Campos.

Segundo o TSE, o objetivo do vazamento seria contribuir para um narrativa fraudulenta sobre o processo eleitoral, "atribuindo-lhe, sem quaisquer provas ou indícios, caráter duvidoso sobre a lisura do sistema de votação no Brasil".

Em fevereiro, a delegada da Polícia Federal que comanda a investigação enviou um relatório ao Supremo com a conclusão de que Bolsonaro cometeu crime de violação de sigilo funcional. Ela, no entanto, não poderia na época indiciar Bolsonaro por causa do foro privilegiado.

Em agosto, a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, pediu o arquivamento do inquérito, mas o pedido foi negado pelo ministro Alexandre de Moraes, que argumentou que a PGR não tem poder para impedir o prosseguimento de uma investigação policial que não foi requisitada pelo próprio órgão. Com a prerrogativa do foro privilegiado, Bolsonaro acabou não sendo denunciado por esse crime, já que isso precisaria ser feito pela própria PGR, que havia pedido o arquivamento do caso.

No entanto, agora Bolsonaro pode ser indiciado pela Polícia Federal e denunciado pelo Ministério Público, respondendo pelo processo na Justiça comum, se o Supremo decidir que não cabe manter o processo lá diante da perda do foro.

Inclusão no inquérito das fake news

Em agosto de 2021, Bolsonaro foi incluído no chamado "inquérito das fake news", que tramitava no STF desde 2019. A investigação apura notícias falsas, falsas comunicações de crimes e ameaças contra os ministros do Supremo, e está ligada a um outro inquérito sobre atuação de milícias digitais para atacar a democracia no Brasil.

A inclusão de Bolsonaro na investigação aconteceu a pedido do TSE, que enviou uma notícia crime ao STF após uma transmissão ao vivo em que Bolsonaro divulgou notícias falsas que questionavam a confiabilidade do processo eleitoral.

Para o ministro Alexandre de Moraes, "observou-se, como consequência das condutas do Presidente da República, o mesmo modus operandi de divulgação utilizado pela organização criminosa investigada" no inquérito das fake news, "pregando discursos de ódio e contrários às Instituições, ao Estado de Direito e à Democracia".

Apesar de ter algumas decisões divulgadas de tempos em tempos, o inquérito é sigiloso e tramita no STF em segredo de Justiça.

Por ter se originado a pedido do STF, este caso deve continuar tramitando na Corte.

No entanto, agora, caso Bolsonaro venha a ser indiciado, isso pode ser feito sem necessidade de participação da PGR. Por diversas vezes, o ex-presidente criticou o inquérito das fake news dizendo que é ilegal, por funcionar sem participação do Ministério Público.

"Alexandre de Moraes abriu um inquérito de mentira, me acusando de mentiroso. É uma acusação gravíssima. Ainda mais num inquérito sem qualquer embasamento jurídico. Não pode começar por ele. Ele abre, apura e pune? Sem comentários. Isso está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está", disse o ex-presidente em entrevista à rádio Jovem Pan.

Interferência indevida na Polícia Federal

A investigação foi aberta após denúncias do ex-ministro de Bolsonaro (e agora senador eleito) Sergio Moro, que ao deixar o governo em 2020 afirmou que o presidente fez tentativas de interferir indevidamente na atuação da Polícia Federal.

Bolsonaro negou interferência. Em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo, durante as eleições, disse que, segundo Moro, a prova da interferência estava numa reunião do governo. E completou:

"Eu não tinha a obrigação de entregar a fita. Entreguei a fita. Foi revelado até muitos palavrões na reunião de ministros. Não acharam nada."

A PGR afirmou que não existem provas suficientes contra Bolsonaro para imputação de crime e pediu o arquivamento. O STF ainda não decidiu se arquivará o caso. Se não for arquivado, também pode passar para a competência da Justiça comum.

Crimes apurados pela CPI da Covid

Além dos inquéritos no STF, Bolsonaro também tem acusações feitas contra ele — resultantes do relatório final da CPI da Covid — que estavam sendo apuradas pela Procuradoria-Geral da República. No entanto, o procurador-geral da República, Augusto Aras, visto como aliado do presidente, nunca chegou a denunciar Bolsonaro pelas acusações.

Na verdade, para oito das dez apurações preliminares de possíveis crimes cometidos, a PGR pediu arquivamento ao STF. Entre elas, estão: acusação de ter causado epidemia com resultado morte (por suspeita de propagar o vírus); de ter praticado charlatanismo (devido ao incentivo de uso de medicamentos sem eficácia); ter cometido infração de medida sanitária preventiva (por realizar aglomerações e não usar máscara); ter feito uso irregular de verbas públicas (por uso de recursos públicos na compra de medicamentos ineficazes) e ter cometido prevaricação (por supostamente não ter mandado investigar denúncias de corrupção na compra de vacinas).

Na época da divulgação do relatório final da CPI, Bolsonaro afirmou que a comissão não fez nada "produtivo" e gerou apenas "ódio e rancor". Ele disse que não tinha "culpa de absolutamente nada", e que o governo fez "a coisa certa desde o primeiro momento".

Mas o STF ainda não decidiu se acolhe o pedido da PGR e arquiva as investigações. Se tivessem sido arquivadas, elas só poderiam ser reabertas pelo Ministério Público se houvesse novas provas.

Com a perda do foro, o Supremo decidirá se envia as investigações relacionadas a Bolsonaro para análise na Justiça comum. Mas é possível que as apurações fiquem no STF, se envolverem outros investigados que ainda possuem foro privilegiado.

Se o caso for para a Justiça comum, caberá a um procurador decidir se oferece denúncia. E caberá a um juiz de primeiro grau decidir se abre ou não ações penais contra Bolsonaro.

Ações que podem deixá-lo inelegível

Bolsonaro também responde a doze ações no TSE por suspeita de prática de crimes contra o sistema eleitoral.

Com a perda do foro, é possível que essas ações sejam enviadas aos TREs dos locais onde os crimes teriam sido cometidos.

No entanto, também é possível que a Justiça entenda que a competência para julgar algumas das ações continua sendo do TSE — não por foro de prerrogativa de Bolsonaro, mas pela natureza dos crimes.

Uma das acusações é de que Bolsonaro e o general Braga Netto praticaram abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao fazer um evento para embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada em julho de 2022. No evento, transmitido pela TV Brasil, Bolsonaro fez ataques ao sistema eleitoral e a autoridades do Poder Judiciário.

Na época, a Presidência da República disse, em nota, que Bolsonaro manteve encontro com chefes de missões diplomáticas para intercâmbio de ideias sobre o processo eleitoral. E seu partido afirmou que o encontro não podia ser considerado propaganda eleitoral. Segundo o PL, foi uma reunião de governo, e não de campanha.

Caso seja condenado pela Justiça Eleitoral em qualquer uma das doze ações, Bolsonaro ficará inelegível.

Incitação ao crime

Antes de se tornar presidente, Bolsonaro já era réu em dois processos penais por incitação ao crime de estupro e por injúria contra a deputada federal Maria do Rosário (PT). Em dezembro de 2014, Bolsonaro agrediu verbalmente a deputada, dizendo: "Não estupraria você porque você não merece".

Bolsonaro foi condenado a pagar indenização e a pedir desculpas no processo por injúria, mas a ação penal por incitação ao estupro foi paralisada em 2019 por causa da eleição de Bolsonaro à Presidência. A ação foi suspensa temporariamente, já que o presidente da República não pode ser responsabilizado durante o seu mandato por atos cometidos antes de se tornar presidente.

Com a saída de Bolsonaro do Planalto, no entanto, a ação volta a correr na Justiça, e o ex-presidente pode ser condenado à detenção de três a seis meses — pena que costuma ser convertida em multa.

Durante o processo, Bolsonaro e seus advogados afirmaram que o presidente estava no exercício do mandato parlamentar no momento da fala gravada — e que a Constituição assegura imunidade parlamentar nesses casos.

- Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63976848. Reproduzido pelo Correio Braziliense, em 02.01.23.

Deputados do PSol vão pedir a prisão preventiva de Bolsonaro ao STF

"Bolsonaro cometeu crimes em série durante seu governo. Chamá-lo de genocida não é exagero. Infelizmente as instituições não agiram a tempo e tivemos de esperar até as eleições", escreveu o presidente do PSol, Juliano Medeiros, em uma postagem no Twitter

Antes de embarcar para os EUA na sexta-feira, Bolsonaro fez uma live nas redes sociais para se despedir dos apoiadores - (crédito: AFP)

O presidente do PSol, Juliano Medeiros, confirmou, na manhã desta segunda-feira (2/1), que o partido vai entrar com uma petição Supremo Tribunal Federal com pedido de prisão previsão do ex-presidente Jair Bolsonaro. "Bolsonaro cometeu crimes em série durante seu governo. Chamá-lo de genocida não é exagero. Infelizmente as instituições não agiram a tempo e tivemos de esperar até as eleições", escreveu Medeiros, em uma postagem no Twitter.

Na ação, que será assinada por toda a atual bancada do PSol na Câmara e também os deputados federais que vão assumir em fevereiro, os congressistas vão pedir também a quebra de sigilo telefônico e telemático, busca e apreensão de provas e documentos e apreensão do passaporte do ex-presidente. "Como disse o presidente Lula ontem, não queremos revanchismo. O que queremos é que os responsáveis pela morte de milhares de brasileiros respondam no rigor da lei. E pra ontem!", disse Medeiros.

Bolsonaro embarcou, na sexta-feira (30/12), para Orlando, nos Estados Unidos. O ex-presidente está passando por "período sabático" em um condomínio na cidade turística norte-americana. Desde sábado, tem sido visto em postagens nas redes sociais cumprimentando e tirando com fotos com brasileiros que vivem ou passam férias no local. Bolsonaro não seguiu o protocolo por duas vezes antes de deixar a Presidência da República: não fez o tradicional pronunciamento de fim de mandato à nação, tarefa que coube ao ex-vice-presidente Hamilton Mourão na noite de sábado (31/12), nem participou da cerimônia de transmissão de faixa ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Correio Braziliense, em 02.01.23

Novas regras do Pix passam a valer a partir desta segunda-feira

Segundo o Banco Central (BC), as novas regras oferecerão mais segurança e flexibilidade ao mecanismo de pagamento  

 (crédito:  Marcello Casal JrAg..ncia Brasil)

As novas regras do PIX - sistema de pagamentos instantâneos começam a valer nesta segunda-feira(2/1). Entre as mudanças, destaca-se a possibilidade de transferir todo o limite diário em um único envio. Antes, se uma pessoa tinha um limite diário total de R$ 3.000, mas um limite de R$ 1.000 por transação, era preciso fazer três transferências. A partir desta data, será possível fazer uma única transferência de R$ 3.000. 

PIX se torna o meio de pagamento mais usado no Brasil

Segundo o Banco Central (BC), as novas regras oferecerão mais segurança e flexibilidade ao mecanismo de pagamento, que bateu recorde de 104,1 milhões de transações por dia com o pagamento da segunda parcela do décimo terceiro, em 20 de dezembro.

Confira as mudanças

Pix saque e troco têm limite maiores

Limite do Pix Saque e Troco: passou de R$ 500 para R$ 3.000 no período diurno, e de R$ 100 para R$ 1.000 durante a noite.

Horário noturno

O horário do limite noturno poderá ser flexível e definido pelo cliente, se o banco oferecer essa opção. Hoje é das 20h às 6h, mas poderá começar às 22h, se o cliente quiser.

O banco não é obrigado a oferecer essa opção, e fica liberado pelo BC para decidir isso ou não.

Segundo nota da assessoria do BC, essa mudança pode ser aplicada até 3 de julho de 2023. O limite noturno é menor que o do dia e foi estabelecido para evitar ação de criminosos, como roubos e sequestros relâmpagos.

Limite não muda

Uma regra que continua a mesma é o limite do valor. Se o consumidor quiser reduzir seus limites de Pix, a solicitação tem que ser atendida imediatamente. Caso deseje aumentar em algum momento, o banco tem um prazo de 24 horas a 48 horas para avaliar o pedido e aceitá-lo ou não. Isso já é válido atualmente.

Na instrução normativa editada em dezembro, o BC estabeleceu que, a partir de 3 de julho de 2023, o aplicativo associado ao Pix, deverá oferecer a funcionalidade para o cliente ajustar os limites e personalizar o início do horário noturno. Algumas instituições já oferecem esse recurso aos usuários, embora ainda não sejam obrigadas.

Jéssica Andrade, originalmente, para o Correio Braziliense, em 02.01.23.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Mourão convoca rede nacional de rádio e TV para pronunciamento na véspera do ano novo

Senador eleito assumiu a Presidência após viagem de Bolsonaro aos Estados Unidos

O senador eleito e presidente da República em exercício, Hamilton Mourão (Republicanos), convocou a rede nacional de rádio e televisão para um pronunciamento na noite deste sábado, 31, às 20 horas. A fala terá duração de aproximadamente sete minutos. Trata-se de uma mensagem institucional de fim de ano, como é de praxe da Presidência.

Mourão assumiu a chefia do Executivo nesta sexta-feira, 30, após o presidente Jair Bolsonaro decolar rumo aos Estados Unidos, onde passará a virada do ano. Este ano foi a primeira vez que Bolsonaro não fez um pronunciamento de Natal em cadeia nacional, como em 2019, 2020 e 2021.

Este foi o primeiro ano em que Bolsonaro n o fez um pronunciamento de Natal. Foto: PR

As últimas declarações do presidente em seu mandato ocorreram nesta sexta-feira, 30, em uma live em tom de “despedida”. Pela primeira vez após a derrota nas urnas, Bolsonaro deu recados a apoiadores em uma transmissão ao vivo em suas redes sociais. Ele repudiou o que chamou de “tentativa de ato terrorista” em Brasília, disse que “foi difícil” se manter calado por dois meses e reconheceu, pela primeira vez, que seu “opositor”, Luiz Inácio Lula da Silva, tomará posse a partir deste domingo, 1.º de janeiro.

A declaração de pouco mais de 50 minutos foi marcada por justificativas à militância em relação ao silêncio desde a frustrada a busca pela reeleição. Diferentemente das tradicionais lives semanais, usadas para se comunicar diretamente com a base, Bolsonaro não estava acompanhado de nenhuma autoridade, como ministros, secretários ou assessores. O presidente fez um balanço da gestão, chorou e criticou o futuro. 

Redação d'O Estado de S. Paulo, em 30.12.22

Bolsonaro deixa o Brasil com destino a Orlando, nos EUA

Após realizar live em tom de despedida, último ato de presidente não reeleito é viagem à Flórida, onde se recolhe por ao menos um mês, sem participar da posse do rival Luiz Inácio Lula da Silva

Avião deixou Brasília, com Bolsonaro a bordo, com destino aos Estados Unidos. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters  

O presidente Jair Bolsonaro deixou o Brasil nesta sexta-feira, dia 30, com destino a Orlando, nos Estados Unidos, dois dias antes da posse do presidente eleito e diplomado Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Adiada ao longo da semana, a decolagem ocorreu às 14h02, com ligeiro atraso ao plano de voo da aeronave presidencial, que previa início da viagem às 13h45.

O Airbus VC-1 da Força Aérea Brasileira iria pousar por volta das 20h10, após voo direto, no Aeroporto Internacional de Orlando. No entanto, houve um desvio da rota original, com parada para reabastecimento em Boa Vista (RR). Agora, a previsão é de chegada por volta das 23h30.

O comboio presidencial saiu do Palácio da Alvorada de forma alternativa, sem passar no portão principal, em frente ao cercadinho de apoiadores, que estava vazio, e ao espaço destinado à imprensa.

Assim que o presidente cruzar o espaço aéreo brasileiro, o vice-presidente Hamilton Mourão entra em exercício por ao menos um dia.

Primeiro presidente no cargo a disputar e perder a reeleição, Bolsonaro também será o primeiro a não passar a faixa a um sucessor eleito pelas urnas desde a redemocratização. Uma equipe do Palácio do Planalto, com equipe de apoio e segurança, chegou há dois dias na cidade da Flórida. A previsão é que o presidente passe ao menos janeiro hospedado em um condomínio-resort fechado.

Oficialmente, a Presidência da República não se pronunciou sobre a viagem. Servidores militares do Gabinete de Segurança Institucional foram deslocados a Miami, cidade vizinha na Flórida, assim como a equipe de assessores que acompanhará Bolsonaro como ex-presidente.

A Secretaria Geral da Presidência publicou no Diário Oficial da União aval para afastamento do País dos “assessores de ex-presidente” indicados por Bolsonaro. São eles: Sérgio Rocha Cordeiro, Marcelo da Costa Câmara, Max Guilherme Machado de Moura, Osmar Crivelatti e Ricardo Dias dos Santos.

A equipe de apoio com cinco servidores pagos pela União se revezará nos EUA entre 1º e 30 de janeiro, durante “agenda internacional” de Bolsonaro em Miami.

Apoiadores de Bolsonaro estiverem na porta do Palácio da Alvorada nesta sexta-feira, 30.(FOTO WILTON JUNIOR / ESTADÃO)

Pronunciamento final

Antes da decolagem, Bolsonaro fez, sozinho, um pronunciamento informal nas redes sociais. Foi a última “live” do mandato que se encerra. Apesar de ter sido aconselhado a não falar, pelo risco jurídico de incentivar os manifestantes golpistas que o apoiam, ou desapontá-los, o presidente preferiu ouvir conselhos políticos que sugeriam um aceno a sua base. Na ocasião, ele chorou, reconheceu o clima de velório e afirmou que foi muito difícil ficar praticamente dois meses calado, após a derrota para Lula.

Bolsonaro condenou a tentativa de explodir uma bomba no Aeroporto de Brasília, segundo a polícia promovida por bolsonaristas que frequentavam o acampamento pró-golpe de Estado, armado em frente ao Quartel-General do Exército. O presidente disse que “nada justifica” um “ato terrorista”. “Massificam o cara como bolsonarista o tempo todo”, reclamou o presidente. No entanto, o próprio autor do atentado, depois de preso, declarou em depoimento ser seguidor de Bolsonaro.

“Não tem tudo ou nada. Não vamos achar que o mundo vai acabar dia 1º de janeiro”, disse Bolsonaro, que apresentou ações e entregas do mandato e pediu o oposição a Lula. O presidente disse que manifestações de seus apoiadores nos quartéis são justificadas por entendimento de que a Justiça foi parcial nas eleições. Segundo ele, os protestos “ordeiros” devem ser respeitados. Bolsonaro negou ter participado da mobilização. Argumentou que só apresentou questionamentos à eleição de Lula dentro da legalidade. “Fiz a minha parte, dentro das quatro linhas (da Constituição)”, afirmou, indicando que não teve apoio no Judiciário e no Congresso.

Como previam conselheiros do presidente, o pronunciamento foi mal recebido na sua base. Surgiram uma série de manifestações de desaprovação nas redes sociais. Do lado de fora do Palácio da Alvorada, um pequeno grupo de apoiadores que acompanhava a transmissão - alguns ajoelhados - se dispersou. Um homem xingou Bolsonaro e disse que ele era “covarde”. Em seguida, petistas apareceram e fizeram o L com as mãos, um sinal de apoio a Luiz Inácio Lula da Silva, presidente que será empossado no domingo.

Felipe Frazão para O Estado de S. Paulo, em 30.12.22

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A marcha da insensatez

O Reino Unido decidiu sair da União Europeia, a Rússia se imolou ao iniciar a guerra com a Ucrânia e o Brasil dobrou a aposta no populismo

No seu livro seminal, A Marcha da Insensatez, Barbara W. Tuchman define a insensatez política como a arte de fazer escolhas contrárias aos interesses do país. A sua definição de insensatez compreende três critérios. Primeiro, a decisão precisa ser considerada insensata na época em que foi tomada. Segundo, é necessário que houvesse alternativas plausíveis à escolha insensata. Terceiro, a decisão política não pode ser apenas de um governo, mas de um grupo de cidadãos. Esses critérios revelam como as nações tomam decisões contrárias ao seu próprio interesse. Assim, o Reino Unido resolveu sair da União Europeia por meio de um plebiscito (Brexit), a Rússia se imolou ao iniciar a guerra com a Ucrânia e o Brasil dobrou a aposta no populismo, elegendo Lula da Silva presidente.

A ilusão traz novas desilusões porque a realidade não se enquadra na moldura das nossas fantasias. Aqueles que votaram em Lula pensando que elegeriam o mal menor começam a se arrepender. Descobriram que Lula não aprendeu nada e não esqueceu nada. O discurso de sua diplomação revela a velha retórica do salvador da pátria. A fala do redentor que “salvou” a democracia do autoritarismo, do mal maior e da mentira apenas mostrou a sua mesquinharia, sectarismo e incapacidade de construir pontes, pacificar o País e diminuir a tensão numa nação polarizada. Deixou claro que vai governar como líder da facção, e não como o presidente de todos os brasileiros.

As bravatas de Lula são preocupantes. A ameaça de revisitar marcos consolidados do avanço institucional – como a reforma trabalhista, a Lei das Estatais e o Marco do Saneamento – contribui para aumentar a insegurança jurídica, afugentar investimento privado e ressuscitar o pesadelo do aparelhamento político das estatais e da máquina pública que gerou os escândalos de corrupção como o mensalão e o petrolão.

Seu empenho na manutenção da imoralidade do orçamento secreto retrata o velho PT, que governa loteando cargos e verbas para garantir a “governabilidade”. O repúdio à reforma administrativa e às privatizações são um tiro no pé de uma nação que precisa adotar critérios objetivos para mensurar a eficácia das políticas públicas e melhorar a qualidade do serviço público. Esses sinais revelam que o PT continua aprisionado ao passado tanto nas ideias como nas suas práticas execráveis.

O problema é que a miopia política petista pode nos levar a desperdiçar uma oportunidade única de transformar o Brasil numa potência global. Na era da economia de baixo carbono, o País possui três vantagens comparativas: meio ambiente, energia limpa e agricultura sustentável. O Brasil tem capacidade de capturar metade da emissão de carbono do mundo e se tornar a primeira grande economia carbono zero. Mas esse potencial só será convertido em riqueza, renda e emprego se o governo e o mercado estiverem em sintonia.

O mercado precisa de regras previsíveis para investir no plantio de árvores em terras degradadas e na bioeconomia. Já o governo tem de frear o desmatamento, impondo embargo automático de áreas desmatadas, e combater o crime organizado que domina parte do território brasileiro e controla a indústria da grilagem de terras, da mineração ilegal e da biopirataria.

O espetacular avanço do investimento privado em energias renováveis, como solar e eólica, contribuiu para transformar a nossa matriz energética na mais limpa do mundo. Mas o setor elétrico carece de investimento em geração distribuída e em termelétricas de gás e biodiesel para garantir a estabilidade do fornecimento de energia. O investimento não virá se o governo cultivar sua animosidade ideológica em relação ao mercado e ao setor privado.

O agronegócio brasileiro alimenta o mundo, preserva o meio ambiente e investe em recuperação de pastagens degradadas com programas de integração de pecuária, lavoura e floresta. Mas, para encorajar o agronegócio a produzir bens de maior valor agregado, será preciso assegurar a inviolabilidade da propriedade privada e estimular o investimento em infraestrutura e em pesquisa e desenvolvimento. Um governo que demoniza o agronegócio demonstra o seu descaso com o setor mais competitivo e exportador da economia.

Para evitar os efeitos nefastos da marcha da insensatez, é preciso adotar três atitudes:

1) Não espere nada de um governo presidido por um populista. Imprensa, sociedade civil e governos subnacionais precisam se mobilizar para pressionar o Congresso e o governo a evitar retrocessos institucionais, como é o caso da deformação da Lei das Estatais.

2) Procure trabalhar em parceria com Estados e municípios. Elegemos uma boa safra de governadores. Pragmáticos e realistas, os governadores e prefeitos buscam investimento privado e se empenham para facilitar a vida de investidores que geram renda e emprego locais.

3) Vote bem. Enquanto elegermos governantes populistas, seremos um país condenado ao subdesenvolvimento, ao baixo crescimento econômico e a conviver com uma democracia debilitada. Nós somos fruto das nossas escolhas.

Boas festas!

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é cientista político. Foi candidato a Presidente da República em 2022. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.12.22.

Bagunça golpista exige punição

Bolsonaro deve zelar pela ordem jurídica e pela paz social no País. Seu silêncio e meias palavras soam como autorização para seguidores cometerem sandices antidemocráticas

O presidente Jair Bolsonaro chega ao final do mandato como o grande responsável pelo clima de tensão e desordem que se instalou em Brasília desde o resultado das eleições. Agora, às vésperas da posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, os brasileiros assistem ao ápice dessa bagunça alimentada pelo mesmo governo que prometeu ao País “a lei e a ordem”.

Tão absurdo tem sido o desenrolar dos acontecimentos na capital federal – mas não apenas lá – que a Polícia Federal (PF) recomendou que Lula não desfile no Rolls-Royce presidencial no dia da posse, como é tradição há 70 anos, por risco de atentado contra a sua vida.

Não se sabe se Lula acatará a recomendação. O automóvel não só é um símbolo da autoridade do chefe de Estado e de governo, como, em alguma medida, é uma das representações da própria República no imaginário da Nação. Mas o temor dos agentes da PF responsáveis pela segurança do presidente eleito não é infundado. Existem indícios, por exemplo, de que há pessoas armadas no acampamento golpista em frente ao Quartel-General do Exército. Não existe liberdade de se manifestar armado.

Além disso, como se não bastasse, na véspera do Natal um seguidor bolsonarista tentou explodir uma bomba sob um caminhão de querosene de aviação nos arredores do Aeroporto Internacional de Brasília. O objetivo de George Washington de Oliveira Sousa, gerente de um posto de combustíveis no interior do Pará, era “criar o caos” na capital federal para que Bolsonaro decretasse “estado de sítio” e as Forças Armadas, por sua vez, interviessem para impedir a posse de Lula. Em depoimento à Polícia Civil do Distrito Federal, o bolsonarista afirmou que agiu “inspirado” por palavras do presidente. Em novo depoimento, retirou a menção a Bolsonaro.

É lamentável que haja pessoas dispostas a urdir uma trama golpista e rocambolesca desse naipe. De toda forma, trata-se da expressão fidedigna de um governo conduzido durante quatro anos sob o signo de Tânatos, o deus da morte na mitologia grega, como já destacamos nesta página.

Até perder a eleição, Bolsonaro agiu pela destruição pura e simples – destruição dos avanços civilizatórios trazidos pela Constituição de 1988, das instituições republicanas, da moralidade pública, da tradição diplomática do País, de políticas públicas bem-sucedidas, de adversários políticos. Agora, derrotado nas urnas, omite-se com o mesmo desiderato. Seu silêncio e suas meias palavras soam como autorização para que seguidores mais radicalizados cometam sandices criminosas e antidemocráticas.

Convém lembrar às autoridades, aí incluídas o senhor presidente da República e o ministro da Justiça, Anderson Torres, que elas, enquanto estiverem em seus cargos públicos, têm o dever de garantir a ordem jurídica e a paz social no País. Eventuais omissões e cumplicidades podem gerar graves responsabilidades penais. No caso de Jair Bolsonaro, existem obrigações constitucionais bem precisas, que valem até o último minuto do mandato.

Diante da baderna promovida por seus apoiadores, Jair Bolsonaro não é assistido pelo direito ao silêncio e à inação. Anderson Torres, por sua vez, diminui o cargo quando, diante de tão sérias ameaças, se limita a dizer que o Ministério da Justiça está “acompanhando” as investigações da Polícia Civil do Distrito Federal. Eis o final do governo que prometia “a lei e a ordem”: com bagunças e desordens até então inéditas no atual regime constitucional. Vista em Brasília e em outras cidades, a insurgência de bolsonaristas contra o resultado da eleição ocorre sob o beneplácito de autoridades que, tendo o dever de zelar pela Constituição e pela paz, responderão por tão perigosa passividade.

Reafirmando a Constituição e a vontade popular, o presidente eleito tomará posse no dia 1.º de janeiro. Mas isso não significa que o País esteja livre das ameaças dos arruaceiros que não se conformam com o resultado da eleição. Se lhes faltam razão e civismo, que sobre eles recaia todo o peso da lei. É assim que a democracia se defende.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.12.22

domingo, 25 de dezembro de 2022

A paz requer política pública séria

Pesquisa que indica a crescente sensação de insegurança é alerta para a necessidade de soluções públicas baseadas em evidências, e não para demagogia ou apelo a mais violência

O Brasil é um país violento e a população tem consciência dessa realidade. Feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em parceria com o Ministério da Justiça, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua sobre o tema confirma uma realidade conhecida, mas raramente enfrentada com responsabilidade pelo poder público: a grande sensação de insegurança no País. Trata-se de um problema grave que tem impacto direto sobre o desenvolvimento humano, social e econômico do País e afeta, de diversas formas, a vida de todas as pessoas. Ninguém está imune à violência.

Entre os participantes da pesquisa, 40% afirmaram ter chance (alta ou média) de serem roubados na rua. Mais de um quinto das mulheres (20,2%) disse ter chance (alta ou média) de ser vítima de violência sexual. No caso dos homens, esse porcentual é de 5,7%. Entre eles, destacam-se as chances de ser vítima de violência policial (13,5%) ou de ser confundido com bandido (13,4%).

Neste momento de transição do Executivo e do Legislativo nas esferas federal e estadual, os dados da Pnad Contínua relembram a gravidade da situação – a violência e a sensação de insegurança não são problemas passíveis de serem normalizados. Relembram, também, a necessidade de políticas públicas de segurança pública responsáveis, baseadas em evidências. Não se pode continuar iludindo a população com respostas demagógicas e populistas, que, além de não enfrentarem as causas dos problemas, muitas vezes os agravam, reforçando o círculo vicioso.

O enfrentamento da violência e de suas causas é uma tarefa prioritária do poder público. Deve ser uma preocupação transversal para todas as esferas e instâncias do aparato estatal. Como indicam os dados da Pnad Contínua, o tema da segurança pública não é uma preocupação apenas de ricos ou da classe média, como às vezes equivocadamente se pensa e se diz. Quem mais sofre com a violência – isto é, quem mais sente a sensação de insegurança, quem mais tem a vida recortada profissional e socialmente por questões de segurança pública – são as classes mais baixas, a população mais vulnerável.

Entre outros fatores, isso se deve à própria desigualdade da atuação do poder público. Segundo a Pnad Contínua, a existência de serviços públicos avaliados como bons ou ótimos está associada a uma sensação de segurança maior do que aquela observada em domicílios cujo entorno fornece serviços públicos classificados como regular, ruim ou péssimo. Um ponto importante: o serviço de policiamento melhora a sensação de segurança, mas não é o único fator. Por exemplo, o serviço de coleta de lixo também contribui para a percepção de segurança na população.

Nos tempos atuais em que se fala tanto de milícias – há políticos que não apenas toleram, mas homenageiam milicianos –, a Pnad Contínua traz um dado significativo. A extorsão e a cobrança de taxas ilegais são os crimes que mais reduzem a sensação de segurança. Esse dado desvela a crucial importância de os governos estaduais cuidarem de suas polícias, proporcionando formação, capacitação e acompanhamento adequados. Nesse sentido, é um verdadeiro disparate – profundo desrespeito com a população – que gestores públicos falem em abolir o uso das câmeras nos uniformes dos policiais.

Promover a segurança pública hoje no Brasil é, de forma muito concreta, evitar retrocessos. Por exemplo, a política de armar a população – incentivar que as pessoas comprem armas – não é caminho de paz. Não é solução, é aumento do problema. Também não resolve nada simplesmente aumentar as penas e endurecer as condições de seu cumprimento – basta ver os resultados obtidos com as alterações legislativas das últimas três décadas. São medidas populistas, que intensificam a seletividade do sistema penal, geram superlotação nos presídios e não melhoram de fato a segurança da população.

A violência atual é intolerável. Com urgência, é preciso prover outro patamar de segurança pública. E isso só se alcança com políticas públicas realistas e responsáveis.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.012.22

Jesus sofreu abuso sexual antes de ser crucificado, afirma teólogo

Professor inglês usa trecho bíblico e comparação com torturas modernas para abordar sexualização do martírio de Cristo

‘Flagelação de Cristo’, de Caravaggio (1571-1610) Reprodução

[RESUMO] Teólogo inglês defende a tese de que Jesus Cristo foi vítima de abuso sexual antes de ser crucificado. Relacionando os maus-tratos a prisioneiros da era romana e práticas de ditaduras latino-americanas, ele estuda a dimensão sexual da tortura e propõe nova postura das igrejas cristãs.

O inglês David Tombs, 57, nunca se esqueceu da lição aprendida em 1987 com o célebre professor e teólogo James Cone (1938-2018) em Nova York. "Não preste atenção somente às perguntas que são feitas. Olhe também para as perguntas que ninguém está fazendo."

Radicado na Nova Zelândia, o também teólogo Tombs lida há 23 anos com duas dessas perguntas: o que significam os três momentos em que Jesus Cristo é publicamente despido, antes da crucificação? E por que isso importa?


David Tombs, professor de teologia da Universidade de Otago, na Nova Zelândia - Universidade Georgetown/Reprodução

Por séculos, as artes plásticas traduziram o desnudamento antes da execução como um aspecto lateral, que Jesus encarou serenamente ao subir à cruz que marcou o pensamento do Ocidente. Mesmo no violentíssimo "A Paixão de Cristo" (2004), de Mel Gibson, esse episódio é neutralizado. É preciso voltar ao Evangelho de Marcos para captar os horrores da Via-Crúcis.

"Então Pilatos, querendo satisfazer a multidão, soltou-lhe Barrabás e, açoitado Jesus, o entregou para ser crucificado. E os soldados o levaram dentro à sala, que é a da audiência, e convocaram toda a coorte [unidade militar romana com 500 soldados]. E vestiram-no de púrpura, e tecendo uma coroa de espinhos, lha puseram na cabeça. E começaram a saudá-lo, dizendo: Salve, Rei dos Judeus! E feriram-no na cabeça com uma cana, e cuspiram nele e, postos de joelhos, o adoraram. E, havendo-o escarnecido, despiram-lhe a púrpura, e o vestiram com as suas próprias vestes; e o levaram para fora a fim de o crucificarem" (Marcos 15:15-20, versão Almeida).

Para Tombs, tudo isso retrata que Cristo foi vítima de um abuso sexual: exposto em sua nudez, espancado e humilhado enquanto nu, em uma recreação sádica que contou com 500 soldados, entre participações diretas e olhares curiosos.

Professor de teologia e questões públicas na Universidade de Otago, em Dunedin, na Nova Zelândia, o anglicano Tombs publicou em 1999 seu primeiro artigo sobre o tema, intitulado "Crucificação, terrorismo de Estado e abuso sexual". Hoje, não está mais sozinho: outros teólogos já abordam o aspecto sexualizado do martírio de Cristo.

Em 2021, Tombs editou um compêndio de artigos de teólogos ao lado das professoras Jayme Reaves e Rocío Figueroa, "When Did We See You Naked?" (quando foi que te vimos nu?, SCM Press, inédito no Brasil). Neste ano, o teólogo deve lançar um novo livro, em que consolida todo o seu pensamento.

"São dois aspectos: o primeiro é o que o texto realmente fala. Vejo a nudez forçada de Cristo como uma forma de violência sexual, o que justifica chamá-lo de vítima de abuso sexual. Embora muitas pessoas tenham dificuldade de chamar a nudez forçada de violência sexual, tendo a crer que elas estão sendo desnecessariamente resistentes ao que o texto afirma", diz Tombs, por videochamada.

O segundo aspecto é menos direto na resposta, mas ainda relevante: o que pode ter ocorrido depois do desnudamento?

"Não sabemos ao certo, mas podemos levantar uma questão que não é meramente especulativa nem leviana, porque temos evidências de maus-tratos a prisioneiros da era romana e também perspectivas trazidas pelo contexto de outras torturas modernas, na documentação das ditaduras em El Salvador, Brasil, Argentina, Chile, Sri Lanka e Abu Ghraib (prisão do Exército americano no Iraque), por exemplo."

A experiência latino-americana da tortura de Estado foi primordial para a pesquisa de Tombs. À época de seu doutorado em Londres, o teólogo graduado em Oxford estudava a Teologia da Libertação, que prosperou nos anos 1970 e 1980 pela América Latina para depois se tornar anátema do catolicismo mais conservador, sob a acusação de ser marxista e de forçar interpretações politizadas do texto bíblico. Para Tombs, tratava-se do contrário: o movimento tinha a virtude de buscar no texto bíblico o que poucos queriam ver.

O inglês esteve duas vezes em El Salvador para estudar a teologia de Jon Sobrino e outros pensadores em 1987, ainda na guerra civil, e em 1996, quatro anos após o fim do conflito.

O que realmente o impactou, contudo, foi ler em uma biblioteca londrina em 1997 o relato da refugiada salvadorenha Brenda Sánchez-Galán, que entrou ilegalmente nos EUA. Ela contou que, em 1983, uma colega do centro médico foi espancada e estuprada pelos soldados da ditadura, levada a uma praça perto de San Salvador e executada a tiros de metralhadora, em uma cena de bizarra conotação sexual.

"Fiquei chocado pelo fato de que tinha estudado aquilo e nunca tinha focado o tema da sexualidade. Comecei a tentar entender mais por que os soldados fazem isso com as pessoas. Li relatórios de tortura, de direitos humanos e de comissões da verdade e ficou absurdamente nítido para mim como o abuso sexual é comum na tortura, ainda que não seja a primeira coisa em que as pessoas pensam quando se fala de tortura."

Segundo ele, o relato de Sánchez-Galán teve pouco impacto na Comissão da Verdade em El Salvador, que, por regra, tratou os incidentes sexuais como gestos individuais que não refletiam práticas generalizadas. O silêncio dos teólogos da libertação também decepcionou Tombs. "Aqueles escritores que eu tanto admirava e ainda admiro simplesmente não abordaram aquela questão. Aquilo ilustrava nitidamente o tipo de pergunta que ninguém estava fazendo."

De acordo com Tombs, é comum que as populações saibam de violações sexuais em períodos autoritários de seus países: o desnudamento forçado, o uso da picana (bastão de choques elétricos usado para guiar o gado, comum na ditadura argentina) e a eletrocussão dos genitais. Porém, poucos se dão conta do papel central que essas práticas têm na humilhação de prisioneiros.

No último domingo, por exemplo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) ironizou a tortura sofrida pela jornalista Míriam Leitão, do jornal O Globo, durante a ditadura militar. Leitão estava grávida quando foi presa e torturada. Em uma das sessões, ela foi deixada nua em uma sala escura com uma cobra. Tombs se referiu a esse episódio em seu texto de 1999.

"Na tortura de Estado, não é preciso muito para que tudo seja sexualizado", diz Tombs, que lembra que a própria crucificação romana também se dava em estado de nudez.

Teologicamente, o professor reconhece que a hipótese do abuso sexual do corpo de Cristo eleva a tensão sobre o papel de Deus em seu sofrimento. Em muitas interpretações cristãs, Deus é o agente que permite que todo o martírio de Cristo ocorra.

Tombs, no entanto, prefere focar outro aspecto. "É possível perceber que algumas pessoas rejeitam essa leitura por acharem que tal sofrimento diminui Cristo, o que é parte do estigma que os sobreviventes do abuso sexual vivem. Às vezes, o que se percebe é que algumas pessoas dizem amar Cristo, mas não querem realmente saber do que ele sofreu. Adultos que dizem amar Cristo deveriam ter vontade de conhecer o que ele sofreu. Além disso, há também o aspecto de que Deus compartilha do sofrimento humano até nas suas piores instâncias. Recebi mensagens de sobreviventes de abuso sexual que admitiam sentir uma distância de Deus, como se Deus não entendesse a dor deles. Ao tomarem conhecimento dessa interpretação, essas pessoas me dizem que encontraram um advogado em Jesus."

Tombs recebeu algum reconhecimento por seu artigo de 1999 e achou que tinha dado sua contribuição ao tema, embora apenas os círculos teológicos tenham se engajado no debate.

Outros fatos, porém, fizeram-no crer que o ambiente cultural estava mais preparado para seu argumento: das denúncias de tortura na prisão de Abu Ghraib ao movimento #MeToo, passando pela explosão de escândalos sexuais em comunidades religiosas, a começar pelo de 2002, em Boston (retratado em "Spotlight", de 2015, vencedor do Oscar de melhor filme).

Decidiu então insistir na pesquisa e na produção, na crença de que as igrejas precisam encarar o tema em todos os seus aspectos: o teológico, o pastoral, a admissão dos crimes que seus membros cometeram e o acolhimento dos sobreviventes do abuso.

Um desses escândalos aconteceu no Peru, em uma organização chamada Sodalício de Vida Cristã, com membros em 25 países e que havia sido reconhecida por João Paulo 2º em 1997. Nela, católicos laicos cumpriam votos de pobreza e obediência e viviam em comunidades conservadoras.

Uma das testemunhas-chave para a condenação dos abusos sexuais foi Rocío Figueroa, doutora em teologia pela Universidade Gregoriana, de Roma. Depois de 20 anos na comunidade do Sodalício, Figueroa enfrentou por 12 anos o fundador, Luis Fernando Figari, ao mesmo tempo que seu agressor —Germán Doig, já falecido— passava por um processo de beatificação no Vaticano.

O saldo do escândalo foi o reconhecimento de 66 vítimas e o pagamento de US$ 4 milhões (R$ 19 milhões) de indenização. Figari saiu do Peru e hoje vive nas cercanias de Roma, sem contato com o Sodalício.

A teóloga peruana Rocío Figueroa - Voices of Faith/Divulgação

Depois, Figueroa mudou-se com o marido para a Nova Zelândia, onde conheceu Tombs, com quem passou a fazer pesquisas depois de conhecer seu artigo de 1999.

"Aquele artigo me trouxe um conforto que eu jamais tinha sentido e, além disso, eu me perguntava: por que nunca tinha lido a história daquele jeito? Liguei para Tombs e disse que estava me mudando para a Nova Zelândia e que queria trabalhar com ele", afirma Figueroa à Folha, também por videochamada.

Orientada por Tombs, a peruana passou a conduzir pesquisas com sobreviventes de abuso sexual. Coube a ela entrevistar sete homens, entre católicos e ex-praticantes, para ver como eles receberiam a leitura de Cristo como alguém que compartilhava também daquele sofrimento. Quatro deles consideraram a leitura de Tombs positiva.

Depois foram entrevistadas quatro ex-freiras e uma freira praticante. De uma delas, ouviu-se a resposta que encapsula o alívio de um sofrimento indizível: "Ao ver a inocência dele, eu vejo a minha inocência".

Tombs e Figueroa saíram desse estudo com a sensação de que há muitos lados positivos a serem explorados. Para a teóloga peruana, a abordagem do tema em missas e lugares de culto pode vir a ser possível, mas antes as igrejas, sobretudo a católica, precisam tratar a sexualidade humana com mais naturalidade. "Se a parte sã desse lado humano não é falada, como vamos conseguir abordar o dano do que é perverso?", questiona.

Tombs também é realista quanto à aplicação prática dessa lição nas igrejas. Menciona satisfeito que as pesquisas mostraram os lados positivos na abordagem teológica e na pastoral, mas reconhece a necessidade de novos estudos e de que tudo seja mais bem desenvolvido, a fim de evitar que a abordagem de Cristo como vítima de abuso seja mal usada, como uma glorificação do sofrimento.

"Posso afirmar que não inventei o que escrevi, mas ser verdadeiro não basta. É preciso perguntar: como uma interpretação do texto pode ajudar as pessoas? O que me importa é a teologia que tem efeitos, e não aquela que anda em círculos", diz.

Márvio dos Anjos, o autor deste artigo, é jornalista e crítico musical. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 09.04.22.