domingo, 25 de dezembro de 2022

Por quanto tempo democracia vai respirar aliviada após derrota de Bolsonaro?

Camus mostrou que não há sociedades imunes à peste, mas ela sempre nos pega desprevenidos

Manifestantes bolsonaristas entram em confronto com a polícia e promovem depredação após confusão iniciada na sede da Polícia Federal, em Brasília - Pedro Ladeira-13.dez.22/Folhapress

O bolsonarismo, como uma febre malsã, vai, enfim, pouco a pouco, cedendo. Os democratas brasileiros respiram com algum alívio depois de tão longa agonia e até se permitem, aqui e ali, como vimos na Copa, imaginar que na vida há mais do que política e temor pela sobrevivência do nosso modo de vida.

Naquela noite de fim de outubro em que as urnas confessaram a derrota de Bolsonaro, houve alívio e alegria, mas ainda muita aflição com relação ao futuro próximo. Afinal, por quase quatro anos um golpe de Estado havia sido explicita e reiteradamente prometido, com data marcada (a eleição) e condições estabelecidas ("se a urna for eletrônica", "se não ganharmos", "se o Judiciário continuar esticando corda"). Quanto tempo até que ele ocorresse?

Quando o TSE correu para proclamar o resultado das eleições, e instituições brasileiras e governos estrangeiros se apressaram em reconhecer o eleito, havia nessa pressa, sem dúvida, a intenção de desencorajar aventuras antidemocráticas. Mas era também o registro público de um temor generalizado de autogolpe.

Quando a autoridade eleitoral adiantou a diplomação dos eleitos, depois de semanas de acampamentos golpistas, de vandalismo nas cidades e de violência nas rodovias, respirou-se novamente. Parecia consolidado um caminho sem volta para a normalidade democrática. A este ponto, o movimento nas ruas parecia reduzido a um Exército de Brancaleone, esfarrapado, diminuto, confuso, perambulando em busca da reentronização do seu messias.

O rugido dos temíveis generais sediciosos, a quem o jornalismo declaratório ofereceu voz e oportunidades de agendamento da opinião pública por anos, já não passa de um rosnado. Bolsonaro, o cavaleiro de deplorável figura, mal aparece, deprimido e desmilinguido, um fiapo da "Vontade de Poder" que atraiu para si toda a vitalidade dos que não aceitavam ser contidos pelos freios e peias da democracia liberal.

E mesmo a enorme orquestra de vozes, fúria e ímpeto dos ambientes digitais, que forneceram por anos um formidável reservatório de iliberais e obscurantistas a serviço do bolsonarismo, foi minguando até sobrar apenas os devotos mais radicais e aqueles cujo modelo de negócio não pode sobreviver sem ódio político nem indignação moral perpétua.

Então, sim, o bolsonarismo volta às sombras. Sem golpe nem revolução, nem multidões gigantescas em movimento uníssono "decidindo o futuro" de Bolsonaro —como ele pediu e fantasiou—, reconduzindo-o, no grito e no murro, à Presidência do país. A democracia pode respirar aliviada e até sorrir contente.

Por quanto tempo?

A este ponto, peço permissão ao leitor para me reconectar a uma outra crônica, a história de uma epidemia mortal contada pelo filósofo e escritor Albert Camus no seu célebre romance "A Peste" (1947).

É sabido que Camus usou a crônica da epidemia que flagelou os habitantes de uma cidade imaginária argelina para falar de todas as pestes, isto é, de todas as irrupções da maldade e da morte que tornam as nossas vidas e o nosso modo de viver subitamente sem sentido.

O que vale tanto para eventos como a peste nazista como para formas mitigadas de ondas de brutalidade e barbárie que irrompem, atormentam, destroem nossos projetos humanos de felicidade, antes de desaparecer.

Não sem que antes as enfrentem pessoas que "não sendo santas, recusam-se a admitir a praga", o flagelo, em nome não do heroísmo, mas da decência, da honestidade, como prega a moral existencialista de Camus.

Ele termina a sua crônica com a melancólica constatação de que não há vitória definitiva sobre a pestilência, que o alívio e a alegria que nos dominam quando cessa um flagelo continuarão sempre sob ameaça.

Do médico que lutou até o fim contra a peste ele diz: "Pois ele sabia o que essa multidão alegre desconhecia, e que se pode ler em livros, que o bacilo da peste nunca morre ou desaparece, que pode permanecer por décadas adormecido em móveis e roupas de cama, que espera pacientemente em quartos, adegas, baús, lenços e papéis, e que talvez chegue o dia em que, para desgraça e aprendizado dos homens, a peste desperte os seus ratos e os envie para morrer em uma cidade feliz".

Não há sociedades nem pessoas imunes à peste —eis a constatação. Apesar disso, ela sempre nos pega desprevenidos. A brutalidade cega, o vírus da ignorância nociva que passa de uns para outros, o fanatismo violento, a vontade coletiva de destruição, a pulsão de morte são da condição humana.

Apesar disso, essas coisas parecem desproporcional ao que sabemos dos seres humanos, não se enquadram, não têm cabimento. Assim, quando irrompe a peste não nos parece concebível ou aceitável, "é irreal, é um pesadelo que vai passar". Mas nem sempre passa e vivemos de pesadelo em pesadelo. Mas é preciso estar prontos.

Wilson Gomes, o autor deste artigo, é Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 25.12.22

"Seria uma tragédia jamais vista", diz diretor da Policia Civil do Distrito Federal após prender bolsonarista

O empresário bolsonarista tentou explodir uma bomba na área do Aeroporto Internacional de Brasília. Em depoimento, ele disse que o objetivo era "chamar atenção" para o movimento

Diretor-geral da Polícia Civil do Distrito Federal, Robson Cândido disse que Brasília quase viveu uma "tragédia jamais vista, seria motivo de vários noticiários internacionais". - (crédito: Divulgação/PCDF)

O diretor-geral da Polícia Civil do Distrito Federal, Robson Cândido, garante que o bolsonarista de 54 anos, preso na noite deste sábado (24/12), quase cometeu "uma tragédia jamais vista na capital do país". O homem tentou explodir uma bomba na área do Aeroporto de Brasília, "com objetivo de chamar atenção para o movimento a favor do atual presidente Jair Bolsonaro".

O bolsonarista é um empresário do Pará que veio para Brasília para participar dos atos na porta do Quartel General do Exército. Ele foi preso por investigadores da 10ª Delegacia de Polícia (Lago Sul)  na noite deste sábado, no apartamento onde mora no Sudoeste. Junto dele, segundo a PCDF, foram apreendidos um fuzil, duas espingardas, revolveres, mais de 1 mil munições e artefatos explosivos.

"Se esse material adentrasse o Aeroporto de Brasília, próximo a um avião com 200 pessoas, seria uma tragédia aqui dentro de Brasília, jamais vista, seria motivo de vários noticiários internacionais, mas nós conseguimos interceptar", disse o diretor-geral da PCDF, Robson Cândido. 

O empresário fazia parte do grupo de bolsonaristas acampados em frente ao QG do Exército. Em depoimento, o homem admitiu a motivação política do crime. "Ele não afirmou se tinha objetivo de fazer algo durante a posse presidencial na próxima semana, mas confirmou que a intenção era causar um tumulto aqui em Brasília", ressaltou Robson.

"Ele confessou que tinha intenção de cometer um crime no Aeroporto, com objetivo de chamar atenção para o movimento a favor do atual presidente Jair Bolsonaro, que eles estão empenhado no QG", disse Robson Cândido. 

Segundo a PCDF, o criminoso tem registro de Caçador, Atirador e Colecionador (CAC). Questionado, o delegado Robson Cândido explicou que ele tem a licença, porém tudo que foi apreendido, está fora das normas.

"Ele é CAC, porém tudo que encontramos está fora das normas. Sendo assim, ele será autuado por porte, posse ilegal de armas de fogo, munição e artefatos explosivos e por crime contra o Estado democrático de direito", revelou o diretor geral.

Pelo Twitter, o futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, comunicou a prisão do suspeito. "Cumprimentos a Polícia Civil do DF pela prisão e apreensões efetuadas nesta noite, com aparente ligação com o artefao explosivo desta manhã. Fotos mostram o terrível efeito do extremismo no Brasil. Que todos rezemos nesta noite por PAZ", disse.

Entenda a história

Na tarde deste sábado, o Esquadrão de Bombas da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) conseguiu desativar um artefato explosivo encontrado próximo ao Aeroporto de Brasília, por volta de 13h20. 

O material explosivo foi encontrado dentro de uma caixa por funcionários da Inframérica por volta de 7h45, após um caminhão ter deixado a caixa na via pública, ainda pela madrugada. Os funcionários interditaram parte da pista com cones, e esperaram os policiais militares chegarem.

Com a PMDF no local, uma das pistas sentido ao Aeroporto de Brasília foi interditada. O procedimento para a remoção do objeto, que são duas bananas de dinamite ligadas a um fio, iniciou por volta de 11h55 pelo Esquadrão de Bombas da corporação. Às 13h20, o grupo desativou a bomba, e deixou o local logo após, seguido do CBMDF e da PF. Policiais civis ficaram por lá para a realização da perícia.

Pelo Twitter, o futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que está acompanhando a operação sobre a suposta bomba encontrada próximo ao aeroporto. O ex-governador do Maranhão está em viagem para São Luís (MA), onde passará o Natal ao lado da família. “Estamos acompanhando as apurações sobre o suposto artefato explosivo encontrado em Brasília na manhã deste sábado. Teremos informações oficiais em breve”, disse o ministro.

Caso suspeito na Asa Sul

Na sexta-feira (23/12) — antevéspera de Natal —, as equipes da Polícia Militar (PMDF) atenderam uma ocorrência de suspeita de bomba na 216 Sul. Após duas horas e meia de investigações, a corporação concluiu que não existia um artefato explosivo na mochila do suspeito — um homem de aproximadamente 30 anos — que estava em um ônibus.

De acordo com a coordenação das investigações, nenhum artefato ou substância ilícita foi encontrada na mochila. “O suspeito foi liberado e vamos desocupar as vias. Após a apuração do BOPE, concluímos que não havia bomba”, ressaltou o major Newton.

Por volta das 14h30, os militares foram acionados por uma passageira do transporte público, que tinha como destino a Rodoviária do Plano Piloto, pois a vítima escutou que um homem carregava uma bomba em seus pertences.

Imediatamente, o ônibus da empresa Pioneira começou a ser monitorado, e no fim do Eixo Sul, o Batalhão de Operações Especiais (Bope) e o Esquadrão Antibombas da PM pararam o veículo e iniciaram a Operação Petardo. De acordo com apuração do Correio, tudo iniciou após uma passageira ouvir a conversa do homem, e suspeitou que ele estava portando uma bomba.

Rafaela Martins e Pedro Grigori, originalmente, para o Correio Braziliense, em 25.12.22

Bolsonarista tentou explodir bomba no Aeroporto para "chamar atenção ao movimento"

Com mais de mil munições, um fuzil, duas espingardas e cinco artefatos explosivos, apoiador do presidente Jair Bolsonaro é preso na noite deste sábado (24/12)

24/12/2022. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Esquadrão Anti Bomba do Bope e Polícia Federal em ameaça de bomba no Aeroporto. - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

O homem preso após tentar explodir uma bomba, na manhã deste sábado (24/12), na área do Aeroporto Internacional de Brasília, buscava "chamar atenção" para o movimento a favor do presidente Jair Bolsonaro (PL). Segundo a Polícia Civil, o homem tem 54 anos, é empresário, do Pará e mudou-se para o Sudoeste, em Brasília, para participar do acampamento bolsonarista em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília. 

A frente das investigações, o diretor geral da PCDF, Robson Cândido, confirmou durante coletiva de imprensa que o homem trouxe do Pará um fuzil, duas espingardas, pistolas, revolveres, munições e uniformes de soldados do Exército. "Ele confessou que tinha intenção de cometer um crime no Aeroporto, com objetivo de chamar atenção para o movimento a favor do atual presidente Jair Bolsonaro, que eles estão empenhado no QG. Os armamentos estavam na camionete dele, mas com certeza temos outras pessoas envolvidas nisso. A PCDF vai apurar, identificar e prender. Não aceitaremos atos extremistas na capital do país", falou Robson.

O homem foi preso por investigadores da 10ª Delegacia de Polícia (Lago Sul) em um apartamento alugado no Sudoeste. No carro dele foi encontrado “grande quantidade de explosivos e armamento”, e na residência estava um verdadeiro arsenal com diversas armas e munições. 

Segundo a PCDF, o criminoso tem registro de Caçador, Atirador e Colecionador (CAC). Questionado, o delegado Robson Cândido explicou que ele tem a licença, porém tudo que foi apreendido, está fora das normas.

"Ele é CAC, porém tudo que encontramos está fora das normas. Sendo assim, ele será autuado por porte, posse ilegal de armas de fogo, munição e artefatos explosivos e por crime contra o Estado democrático de direito", revelou o diretor geral. 

Pelo Twitter, o futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, comunicou a prisão do suspeito. "Cumprimentos a Polícia Civil do DF pela prisão e apreensões efetuadas nesta noite, com aparente ligação com o artefao explosivo desta manhã. Fotos mostram o terrível efeito do extremismo no Brasil. Que todos rezemos nesta noite por PAZ", disse.


Um verdadeiro arsenal foi encontrado com o suspeito

Entenda a história

Na tarde deste sábado, o Esquadrão de Bombas da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) conseguiu desativar um artefato explosivo encontrado próximo ao Aeroporto de Brasília, por volta de 13h20. 

O material explosivo foi encontrado dentro de uma caixa por funcionários da Inframérica por volta de 7h45, após um caminhão ter deixado a caixa na via pública, ainda pela madrugada. Os funcionários interditaram parte da pista com cones, e esperaram os policiais militares chegarem.

Com a PMDF no local, uma das pistas sentido ao Aeroporto de Brasília foi interditada. O procedimento para a remoção do objeto, que são duas bananas de dinamite ligadas a um fio, iniciou por volta de 11h55 pelo Esquadrão de Bombas da corporação. Às 13h20, o grupo desativou a bomba, e deixou o local logo após, seguido do CBMDF e da PF. Policiais civis ficaram por lá para a realização da perícia.

“No local, realizou-se a desativação do artefato explosivo. O material apreendido foi entregue de forma segura à perícia da PCDF”, detalhou a PMDF, em nota.

Pelo Twitter, o futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que está acompanhando a operação sobre a suposta bomba encontrada próximo ao aeroporto. O ex-governador do Maranhão está em viagem para São Luís (MA), onde passará o Natal ao lado da família. “Estamos acompanhando as apurações sobre o suposto artefato explosivo encontrado em Brasília na manhã deste sábado. Teremos informações oficiais em breve”, disse o ministro.

Caso suspeito na Asa Sul

Na sexta-feira (23/12) — antevéspera de Natal —, as equipes da Polícia Militar (PMDF) atenderam uma ocorrência de suspeita de bomba na 216 Sul. Após duas horas e meia de investigações, a corporação concluiu que não existia um artefato explosivo na mochila do suspeito — um homem de aproximadamente 30 anos — que estava em um ônibus.

De acordo com a coordenação das investigações, nenhum artefato ou substância ilícita foi encontrada na mochila. “O suspeito foi liberado e vamos desocupar as vias. Após a apuração do BOPE, concluímos que não havia bomba”, ressaltou o major Newton.

Por volta das 14h30, os militares foram acionados por uma passageira do transporte público, que tinha como destino a Rodoviária do Plano Piloto, pois a vítima escutou que um homem carregava uma bomba em seus pertences.

Imediatamente, o ônibus da empresa Pioneira começou a ser monitorado, e no fim do Eixo Sul, o Batalhão de Operações Especiais (Bope) e o Esquadrão Antibombas da PM pararam o veículo e iniciaram a Operação Petardo. De acordo com apuração do Correio, tudo iniciou após uma passageira ouvir a conversa do homem, e suspeitou que ele estava portando uma bomba.

Rafaela Martins e Pedro Grigori, originalmente, para o Correio Braziliense, em 25.12.22

sábado, 24 de dezembro de 2022

O Natal da transição

O melhor e o correto é torcer pelo sucesso de Lula. Seu fracasso aprofundará os problemas do País e poderá trazer de volta nossos piores pesadelos

Chegar ao final de 2022 com um governo eleito em nome da democracia foi a melhor notícia do ano.

O pior foi neutralizado, em que pese a persistência da movimentação golpista. A balbúrdia e as ameaças seguem o enredo conhecido: urnas eletrônicas são manipuladas, as instituições do Estado são suspeitas, a República deve ser confrontada, o Brasil não é “vermelho”. O que importa é contestar o “sistema”, insuflar a população e disseminar mentiras.

O golpismo bolsonarista, porém, não é o dado principal da transição em curso. Há dilemas e dificuldades na formação do novo governo, que precisa introduzir novos quadros e novas ideias na gestão pública. Não pode repetir experiências passadas, que lhe roubarão clareza e envergadura. O Lula de 2003 não serve como molde para o Lula de 2023.

O novo governo fixou-se na recomposição orçamentária. Com o fim das emendas do relator, deliberado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e a retirada do Bolsa Família do teto de gastos, a questão passou a ser obter maior folga fiscal. Para tanto, foi preciso compensar os parlamentares: o teto foi aumentado em R$ 145 bilhões, mas valerá somente por um ano, e as verbas remanescentes do finado orçamento secreto serão divididas entre o Executivo e o Legislativo. Os parlamentares continuarão a encaminhar emendas individuais, de bancada e de comissão ao governo, que serão impositivas. O Centrão, de algum modo, se acomodou no governo futuro. O Legislativo se fortaleceu como poder sem que se tenha reduzido o poder do Executivo. Como, aliás, deve ocorrer em toda democracia.

Como não se conhecem as diretrizes do novo governo, não se sabe o que será feito com o bônus orçamentário. Se não for bem utilizado, agravará a crise fiscal e não gerará resultado social expressivo. Isso obrigará o governo a caprichar na qualidade do gasto e a cortar despesas para viabilizar os programas sociais. A pergunta é crucial: como gastar menos?

As decisões do Supremo ajudaram Lula, mas abriram uma nova frente de atrito com o Legislativo. Pode ser que o fogo não arda em excesso, mas a situação de crise entre os Poderes está posta na mesa.

Lula foi eleito por diversos partidos. O apoio recebido teve importante peso político e simbólico. No plano discursivo, Lula tem repetido o mantra de que o seu “não será um governo do PT”. Na prática, porém, as coisas não têm sido assim. A “frente ampla” está suspensa no ar, instabilizada por setores petistas e pelas alas fisiológicas do Congresso. O PT não costuma ceder em termos de protagonismo. Não se habituou a conviver em pé de igualdade com democratas e reformadores de outras correntes. Exigiu e obteve os ministérios mais estratégicos. Mas não se mostra atento ao fato de que seu governo precisa oferecer espaço para as forças que ajudaram Lula a se eleger.

Um governo minoritário no Congresso precisa negociar para aprovar suas propostas. O melhor modo de fazer isso seria celebrar uma coalizão democrática e dar a ela caráter político substantivo, ou seja, um programa unificador. Era o que se imaginava, dadas as circunstâncias da vitória eleitoral. Um governo plural facilitaria a despolarização e a introdução de reformas progressistas. Não parece ter sido a opção de Lula.

O novo governo escolheu compor um núcleo ministerial de confiança irrestrita para, a partir dele, negociar com o Congresso. Deu-se algum espaço para a diversidade de gênero e raça, mas não tanto para novas ideias. Lula ainda não definiu os 37 ministros com quem governará. O fato de Simone Tebet e Marina Silva terem ficado para o final da lista indica que há muita poeira no ar. Sem elas, o governo nascerá torto. Com elas mal encaixadas, ganhará pouco.

A estrutura ministerial desenhada tem cargos e salários elevados. Pode acomodar diversos pleitos políticos e saciar a fome de políticos, sindicalistas, militantes partidários, afilhados. Seu gigantismo, porém, pressionará os gastos, terá custos de coordenação e poderá causar perda de qualidade gerencial e de controle da agenda. Se se abrir demais ao fisiologismo, o governo terá de fazer concessões e correr o risco de comprometer seu proclamado republicanismo. Ficará tentado a estourar os cofres do Estado e a costear a institucionalidade.

O governo futuro precisa ser novo: ter outras caras, compreender melhor o País e o mundo, inventar políticas criativas, inovar na gestão pública. Está comprometido a olhar para os pobres, mas não pode tirar os olhos da realidade fiscal do País. Se falhar no primeiro compromisso, perderá apoios. Se procrastinar no segundo, entrará em atrito com a elite econômica e terá maior dificuldade para financiar o gasto público. “Colocar os pobres no Orçamento e os ricos no Imposto de Renda” é uma mensagem que açula e excita, mas que não leva a lugar nenhum, pois repete o que toda boa política tributária almeja.

Por tudo isso, o melhor e o correto é torcer pelo sucesso de Lula. Seu fracasso aprofundará os problemas do País e poderá trazer de volta nossos piores pesadelos.

Boas festas e um feliz ano novo a todos.

Marco Aurélio Nogueira, o autor deste artigo, é Professor titular de Teoria Política da Unesp. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.12.22

 Um fenômeno literário só se sustenta se for sincero’, diz Sônia Jardim, presidente do Grupo Record

Sônia Machado Jardim também presidiu o Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel) Foto: Tiago Alves

À frente do maior grupo editorial com capital 100% nacional, que publica de Colleen Hoover a Paulo Freire, ela destaca a importância de olhar para os leitores jovens

Sônia Machado Jardim nasceu em uma casa cheia de livros e escritores, e escolheu a Engenharia. Com 10 anos de experiência na construção civil e achando que já tinha aprendido tudo o que podia naquele emprego, com a primeira filha a caminho e a crise dos 30 batendo, pediu demissão. Era 1988 e ela fez, aqui e ali, consultorias. Nesse momento o pai adoece, depois morre, e ela ouve do irmão mais velho, Sérgio, que não fazia sentido ela não trabalhar na empresa da família. Assim, em 1991, ela começa a chegar à Editora Record (só em 1995 ela ficaria em tempo integral).

“Isso nunca tinha me passado pela cabeça”, ela comenta hoje, no aniversário de 80 anos da empresa fundada por seu pai, Alfredo Machado. Ela aceitou, mas disse que antes precisava se preparar, e fez mestrado em Administração. Ao longo desses anos, foi diretora financeira e vice-presidente. Com a morte de Sérgio Machado em 2016, ela assumiu a presidência do Grupo Editorial Record – o maior de capital 100% nacional, dono de 14 selos e do livro mais vendido de 2022: É Assim Que Acaba, de Colleen Hoover.

Ela divide a história da empresa em três fases. “A primeira vai até 1991, com a morte do papai, e é a fase da fundação, quando ele cria os valores que seguimos até hoje. A segunda, de 1991 a 2016, é a da criação do grupo editorial com a aquisição de editoras. Foi uma fase de muito crescimento e precisamos dar uma parada para organizar as coisas”, ela explica.

A terceira fase, então, é a da arrumação – e ela incluiu a contratação recente de Cassiano Elek Machado, ex-Cosac Naify e ex-Planeta, como diretor editorial – cargo que não existia. Rodrigo Lacerda, ex-Zahar, também chegou recentemente, mas antes, como editor executivo. Uma de suas tarefas é cuidar do catálogo de ficção nacional. Nos últimos anos, a Record perdeu importantes autores para a concorrência. Em 2022, ela recuperou um deles: Carlos Drummond de Andrade.

Com essa reorganização em andamento desde 2016, e algumas coisas mais claras, a Record passou a investir, a partir de 2019, ainda mais em marketing. Ela entende hoje que seu maior patrimônio são os autores e... os leitores. Somadas todas as redes sociais, o grupo tem 1,2 milhão de seguidores.

“As regras do jogo mudaram e é importante nos mantermos atualizados. Se hoje essa diferença se faz no TikTok, amanhã pode ser no TokTiK. Precisamos acompanhar tudo. Essa foi a grande revolução dos últimos anos, e nosso investimento em marketing é enorme.”

Mas ela sabe que um livro não se faz apenas com a indicação de um influencer ou com uma forte presença da editora nas redes sociais. “Um fenômeno só se sustenta se ele for sincero”, ela diz. Se o livro tiver qualidade – para o seu leitor. E entender esse leitor, dialogar com públicos com interesses tão diversos quanto os livros de seu catálogo – de autores como Graciliano Ramos, Paulo Freire, Ana Maria Gonçalves, Carla Madeira, Anne Frank, Carina Rissi e Colleen Hoover – é o desafio da editora. O outro é acompanhar esse leitor em sua jornada literária, apresentar novos livros e estilos, mantê-lo fiel. Ou melhor, mantê-lo leitor.

Carla Madeira é autora de Tudo é Rio, relançado pela Record e que soma mais de 120 mil exemplares vendidos pela editora carioca Foto: Editora Record

Sônia Jardim acha ótimo que grande parte de seu público seja de jovens leitores. É Rafaela, sua sobrinha, filha de Sérgio, que toca a Galera (a irmã dela, Roberta, cuida do comercial do grupo).

“É muito bom ver o livro juvenil vendendo muito. Isso significa uma nova geração de leitores vindo aí e vislumbramos a perpetuidade do negócio do livro”, comenta. “Precisamos acompanhar essa pessoa enquanto ela cresce, levá-la para outro selo. Da mesma forma, precisamos apresentar outros autores para os jovens adultos. Por isso essa tentativa de uma segmentação mais correta e organizada.”

Sônia Jardim comemora que a Record esteja vivendo seu melhor momento. O prejuízo de R$ 18 milhões causado pela Livraria Saraiva, hoje em recuperação judicial, ainda causa revolta, mas ficou no passado. Outro trauma, maior, o sequestro que ela sofreu em 1997 e que durou 27 dias, deixou suas marcas – e a fortaleceu.

Sônia Machado Jardim cresceu entre livros e escritores e hoje é presidente da editora fundada por seu pai em 1942 Foto: Acervo Pessoal

Hoje, aos 66, enquanto volta no tempo e se vê, menina, ajudando o pai a montar as fotonovelas italianas que ele distribuiria ou lendo Luluzinha, Sônia vive plenamente o presente. E, mesmo se dizendo conservadora, dando um passo de cada vez, ela acredita que ainda dá para crescer mais.

História e números

A Record

A editora foi fundada em 1942 por Alfredo Machado e Décio Abreu como uma distribuidora de quadrinhos e outros serviços de imprensa. Hoje é o maior grupo editorial com capital 100% nacional, tem sede no Rio e gráfica própria.

Selos e editoras

Integram o grupo as seguintes editoras e selos: Record, Galera, Galerinha, Bertrand Brasil, Difel, José Olympio, Civilização Brasileira, Paz e Terra, Verus, BestSeller, Edições BestBolso, Rosa dos Tempos, Nova Era e Viva Livros.

Maria Fernanda Rodrigues, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 24.12.22

À imagem e semelhança do PT

Lula e PT não aprenderam nada. Não almejam um novo governo politicamente aberto e plural. Querem tudo para si, descumprindo sua promessa e ignorando necessidades do País

Depois de uma campanha eleitoral defendendo a necessidade de um governo formado por uma frente ampla e depois de um discurso da vitória no segundo turno afirmando que “esta não é uma vitória minha nem do PT”, é absolutamente decepcionante para o País verificar a composição dos Ministérios que vai sendo delineada pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Todos os postos decisivos estão a cargo do PT ou de gente que, por mais que esteja circunstancialmente em outra legenda, sempre teve e continua tendo a mesma visão do PT. Desenha-se, portanto, um governo radicalmente petista, justamente o contrário daquilo que foi repetidas vezes prometido.

A rigor, ninguém pode dizer que está surpreso com tal situação. O passado petista nunca possibilitou qualquer esperança de um governo do PT politicamente aberto e plural. Ao longo da história da legenda, observa-se uma firme constante: sempre consideraram que eles, apenas eles, têm as soluções para o País. Todo o restante do mundo político estaria equivocado. Não teria nada a acrescentar na discussão e no desenho das políticas públicas.

Daí se entende que a brutal e irracional oposição do PT ao governo de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, não foi mera tática circunstancial. A legenda nunca foi capaz de enxergar nada de bom além de suas linhas. A partir daí entende-se também, por exemplo, o esquema do mensalão. Para o PT, os outros partidos, desprovidos de ideias e propostas, seriam apenas peças de manobra disponíveis para compra. E sendo apenas as suas “soluções” boas para o País, os petistas ainda consideram que esse sistema criminoso e antidemocrático de compra de apoio político estaria plenamente justificado.

Não há, portanto, nenhuma novidade na composição que vai se delineando para o terceiro governo de Lula. É o PT sendo o PT. De toda forma, diante das grandes necessidades do País neste momento, não deixa de ser frustrante – reiteradamente frustrante – constatar que Lula e seu partido não entenderam nada, não aprenderam nada, não mudaram nada.

Nessa composição ministerial dominada pelo PT, há um fato especialmente preocupante. Não é que Lula esteja “apenas” descumprindo a sua principal promessa de campanha, o que, por si só, é grave. No regime democrático, o eleitor merece mais respeito. A monocromia político-ideológica dos Ministérios expressa uma profunda incompreensão do atual País a ser governado e dos desafios que terá pela frente.

Formar um governo de frente ampla não é uma concessão política que Lula deveria fazer em razão das circunstâncias excepcionais da campanha eleitoral. Não é uma ação voltada para o passado. Uma real e efetiva frente ampla é requisito para que o novo governo possa ser minimamente bem-sucedido em suas duas tarefas fundamentais e complementares: promover desenvolvimento social e econômico e promover a pacificação nacional. Insistir no lulopetismo implantado entre 2003 e 2016 é fornecer todas as condições para a reprodução e o fortalecimento do bolsonarismo.

O reconhecimento da necessidade de uma frente ampla não significa tirar ou reduzir o poder de o presidente eleito formar seu governo tal como ele entende que deve ser formado. Nas urnas, o eleitor conferiu-lhe essa atribuição. Goste-se ou não, a partir de 1.º de janeiro de 2023 o presidente da República será Luiz Inácio Lula da Silva. E, respeitando os limites e requisitos legais, ele tem direito a indicar quem ele quiser. O ponto é outro. Seja quem for, um presidente da República não tem direito de ignorar as necessidades nacionais, de desconhecer a complexidade social, política e econômica do país, de achar que seu partido se basta. Numa palavra, um chefe de Estado e de governo não pode se dar ao luxo de ser irresponsável. O poder não é arbítrio. Foi exatamente isso o que fez Jair Bolsonaro – e que tantos males causou ao País.

O grande apelo do eleitor nas eleições de 2022 foi a defesa da democracia. Não cabe defraudá-lo. Democracia exige participação, o que inclui uma tarefa inédita para o PT: ceder poder.

Editorial / Por Notas & Informações, em 24.12.22

Apetite petista

PT se apossa de postos decisórios e suscita questões de gestão e governabilidade

Os petistas Fernando Haddad, futuro ministro da Economia, e Luiz Inácio Lula da Silva, presidente eleito - Adriano Machado/Reuters

Com a maior parte dos futuros ministros já escolhidos, o PT assegurou para si uma espécie de controle acionário do novo governo —os principais postos decisórios e o comando da grande vitrine da área social, o Bolsa Família ampliado.

Na quinta-feira (22), definiram-se dois titulares de pastas palacianas. O deputado Alexandre Padilha (PT-SP) ocupará a Secretaria de Relações Institucionais e deverá se envolver na articulação política; outro deputado da legenda, Márcio Macêdo (SE), ficará com a Secretaria-Geral da Presidência.

Já se sabia que Rui Costa, encerrado seu mandato de governador da Bahia, ocupará a chefia da Casa Civil, responsável por monitorar os trabalhos de todos os ministérios.

Na crucial área econômica, parece claro que Fernando Haddad (Fazenda) —de notória ligação com o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT)— estará à frente das principais políticas sem maior contraponto às preferências petistas.

Por fim, Wellington Dias, ex-governador e hoje senador eleito pelo Piauí, comandará o Desenvolvimento Social e verbas de mais de R$ 170 bilhões para transferência de renda às famílias mais pobres. O cargo era desejado por Simone Tebet, presidenciável do MDB que apoiou Lula no segundo turno.

Como se imaginava, haverá grande aumento do número de ministérios, dos 23 de Jair Bolsonaro (PL) para 37. Estão anunciados 21 nomes, dos quais 7 petistas. Parte das 16 pastas restantes abrigará partidos ao centro ideológico.

O povoamento da Esplanada brasiliense e o apetite do PT não surpreendem —em administrações passadas, a sigla chegou a contar com 17 de 39 ministros. O que há a considerar são as consequências para a gestão e a governabilidade, dado que petistas terão menos de 15% das cadeiras na Câmara.

A distribuição de postos a políticos, inevitável para a formação de coalizões, não é necessariamente nociva ao gerenciamento da máquina, desde que os titulares sejam qualificados ou ao menos saibam se amparar em servidores competentes dos escalões inferiores.

Mais problemático é quando se rebaixa uma aliança à mera cooptação fisiológica, o que resultou em não poucos escândalos e crises em governos do PT e de outras siglas.

Ao suceder o desgoverno obscurantista de Bolsonaro, Lula dispõe de enorme vantagem na largada. A simples perspectiva de que sejam restabelecidos padrões de civilidade e racionalidade em áreas como saúde, educação, ambiente, cultura e direitos humanos já representa avanço digno de celebração.

É no apego a dogmas, a começar pelos econômicos, e na dificuldade petista em compartilhar o poder que residem os maiores temores quanto ao novo governo.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 24.12.22 / editoriais@grupofolha.com

Medo, hospitais lotados e opacidade na China por causa da covid

Epidemiologistas ocidentais estimam que milhões de mortes podem ocorrer durante o inverno após o fim abrupto da política de 'covid zero'

Viajantes em Hong Kong, em 23 de dezembro de 2022. (Tyrone Siu / Reuters)

Se um residente de Pequim tivesse adormecido no último fim de semana de novembro e acordado em 1º de dezembro, ele poderia pensar que durante o sono foi transportado para algum outro lugar do mundo onde há muito tempo estava com gripe.o covid. "Acho que de repente estou morando em outro país", disse um jovem ocidental no domingo, 4 de dezembro, que não sai da China desde o início de 2020. Uma semana antes, ele mesmo havia recebido permissão para sair após 11 dias trancado em seu prédio porque um de seus vizinhos havia testado positivo. Naquele domingo, disseram-lhe do trabalho que vários colegas estavam infectados, mas que podiam transmitir a doença em casa; o restante teve que fazer um teste de antígeno, que até aquele mesmo dia não podia ser adquirido por conta própria. Era o início do fim da política rígida de covid zero, cujo arquivamento oficial ocorreu no dia 7 de dezembro após uma onda de protestos inusitados.

O afastamento abrupto da estratégia que tem ditado a vida de 1,4 bilhão de pessoas provocou um tsunami de infecções cujos números já são impossíveis de rastrear: 248 milhões de pessoas (18% da população) teriam sido infectadas nos primeiros 20 dias de dezembro, e estima-se que num único dia desta semana possam ter ocorrido cerca de 37 milhões de casos, segundo informação de uma reunião à porta fechada da Comissão Nacional de Saúde, citada pela Bloomberg. No entanto, a China relatou oficialmente apenas uma dúzia de mortes por covid até agora neste mês; Epidemiologistas no exterior preveem um inverno negro, com milhões de mortes, devido ao baixo índice de vacinação de grupos vulneráveis ​​e à má preparação do sistema de saúde.

Em questão de dias, passou de não conhecer quem havia contraído a covid na China a dificultar que alguém diga que ainda não foi infectado . As postagens no quadro do WeChat (semelhante ao mural do Facebook) estão repletas de fotos de testes de antígenos e emoticons de ovelhas, porque positivo, em mandarim, soa igual a esse animal ( yáng ).

Segundo dados do governo, a taxa de vacinação do país ultrapassa os 90%, mas a dos adultos que receberam a dose de reforço cai para 57,9% e cai para 42,3% no caso dos maiores de 80 anos. Especialistas dizem que três doses de vacinas chinesas devem ser injetadas para que tenham eficácia semelhante às vacinas de RNA, que não estão disponíveis no país . Embora a China tenha nove vacinas aprovadas para uso , nenhuma foi atualizada para combater o omicron.

As imagens que circulam dos hospitais são preocupantes: salas de espera lotadas, leitos nos corredores e idosos recebendo oxigênio por meio de ventiladores, cenas que lembram os piores momentos da pandemia. Médicos e funcionários de funerárias com quem o EL PAÍS entrou em contato afirmam que a situação é "difícil" e que os recursos da capital estão no limite.

A funerária no distrito de Tongzhou, em Pequim, confirmou na quinta-feira que está cremando cerca de 140 corpos por dia, em comparação com a média usual de 40. Relatórios da CCTV nacional alertam que o número de internações em Pequim está sendo até quatro vezes maior do que o normal e que as clínicas de febre estão funcionando em plena capacidade.

Pacientes com coronavírus nos corredores do Chongqing No. 5 People's Hospital em Chongqing em 23 de dezembro de 2022. (Noel Célis / AFP)

Depois de três anos em que a vida cotidiana foi ditada por controles impostos pelo Estado e durante os quais a propaganda se dedicou a incutir o medo de contrair a doença, a brusquidão com que as medidas de proteção foram removidas causou confusão entre muitos cidadãos. Desde serem obrigados a escanear o código de saúde para acessar qualquer local, a apresentar PCR negativo para pegar transporte público ou comprar no supermercado e, até mesmo, informar a temperatura corporal e caso tenham sintomas, já aconteceu com isso é promovido que " cada um é responsável pela sua própria saúde". Algumas grandes cidades, como Chongqing, até permitem que as pessoas vão trabalhar infectadas.

Um membro de um comitê de vizinhança de Pequim, que prefere falar sob condição de anonimato, acredita que a política “mudou inesperadamente rapidamente” e que “os pegou desprevenidos”. Desde o início da pandemia, esses chefes de bairro se encarregam de "zelar pela saúde" dos moradores, mesmo aplicando os protocolos com mais diligência do que as autoridades. “Tivemos que mudar todos os planos às pressas, não estávamos preparados para uma reabertura e lançamento de pessoas para enfrentar o omicron”, confessa. Agora ele questiona os efeitos adversos que a mudança pode causar: “Nos grupos do WeChat onde as pessoas estão comemorando o fim das restrições, há quem diga ter perdido familiares nos últimos dias, o que está causando pânico ”.

"Meu filho me disse para não sair até que esse período de infecção tenha passado, que eu não deveria pensar em ir ao hospital, que ele vai me trazer remédios", disse Liu, 70 anos, que foi vacinada com as três doses. Como o filho de Liu, Lin e seu marido, ambos médicos, pediram aos pais que ficassem em quarentena até que as infecções diminuíssem. “Assim que começaram a chegar mais pacientes, decidimos que era melhor meus sogros [que moram na mesma casa] irem com minha mãe, para que ficassem seguros”, conta o cirurgião. “Meu marido foi o primeiro a apresentar sintomas e, depois de alguns dias, a menina e eu fomos infectados. Ela passou bem, mas nós tivemos febre alta e garganta afiada. Nós nos reunimos assim que pudemos; somos necessários”, compartilha Lin.

O epidemiologista Wu Zunyou previu três ondas de covid para este inverno. O atual será limitado principalmente às grandes cidades, enquanto os outros dois chegarão às áreas rurais devido aos deslocamentos para o Ano Novo Chinês. Lü Dewen, sociólogo da Universidade de Wuhan, alerta que o sistema de saúde em locais remotos corre o risco de entrar em colapso devido aos recursos limitados.

A recém-extinta política de zero covid permitiu ao gigante asiático registrar números mínimos de infecções e mortes enquanto outros países receberam a tremenda investida do vírus em 2020 e 2021. Oficialmente, a China, país de 1,4 bilhão de habitantes, registra 5.241 mortes desde a surto da pandemia em 2020 e apenas sete desde que as medidas foram relaxadas em 7 de dezembro. Na Espanha, com 47 milhões de habitantes, foram 40 mil mortes por covid só em 2021. No entanto, a Airfinity, uma organização que analisa dados de saúde, estima que cerca de 5.000 pessoas morrem todos os dias na China e que o número de infecções pode ultrapassar um milhão. Esta empresa britânica calcula que o total de mortes durante esta onda pode situar-se entre 1,3 e 2,1 milhões.

Numa tentativa de silenciar os crescentes rumores de que o país não está a ser transparente, as autoridades de saúde anunciaram terça-feira que a metodologia seguida é contabilizar apenas as mortes devidas a pneumonia e insuficiência respiratória como causa primária, mas não a outras doenças do o paciente agravado pelo coronavírus. A mudança nos critérios foi feita com base no fato de que "o micron tem menos probabilidade de causar outros sintomas fatais ", de acordo com Wang Guiqiang, chefe do departamento de doenças infecciosas do Primeiro Hospital da Universidade de Pequim.

Uma enfermeira empurra uma maca do lado de fora de um hospital em Pequim em 23 de dezembro de 2022. (Thomas Peter / Reuters)

Esta nova abordagem está a ser profundamente questionada, uma vez que ignora outros tipos de complicações potencialmente letais da covid-19, desde coágulos sanguíneos a ataques cardíacos, passando por sépsis e insuficiência renal. “Não faz sentido aplicar esta mentalidade a partir de março de 2020, quando se acreditava que só a pneumonia por covid podia matar”, diz Benjamin Mazer, professor associado de patologia da Universidade Johns Hopkins, citado pela Reuters.

A Organização Mundial da Saúde também expressou sua preocupação com a situação real. Na quinta-feira, a agência da ONU afirmou que não recebeu dados sobre novas internações por covid-19 desde que Pequim voltou atrás em sua estratégia, e pediu mais informações sobre a gravidade da doença, o número de internações e as condições das UTIs. a fim de realizar uma avaliação abrangente.

Desde o início de dezembro, as autoridades chinesas e a mídia estatal trabalham para minimizar os riscos do vírus e garantir ao público que a reviravolta foi feita “com base na ciência”. O principal argumento que eles apresentam é que as medidas draconianas com as quais a China se isolou do resto do mundo lhe permitiram ganhar um tempo valioso para salvar vidas. No entanto, a flexibilização ocorreu em pleno inverno, quando as infecções virais e respiratórias costumam atingir seu pico, e em meio àquela que já era a pior onda registrada até o momento .

Analistas internacionais criticam que Pequim, obcecada em erradicar o vírus, tenha desperdiçado milhões de dólares em campanhas massivas de testagem e construção de centros de quarentena, em vez de melhorar seu sistema de saúde e vacinar grupos vulneráveis .

Inma Bonet Bailén, Jornalista, de Pequim para o EL PAÍS, em 24.12.22.

Por que novo governo Lula deixa tantos investidores receosos

Até aqui, Lula e o PT têm mostrado que não aprenderam nada com os erros que cometeram no passado.

Lula tomou várias decisões na economia que deixaram os investidores de cabelo em pé (Foto: picture alliance / ASSOCIATED PRESS

Na semana passada, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, tomou várias decisões na economia que deixaram os investidores de cabelo em pé.

O governo federal insiste, por exemplo, na proposta de emenda constitucional (PEC) que permite gastos extras de cerca de R$ 200 bilhões acima do limite legal, a chamada PEC da Transição. Isso equivale a uma despesa extra de mais de 2% do Produto Interno Bruto (PIB).

O motivo é que o governo quer elevar o Auxílio Brasil para R$ 600, além de financiar outros programas sociais que, de outra maneira, estariam ameaçados.

Para isso, porém, bastariam cerca de R$ 100 bilhões. Torna-se evidente que o governo, ao tentar obter o dobro desse valor, pretende conseguir luz verde para elevar fortemente os gastos públicos.

E a dívida brasileira já é, hoje, bem maior do que a de outras economias emergentes, o que torna ainda mais problemático o fato de estar plenamente em aberto como essas despesas extras serão financiadas. O futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, espera que uma arrecadação maior possa financiar despesas maiores.

Mas não há garantias de que será assim. Certo é que as despesas extras previstas já estão cobrando agora o seu preço: em vez de reduzir a taxa básica Selic já nos próximos seis meses (dos atuais 13,75%) porque a inflação está em queda, o Banco Central deverá, ao contrário, elevar novamente os juros.

O ex-diretor do Banco Central Fabio Kanczuk calcula que a Selic poderá até mesmo subir para 16% no próximo ano. Isso iria desaquecer a economia e elevar o desemprego. E o Brasil teria uma das taxas de juros mais elevadas do planeta.

Lei das Estatais

Também as mudanças previstas na Lei das Estatais deixaram os investidores desconfiados. A lei havia sido aprovada em 2016, com base nas experiências trazidas pela Operação Lava Jato. Uma quarentena de três anos deveria impedir que políticos obtivessem posições influentes em bancos e empresas estatais.

Lula quer reduzir a quarentena para um mês. Além disso, empresas estatais poderão novamente colocar até 2% de seu faturamento em publicidade e patrocínio, em vez dos atuais 0,5%. O projeto foi aprovado às pressas pela Câmara e está agora no Senado.

O motivo para a mudança é evidente: com regras menos rígidas, o governo poderia preencher cerca de 700 cargos-chave em empresas estatais com aliados políticos.

Essa é uma medida importante para as negociações para obter maioria no Congresso. Cargos em empresas como Petrobras e Banco do Brasil permitem a Lula ganhar votos no Congresso. E ele precisa urgentemente desses votos, pois o PT e os demais partidos de esquerda têm apenas uma minoria de mandatos.

Isso explica também porque os deputados do chamado centrão aprovaram com tanta pressa a proposta. Eles serão, afinal, os primeiros beneficiados com a distribuição de postos nas estatais.

E a ampliação do teto de gastos com publicidade e patrocínio também é uma benção para muitos políticos: a Petrobras, por exemplo, poderia investir R$ 13 bilhões em vez de R$ 3 bilhões só este ano. Nos governos anteriores do PT, a Petrobras patrocinou, em várias regiões do Nordeste, "projetos culturais" que, no fim das contas, serviram apenas para angariar eleitores.

O senador Tasso Jereissati criticou a alteração da legislação e afirmou que se trata de um "retrocesso histórico" rumo a uma "República de bananas".

Cargos para dividir entre aliados

A isso se soma que Lula deseja preencher os postos de chefia no BNDES e na Petrobras com aliados políticos próximos. O motivo: o novo governo quer ter novamente uma política industrial, e um papel central deverá ser desempenhado pelo BNDES.

O porém é que a chamada "política dos campeões nacionais" do BNDES, nos governos anteriores do PT, ajudou sobretudo conglomerados que poderiam ter se financiados sozinhos e que, mais tarde, se envolveram várias vezes em escândalos de corrupção.

Lula ainda declarou que não haverá privatizações no seu governo. Especialistas dizem que o futuro governo gostaria também de rever a participação de empresas privadas no setor de saneamento básico, o que se tornou possível com o novo marco legal do saneamento .

Só que o tradicional controle das prefeituras sobre as empresas públicas de água e esgoto fez com que milhões de brasileiros não tivessem rede de esgoto nem água potável. E essas empresas costumam virar cabides de emprego.

Muitos ficam também desconfiados por Lula querer ampliar a capacidade das refinarias estatais, bem como reavivar o setor naval para a indústria de petróleo e gás. Isso tudo faz lembrar os escândalos da Lava Jato: justamente os projetos de refinarias e os estaleiros mostraram ser, mais tarde, os principais focos de corrupção nos governos do PT, nos quais bilhões da Petrobras se perderam.

Que Lula queira reavivar uma política industrial estatal justamente nesses setores — isso traz más lembranças. Até então, os investidores tinham esperanças de que o ex-presidente fosse adotar pragmatismo nas políticas econômica e fiscal, como nos seus primeiros governos. Mas essas esperanças estão se esfacelando.

Alexander Busch, o autor deste artigo, é jornalista e colunista da DW Brasil. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW. Publicado originalmente em 20.12.22.

Comitê recomenda que Trump seja barrado de cargos públicos

Relatório final sobre a invasão do Capitólio também pede indiciamento do ex-presidente americano por obstrução e insurreição, além de mudanças na legislação eleitoral.

A comissão do Congresso dos Estados Unidos que investiga o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio divulgou seu relatório final na noite de quinta-feira (22/12), defendendo que o ex-presidente Donald Trump enfrente acusações criminais por incitar a invasão e recomendando que ele seja impedido de ocupar cargos públicos.

O Comitê Seleto da Câmara dos Deputados também tornou públicas as transcrições de várias entrevistas e depoimentos de testemunhas.

O relatório, que tem mais de 800 páginas, é baseado em quase 1.200 entrevistas realizadas ao longo de 18 meses e centenas de milhares de documentos, bem como nas decisões de mais de 60 tribunais federais e estaduais.

O relatório lista 17 conclusões específicas, discute as implicações legais das ações de Trump e de alguns de seus aliados e inclui referências criminais ao Departamento de Justiça de Trump e outros indivíduos, de acordo com um resumo divulgado no início desta semana. O relatório também lista recomendações legislativas para ajudar a evitar outro ataque desse tipo, incluindo barrar Trump de ocupar cargos públicos.

Na última segunda-feira, o comitê pediu aos promotores federais que acusassem o ex-presidente republicano de quatro crimes, incluindo obstrução e insurreição, pelo que eles disseram ser esforços para anular os resultados da eleição de novembro de 2020 e desencadear o ataque ao Capitólio.

O comitê também concluiu que Donald Trump não deveria poder voltar a ocupar cargos públicos após o papel que desempenhou na invasão do Capitólio. Trump anunciou que tem a intenção de se candidatar novamente para a Casa Branca em 2024.

A recomendação encabeça uma lista de propostas do documento, destinado a garantir que não se repita o motim.

"Nosso país foi longe demais para permitir que um presidente derrotado se transforme em um tirano exitoso, transformando nossas instituições democráticas (e) fomentando a violência", diz o presidente do painel, Bennie Thompson, na introdução do relatório publicado na noite de quinta-feira.

"Em vez de honrar sua obrigação constitucional de 'cuidar para que as leis sejam fielmente cumpridas', o presidente Trump conspirou para anular o resultado da eleição", disse o painel da Câmara anteriormente em um resumo de 160 páginas de seu relatório.

Em comentários postados em sua rede Truth Social após a divulgação do relatório final, Trump o chamou de "altamente partidário" e uma "caça às bruxas". Ele disse que não conseguiu "estudar o motivo do protesto (6 de janeiro), fraude eleitoral".

O pedido do painel liderado pelos democratas ao Departamento de Justiça não obriga os promotores federais a agirem, mas marcou a primeira vez na história que o Congresso indiciou um ex-presidente para processo criminal.

O comitê – integrado por sete democratas e dois republicanos – também recomendou reformas na lei eleitoral, uma ofensiva federal aos grupos extremistas e a designação da certificação pelo Congresso das eleições presidenciais como um "evento especial de segurança nacional", como o discurso anual do Estado da União.

O partido do ex-presidente se opôs a cada passo da investigação. E a mudança legislativa de janeiro, quando os republicanos terão maioria, gera dúvidas sobre a possibilidade de as recomendações serem adotadas.

Publicado originalente por Deutsche Welle, em 23.12.22 jps (AFP, Reuters)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Por que Jesus “deu certo” e tantos outros aclamados messias de seu tempo ficaram pelo caminho

Historiadores contemporâneos não têm dúvidas: a região do Oriente Médio onde nasceu Jesus há pouco mais de 2 mil anos era um solo fértil para o surgimento de profetas e aclamados messias.

Nesse sentido, religião à parte, o homem considerado o fundador do cristianismo era muito semelhante a diversos outros que ficaram restritos à história do seu tempo.

E por que, então, Jesus se tornou tão grande a ponto de, ainda hoje, ter bilhões de seguidores em todas as partes do planeta? Por que os outros tantos messias não tiveram o mesmo sucesso com suas palavras e ensinamentos?

A resposta parece ser a universalidade do cristianismo. Universalidade esta que, conforme apontam pesquisas mais recentes, não foi mérito exatamente de Jesus, mas sim de seus primeiros seguidores, sobretudo aqueles que se dedicaram a espalhar a mensagem cristã a partir do fim do primeiro século e ao longo do segundo

A leitura acadêmica traça diferenças substanciais entre o "movimento de Jesus com Jesus", ou seja, enquanto ele ainda era um líder vivo, e o "movimento de Jesus sem Jesus", ou seja, a maneira como o cristianismo passou a ser organizado pelas primeiras gerações de seus seguidores.

Seguidores estes que se espalharam e se tornaram disseminadores dos ensinamentos adquiridos junto àquele líder carismático e sólido.

"Esse anúncio proporcionou a abertura de um movimento, de exclusivamente intrajudaico, para um movimento que ganharia contornos universais", ressalta o historiador André Leonardo Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor do livro Jesus de Nazaré: Uma Outra História (editora Annablume), entre outros.

Na interpretação do historiador, essa pregação posterior do "movimento de Jesus" fez com que as ensinamentos daquele homem "ganhassem contornos universais". "Isto é, saíssem do ambiente étnico, de um povo, do povo judeu, para se tornar uma questão dos seres humanos, na infinita pluralidade de culturas contidas dentro do império romano", salienta. "Há um viés histórico e antropológico que ajuda a entender, que ajuda a explicar como o movimento de Jesus com Jesus, que foi intrajudaico, se tornou o movimento sem Jesus, algo além das fronteiras de Israel."

Celeiro de líderes messiânicos

Mas para entender essa especificidade, primeiramente é preciso compreender por que aquela região, naquela longínqua época, foi um polo efervescente para o surgimento de revoltas populares de cunho religioso e político, um caldeirão perfeito para mobilizar discursos messiânicos.

Candidatos a messias

"Historicamente, houve uma quantidade muito grande de candidatos a messias, antes, durante e depois de Jesus. Este é um ponto central", comenta Chevitarese.

"A Palestina no tempo de Jesus era dominada politicamente pelos romanos. Mas isso não explica tudo", ressalta o teólogo Paulo Nogueira, professor da pós-graduação em ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e autor dos livros Narrativa e Cultura Popular no Cristianismo Primitivo (Paulus), Religião e Poder no Cristianismo Primitivo (Paulus) e Breve História do Cristianismo das Origens (Santuário).

"Também havia uma profunda percepção dessa dominação, o que gerava a busca desesperada por alternativas e solução", prossegue ele. "Ainda que a comunidade judaica fosse relativamente marginal no contexto político e econômico do império, eles tinham uma autoconsciência da liberdade e de um destino grandioso prometido por Deus."

"Mas como alcançar a prometida liberdade? Como serem fiéis ao Deus que lhes daria um futuro grandioso? Isso gerou muitas respostas ao lado da religião sacerdotal e oficial", contextualiza. "Profetas, milagreiros, pretendentes messiânicos, grupos revolucionários, entre outros, prometeram e ofereceram respostas."

Mas a dominação romana não explica tudo, afinal, fosse apenas o único ingrediente, candidatos a messias também teriam surgido em diversas outras partes da Europa, por exemplo.

De acordo com o teólogo, historiador e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, as raízes desse fenômeno estão em dois fatores: a ideia de que esse povo, os judeus, se sentiam os "escolhidos por Deus", e o passado recente daquele período, quando os judeus foram expulsos daquela área conhecida como Terra Santa.

"O exílio funcionou como uma espécie de punição aos judeus. Quando eles voltam, há uma autocrítica. Eles querem entender por que Deus permitiu que eles passassem por tantas tribulações", pontua.

"Eles se tornam, então, extremamente zelosos. Passam a tomar a lei de Moisés como sendo uma regra de fé e prática para conduzir suas vidas, uma regra moral e religiosa. Quanto mais zelosos eles fossem com relação à lei, mais Deus os abençoaria, afinal, entendiam que haviam sido punidos porque tinham agido de forma relapsa", acrescenta ele.

Contudo, eles reencontram uma área geográfica alvo de interesses políticos. Uma região que sucessivamente era dominada por alguma potência estrangeira. E a bola da vez eram os romanos.

Como nasceu o dogma da virgindade de Maria, mãe de Jesus?

Esse contexto faz surgir algumas condições no seio do judaísmo. "Uma delas é a renovação do profetismo, por meio da chamada literatura apocalíptica", pontua Moraes. "É um movimento literário mas também religioso que procura trabalhar de maneira cifrada e simbólica as mensagens de renovação e esperança para um povo sofrido. Isto se torna uma maneira de resistir à opressão estrangeira."

"Fruto desse processo, se fortalece muito a noção do messianismo", afirma ele. Ou seja: a ideia de que alguém viria libertar esse povo das agruras do domínio romano, daquela condição ruim. "E esse alguém seria um enviado de Deus", pontua.

Àquela altura, ninguém ousava falar como seria esse enviado ou de que forma ele viria. Tampouco se seria um herdeiro da dinastia de Davi ou um rei político. Ou, ainda, alguém capaz de conduzir um exército forte o suficiente para banir daquelas terras os inimigos.

"Foram seis séculos gestando essas ideias, a partir do movimento apocalíptico e do messianismo", diz Moraes. "Nesse período, começam a aparecer vários e vários candidatos a cumprirem as profecias apocalípticas, a cumprirem os pré-requisitos de serem os libertadores. Os dias de Jesus são propícios para isso."

Bandidos, profetas e messias

Costuma-se dizer que, naquele período em que viveu Jesus, havia três tipos de agitadores sociais na região: os bandidos, os profetas e os messias.

Os bandidos eram os classificados como "bandidos sociais", ou seja, aqueles que promoviam uma resistência ao domínio romano por meio de saques e outras contravenções. Geralmente viviam de forma clandestina, em cavernas na região.

"Foram vários", diz Moraes. Entre eles, houve um sujeito chamado Ezequias, que agiu entre os anos 47 e 38 antes de Cristo. Outro insurgente conhecido foi Eleazar Ben Jair, que viveu pouco tempo depois de Cristo. Mais ou menos no mesmo período também se destacou o grupo comandado por Tolomau. "E também houve um sujeito chamado Jesus, na década de 60", afirma.

Na mesma categoria, Moraes também inclui o líder rebelde João de Giscala.

Segundo essa classificação, profetas eram aqueles que realizavam um trabalho missionário mas deixavam claro que haveria um messias subsequente. Assim, Moraes lembra de João Batista, o religioso que batizou Jesus. "E também um homem conhecido como Samaritano, que atuou ali entre os anos 26 e 36, mais ou menos", diz. "Também houve um sujeito apelidado de Egípcio. E outro chamado de Jesus, filho de Ananias. Enfim, a literatura é povoada desse nomes."

Messias eram aqueles que encarnavam a ideia de serem os enviados. O teólogo lembra de "Judas, filho de Ezequias, que surgiu por volta do ano 4", e "no mesmo ano, um sujeito chamado Simão". Também cita Judas, o Galileu, e Simão Bar Giora.

"Isso acontece porque era uma região dominada por potências estrangeiras durante vários séculos", contextualiza.

"E uma região alimentada religiosamente pela mentalidade apocalíptica e por uma mentalidade messiânica. Então os candidatos a messias aparecem aos montes e, naquele tempo, Jesus era mais um entre os candidatos."

De todos os nomes político-religiosos surgidos na época, além de Jesus, Chevitarese destaca três: Judas, o Galileu; João Batista; e O Egípcio.

Mas, antes, ele ressalta que não lhe parece correto classificar esses movimentos como seitas. "Porque todas as experiências religiosas, sem exceção, são multifacetadas. Nenhuma das experiências vieram do céu para a terra, mas sim todas da terra para o céu: são os seres humanos quem as fazem, e não a divindade", pontua.

Segundo ele, para entender o surgimento desses grupos é preciso ver que a região e a época em que Jesus viveu foi propícia para o surgimento de diferentes percepções religiosas.

"Eram diferentes, mas o elemento central é que a terra é essa em que os judeus vivem", diz. "Essa terra, que tem um mito que a sustenta, o mito de que Deus tirou os hebreus do Egito e os levou para a terra onde corria o leite e o mel, uma terra que pertence a Deus e onde os primeiros hebreus chegaram e, posteriormente, com as divisões havidas, os judeus ali eram os inquilinos de Deus."

Mas o ambiente do século 1 parecia um pouco distante dessa ideia idílica. "A exploração econômica era levada a graus absurdos. Para se ter uma ideia, de cada quatro ou cinco peixes que o indivíduo pescava, um era para o dízimo da Igreja, um era para pagar o aluguel da terra, do barco e da rede, um era para pagar os impostos a Roma", comenta. Chevitarese. "O que sobrava para o cara era o mínimo da sobrevivência, da subsistência. Isso produziu uma revolta."

Líderes emblemáticos

Chevitarese acredita que, analisando esse cenário, "talvez o grande líder messiânico tenha sido Judas, o Galileu". O personagem, que liderou uma revolta contra o censo romano no ano 6 depois de Cristo, é mencionado no livro bíblico dos Atos dos Apóstolos como alguém que "levou muito povo atrás de si". Ele também é mencionado nos relatos do historiador romano Flávio Josefo (37-100).

"Esse cara disse, entre outras coisa, que seria considerado afastado da comunidade judaica todo aquele judeu que aceitasse pagar impostos que não fossem para Deus", diz Chevitarese. "Todo aquele que aceitasse como senhor qualquer outra pessoa que não Deus. Então o que o explica é a resistência à presença romana, lembrando suas dimensões politeístas, numa terra da qual Deus seria o dono."

"Esse tipo de tensão explica tanta pluralidade de experiências religiosas na terra de Israel no século 1", conclui ele. Judas era uma liderança política galileia de bases campesinas, que conseguiu arregimentar um conjunto muito grande de camponeses.

"Era alguém que reivindicava princípios caros, como por exemplo se era lícito pagar impostos que não fossem a Deus, se só existia um senhor Deus… Foi um movimento que não gerou frutos de longa duração, mas aquela perguntinha que ecoa nos evangelhos, sobre se é lícito ou não pagar impostos a César está se referindo, do ponto de vista ideológico, a uma das pautas do Judas."

Chevitarese situa entre esses líderes político-religiosos o próprio João Batista, na Bíblia situado como primo de Jesus e aquele que o teria batizado. "Foi um movimento, o do Batista. Ele foi contemporâneo a Jesus e não é aquele que nos evangelhos é citado como quem 'não seria digno' de atar as sandálias dos sapatos de Jesus", afirma o historiador.

"Na época dos dois, de Jesus e de João, ele, João Batista, era infinitamente maior e mais importante do que Jesus. Muito mais conhecido. Ele era o grande candidato messiânico. E Jesus se tornou seu discípulo após o batismo, permaneceu com ele no movimento, aprendeu com ele", relata o historiador da UFRJ.

"O movimento de Batista sem o Batista [ou seja, depois da morte dele], tal e qual o movimento de Jesus sem Jesus, vai tensionar ao longo de todo o século 1 e primeira metade do século 2", conta.

"A questão era quem é o messias: João Batista ou Jesus de Nazaré? Quem seria o Cristo? Repare que estamos olhando por um viés sociológico esses movimentos populares, saindo das amarras teológicas tendenciosas", diz.

"Há muitas questões subentendidas naquelas narrativas evangélicas", acredita.

Chevitarese também lembra o papel desempenhado pelo líder conhecido simplesmente como O Egípcio, que aparece nas narrativas de Josefo e também nos Atos dos Apóstolos, da Bíblia. "Não és tu porventura aquele egípcio que antes destes dias fez uma sedição e levou ao deserto quatro mil salteadores?", pontua o texto bíblico.

"Ele é outro que se assume como novo líder, mobilizando, levando gente, dizendo que iria fazer os muros de Jerusalém caírem, que iriam entrar lá e tomar posse", comenta. "Uma posse não de modo pacífico, eram caras dispostos a partirem para a pancadaria, para matar ou morrer. Esse foi um movimento violentamente reprimido."

O historiador deixa claro que, embora esses três casos sejam mais interessantes, foram muitas as figuras religiosas que arrebanharam multidões no período. Ele cita Atronges, João de Giscala, Simão Bar Giora, Menachem, Teudas… "Todos esses eram candidatos messiânicos antes, durante e depois de Jesus", enfatiza

Pesquisador de cristianismo antigo, Thiago Maerki, ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e à Hagiography Society, nos Estados Unidos, lembra de outro personagem messiânico desse tempo: Apolônio de Tiana.

"Há muitos paralelos sobre o que sabemos da vida de Jesus com esse tal de Apolônio. Parece que havia inclusive uma rivalidade na época entre Jesus e Apolônio", afirma.

"Fala-se sobre Apolônio que, antes de ele nascer, sua mãe havia tido uma visita do céu e que essa personagem celeste havia revelado a ela que seu filho não seria um mero mortal, mas um ser divino, e que o próprio nascimento de Apolônio seria acompanhado por sinais divinos."

Maerki ressalta que a figura era vista como alguém que não era "um ser humano comum, mas sim um enviado por Deus". "Quando se fala assim, parece que estamos falando sobre Jesus, mas são informações de Apolônio", compara.

"Há ainda relatos de que ele teria feito vários milagres para que se acreditasse em sua pregação, que ele teria ressuscitado mortos e que, no fim da vida, ele teria despertado oposição entre autoridades de Roma e levado a julgamento", narra. "Por fim, ele teria subido ao céu, onde moraria até hoje. E para provar isso, teria ele aparecido a, ao menos, um de seus seguidores."

Teólogo critica ‘supremacia fundamentalista’ no Brasil: ‘Jesus não tinha nenhum apego ao poder’

Movimentos dentro do judaísmo

Em comum, todos esses movimentos, inclusive o protagonizado por Jesus, tinham o caráter político rebelde. "Eles compartilhavam a ideologia de resistência ao império romano", define Chevitarese.

"No viés religioso, a partir de diferentes objetivos, centralizavam a ideia de que o Deus de Israel iria intervir na história e restabelecer o poder político na nação."

Mas com tantos líderes politico-religiosos, de certa forma semelhantes, por que Jesus se tornou tão grande e os outros desapareceram?

Para os especialistas, a chave é entender que todos esses movimentos ocorreram dentro do judaísmo. Mas o cristianismo, o tal "movimento de Jesus sem Jesus", foi o único capaz de ultrapassar essa fronteira.

"A história da origem do cristianismo só pode ser compreendida em sua origem judaica. O cristianismo surgiu como um movimento profético messiânico na Galileia, que viu seu messias morto pelos romanos em Jerusalém", diz Nogueira.

"Como movimento judaico ele se disseminou pela diáspora judaica no Mediterrâneo e ali se articulou com outras formas religiosas do mundo greco-romano, mas até o segundo século adentro se sentiam como relacionados à religiosidade judaica e assim eram vistos pelos pagãos."

"Esses candidatos a messias todos existiram, mas seus movimentos não deram certo porque todos eles, incluindo o movimento de Jesus, eram intrajudaicos. Foram pensados para discutir pontos de vista políticos, religiosos e econômicos do judaísmo", completa Chevitarese.

"Eram questões específicas internas daquelas culturas judaicas, daquelas multiplicidades de percepções do judaísmo, tendo sempre como centralidade a figura de Deus, qual era o papel de Deus nesses embates, nessas lutas, qual era a expectativa de Deus na justiça de Israel."

No caso de Jesus, havia o anúncio do Reino de Deus em oposição à realidade. Ou seja: um reino da justiça divina em oposição à injustiça de César, um reino de paz em oposição àquele período bélico, um reino de comensalidade em oposição à fome.

"E um reino de igualdade de gêneros, onde homens e mulheres eram chamados à messe, em oposição às hierarquizações sociais do reino de César", pontua Chevitarese.

Mas se todos os outros movimentos semelhantes acabaram restritos ao mundo intrajudaico, o cristianismo acabou ultrapassando as fronteiras justamente por conta do papel desempenhado pelos seguidores das gerações seguintes.

"Após a morte de Jesus, imbuídos da crença na ressurreição, seus discípulos passaram a atuar de maneira muito eficaz e competente", comenta o teólogo Moraes. "A mensagem passou a não ser recebida apenas pelos judeus, assumiu um caráter universal. Esse rompimento das fronteiras fez com que, de alguma maneira, o movimento de Jesus se tornasse mais impactante."

Ao mesmo tempo, os outros movimentos messiânicos ficaram presos às fronteiras nacionais e étnicas. "Nunca tiveram pretensões além disso", avalia Chevitarese. "A geração que viu ainda lembrava, mas depois foram derrotadas, ao tempo em que a memória esquecia."

"Já o movimento de Jesus sem Jesus, como transcendeu as questões propriamente judaicas, se tornou universalista. Passou a tratar dos problemas dos seres humanos", afirma ele.

Para Nogueira, "é uma questão difícil" explicar porque Jesus sobreviveu aos séculos e seus contemporâneos de outras dissidências, não. "Eu diria que seu carisma, seu poder de interagir com seus seguidores e de influenciá-los, foi seu diferencial. Não há uma liderança de impacto histórico que não tenha competências marcantes, com características de liderança, poder milagroso, poder retórico, coerência moral, por um lado, e repercussão entre as pessoas que se tornaram suas seguidoras, por outro lado", afirma.

"Não há como dissociar as duas coisas: Jesus foi um profeta e milagreiro poderoso e foi percebido como tal por seus seguidores."

A visão religiosa

Também há a visão pragmática-religiosa, evidentemente. "Aqueles que creem vão dizer que o movimento de Jesus deu certo porque ele era mesmo o messias esperado, o filho de Deus encarnado", afirma o teólogo Moraes. "Ele era aquele que havia sido prometido pelos profetas."

A própria Bíblia trabalha com essa ideia. No livro dos Atos dos Apóstolos, há uma passagem em que um fariseu mestre da lei afirma que não seria necessário fazer nada para conter o movimento de Jesus, porque se ele realmente não fosse obra divina ele se extinguiria naturalmente.

"Essa é uma posição pragmática adotada pela linha crente: Jesus deu certo porque ele era, de fato, o filho de Deus, o verbo encarnado", aponta Moraes.

Historicamente, contudo, Moraes lembra que houve uma coincidência na expansão do cristianismo com o período conhecido como Pax Romana — do ano 27 a.C. Com o ano 180 d.C. E isso, aliada à decisão dos primeiros seguidores de Jesus de disseminarem a história dele, foi um fator fundamental nessa universalidade do legado deixado pelo líder messiânico.

"O mundo criado por Roma impõe uma política violenta, mas de pacificação, a Pax Romana. Há uma espécie de globalização no mundo antigo, com a administração de Roma nas possessões mas uma espécie de livre trânsito de mercadorias e ideias", pontua.

"Isso, em meio a um momento de judaísmo fragmentado, favorece o trabalho dos missionários cristãos na própria estrutura do império. Isso ajuda a explicar por que o cristianismo atingiu esse sucesso todo", acrescenta.

Independência de visões

De acordo com os pesquisadores, em linhas gerais não havia um intercâmbio entre esses movimentos que coexistiram, exceto raras exceções.

Uma delas, aliás, é digna de nota: Jesus foi batizado e se tornou discípulo de João Batista.

"Ele aprendeu com o Batista", enfatiza Chevitarese. "Houve um intercâmbio de aprendizado."

"Jesus também bebeu na tradição de Judas, o Galileu, no sentido de não topar diálogo com romanos", acrescenta ele.

Edson Veiga, de De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil.  Este texto foi publicado originalmente em 23.12.22 / https://www.bbc.com/portuguese/geral-64055515

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Lula prometeu pacificar o País

Tentativas deliberadas de perpetuar a polarização, de atacar o candidato derrotado, são inconsequentes e arriscadas. E traem sua valiosa promessa

Estamos a dois dias do Natal e a pouco mais de uma semana do ano-novo. O Natal traz esperança e exorta todos a exercerem a fraternidade. Mas a fraternidade exige a adesão deliberada de cada um e reflete as condições sociais e morais das nações. Entre essas condições, o ambiente político do País exerce papel preponderante, e essa é a razão do pessimismo que pode prevalecer na expectativa do próximo ano novo, por oposição ao otimismo que o Natal provoca.

O otimismo está no fato de que a democracia representativa, posta em risco nestas eleições, prevaleceu sobre todas as tentativas de violar o voto livre e secreto dos cidadãos. A natureza tem-nos favorecido e, graças à qualidade da inovação científica e tecnológica de nossa agricultura, desfrutamos de plenas condições de segurança alimentar. Nossa base industrial tem sofrido com os equívocos das políticas econômicas adotadas nas duas últimas décadas, mas as expectativas são de que o investimento no Brasil pode voltar a ser atraente se o futuro governo tomar as decisões necessárias para garantir sua credibilidade. Em que pese a insuficiência de nossa base tecnológica, em razão da falta de formação profissional pós-ensino médio, temos um corpo de profissionais com extensa experiência de gestão pública e privada, e com disposição para colaborar numa empreitada de reerguer o País.

Já os fundamentos do pessimismo estão em dois aspectos do ambiente político, que se sobrepõem. Um é o aguçamento da polarização, que anula qualquer expectativa de fraternidade entre duas metades do eleitorado, mobilizadas pelo medo, que decidiram seu voto seja por temer Bolsonaro, seja por desconfiar de Lula. Alguns fantasmas foram difundidos deliberadamente pelos dois lados, mas a maioria moderada tinha bastante experiência do governo de ambos para ter medo do que via.

Esse aguçamento provém, de um lado, da recusa do atual presidente a reconhecer a legitimidade da Constituição, que confere ao candidato eleito o direito e o dever de exercer o mandato presidencial. Recusa que se estende ao conjunto da Carta, uma vez que só reconhece um único artigo, o 142, que, a seu critério, lhe daria a prerrogativa de derrubar o governo legítimo. Sua omissão diante da ocorrência de atentados violentos, organizados para mostrar a disposição de seus organizadores para obstaculizar, senão impedir, a posse do presidente eleito, somada a manifestações presidenciais dúbias, convergem para sinalizar uma clara estratégia para manter, a qualquer preço, a polarização e a sobrevivência de sua liderança, hoje declinante.

O aguçamento também se alimenta da duplicidade quase doentia da persona pública de Lula, o candidato aberto a tudo e a todos, disposto a agasalhar toda a diversidade de ideais, todas as crenças e posições políticas, a perdoar os antigos adversários e honrar todas as heranças, benditas ou não. Estendeu a mão a todos e recebeu a mão estendida de todos, mesmo dos que, ainda que temendo Lula, foram convencidos a temer mais seu contendor.

Quando candidato, deixou claro que seu passado de glórias e feitos lhe propiciava prescindir de especialistas para planejar seu governo, de empresários para contribuir para o crescimento da economia e da ajuda de gestores públicos experientes que contribuíssem para ampliar a capacidade governativa de sua coalizão. Absteve-se – o que é grave – de abrir canais que pudessem trazer para sua campanha a considerável diversidade de ideais e interesses representada nos partidos e movimentos que o apoiaram. Ao contrário, todas as vezes em que foi cobrado a revelar seu programa, sua resposta era a mesma: “Eu sei o que fazer, eu já fiz, eu vou fazer”.

Sua vitória provocou alívio entre os que nele votaram, tanto os fiéis petistas quanto os desconfiados e até os céticos. Mas o presidente eleito manteve-se ausente do processo de transição por quase todo um mês, deixando uma equipe gigante, de quase mil membros, desprovida de orientação e de decisões vitais que Lula dizia ter em sua cabeça.

Quando veio a público, desencadeou um processo exageradamente precoce de erosão de seu indiscutível capital político, antes mesmo de assumir o governo. O mundo mudou, o Brasil mudou muito desde seu último mandato, e a economia mundial está sofrendo uma transformação extrema. Mas Lula não mudou. Pior: não percebeu a mudança.

Talvez isso se deva à sua necessidade de dividir o mundo, as pessoas e a política, numa dualidade simplificadora, o bem contra o mal, a verdade contra a mentira, os pobres contra os ricos, nós contra eles, os que cuidam do pobre contra os que ficam olhando a política fiscal. Nesse contexto, as tentativas deliberadas de perpetuar a polarização, de atacar com frequência o candidato derrotado, são inconsequentes e arriscadas. E traem sua promessa de pacificar o País.

A resiliência que o povo brasileiro tem mostrado para evitar a ameaça de golpe deve servir, neste momento de transição, para exigir de Lula o cumprimento de sua promessa de campanha mais valiosa: a de pacificar o País.

José Serra, o autor deste artigo, é Senador (PSDB-SP). Publicado originalmente n'O ESATADO DE S. PAULO, em 22.12.22

O horizonte da barganha

‘Caridade política’ de se ocupar 37 ministérios não é um plano de governo

Mesmo com o freio aplicado a Lira, Lula não terá vida fácil com o Legislativo (Foto: PABLO VALADARES/AGENCIA CÂMARA)

Jair Bolsonaro e Arthur Lira estão no topo da lista de personagens políticos nos quais o STF “aplicou freios”. Enquanto Bolsonaro era considerado por integrantes do STF como “um louco” capaz de irresponsabilidades, Lira “a gente sabe quem é e dispensa apresentações”. Capaz de qualquer coisa para satisfazer a voracidade fisiológica.

Ao frear Lira e favorecer Lula o STF inaugurou uma nova fase nas barganhas políticas. Seus integrantes paralisaram um julgamento, envolveram-se numa negociação direta com o Legislativo sobre os termos de uma peça (que o Supremo acabou rejeitando) e desembocaram numa ação coordenada para livrar o presidente eleito de um presidente da Câmara praticando o que parecia ser um tipo de extorsão.

O resultado é um alívio temporário e um mal-estar generalizado. A “institucionalidade” hoje se traduz numa inversão de sinais: o Executivo se sentia sob Bolsonaro como refém do Supremo. Hoje está sendo protegido, mas não é o tipo de “guarda-chuva” que proporcione a Lula vida fácil com o Legislativo. Mesmo com o freio aplicado a Lira, que o atribui a Lula.

Fazer política depende, sim, de manobras “espertas” como essa combinação envolvendo o STF contra o presidente da Câmara. Mas depende mais ainda da capacidade política do chefe do Executivo de mandar na agenda, e aqui as coisas se complicam bastante. O que Lula basicamente pediu ao Legislativo foi uma licença para gastar da qual se beneficiariam também os parlamentares com verbas e cargos.

A rigor, a disputa política envolveu apenas inflar números e prazo de validade da licença para gastar – algo em que todos estão interessados em Brasília. Por mais nobre e necessário que seja ajudar quem passa fome, caridade não é um plano de governo. Nem é o que se discutiu nessas últimas três semanas. O ponto principal era como conseguir gastar, e por quanto tempo, sem ter de dizer de onde virá o dinheiro.

Mesmo num Congresso dominado pelo patrimonialismo e o Centrão, conta muito o rumo geral que um governo pretende impor com suas políticas. Também não é um plano de governo a “caridade política” de se ocupar 37 ministérios com forças políticas que possam parecer uma frente ampla. É simplesmente uma acomodação, através de verbas e cargos, que carece até aqui de um rumo geral.

É fato que o STF pode proteger um presidente Lula mas dificilmente saberá dizer para onde deve ir. No momento, talvez só Lula saiba. Daí o fato da confusão com as recentes barganhas ter deixado um misto de perplexidade e desconfiança. É o que acontece quando o que surge no horizonte político é só a barganha.

William Waack, o autor deste artigo, é jornalista. Apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O ESTO DE S. PAULO, em 22.12.22