quarta-feira, 26 de outubro de 2022

'Pauta moral é o voto de cabresto religioso', diz diretor de política da CNBB

A religião tornou-se um dos pontos centrais do debate político nacional no segundo turno das eleições brasileiras, com grande polêmica em torno de pautas sobre moralidade.


(Crédito da foto: Getty Images)

O padre Paulo Adolfo Simões acompanha atentamente o fenômeno. Diretor do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (Cefep), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ele afirma que o uso político das pautas religiosas se tornou uma espécie de "voto de cabresto religioso" — em referência à prática de abuso de poder econômico de agentes (como coronéis ou fazendeiros) para obrigar eleitores a votarem nos seus candidatos.

No caso da religião, essa coersão se daria por meio de líderes religiosos, que utilizam o discurso da moralidade para influenciar o voto de seus seguidores.

"Surge esse novo perfil de religiosos, que foi construído também com algumas intenções. Eles trazem para o debate a pauta moral, que é para capturar os votos desses rebanhos. É o voto de cabresto religioso. Os fiéis de determinada igreja (...) vão todos para aquele candidato", afirma.

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De seu escritório em Brasília, Simões atendeu à reportagem da BBC News Brasil nesta terça-feira (18/10), em uma conversa de quase duas horas por videoconferência onde fez críticas ao presidente Jair Bolsonaro (PL), que disputa a reeleição contra Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"Ele se diz católico, mas é tudo ao mesmo tempo. A pauta dele não é dos católicos, não e dos evangélicos. A pauta dele é dele, é da extrema-direita. E onde dá voto, ele vai", comenta Simões, que disse apoiar Lula, por ele apresentar "uma proposta que tem mais a ver com o evangelho".

"Ele se diz católico, mas é tudo ao mesmo tempo", diz padre Paulo Adolfo Simões sobre Bolsonaro (Getty Images)

O padre comenta também diferentes episódios de acirramento dos ânimos por conta de discussões relogiosas — como a visita de Bolsonaro à Aparecida no dia 12; um padre que teve a missa interrompida no Paraná; e o assédio virtual ao cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, por conta de suas vestes vermelhas, cores litúrgicas correspondentes ao seu posto.

"É muito fácil chamar todo mundo de comunista. Sobrou até para o cardeal dom Odilo, que, aliás, se defendeu muito bem. Achei a fala dele muito boa, alertando para o crescimento do nazifascismo no Brasil", afirma o diretor do Cefep.

O padre lembra que a CNBB, que acaba de completar 70 anos de história, nunca se furtou a posicionar-se politicamente. O organismo foi ativo na oposição a ditadura militar que comandou o país de 1964 a 1985, defendeu o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992, e tem publicado diversos posicionamentos contra atos do governo Bolsonaro, especialmente quando afetam políticas públicas de amparo social ou de proteção a minorias.

Além disso, anualmente, a instituição promove a Campanha da Fraternidade, que de forma recorrente debate temas sociais e políticos.

Padre Paulo Adolfo Simões é diretor desde março de 2019 do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (Cefep)

A seguir, os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Muitos católicos, de certa forma para se proteger, estão optando por não falar em política, não se manifestar politicamente. Como é ser político dentro da Igreja?

Padre Paulo Adolfo Simões - Não tem nada mais político do que se dizer apolítico. Quem fica em cima do muro toma uma posição. Construímos um projeto [de conscientização] com foco nas eleições, mas é mais amplo: o projeto Encantar a Política. O ponto de partida é exatamente isso: existe uma noção de que política é só militância partidária, eleitoral. E outra ideia de que política é coisa muito suja, que não dialoga com religião.

Qual a percepção que a gente tem? Que as duas ideias não são espontâneas, são uma construção de quem está no poder. Sempre para que o povo não participe das decisões que afetam sua vida, é como se deixássemos nas mãos da mesma elite que vem desde o Brasil colonial definindo os destinos do país ou, em outra leitura, uma certa elite de iluminados que goste mais de política. Entendemos que a militância partidária e, sobretudo, eleitoral, é fundamental.

É importante o cristão e a cristã que se sente chamado assumir isso com todo o ônus que isso traz. Mas não é a única forma de fazer política. Você faz política de muitas formas, como nos sindicatos, nas associações, nos conselhos de direitos e até no ato de ir à igreja, de não ir, de participar de um evento social, de pronunciar-se ou se calar diante de alguma questão. São atos políticos.

A grande pergunta que a gente tem de fazer é a seguinte: minha militância política é em favor de quem? Aí é a pergunta de Paulo Freire [educador brasileiro que viveu entre 1921 e 1997]: é a favor dos opressores ou dos oprimidos? Estou a favor da maioria empobrecida ou a favor de manter o status quo? E às vezes isso se mistura um pouco. Na prática, de repente, você está defendendo a causa dos pobres e mantendo um grupo no poder. Ou, de repente, você está ajudando a manter um grupo no poder e, de alguma forma, também beneficiando os pobres. As coisas são muito complexas, mas o importante é isso. Não dá para separar fé de política.

O Frei Betto [frade dominicano e escritor] tem uma frase muito interessante. Ele fala que nós somos seguidores de um preso político, que é Jesus. Jesus Morreu por uma condenação política, e não religiosa. Jesus não morreu atropelado por um camelo nas ruas de Jerusalém, nem de gripe na cama. Ele morreu por uma condenação política. Ele não morreu condenado religiosamente, morreu por uma questão política. Isso não nos permite sermos omissos. Podemos até errar nas opções, mas precisamos fazê-las.

"Tanto a Igreja Católica quanto os campos progressistas, acho que ainda não conseguimos falar com o povão de forma direta, sobretudo usando as mídias sociais. E a extrema-direita faz isso muito bem", diz Simões (Getty Images)

BBC News Brasil - Por falar em opções, como o senhor vê a polarização atual da política brasileira?

Simões - A gente tem falado que a polarização em si não é tão ruim, pois através de dois polos você pode fazer uma síntese. E sempre tivemos no Brasil uma polarização.

O problema é essa polarização violenta, que faz com que alguns até deixem de se posicionar por medo de alguma reação, risco até de violência física ou de contaminar o ambiente familiar, de trabalho. Essa é uma questão muito séria. A percepção internacional é que essa polarização é uma forma da extrema-direita dar um cala-boca em quem pensa diferente, criando justamente isso de que as pessoas, em nome da boa convivência, evitem falar em política, evitem se posicionar.

No Brasil, eu percebo que, politicamente, não temos uma polarização. Temos uma extrema-direita, violenta e tal, mas não temos uma extrema-esquerda, ao menos não uma extrema-esquerda que seja representativa. Não temos ninguém defendendo a invasão de terras, ninguém defendendo a estatização de bancos, nada disso. Temos um campo representado pelo candidato Lula [Luiz Inácio Lula da Silva], pelo PT, que congrega outros partidos e inclui hoje muitos que defendem políticas liberais, que são mais de centro. São políticas de centro. Não temos uma extrema-esquerda militante, então a polarização é complicada de ser analisada.

Percebo que é mais uma tentativa de inviabilizar o discurso político e propiciar uma ascensão da extrema-direita, que é, inclusive como [o cardeal arcebispo de São Paulo] Odilo Scherer alerta, o surgimento, o crescimento do nazifascismo no Brasil. Uma coisa muito séria, muito grave.

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BBC News Brasil - É esta gravidade que fez com que houvesse união em torno do Lula, em sua opinião?

Simões - O [ex-presidente] Fernando Henrique ao lado de Lula é muito simbólico. Até o [fundador do partido novo, João] Amoêdo, quando manifesta o voto em Lula. A questão que une todo esse grupo é a defesa da democracia, que é um bem maior, que está acima das ideologias e do modelo econômico. Porque num sistema democrático você pode discutir o modelo de país.

Se não tem o sistema democrático, não sabemos se vai poder discutir alguma coisa. Esta é a grande questão. […] O crescimento desta extrema-direita, inclusive católica e religiosa, indica que o brasileiro, em geral, é conservador. E até os governos populares, com alguns avanços, acabaram ferindo o pensamento dessas pessoas que agora querem se manifestar. […] O momento é importante par a gente enfrentar e mostrar para essa extrema-direita, sobretudo cristãos católicos que estão se posicionando nesse espectro, que há outro pensamento, outra possibilidade. Que não podemos cair no extremismo. E as pessoas precisam entender o que é fascismo.

BBC News Brasil - Mas esse discurso chega à população?

Simões - Não sei muito se esse discurso de democracia e fascismo interessa à população em geral, que quer ter comida na mesa. O pessoal está preocupado se tem alguma coisa na geladeira, se sobra um dinheirinho no fim de semana, se vai dar para tirar férias. Se isso vem da democracia ou de uma ditadura, para o povo, pouco importa. Aí vem um fator interessante, preocupação da Cefep: a falta de discussão política que nós temos.

Precisamos trabalhar mais, as pessoas não só não querem atuar politicamente como não querem discutir política, fogem disso. Precisamos formar o nosso povo, trabalhar para que as pessoas percebam que, num sistema democrático, com um governo mais progressista, a comida chega na mesa para todos e para todas. E os direitos estão garantidos para as minorias. No outro sistema a gente não sabe se um dia vai chegar [a comida]. Mas tanto a Igreja Católica quanto os campos progressistas, acho que ainda não conseguimos falar com o povão de forma direta, sobretudo usando as mídias sociais. E a extrema-direita faz isso muito bem.

Código de Direito Canônico proíbe padres e bispos de manifestarem apoio a candidatos (Getty Images)

BBC News Brasil - Grupos de WhatsApp de católicos, mesmo aqueles criados com o objetivo de promover rezas comunitárias e confraternizações entre pessoas da mesma paróquia, estão dominados por posts em defesa de Bolsonaro e com críticas a um suposto comunismo. Há até vídeos, que viralizam, de padres fazendo novenas e pedindo orações a favor da reeleição do atual presidente, citando-o nominalmente. Há alguma orientação da Igreja para que padres não se posicionem dessa forma?

Simões - Sim. Tem inclusive uma posição do próprio [Código de] Direito Canônico que diz que padres e bispos não devem manifestar apoio a candidatos. O papel da Igreja é orientar a consciência do cristão, dar informação para que as pessoas possam tomar a sua posição. O que temos no Brasil de hoje é que enquanto sempre se tomou muito cuidado com quem se posiciona a favor de alguma proposta política de esquerda, não se toma cuidado com quem se posiciona a favor da direita. Não se tem nenhum cuidado com quem se posiciona a favor do candidato Bolsonaro.

Aí ficamos numa situação complicada. Parece que somos muito ingênuos ainda com relação a isso, embora tenha essa orientação, a extrema-direita já trouxe essa questão para o centro do debate. E, nesse momento eleitoral, seria muito ingenuidade não nos posicionarmos. Isto [este silêncio] está contribuindo para que os católicos pensem que todos os padres, bispos e religiosos estão com Bolsonaro.

BBC News Brasil - Mas se está previsto no Direito Canônico, esses padres podem ser punidos?

Simões - O bispo [da diocese onde ele atua] pode tomar posição com relação a eles. Mas até agora não foi tomada nenhuma posição, então parece que os bispos ou estão temerosos, ou estão a favor [desse tipo de manifestação bolsonarista].

BBC News Brasil - O bispo pode suspender ou apenas advertir?

Simões - Seria uma advertência. Tenho notícia de que alguma diocese, depois que padres bolsonaristas se posicionaram, outros tomaram posição também [a favor de Lula]. O bispo tentou conversar com todo mundo. […] Aí houve um acordo entre eles e aceitaram a orientação do bispo.

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Segundo Simões, católico em geral "escuta o que diz o padre, o bispo, mas vota de acordo com sua consciência" (Getty Images)

BBC News Brasil - Por que nestas eleições a religião assumiu papel tão importante?

Simões - São vários fatores que se entrelaçam. Um deles é que esta extrema-direita sabe que o eleitor evangélico segue um determinado pastor. E o eleitor católico que pertence a um grupo tradicionalista, normalmente ligado à Renovação Carismática [movimento ultraconservador do catolicismo], esse eleitor é muito fiel a seu chefe. Ele vota em quem manda o padre, o pastor, o guru. Diferentemente do católico em geral que escuta o que diz o padre, o bispo, mas vota de acordo com sua consciência, que é aquilo que a teologia moral ensina: o católico tem de seguir sua consciência.

Então surge esse novo perfil de religiosos, que foi construído também com algumas intenções.

Eles trazem para o debate a pauta moral, que é para capturar os votos desses rebanhos. É o voto de cabresto religioso. Os fiéis de determinada igreja, de determinado coletivo de católicos vão todos para aquele candidato. E então entra o populismo: o político percebe qual a índole do seu eleitorado e passa a assumir o discurso daquele grupo. Nem sempre ele acredita nisso.

O Bolsonaro, por exemplo, é contra o aborto, mas já defendeu a liberdade do casal de abortar. […] Enfim, [os políticos] não acreditam nessas pautas. Essa é uma questão. É um eleitorado fácil de ser comprado, isso se percebe claramente. Esse eleitorado é composto por grupos normalmente com baixa formação cristã no sentido crítico. É uma formação que vai mais na linha de um treinamento para repetir alguns chavões.

Até usam, por exemplo, a Doutrina Social da Igreja [conjunto de orientações sociais do magistério católico] para dizer que a Igreja condenou o comunismo, mas também não definem o que é o comunismo. Repetem à exaustão uma fala do papa Pio 11 [que comandou a Igreja de 1922 a 1939], uma fala muito específica e [ignoram que] depois esse pensamento evoluiu.

Isso é muito claro: é um grupo muito fácil de ser manipulado.

BBC News Brasil - E a pauta de costumes parece "colar"…

Simões - Eleitoralmente é o principal. Quando você traz a pauta de costumes, fala que um candidato é a favor do aborto, fala que um candidato vai colocar banheiro unissex nas escolas, fala essa bobeira toda, essas fake news de grupos de WhatsApp, você não discute as grandes questões do país.

Não se discute a fome, a pobreza, o desmonte das políticas públicas, o desmonte e o descrédito das instituições que é o mais sério que essa extrema-direita faz. Isso é muito grave. A pauta de costumes é a cortina de fumaça para que não se pautem questões sérias e, mais ainda, não se apresentem programas de governo.

Para mim, é discurso para enganar bobo. Você pode ser contra tudo isso, mas nenhuma lei vai obrigar tudo isso. É uma democracia. A gente depende da democracia, uma lei que possibilita que quem quer, faça, mas que dentro da Igreja, da comunidade, eu possa ser contra, orientar meus fiéis. Mas politicamente é tudo irrelevante. A gente não está discutindo de fato o que leva a morte das pessoas, que é a pobreza, que é a economia.

BBC News Brasil - Afinal, a Igreja tem alguma orientação no sentido de que os fiéis não votem em candidatos que defendam questões que vão contra a doutrina da própria Igreja? Um católico deve escolher o político conforme o catecismo?

Simões - Papa Francisco, quando veio ao Brasil [em 2013], na entrevista ocorrida no avião um jornalista perguntou para ele se ele não ia falar contra o aborto. Ele respondeu que todo mundo já sabe que a Igreja é contra o aborto e não precisamos repetir isso à exaustão. Todos os assuntos são muito complexos. A Igreja é contrária a essas pautas, mas se você vai votar ou não em candidato que defende essas pautas, é outra questão.

Tem muito padre dizendo que católico não pode participar de partido de esquerda. Mas o cristão, em geral, é chamado a ser missionário, a viver o evangelho. O missionário está em todo lugar que possibilite a fala. Muitos cristãos vêm conversar e se manifestar dizendo que pela fala de alguns padres, católicos não podem participar de partidos de esquerdas porque estes são comunistas.

Primeiro precisa definir o que é comunismo e o que são comunistas. Porque se você pega os Atos dos Apóstolos [livro do Novo Testamento, que narra os acontecimentos vividos pelos primeiros seguidores de Jesus logo após a morte dele], a proposta da Bíblia é comunista. Até mais radical. Por exemplo, Maria no Magnificat [cântico cuja autoria é atribuída à mãe de Jesus, conforme citação no Evangelho de Lucas] fala não só para colocar comida nas mesas dos pobres como para despedir os ricos de mãos vazias.

O comunismo não chegou a isso. Então Maria era mais comunista do que eles. O cristão católico — e a doutrina da Igreja vai nesta linha — é sobretudo um missionário. O missionário fala em todos os espaços em que é permitida a fala. Ele só não deve estar nos espaços onde a fala é tolhida. E aí temos bons cristãos católicos e de outras denominações religiosas, de outras igrejas, que militam tanto em partidos de esquerda quanto em partidos de direita. Não sei se os de extrema-direita são cristãos de verdade, mas de direita a gente conhece.

"Quando você traz a pauta de costumes, fala que um candidato é a favor do aborto, fala que um candidato vai colocar banheiro unissex nas escolas, fala essa bobeira toda, essas fake news de grupos de WhatsApp, você não discute as grandes questões do país", diz Simões (Getty Images)

BBC News Brasil - Ou seja: para ter liberdade de fala, é preciso democracia…

Simões - Vejo como pauta fundamental a questão da democracia versus autoritarismo, inclusive dentro dos partidos. Porque uma coisa é você militar ou votar para candidatos ou partidos que têm uma pauta que não contempla as propostas da Igreja Católica, mas que lá dentro é um partido democrático, permite a discussão, a conversa, vai ouvir a sociedade. Outra coisa é você estar em um partido que também defende pautas contra a Igreja Católica, ou não defende pauta nenhuma, e que impõe um modelo, não permite a discussão. Onde é possível conversar, discutir, é fundamental que o cristão católico esteja presente e leve sua contribuição.

BBC News Brasil - E o aborto, padre?

Simões - Quando a gente fala da pauta de aborto, a gente tem uma sensação que os movimentos chamados pró-vida foram captados por uma extrema-direita. Por quê? Eles se contentam em dizer que são pró-vida só defendendo que as pessoas nasçam, mas eles não defendem a vida dos que já nasceram. E o papa Francisco, em uma exortação apostólica sobre a santidade, ele fala que os cristãos devem defender de forma clara e apaixonada a vida dos nascituros, mas também defender com a mesma ênfase a vida de todos os que já nasceram e que se debatem na pobreza. Então ser cristão pró-vida não é só ser contra o aborto. Mas a gente não pode ser ingênuo de entrar nessa questão porque muitas vezes essas pautas são cortina de fumaça para desviar o assunto do que é essencial.

Simões: "Nenhum ser humano tem o direito de pensar na hipótese de tirar a vida do outro. Questiono a humanidade dessas pessoas" (Getty Images)

BBC News Brasil - Podemos dizer então que é mais interessante para o cristão estar em um lado político em que haja debate do que estar em um campo que simplesmente vete o que for contrário à doutrina católica?

Simões - Exato. Podendo expor seu ponto de vista, debater, conversar, ouvir o contraditório, a ciência. A grande defesa que o evangelho faz é a defesa da vida, sempre. E às vezes tem discurso que pode parecer pró-vida mas, na verdade, não redunda na vida. Tudo isso é importante de ser ouvido. Por isso o debate é importante. É a história: Jesus debateu com todo mundo, conversou com fariseus, pecadores, com todos. […] É uma mesa na qual cabe todo mundo.

BBC News Brasil - E o que justifica um cristão defender o armamentismo, o porte de armas? Não é contra o evangelho?

Simões - Eu diria, e esta é uma posição minha, que defender porte de armas é um absurdo do ponto de vista humano. Nenhum ser humano tem o direito de pensar na hipótese de tirar a vida do outro. Questiono a humanidade dessas pessoas. Quem defende o porte de armas está se desumanizando. Esta é a primeira questão. Se a gente vai falar com gente conservadora que defende o porte de armas, é preciso lembrar o quinto mandamento: não matar. Olha, você vai matar outra pessoa para defender sua propriedade? Você mata e vai para o inferno em seguida, isso é muito tranquilo para mim, não tenho dúvidas.

"No futuro, a divergência entre os cristãos não seria mais entre evangélicos e católicos, mas entre fundamentalistas e progressistas dos dois campos", opina Simões (Getty Images)

BBC News Brasil -Bolsonaro tem origem católica e se diz católico, mas frequenta cultos evangélicos e, em geral, aparece muito mais ao lado de pastores evangélicos do que no meio católico. A pauta dele é evangélica ou católica? Tem diferença?

Simões - A pauta dele é dele. Da extrema-direita. Onde dá voto ele vai.

BBC News Brasil - Essa postura dele e de seus seguidores tem acirrado a rivalidade entre católicos e evangélicos no Brasil?

Simões - Li em 2019, não me lembro quem falou, que no futuro a divergência entre os cristãos não seria mais entre evangélicos e católicos, mas entre fundamentalistas e progressistas dos dois campos. Claro que acaba existindo esse discurso contra evangélicos, que a gente faz até meio sem querer, mas, por outro lado, estamos muito próximos dos campos evangélicos progressistas, embora eles sejam minoria. Nas próprias igrejas, se um pastor se posiciona contra Bolsonaro, muitas vezes ele é tirado do ministério. Enfim, são minoria e sofrem muita retaliação. Quando falamos em campo evangélico no Brasil, a gente tem de tomar cuidado. Não é homogêneo. […] E todos esses pastores midiáticos que estão com Bolsonaro, eles estiveram com Lula e com Dilma.

BBC News Brasil - Têm uma relação fisiológica com o poder?

Simões - Exato. Bolsonaro tem o projeto dele. E essas igrejas têm o projeto delas. Isso é muito sério. Mas a discussão é a divergência entre progressistas e fundamentalistas.

BBC News Brasil - Até dentro da Igreja Católica?

Simões - Claramente.

"É muito fácil chamar todo mundo de comunista. Sobrou até para o cardeal dom Odilo, que, aliás se defendeu muito bem. Achei a fala dele muito boa, alertando para o crescimento do nazifascismo no Brasil" (Getty Images-

BBC News Brasil - Nos últimos 10 dias, houve uma nota crítica da CNBB ao uso político da religião, a confusão da visita de Bolsonaro e seus apoiadores à Basílica de Aparecida, um padre no Paraná que teve a missa interrompida por um bolsonarista e o cardeal de São Paulo atacado nas redes sociais por conta da cor vermelha de suas vestes litúrgicas. Como se manifestar sem ser taxado de partidário? Qual a orientação da CNBB neste contexto?

Simões - Historicamente, a religião cristã como um todo sempre se pautou por uma mística. Então aquilo que fortalece o cristão militante, que clareia suas posições, é ter uma mística. Vai muito além de ter momentos de oração e de reflexão, mas inclui também isso.

É conhecer o evangelho, ter familiaridade com isso, dar espaço para a palavra de Deus, a meditação, a participação da comunidade na sua vida. Nos seus posicionamentos, neste momento de segundo turno, está necessariamente o apoio não a um dos dois candidatos e projetos, mas às causas de suas propostas.

Eu não defendo o Lula pelo Lula. Não defendo o PT pelo PT. Defendo porque, a meu ver, neste momento, ele apresenta uma proposta que tem mais a ver com o evangelho. É mais coerente do que o outro candidato, que é católico, mas é tudo ao mesmo tempo e tem uma incoerência muito grande, por exemplo, quando fala da família tradicional. Ele pode representar a família tradicional de qualquer um, menos a minha, que e tradicional. Eu não tenho aquele perfil de família.

E são muitas contradições. O essencial do evangelho é o pobre. Nossa defesa é dos pobres, dos empobrecidos. E também as pautas em relação a minorias. Mas a defesa do pobre, em geral, porque os pobres são o centro do reino de Deus. E volto para o Magnificat, "derrubou dos seus tronos os poderosos, exaltou os humildes, saciou de bens os famintos, despediu os ricos de mãos vazias". É muito fácil chamar todo mundo de comunista. Sobrou até para o cardeal dom Odilo, que, aliás se defendeu muito bem. Achei a fala dele muito boa, alertando para o crescimento do nazifascismo no Brasil. Este é o modus operandi, essa violência extremista.

Edison Veiga, repórter, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 19.10.22. Publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63292458

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Caso Jefferson prova que Bolsonaro é mal maior

Bolsonarista jogando granadas contra a polícia é algo que assusta o eleitor moderado

O ataque do ex-deputado federal Roberto Jefferson à Polícia Federal é tudo o que Bolsonaro não precisava neste final de campanha eleitoral. Os obstáculos que o presidente teria de superar para reeleger-se nunca foram pequenos.

Na prática, ele precisaria não apenas atrair para si a maior parte dos eleitores que ficaram órfãos dos candidatos eliminados no primeiro turno como também tirar alguns votos do petista, o que é infrequente, ainda que não impossível. As cenas protagonizadas pelo manda-chuva do PTB recentemente convertido num aliado paroxístico de Bolsonaro atrapalham bastante essa tarefa.

De um modo geral, a base mais fiel de apoiadores é aquela que o candidato mais pode maltratar numa campanha. Mesmo que Lula convidasse João Amoêdo para ministro da Fazenda, os petistas não teriam muita alternativa que não votar no ex-metalúrgico. E, se essa é uma realidade no mundo todo, ela é ainda mais intensa no Brasil, onde o voto é obrigatório. É que nas nações em que ele é facultativo, o candidato precisa não apenas ganhar novos adeptos como também motivar sua base a sair de casa para votar. Aqui, essa segunda parte, que dá maior poder de influência à coorte dos mais fiéis, é muito menos necessária.

Meu ponto é que a extrema direita, que vê a atitude de Jefferson como resistência heroica a uma suposta ditadura do STF, não deixará de votar em Bolsonaro porque o presidente tenta distanciar-se do aliado. Vejam que Bolsonaro hesitou muito pouco antes de chamá-lo de bandido. O problema é que o fato em si, isto é, um bolsonarista extremado e armado jogando granadas contra a polícia, é algo que assusta o eleitor moderado que até aqui evitou ambos os candidatos e tenta decidir qual deles representa o mal menor. Bolsonaro, pelo discurso belicoso que estimula esses ataques, pela facilidade com que trai aliados e pelo descompromisso com as instituições, prova que é o mal maior.

 Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…"Publicado originalmente em 24.10.22, às 14h30.

Do que o bolsonarismo é capaz

O bolsonarismo ameaça o respeito à lei, a integridade das instituições, a liberdade política e a paz social. Se alguém ainda tinha dúvidas, Roberto Jefferson desenhou para o País 

O ex-deputado Roberto Jefferson mostrou do que o bolsonarismo é capaz. Seu ataque a policiais federais que foram a sua casa para prendê-lo, anteontem, não foi um ato isolado nem fruto de loucura: foi a consequência natural da escalada retórica violenta e golpista do presidente Jair Bolsonaro contra as instituições democráticas.

No 7 de Setembro do ano passado, convém recordar, Bolsonaro declarou que, “qualquer decisão do Alexandre de Moraes, este presidente não mais cumprirá”, referindo-se ao ministro do Supremo Tribunal Federal responsável pelo inquérito que apura o financiamento e a organização de atos bolsonaristas contra a democracia. E acrescentou, em seu dialeto bronco: “Dizer aos canalhas que eu nunca serei preso”, sugerindo que resistiria a uma eventual ordem de prisão.

Pois bem: em perfeita sintonia com seu líder, Roberto Jefferson, que estava em prisão domiciliar no âmbito da ação penal conduzida por Moraes, decidiu resistir a uma ordem de prisão emitida pelo ministro – e ainda avisou que o faria em vídeos que postou em redes sociais no momento em que a ordem estava para ser cumprida. “Eu não vou me entregar. Eu não vou me entregar porque acho um absurdo. Chega, me cansei de ser vítima de arbítrio, de abuso. Infelizmente, eu vou enfrentá-los”, declarou Jefferson enquanto se preparava para atacar os policiais. Ato contínuo, deu mais de 20 tiros nos policiais, ferindo dois deles, e ainda atirou granadas.

É improvável que isso tenha acontecido por acaso. Ao contrário: Jefferson, como bolsonarista exemplar, parecia ter um plano meticuloso. Primeiro, usou as redes sociais para violar, de modo deliberado, os termos de sua prisão domiciliar. Na ocasião, ofendeu a ministra Cármen Lúcia, do Supremo, porque ela votou no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a favor de decisões que, no entendimento de bolsonaristas, configuram censura. A estratégia é óbvia: sabendo que a violação de sua prisão domiciliar, de forma reiterada e insolente, teria resposta da Justiça, Jefferson provavelmente pretendia caracterizar essa reação como perseguição política e cerceamento da liberdade de expressão. É o estado da arte do bolsonarismo.

Os acontecimentos de domingo são gravíssimos em si mesmos, e Jefferson deve ser punido com todo o rigor da lei, sem qualquer hesitação. Mas o caso não se encerra com o encaminhamento do sr. Jefferson para a cadeia. Se o aspecto jurídico se limita à punição do ex-parlamentar, o escândalo político vai muito além.

Bolsonaro, depois de alguma vacilação, tratou de tentar se desvincular de Jefferson, ciente dos estragos potenciais em sua campanha, mas sua proximidade com o ex-deputado vai muito além de algumas fotos dos dois juntos, que o presidente jurava não existirem. Essa proximidade é a única explicação possível para o fato inaceitável de que Jefferson teve tratamento privilegiado da Polícia Federal mesmo depois do ataque a tiros e granadas do ex-deputado contra policiais. Está documentada, em vídeos e testemunhos, a cordialidade com que Jefferson foi tratado – nem algemas lhe puseram. Para culminar, a negociação para a rendição de Jefferson contou com a presença do ministro da Justiça em pessoa, despachado pelo presidente Bolsonaro para cuidar do caso, como se se tratasse de um preso especialíssimo – e não de um criminoso comum. 

Seja como for, a tentativa de Bolsonaro de se afastar do caso é inútil. O episódio todo está prenhe de bolsonarismo, em suas múltiplas dimensões – das quais o uso de armamentos contra agentes da lei é apenas o mais vistoso. Enquanto o presidente da República, por mero cálculo político, aparentava abandonar seu aliado fiel, os fanáticos camisas pardas bolsonaristas nas redes sociais procuravam maneiras de justificar a barbárie, sempre em nome da defesa da “liberdade” e contra o que o próprio presidente chamou de “estado ditatorial” promovido pelo Supremo e pelo TSE.

Não há como ignorar. Na Presidência da República, Jair Bolsonaro é um altíssimo risco para o respeito à lei, para a integridade das instituições, para a liberdade política e para a paz social. Se alguém ainda tinha dúvidas, Roberto Jefferson desenhou para o País.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 25.10.22, às 03h00

Bolsonaro pode responder por crime eleitoral caso não prove denúncia de fraude

A acusação foi feita por Fabio Faria em uma coletiva de imprensa, no Palácio da Alvorada, cuja convocação seria para "acompanhar a exposição de um fato grave"


Fábio Faria, Ministro de Bolsonaro

O ministro Fabio Faria, das Comunicações, acusou, ontem, que a campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) está sendo prejudicada com uma quantidade menor de inserções de rádio. Segundo ele, seriam 154 mil a menos que a do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nas últimas duas semanas. Faria anunciou que estava remetendo a documentação reunida ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para cobrar o restabelecimento da isonomia entre os dois candidatos.

Porém, depois da apresentação dos supostos dados levantados por uma auditoria particular contratada pelo comitê de Bolsonaro, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, deu prazo de 24 horas para que sejam apresentadas provas que comprovem os números apresentados por Faria. Caso as acusações não sejam comprovadas, a coligação do presidente poderá ser enquadrada em crime eleitoral.

"Os fatos narrados na petição inicial não foram acompanhados de qualquer prova e/ou documento sério, limitando-se o representante a juntar um suposto e apócrifo 'Relatório de Veiculações em Rádio', que teria sido gerado pela empresa 'Audiency Brasil Tecnologia'", aponta o ministro.

Moraes cobra, ainda, o detalhamento das informações que embasariam as acusações de Fabio Faria. "Nem a petição inicial, nem o citado relatório apócrifo indicam eventuais rádios, dias ou horários em que não teriam sido veiculadas as inserções de rádio para a Coligação requerente; nem tampouco a indicação de metodologia ou fundamentação de como se chegou à determinada conclusão", destacou Moraes.

Coletiva

A acusação de Fabio Faria foi feita em uma coletiva de imprensa, no Palácio da Alvorada, cuja convocação seria para "acompanhar a exposição de um fato grave". Ao lado de Fabio Wajngarten, coordenador de comunicação da campanha de Bolsonaro, o ministro das Comunicações disse que uma auditoria constatou que as rádios, principalmente da Região Nordeste — onde Lula lidera com folga a corrida eleitoral —, não estão exibindo as propagandas encaminhadas pela campanha do presidente.

O ministro acusou que a maioria das rádios que "censuram" Bolsonaro estão na Bahia — onde Lula teve 69,73% dos votos no primeiro turno e o presidente, 24,31%. Segundo Faria, o petista tinha três em quatro inserções nas rádios. A auditoria teria apurado que não foram exibidos, durante 14 dias do segundo turno, 154 mil propagandas de Bolsonaro. De acordo com Faria, isso equivale 1.234 horas de programação.

Wajngarten classificou o episódio como "censura" e afirmou que a equipe de mídia vai revisar a prática desde o primeiro dia do primeiro turno. As inserções são pequenas propagandas de 30 segundos, durante a programação normal das emissoras de rádio e televisão.

O promotor de Justiça e promotor eleitoral Wesley Machado explicou que, caso uma emissora de rádio ou tevê não exiba uma propaganda eleitoral, pode sofrer graves consequências. "Inclusive a suspensão da programação normal, conforme prevê resolução do Tribunal Superior Eleitoral. A depender das circunstâncias do caso, pode se estar diante de uma hipótese de uso indevido dos meios de comunicação social", explicou.

Para o cientista político Valdir Pucci, a denúncia deve ser investigada pela Justiça Eleitoral e, caso comprovada, a emissora que descumpre a lei deve ser punida. "Não acredito em suspensão do segundo turno por uma denúncia que ainda será apreciada pela Justiça. E não há previsão legal de suspensão de eleição neste caso, apenas a punição dos envolvidos", disse.

A acusação feita por Faria vem em um momento de desgaste para a campanha de Bolsonaro com o ataque do ex-deputado Roberto Jefferson contra uma equipe de agentes da Polícia Federal, que foram levá-lo para regime fechado de prisão por violar as regras da detenção domiciliar. Além disso, pesquisa de intenção de votos do Ipec, divulgada ontem, mostra que Lula tem 50% contra 43% do presidente.

Fernanda Strickland e Gabriela Ornelas, as autoras deste texto, são jornalistas. Publicado originalmente pelo Correio Braziliense, em 25.10.22, às 03h55.

O STF e a proteção do voto: uma ADPF à procura de um autor

 Impressiona que o afastamento tenha ocorrido "a despeito de ainda não haver denúncia oferecida", conforme voto da ministra relatora.

Lênio Streck na tribuna do STF

1. O caso do governador Paulo Dantas

No dia 11 de outubro último, o governador alagoano Paulo Dantas (MDB) foi afastado cautelarmente do cargo em razão de uma decisão concedida pela ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça. Dantas é candidato à reeleição, tendo sido cumpridos nada mais do que 30 mandados de busca e apreensão. Em pauta, acusações de peculato e lavagem de dinheiro que seguem tramitando nos autos do Inquérito 1.582.

Em nota, MPF e PF afirmaram que a "necessidade e a urgência das medidas cautelares foram amplamente demonstradas nos autos da investigação policial", mas, segundo a Folha de S.Paulo, os fatos investigados remontam à época em que Dantas era deputado estadual (aqui). Bom, de pronto, há um fato: Dantas assumiu o governo em maio. Não há nesse inquérito fatos sobre esse período do novo cargo.

Por maioria de votos, a Corte Especial do STJ referendou a decisão em 13/10 (aqui e aqui). Impressiona que o afastamento tenha ocorrido "a despeito de ainda não haver denúncia oferecida", conforme voto da ministra relatora.

Eis um resumo: candidato afastado 19 dias antes do segundo turno e uma operação lastreada em nenhuma denúncia por parte do Ministério Público. O mérito, em si, não me interessa discutir. Quero falar do problema da inserção do Poder Judiciário nessa seara: o voto popular às vésperas do pleito.

O governador é a figura diretamente prejudicada — foi para o segundo turno com larga margem de votos.

Porém, penso que o maior derrotado, ainda, foi o que levou uma goleada: a instituição do Ministério Público. Dono da ação penal? Dominus litis? Como assim? Lembro-me do primeiro ato de controle de constitucionalidade feito no Brasil, no dia 6 de outubro de 1988. Fui eu. Em uma comarca do interior do RS. Para dizer, em alto e bom som que o MP era o dominus litis [1]. Passados mais de 34 anos, percebo que estava enganado. O MP abriu mão de suas prerrogativas. Em nome de quê?

Explico. O MP concorda que a polícia federal peça o afastamento de um governador. O STJ afastou um governador com base em inquérito. Sem denúncia. Nos casos de afastamento anteriores que se encaixam no precedente citado (QO na AP 970-DF), todos tinham denúncia. Aqui, portanto, o precedente não se encaixa(ria).

De todo modo: não há polícia federal que atua especificamente junto ao STJ. Só o MP. Trata-se do foro por prerrogativa de função. Essa garantia é do povo e não dos governadores. Logo, só o MP — que atua junto ao STJ — poderia pedir o afastamento de um governador. A PF não tem atribuição para tal. O MP achou normal que a polícia assumisse o seu lugar. Vai se saber as razões dessa autofagia... Como dizia o velho "conselheiro", as consequências sempre vêm depois.

Abstraindo o resultado em si, vale salientar o essencial: a suspensão do mandato do governador interfere diretamente nas eleições. Veja-se, nesse sentido, a reportagem do UOL que aponta nesse sentido — e isso a partir de opiniões de ministros da mais alta corte, segundo a jornalista Mônica Bergamo (aqui).

Sem pretender exaurir essa discussão levantada pela jornalista e por parte da comunidade política e jurídica, cumpre refletir sobre a razão pela qual tudo ocorreu pouco antes do segundo turno e que disso não se conclua que nenhuma investigação possa ocorrer neste período. Qual seria a urgência?

Todavia, a questão é outra: será que uma decisão dessa magnitude não trará consequências para o contexto eleitoral? Será que foi adequada?

De novo: passados mais esses dias, ainda não há denúncia. Note-se: a ministra do STF, Rosa Weber, negou pedido do governador para retornar.

Eis a questão posta.

2. Uma pequena genealogia

Pois olhemos para o retrovisor para compreendermos uma resposta e uma solução para o que o expus.

Apurando acontecimentos de 2014 — cuja investigação terminou em 2016 — uma prisão temporária foi imposta ao ex-governador Beto Richa em pleno trâmite eleitoral de 2018. Liderando as pesquisas, foi destroçado por uma decisão judicial. Que redundou em nada. Mas era tarde. Seu mandato se esfumaçou. Também escrevi sobre o caso mais de uma vez [2].

Enfim enfrentando a (in)adequação e as consequências de decisões que imponham medidas midiáticas em pleno processo eleitoral, respondo sem qualquer dúvida: o Direito não está a nossa disposição e torna-se importante compreender que quando o assunto é eleição, minar o processo eleitoral será sempre uma decisão inadequada, a não ser um caso de plena e grave flagrância delitiva.

Expor um candidato a acusações que não vão ser brevemente resolvidas inexoravelmente será algo que mudará a equação dos votos do eleitor.

Nem preciso falar da divulgação dias antes das eleições de 2018 de delação (bichada) de Palocci.

Tampouco necessitamos trazer à baila o caso Marconi Perillo.

Interessante: todos os presos e suspensos de suas funções perderam as eleições que disputavam. Claro. Por isso, precisamos falar sobre essa relação voto x decisão judicial.

3. Uma solução possível — o que fazer?

Penso que medidas dessa gravidade não poderiam jamais dispensar denúncia e pedido do MP. É o mínimo que se exigiria para salvaguardar pleitos eleitorais.

Afastar um governador ou um prefeito alguns dias antes da eleição pode ferir gravemente o princípio democrático e também a vontade popular. Ou seja: influencia indevidamente na vontade popular. E isto é fundamental que se compreenda.

Diante de tudo: exsurge a necessidade de o voto ser protegido e daí porque de estarmos diante de um caso de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Cabe ao Supremo proteger o devido processo eleitoral de forma urgente. Uma ADPF à procura de um autor. Claro que o parlamento deve agir também.

Vários preceitos fundamentais estão sob violação: a vontade popular (veja-se que até mesmo um eleitor não-candidato não pode ser preso três dias antes da eleição). A ratio é proteger o voto popular. Por analogia, o que podemos dizer sobre prender um candidato ou o afastar do cargo 15, 20 ou 30 dias antes do pleito?

Todavia, ainda no que diz respeito a jurisdição constitucional, importantíssimo frisar este ponto de uma possível APDF: cabe ao Supremo Tribunal Federal resguardar o devido processo eleitoral. Afinal, sempre corremos o risco de a polícia ou o MP levarem ao judiciário, dias antes do pleito, investigações seletivas. A democracia não pode ser transmudada em um espetáculo.

Por conseguinte, torna-se importante que o próprio Judiciário reconheça seu papel de garantidor do processo eleitoral; e em face disso deve o STF evitar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público. In casu, reparar lesão que atingiu a vontade popular, que foi resultado de decisão proferida pelo STJ e que sequer possui respaldo numa denúncia do Ministério Público.

Quer dizer que nunca o Judiciário deve interferir no processo político? Não. O Judiciário deve, sim.

Só que é o Direito que controla a política, não o contrário. Sou o primeiro a sustentar isso.

O que estou dizendo é que uma decisão drástica como a que afastou o governador de Alagoas não está vedada se o governador estivesse burlando a lei eleitoral em plena eleição. Ainda assim, há que cuidar, uma vez que sempre é possível cassar uma chapa depois de eleita.

Portanto, é óbvio que não se pode burlar a lei eleitoral para vencer uma eleição. Mas também não é recomendável, cautelarmente (portanto, provisoriamente), tomar medidas dias antes da eleição cujas consequências, querendo ou não, sempre são nefastas para o candidato afastado ou preso. Que o digam Beto Richa e Perillo. E tantos outros.

Por tudo isso necessitamos de uma ADPF para que o STF diga que no mínimo 30 dias antes das eleições operações desse tipo não podem acontecer. Afastamentos e coisas do gênero só se decorrerem de flagrante.

Para preservar o voto popular. Afinal, todo poder emana do povo.

[1] Ver meu livro Trinta anos de Constituição em trinta julgamentos: uma radiografia do STF. Gen Forense, 2019.

[2] Por todas elas, conferir: https://www.conjur.com.br/2018-set-13/senso-incomum-comum-casos-richa-haddad-advogada-algemada

Lenio Luiz Streck, o autor deste artigo, é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados. Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 24.10.22, às 15h28

Contra ataques ao STF, ex-presidente José Sarney declara voto em Lula

O ex-presidente José Sarney, que governou o Brasil entre 1985 e 1990, decidiu declarar publicamente o voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições presidenciais, contra Jair Bolsonaro (PL).

Ex-presidente José Sarney sai em defesa do Supremo e declara voto em Lula no 2º turno

Em texto publicado em seu site, Sarney deixou claro que um dos motivos para a sua escolha é a necessidade de defender o Supremo Tribunal Federal. Ele afirmou que raras vezes se viu um ataque tão sistemático do Executivo contra o Judiciário.

"A partir da transição democrática, a Corte Suprema consolidou-se como o mais importante símbolo do Estado brasileiro, por caber-lhe sobretudo a defesa daquilo que nossa Constituição tem de melhor: a garantia dos direitos — individuais, coletivos, difusos, sociais", diz trecho da manifestação de voto. 

Essa não foi a primeira vez que o ex-presidente se pronunciou sobre os ataques de Jair Bolsonaro e seus aliados a ministros do STF. Na última sexta-feira (21/10), Sarney afirmou que a corte nunca faltou à nação e que sem um Supremo forte não há democracia.

Leia abaixo a íntegra da declaração de voto de Sarney:

"Quando, em janeiro de 1985, Tancredo Neves e eu fomos eleitos por um grande acordo da sociedade, tínhamos muito claro um compromisso: a transição para a democracia. A partir da eleição é que, no espaço cedido pela Fundação Getúlio Vargas, começou-se a detalhar números e tarefas. Antes de janeiro a tarefa não apenas era impossível por não dispormos dos dados reais sobre o funcionamento do governo, mas sobretudo porque a dimensão do que se decidiria na eleição era política e institucional, num nível superior de decisão: estava em jogo o Estado Democrático de Direito, o futuro da Nação.

Estamos, neste momento, numa situação que tem desafios semelhantes. Disfunções dos Poderes aconteceram de tempos em tempos, mas raras vezes se viu o ataque sistemático do Executivo contra o Judiciário. Ora, guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal se transformou, ao longo das gerações, no ponto de equilíbrio do nosso sistema político. O desacato de Floriano Peixoto, nos primeiros dias da República; a intervenção de Getúlio Vargas, acompanhando os Estados concentracionários europeus; o regime militar, manipulando sua composição para controlá-lo, foram momentos breves, registros inglórios de tempos sombrios. A partir da transição democrática, a Corte Suprema consolidou-se como o mais importante símbolo do Estado brasileiro, por caber-lhe sobretudo a defesa daquilo que nossa Constituição tem de melhor: a garantia dos direitos — individuais, coletivos, difusos, sociais.

O atual contrato 'secreto' entre o Executivo e o Legislativo, fixado em valores agigantados diante dos parcos recursos do Orçamento da República, é campo privilegiado para os interesses escusos. A minoria, esmagada de uma forma que não se via desde o princípio do Império — lembro que nos períodos de exceção não há maioria ou minoria —, tem como única defesa apelar para que o Judiciário faça o que não é sua função e interfira no funcionamento do Congresso Nacional.

Um aspecto tenebroso dos movimentos políticos é sua globalização. Desde a Antiguidade as estruturas das nações assumem formas paralelas. Um exemplo é a proximidade das figuras de Trump, Orbán, Putin, Bolsonaro. Uma de suas marcas é a proliferação das fake news. Outras a xenofobia, o racismo, a divisão da sociedade. Assim se hostiliza, agora, os nordestinos, os pobres, como se fossem brasileiros inferiores. Isso atenta contra todos os princípios democráticos e até éticos. É a guerra contra a democracia, o demos, o povo.

No próximo domingo, o eleitor decidirá se vota pelo fim da democracia ou por sua restauração. Esse voto não é para quatro anos de governo: é um voto para o destino do Brasil. O voto em Bolsonaro é voto contra as instituições, que terá como consequência anos de autocracia, um regime de força, construído na mentira sistemática e no abuso do poder. O voto em Lula — que já tem seu lugar na História do Brasil como quem levou o povo ao poder e como responsável por dois excelentes governos — é voto pela democracia, pela volta ao regime de alternância de poder, pela busca do Estado de Bem-Estar Social. A diferença é clara.

No mesmo espírito dos que construíram em torno de Tancredo Neves a Aliança Democrática, reunindo um amplo espectro de homens públicos, agora congregamos em torno do Presidente Lula os homens de maior responsabilidade do País para formar uma nova união pela democracia. É a esperança que nos convoca".

Publicado no Consultor Jurídico, em 24.10.22, às 21h44

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Luiz Galvão, poeta e fundador dos Novos Baianos, morre aos 87 anos

Amigo de João Gilberto, artista foi responsável por escrever a maioria das letras das músicas gravadas pela banda


O escritor e letrista Luiz Galvão, ex-integrante dos Novos Baianos, em foto de 1997 - 
Xando Pereira/Folhapress

Novos Baianos em roda de samba no sítio em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, nos anos 1970 Arquivo Nacional

Poeta, principal letrista e fundador dos Novos Baianos, Luiz Galvão morreu aos 87 anos na noite deste sábado (22). Ele estava internado no InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), na cidade de São Paulo, onde se recuperava de um infarto. A cerimônia de cremação acontece nesta segunda (24), na capital paulista.

A morte, cuja causa não foi divulgada, foi confirmada por seu filho, Lahirí Galvão, e por Caetano Veloso, além da companheira de banda Baby do Brasil, todos no Instagram. "Vá em paz, meu papai!", escreveu Lahirí.

Baby do Brasil afirmou que nos últimos anos Galvão enfrentou diversos problemas de saúde. Ela também escreveu sobre sua relação com o artista. "Vivemos tantos anos juntos, em grupo, morando no sítio Cantinho do Vovô, na Cobertura de Botafogo e em outros endereços. Totalizamos dez anos de vida juntos. Tivemos esse privilégio, de estarmos sob o mesmo teto, vivendo uma experiência única e intransferível."

Ela se lembrou de músicas que ele escreveu para que ela cantasse, como "A Menina Dança" e "Tinindo Trincando", duas das mais conhecidas na voz da cantora. "Nos tornamos uma família, desde 1969, quando começamos. Investimos com extrema dedicação no propósito de fazermos uma música, genuína, com as melhores influências de todos os tempos e sobretudo brasileiríssima!"

Caetano Veloso, que compôs com Galvão "O Farol da Barra", também se despediu do amigo. "Galvão criou e liderou o grupo Novos Baianos, acontecimento que se coloca entre os que mudaram o rumo da história do Brasil. Sendo de Juazeiro, atraiu João Gilberto para a casa coletiva em que viviam os membros do grupo. E isso definiu o caminho rico que se pode resumir no álbum 'Acabou Chorare', mas que se desdobrou em muito mais. Vamos sentir saudade dele —e também celebrar a peculiaridade de sua pessoa."

Nascido em Juazeiro, na Bahia, Luiz Galvão se formou em agronomia, ramo em que trabalhou por alguns anos antes de conhecer em Salvador Moraes Moreira, morto em 2020, e Paulinho Boca de Cantor. Torcedor do Vasco, ele também jogou futebol profissional na cidade natal.

Galvão e Moreira moravam na mesma pensão na capital baiana, onde criaram os Novos Baianos, um dos grupos mais importantes e criativos da história da música brasileira. A banda incorporou Pepeu Gomes e Baby do Brasil, que, à época, era chamada de Baby Consuelo.

O grupo estreou em 1969 no Quinto Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, e lançou seu primeiro álbum, "É Ferro na Boneca", no ano seguinte. Mas foi em 1972, após um encontro com João Gilberto, quando já moravam no Rio de Janeiro, que os Novos Baianos marcam a história da MPB com o álbum "Acabou Chorare".

O disco, que tem no repertório faixas marcantes como "Mistério do Planeta", "Preta Pretinha" e "A Menina Dança", além da faixa-título, vendeu 100 mil cópias e se tornou um clássico no cancioneiro brasileiro. Galvão é autor das letras de todas essas canções, musicadas por Moraes Moreira. A dupla formava o principal núcleo de composição da banda.

Livro escancara a intimidade tresloucada dos Novos Baianos nos anos 1970

No Rio, eles chegaram a viver como nômades, sem dinheiro e compartilhando as roupas, comendo e dormindo na casa de amigos, como narra o livro "Caí na Estrada com os Novos Baianos", de Marília Aguiar, ex-mulher de Paulinho Boca de Cantor.

Na época de "Acabou Chorare", os baianos já moravam juntos num sítio em Jacarepaguá na zona oeste do Rio de Janeiro chamado Cantinho do Vovô. Absorvendo as influências da contracultura que vinham no exterior, a banda, que mais tinha cara de coletivo, fez do local uma espécie de comunidade hippie, com futebol, samba, choro e rock and roll.

Moravam lá os integrantes da banda, incluindo os percussionistas Bola, Jorginho e Charles, suas namoradas ou esposas com os filhos, além de agregados. Era um ambiente criativo, onde o grupo compôs a maioria de seus sucessos, lançados nos anos 1970.

Também havia muito futebol. "Quando pintava dinheiro, iam até a lojinha do Nilton Santos comprar material para o time", disse Marília em entrevista à Folha. "Levavam tudo nas turnês. Tinham uma malinha de primeiros socorros com a inscrição Novos Baianos Futebol Clube. Tinha até massagista, que era um índio argentino que morava com a gente."

Foi naquele sítio que os Novos Baianos desenvolveram a influente mistura de de samba com choro, baião, bossa nova, guitarras de rock, psicodelia e a influência da tropicália. "As pessoas me perguntam: 'Que horas vocês ensaiavam?'. A vida era um ensaio", disse Moraes Moreira, em entrevista à Folha em 2016, afirmando que tinha ouvido uma adolescente dizer que o sonho dela era ter vivido no sítio com eles. "Falei: 'Tome juízo, menina. Você não sabe o que acontecia lá'."

"Acabou Chorare", álbum definitivo desta estética, passou ao longo dos anos a ser considerado uma das maiores obras da música brasileira. O álbum, aliás, é o primeiro da lista de 500 maiores discos da música brasileira, publicada em 2007 pela versão nacional da revista Rolling Stone.

No álbum "Novos Baianos F.C.", de 1973, Galvão e Moraes assinam outras faixas memoráveis. Entre elas estão "Só Se Não For Brasileiro Nessa Hora", "Quando Você Chegar" e "Com Qualquer Dois Mil Réis", uma colaboração de Pepeu Gomes.

Os Novos Baianos lançaram "Vamos pro Mundo" e "Novos Baianos", ambos de 1974, antes da saída de Moraes Moreira, que se deu no ano seguinte. Antes de chegar ao fim. a banda ainda fez outros três álbuns —"Praga de Baiano", de 1976, "Caia na Estrada e Perigas Ver", de 1977, e "Farol da Barra", de 1978.

O grupo depois se reuniu para shows comemorativos, como a turnê "Infinito Circular", de 1995, que rendeu um disco ao vivo homônimo. Mais recentemente, todos os integrantes fizeram parte da turnê "Acabou Chorare e os Novos Baianos se Encontram", de 2016. Galvão é o segundo integrante da banda a morrer, depois de Moraes Moreira.

Após o fim da banda, em 1978, Luiz Galvão se dedicou à carreira de escritor. Em 1997, lançou o livro "Anos 70: Novos e Baianos", em que discute a banda, incluindo seu encontro seminal com Moraes Moreira na pensão de Dona Maritó, em Salvador, em 1967. No lançamento da obra, os Novos Baianos chegaram a se reunir em um show para homenagear Galvão.

Mais recentemente, já com a saúde debilitada, Galvão comentou a obra de João Gilberto e detalhou sua relação com o amigo e pai da bossa nova em "João Gilberto, A Bossa", de 2021. O livro, que vinha sendo escrito desde 1999, teve a edição final feita pela mulher do poeta, Janete Galvão.

Galvão e João Gilberto se conheceram em Juazeiro, quando ainda eram crianças. O bossanovista teve suas primeiras aulas de violão com Dagmar, irmão do poeta, e acolheu os Novos Baianos quando eles foram ao Rio, no começo dos anos 1970.

Galvão conta no livro diversas histórias curiosas, como a ocasião em que João Gilberto, pouco familiarizado com a ideia de deixar dinheiro no banco, deu uma sacola cheia de notas e disse à mulher do poeta para comprar um carro. Ela reclamava que passava muito tempo no transporte público no trajeto entre sua casa e o trabalho.

"Ninguém nunca pedia. Ele sentia a situação. Era uma percepção misteriosa", disse Paulinho Boca de Cantor à Folha quando o livro foi lançado. "Quando ele nos visitava no apartamento dos Novos Baianos no Rio, logo dava muito dinheiro para que a gente comprasse comida no mercadinho 24 horas que tinha ali perto. Ele sempre se preocupou com o nosso jeito de viver."

"João Gilberto, A Bossa" também traz diversas histórias envolvendo o uso de drogas, principalmente a maconha, chamada pelo bossanovista de "Nelson". Num desses causos, surgiu a ideia da música "Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira", composta por Moraes Moreira.

Moraes Moreira, Baby do Brasil, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão em show da turnê 'Acabou Chorare os Novos Baianos se Encontram' - Marcus Leoni/Folhapress

O episódio se deu durante um passeio de carro de João Gilberto com alguns dos Novos Baianos. Eles pararam para ver o nascer do sol, quando o cantor de "Chega de Saudade" viu uma mulher elegante descer o morro onde estavam, e disse "lá vem o Brasil descendo a ladeira".

Galvão também é autor dos livros "Novos Baianos: A história do Grupo que Mudou a MPB", de 2014, e "Anos 80: A História de Uma Amizade na Década Perdida", de 2021.

Lucas Breda para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 23.10.22, às 09h45

Bolsonaro renega Jefferson e tenta vincular aliado a Lula e transformar ataque em gesto de apoio à PF

Presidente relembra mensalão e quer se distanciar de ex-deputado, que atirou e jogou granadas contra policiai

Para tentar negar vínculo com o dirigente do PTB, o presidente da República chegou a mentir e dizer que nem foto com ele teria, o que não é verdade.

O político de extrema-direita também foi recebido algumas vezes no Palácio do Planalto. De acordo com a agenda oficial, Bolsonaro teve reuniões com Jefferson ao menos duas vezes.

Jair Bolsonaro (PL) e seu entorno tentaram ao longo do domingo (23) afastar Roberto Jefferson (PTB) da imagem do presidente e fazer do episódio um gesto de apoio a policiais.

O aliado bolsonarista e político de extrema direita foi preso pela Polícia Federal depois de tentar resistir à ordem judicial, disparar mais de 20 tiros de fuzil e lançar duas granadas contra os agentes. Dois deles ficaram feridos, mas sem gravidade.

Jefferson, que já estava em prisão domiciliar, foi alvo da ação por determinação de Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal). Segundo o ministro, ele descumpriu medidas impostas pelo Supremo dentro de uma ação penal em que ele é réu por incitação ao crime e ataque a instituições.

Nas declarações ao longo do dia, Bolsonaro chamou o ex-deputado de bandido, e o ministro da Justiça, Anderson Torres, o classificou como "infrator".

Depois, tratou mais do assunto durante a sabatina da TV Record. Ele foi entrevistado sozinho porque o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não quis participar do que seria um debate da emissora.

"Nós não somos amigos, não temos relacionamento. E tratamento pra pessoas que são corruptas ou agem dessa maneira como Roberto Jefferson agiu, xingando uma mulher e também recebendo a bala policiais, o tratamento dispensado pelo governo Jair Bolsonaro será de bandido", disse o presidente.

Ao chegar à emissora, fez um pronunciamento a jornalistas, sem direito a perguntas, em que afirmou: "Não existe qualquer ligação minha com o Roberto Jefferson". Ele disse haver uma notícia-crime contra ele protocolada por Jefferson.

Bolsonaro chegou a chamar Jefferson de "advogado renomado", para em seguida dizer que os xingamentos contra a ministra Cármen Lúcia eram inadmissíveis.

"E depois quando chega ordem de prisão pra ele, não importa se é legal ou não, ele recebe policiais com tiro. Quem recebe policial com tiro é bandido", disse.

O chefe do Executivo também foi categórico ao vincular o aliado, que agora faz questão de tratar como ex, ao adversário petista, a quem acusou querer "tirar proveito" do episódio.

Bolsonaro tentou ligar Jefferson ao PT, retrocedendo ao escândalo do mensalão, que estourou em 2005, após entrevista em que delatou o caso à Folha.

Aliados seguiram o tom nas redes sociais e compartilhavam fotos, ao longo deste domingo, de Jefferson ao lado de Lula, no começo do governo do petista. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, foi um deles.

"Não tem uma uma foto dele comigo, nada", disse Bolsonaro na superlive que durou até a tarde de domingo.

Imagens dos dois juntos estão registradas e foram divulgadas pelo PTB, partido de Jefferson desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, em 2019.

Há diversas fotos deles, a exemplo das publicadas pelo PTB em abril e setembro de 2020. Nas redes sociais do ex-deputado, também há publicações com os dois, como uma foto publicada em abril de 2021.

Auxiliares do chefe do Executivo buscaram transformar o episódio envolvendo a prisão de Jefferson em uma demonstração de apoio de Bolsonaro aos policiais federais.

Alas da categoria chegaram a apoiá-lo mais fortemente no passado, mas com o tempo foram se distanciando. Bolsonaro trocou quatro vezes o diretor-geral da PF.

Assim, o gesto é, em grande parte, eleitoral. Ele busca se reeleger para a Presidência no próximo domingo (30), numa acirrada disputa contra o ex-presidente Lula.

Num gesto incomum, Bolsonaro chegou a ordenar que o ministro da Justiça, Anderson Torres, fosse ao local para acompanhar o caso e depois fosse visitar os policiais feridos. Ele ficou, contudo, em uma delegacia de Juiz de Fora (MG).

Interlocutores do chefe do Executivo disseram que sua ida era para defender a PF, uma vez que policiais foram atingidos. Torres comentou no Twitter, mais tarde, sobre o que chamou de sua solidariedade com os agentes feridos, chamou Jefferson de infrator e parabenizou a corporação pelo excelente trabalho.

Bolsonaro repetiu, durante entrevista à Record, que pediu ao ministro para que o político fosse tratado como bandido. "Ato contínuo determinei que ele fosse para o Rio de Janeiro conversar com os dois policiais e ver a situação de saúde dos policiais que sofreram ferimentos por parte de Roberto Jefferson".

Ainda na chegada à TV Record, o presidente condenou as ofensas de Jefferson à ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lucia, que a comparou a "prostitutas", "arrombadas" e "vagabundas".

Em seguida, Bolsonaro passou a enumerar situações em que "o tratamento não é o mesmo".

Bolsonaro citou situação como exemplo um episódio envolvendo a primeira-dama Michelle. "Também há poucos dias, a minha esposa, de Alagoas, foi atacada nas mídias sociais pela procuradora-geral Samya Suruagy como vagabunda. Então, essa questão de ódio não parte de nós. Muito pelo contrário", disse.

O presidente nega qualquer relação com o ex-deputado de extrema-direita, mas seu principal aliado nos debates do primeiro turno na disputa presidencial era o candidato do PTB, Padre Kelmon.

Neste domingo, ele foi à casa de Jefferson e entregou à Polícia Federal fuzis do ex-deputado de extrema-direita.

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Artur Rodrigues e Marianna Holanda, de São Paulo e Brasília para a Folha de S. Paulo, em 24.10.22, às 4h00

Do 23 ao 30: guia de sobrevivência

Caso haja debate, bote o alarme para o horário, faça pipoca, encha um copão de Coca Zero com gelo e limão e maratone 'Friends'

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 23 de Outubro de 2022, mostra o desenho de um casal jovem olhando um mapa em uma paisagem campestre. Ele usa uma roupa de escoteiro e ela carrega flores. Ao fundo, rastros de meteoros riscam o céu.

Sexta, 22h11, acabo de escrever a crônica de domingo. Releio e me descem mal palavras como "ditadura", "eletrochoque", "pedofilia". Deus do céu, Antonio, pra que isso? As pessoas já tão à beira de um ataque de nervos, você ainda vai jogar gasolina na fogueira?

Não. Joguei foi a crônica fora. De que adianta ganharmos as eleições domingo que vem se antes disso enfartarmos? Para sobrevivermos a estes sete dias, precisamos de palavras de outra ordem. Que tal "mar", "engatinhando", "pururuca", "Friends"?

O título da nova crônica vai ser, vejamos... "De 23 a 30 de outubro: guia de sobrevivência na travessia". Ou "Tocando a vida com leveza e alegria enquanto quase metade da população nacional embarca em nome de Deus e da família no apocalipse zumbi". Eita. Recomecei pra ser mais leve e a crônica já emborcou novamente. Voltemos à busca da tranquilidade possível.

Toda vez que abrir a internet e der com a cara do Bolsonaro, vá até o Google. Digite: "Bar+Grécia+beira+mar". Ou: "Fernando+de+Noronha+golfinhos". Ou simplesmente: "pururuca". Faça as mesmas buscas no YouTube. Ouça as ondas batendo sob o deck do bar grego ou o leitão pururucando como pipocas na panela. (Muita atenção pra não ler absolutamente nada que o YouTube te oferecer, ou transformar-se-á numa estátua de sal).

Toda vez que um amigo ou parente te ligar surtando "O que vai ser de nós?! O que vai ser de nós?!", mentalize: "Meu último check-up veio ok". Ou: "Tenho uma esposa (ou marido) ou namorada(o) ou conta no Tinder e isso significa que existe a possibilidade de eu fazer sexo nesta semana". Se tiver filho, vá ao rolo de fotos do celular e reveja uma imagem dele engatinhando. Pense: nem Hitler nem Stálin nem Pinochet evitaram que bebês aprendessem a engatinhar.

Procure se alimentar bem, hidratar-se, fazer esporte e, se possível, evite bebidas alcoólicas. Caso seja impossível, viva à base de cachaça com x-salada e de sobremesa vá de pudim de Frontal com Rivotril em calda.

Caso haja debate, bote o alarme para o horário, faça pipoca, encha um copão de Coca Zero com gelo e limão —e maratone "Friends". Concentrando-se na Phoebe. Tente entrar na Phoebe e ver o mundo através dos olhos dela. Compre um violão e aprenda a tocar "Smelly Cat". (Se vier o pensamento de que Joey talvez apertasse 22, mude para "Seinfeld". Ali, acredito, todos seriam Tebet no primeiro turno e Lula no segundo. Kramer, um caso clínico, não conta. Talvez fosse um ex-brizolista que votasse nulo desde a morte do Enéas).

Silencie todos os grupos de zap e, por maior que seja a tentação, não abra. Se preciso, atire seu celular na privada. Ou: baixe Tetris e sempre que passar por sua cabeça responder a um tuíte ensandecido sobre a ideologia de gênero comunista maconhista gayzista quilombolista do Paulo Freire, trate de respirar fundo e se jogar na ludoterapia.

Por fim: entre cada uma dessas atividades, converse com todos os conhecidos que acreditam que a Terra seja redonda e tente convencê-los de que mais quatro anos do energúmeno seriam uma tragédia maior do que qualquer petrolão imaginável.

É 00h24. Terminei a crônica. Google: "Bar+aberto+avenida+Paulista+30/10". Imagino-me ali, domingo, na comemoração pela vitória da democracia. Em cima de uma mesa. Uma mão dada com o Boulos e a outra com a Simone Tebet. Todos dançando cancan enquanto o Emicida canta, em parceria com a Fafá de Belém, o hino nacional.

Antonio Prata, o autor deste artigo, é escritor e roteirista. Autor de "Nú, de Botas". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 22.10.22, às 13h26

Os cofres públicos de Bolsonaro

Uso do dinheiro público para seduzir eleitorado tipifica crime

O presidente Jair Bolsonaro durante culto em Brasília - Gabriela Biló - 17.out.2022/Folhapress

É o cúmulo do atraso em uma sociedade que o futuro de um país com 156 milhões de eleitores, ou o futuro da mais influente potência mundial, seja subordinado à difusão de informações falsas. Cá e lá, essa nova arma antidemocracia encontrou adeptos e condições favoráveis como em nenhum outro país. Cá e lá, a direita mais desvairada domina, em número e falta de escrúpulos, o uso proveitoso dessa nova criminalidade que se sobrepõe até ao Estado perplexo e impotente.

Por aqui, não basta. A imoralidade predominante no poder de governo está em nível equivalente às republiquetas e tiranias mais indecentes, do passado e do presente. O uso do dinheiro público por Bolsonaro e Paulo Guedes, para seduzir segmentos do eleitorado, tipifica crime múltiplo. A começar por transgredir a proibição legal de medidas, no período eleitoral, favorecedoras do eleitorado a seduzir.

A notícia mais recente a respeito indica R$ 21 bilhões extraordinários já comprometidos desse modo. Mas o pacotaço lá atrás, que deslanchou o compartilhamento Bolsonaro-centrão, reuniu cerca de R$ 95 bilhões com destinação sempre conectada à produtividade eleitoreira. Além disso, são quatro anos em que Bolsonaro esteve ativo sem trabalhar como governante. Talvez tenha sido melhor assim, considerado o grau extremo de sua ignorância. E os propósitos. Sua atividade, porém, sempre de promoção pessoal, com viagens de diversão e de interesses sombrios (idas a Moscou e Hungria, por exemplo) é toda bancada pelos cofres públicos.

Custo alto o desses quatro anos de campanha bolsonarista ininterrupta e repleta de ilegalidades. Diante disso, as instituições que "estão funcionando" não funcionam. Tanto que são quatro anos de abuso desavergonhado —e nada que o detivesse, sem sequer lembrar as punições determinadas pelos códigos das instituições que "estão funcionando".

E quando um ou outro na Justiça Eleitoral, no Supremo, no Tribunal de Contas, um procurador, arma-se da sua hombridade e faz funcionar uma partícula das instituições que "estão funcionando" inertes é atacado pelos que não atacam a imoralidade, a corrupção, nem mesmo a mortandade criminosa de dezenas ou centenas de milhares dos nossos próximos.

Augusto Aras aciona o Supremo contra as exclusões de fake news determinadas por Alexandre de Moraes. Logo quem. Esse fugitivo das obrigações morais e legais acusa o presidente do TSE de se atribuir superpoderes, na contenção das redes. Aras é o clone de procurador-geral da República que não demonstra caráter nem para um parecer simplório sobre as conclusões da CPI da Covid, relato criterioso das patifarias comerciais e da pregação contra medidas protetivas da população na pandemia, inclusive com induções terapêuticas falsas. Aras é o próprio crime.

Precisamos dar-nos e dar ao nosso país a oportunidade que lhe faltou: sempre, de investigar e sentenciar os responsáveis dos horrores de tantos crimes contra a população e os bens nacionais, como a pandemia incentivada e a devastação amazônica. Esses crimes, não resultando na condenação dos autores e beneficiários, consolidam a condenação do país a dirigir-se contra o que podemos ser e ter. Isso se decidirá, com a democracia, em cada voto do dia 30.

PEDÓFILO

"Pedofilia: perversão que leva um adulto a sentir atração sexual por crianças" (Caldas Aulete).

"Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, numa comunidade. Pintou um clima. Voltei, ‘posso entrar na tua casa?’ Entrei". (Bolsonaro, podcast Paparazzo Rubro-Negro, 14.out).

Menininhas de 14, 15 anos são menores, não chegaram nem à maioridade eleitoral de 16 anos. Nas duas ocasiões em que falou do clima que pintou, Bolsonaro disse que entrou na casa: o clima foi além do encontro. É indiferente que Bolsonaro não escrevesse o que se seguiu na casa. O que disse e a definição de pedofilia bastam para sustentar que a senadora Simone Tebet e outros não incorrem em inverdade e insulto ao citar Bolsonaro como pedófilo. Ele se mostrou e se disse.

Segunda parte. "Todas muito bem arrumadas, tinham tomado banho, estavam fazendo o cabelo. Venezuelanas. Estavam se arrumando para quê? Alguém tem ideia, quer que eu fale? Para fazer programa. Qual era a fonte de sobrevivência delas? Essa". (Bolsonaro, mesmo podcast).

"Arrumadas para ganhar a vida", "para fazer programa", "fonte de sobrevivência delas". Nenhuma dúvida: as menininhas na citação de Bolsonaro vivem de prostituição. Na realidade, são refugiadas sob atenções da Caritas e, quando Bolsonaro viu pintar um clima, apenas faziam curso de estética feminina.

Nenhuma dúvida: cada uma das meninas tem direito a pesada indenização por danos morais e psíquicos. Michelle Bolsonaro e Damares Alves foram ao encontro das meninas para evitar o processo indenizatório. As meninas esperam por um advogado honesto.

Jânio de Freitas, o autor este artigo, é Jornalista. Publicado pela Foha de S. Paulo, em 22.10.22, às 14h20


sábado, 22 de outubro de 2022

Checamos a sabatina de Jair Bolsonaro no pool de imprensa do ‘Estadão’

Presidente mente ao dizer que nunca tentou ‘derrubar página de ninguém’ e que não é responsável pelo orçamento secreto   

     Jair Bolsonaro. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

O presidente Jair Bolsonaro (PL) mentiu ao falar de medidas contra usuários de redes sociais e orçamento secreto durante sabatina nesta sexta-feira, 21, promovida por Estadão, Rádio Eldorado, SBT, CNN, Veja, Terra e Rádio Nova Brasil. A entrevista substituiu o debate que ocorreria entre o candidato à reeleição e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)  –  este último desistiu de participar.

Confira abaixo a checagem do Estadão Verifica sobre as principais declarações de Bolsonaro

Auxílio emergencial

O que Jair Bolsonaro disse: que seu governo concedeu auxílio emergencial para 68 milhões de pessoas.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é verdade que o auxílio emergencial, inicialmente de R$ 600 e depois reduzido à metade, foi pago pelo governo federal a 68,2 milhões de pessoas com o objetivo de amenizar os danos econômicos causados pela pandemia de covid-19. Nem todas essas pessoas, contudo, tinham direito ao benefício. Balanço da Fiscalização do Auxílio Emergencial, do Tribunal de Contas da União (TCU), atualizado em setembro de 2022, estima que cerca de 7,3 milhões de pessoas fora dos requisitos legais teriam sido beneficiadas indevidamente.

Além disso, 6,4 milhões de mães chefes de família ganharam indevidamente uma cota excedente do benefício. A soma dos erros gerou um custo estimado de R$ 54 bilhões em pagamentos indevidos. 

Orçamento secreto

O que Bolsonaro disse: que vetou o orçamento secreto, mas que o Congresso derrubou o veto.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Como mostrou esta checagem, a primeira tentativa de aprovar o orçamento secreto, de fato, partiu do Congresso e foi vetada por Jair Bolsonaro. Em dezembro de 2019, no entanto, o chefe do Executivo recuou do próprio veto e encaminhou novo projeto de lei que criou a emenda RP9.

O esquema foi revelado pelo Estadão, que mostrou, em uma série de reportagens, que a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, havia convencido o presidente de que o orçamento secreto engessaria a economia. O atual ministro da Casa Civil, general Luiz Eduardo Ramos, ressuscitou a proposta e, dessa maneira, Bolsonaro voltou atrás na decisão de barrar a medida.

Índice de homicídios

O que Jair Bolsonaro disse: que, em 2021, foi registrado a menor taxa de assassinatos dos últimos 30 anos: 20 por 100 mil habitantes. 

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é impreciso. O Atlas da Violência 2021 – mais recente mapeamento de mortes violentas no Brasil – traz dados referentes a 2019, quando foram registrados 45.503 homicídios no País, uma taxa de 21,7 mortes por 100 mil habitantes. 

A taxa é a menor desde 1995  –  ou seja, em 24 e não em 30 anos  –, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que organiza o estudo, Em 1992, por exemplo, a taxa era de 19,21.

O documento destaca que uma queda acentuada de 22,1% no número de mortes violentas, observada entre 2018 e 2019, deve ser vista com cautela em função da deterioração na qualidade dos registros oficiais nos últimos anos.

Censura a páginas nas redes sociais

O que Bolsonaro disse: que nunca tentou “derrubar página de ninguém”.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: não é bem assim. No último 15 de outubro, a campanha do presidente pediu ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que fossem derrubados todos os perfis das redes sociais do deputado federal André Janones (Avante-MG) até o fim da eleição. Segundo a coligação de Bolsonaro, Janones teria cometido abuso dos meios de comunicação para divulgar informações supostamente enganosas, incitando o compartilhamento de publicações depreciativas ao presidente.

Redução de IPI

O que Bolsonaro disse: que editou decreto para diminuir 35% do Imposto sobre Produtos Industrializados de 4 mil produtos.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é verdadeiro. A declaração se refere ao Decreto nº 11.182/2022 que, segundo a Casa Civil, garante a redução de 35% no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) da maioria dos itens fabricados no Brasil. O Agência Brasil explicou que esse imposto federal incide sobre cerca de 4 mil itens nacionais e importados que passaram por algum processo de industrialização.

Preservação do meio ambiente

O que Bolsonaro disse: que temos 84% da Amazônia preservada.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Uma análise do projeto Mapbiomas, parceria entre universidades, ONGs e instituições nacionais, apurou que imagens registradas pelos satélites Landsat desde 1985 mostram que o Brasil perdeu 18% da Amazônia entre 1985 e 2017. O Observatório do Clima afirma também que cerca de outros 20% da floresta estão degradados, tendo presença de garimpos, grileiros e madeireiros ilegais.

Além disso, dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que o desmatamento acumulado na Amazônia sob o governo Jair Bolsonaro, de janeiro de 2019 a julho de 2022, atingiu 31 mil km².

Economia na pandemia

O que Bolsonaro disse: Gastamos R$ 700 bilhões em 2020, na pandemia. Não tivemos dólar indo para cima e bolsa indo para baixo.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Embora seja fato que o governo federal destinou R$ 700 bilhões para enfrentamento da covid-19 em 2020, não é verdade que o dólar não subiu. Em dezembro de 2020, o dólar registrou aumento acumulado de mais de 29%, o que deixou a moeda brasileira com o segundo pior desempenho global no ano em meio à pandemia. 

Em março de 2020, o Ibovespa despencou e acumulou desvalorização de 45%. No entanto, em dezembro, o índice reverteu as perdas no acumulado do ano e subiu 82,71%. 

Votação do Auxílio Brasil

O que Bolsonaro disse: que a bancada do PT foi contra a criação do Auxílio Brasil de R$ 400.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O Auxílio Brasil foi criado por meio de uma Medida Provisória (MP), sem passar por votação de imediato. A MP 1061 foi publicada no Diário Oficial da União em 9 de agosto de 2021, tendo efeito imediato. Posteriormente, no dia 25 de novembro, a medida foi votada pela Câmara dos e aprovada por 344 votos a favor, com apoio do PT e de outros partidos da oposição. Ninguém votou contra. No Senado, a votação foi simbólica e não teve o registro nominal dos votos. No entanto, de acordo com as notas da sessão, que ocorreu no dia 2 de dezembro de 2021, senadores do PT se manifestaram de maneira favorável.

Pagamento do Auxílio Brasil

O que Bolsonaro disse: que o Auxílio Brasil beneficia 21 milhões de pessoas e custa aproximadamente R$ 12 bilhões por mês.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é verdade. De acordo com o Ministério da Cidadania, em outubro, o Auxílio Brasil será pago a 21,13 milhões de famílias. O investimento para o repasse mínimo de R$ 600 será de R$ 12,8 bilhões. 

Meio Ambiente

O que Bolsonaro disse: que seu governo foi muito melhor do que os anteriores (no desmatamento).

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: não é bem assim. Segundo dados do Projeto Prodes, no governo de Bolsonaro, a taxa de desmatamento da Amazônia subiu 73% nos três primeiros anos da gestão (2019 a 2021). Em 2020 e 2021, o desmatamento da Mata Atlântica teve aumento de 66% em relação a 2019, e também foi registrado aumento no desmatamento do Cerrado. Esses dados foram reunidos pela BBC e divulgados em 17/10/2022.

Preservação da vegetação

O que Bolsonaro disse: que hoje 2/3 do nosso solo está preservado, da mesma forma que Pedro Álvares Cabral encontrou.

O Estadão Verifica checou e concluiu que: não é bem assim. A MapBiomas levantou que, entre 1985 e 2021, o Brasil passou de 76% de cobertura de vegetação nativa para 66%. Apesar da porcentagem, isso não significa que essas áreas sejam totalmente conservadas: segundo a pesquisa, pelo menos 8,2% de toda vegetação nativa existente é secundária, ou seja, são áreas que já foram desmatadas pelo menos uma vez nos últimos 37 anos ou já estavam desmatadas em 1985.

Valor do Bolsa Família

O que Bolsonaro disse: que o Bolsa Família, até o ano passado, pagava R$ 42. 

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: não é verdade. O menor valor pago pelo Bolsa Família foi no ano de 2005, durante a gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT): R$ 45,60 – em valores corrigidos pelo IPCA o benefício é de R$ 157,26. O valor mais alto da história foi durante o governo de Dilma Rousseff (PT), com média de R$ 155,90 (R$  339,90 em valores de hoje, com a correção pelo IPCA). A mesma afirmação foi checada pelo Estadão Verifica no debate entre Bolsonaro e Lula promovido pela TV Band no último dia 16. 

Política de drogas

O que Bolsonaro disse: que Lula já falou que quer a legalização das drogas.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O plano de governo de Lula não prevê legalização de drogas. No item 34 das diretrizes do seu programa de governo, é defendida uma nova política sobre drogas “focada na redução de riscos, na prevenção, tratamento e assistência ao usuário”. No combate ao tráfico, fala de  estratégias de enfrentamento e desarticulação das organizações criminosas, baseadas em conhecimento e informação, com o fortalecimento da investigação e da inteligência”.

Ministérios e apoio político

O que Bolsonaro disse: que não entregou cargos em ministérios em troca de apoio político.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Em 2021, Bolsonaro deu a chefia da Casa Civil para o então senador Ciro Nogueira (PP-PI) para contornar o desgaste político que vinha sofrendo. Ciro é uma das lideranças do Centrão e já foi aliado de Lula.

O presidente também já havia nomeado a deputada federal Flávia Arruda (PL-DF) para chefiar a Secretaria de Governo. Ela ficou responsável por administrar a relação de sua administração com o Congresso.

Intervenção do Centrão em bancos públicos

O que Bolsonaro disse: que não entregou o comando de bancos públicos em troca de apoio político.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. No ano passado, o Estadão mostrou como a pressão de Valdemar da Costa Neto, presidente do atual partido de Bolsonaro, foi fundamental para a demissão de Romildo Carneiro Rolim da presidência do Banco do  Nordeste.

Programa de alfabetização premiado pelo Banco Mundial

O que Bolsonaro disse: que o governo federal criou o programa conhecido como Recuperação de Aprendizado, que foi premiado pelo Banco Mundial como um dos melhores do mundo.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Em maio de 2022, o Conselho Diretor do Banco Mundial aprovou o projeto de Recuperação das Perdas de Aprendizagem Provocadas pela Pandemia de COVID-19 no Brasil, no valor de US$ 250 milhões. Após a aprovação, não há registro que a iniciativa também tenha sido premiada.

Alfabetização infantil

O que Bolsonaro disse: que, em gestões passadas, uma criança era alfabetizada em três anos; em seu governo, são seis meses.

O Estadão Verifica concluiu que: é enganoso. O presidente voltou a repetir o dado que dissera em debate na Band. Na ocasião, ele disse que um aplicativo de jogos seria o responsável pelo suposto sucesso na alfabetização de crianças. Mas pesquisas feitas em vários países mostraram que ele não tem nenhum efeito na aprendizagem se for usado pelo aluno sozinho.

Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, o tempo considerado ideal para a alfabetização plena é de até dois anos (1º e 2º anos do fundamental).

Gabriel Belic, Gabriela Meireles, Jorge C. Carrasco, Luciana Marschall, Maria Eduarda Nascimento e Milka Moura, os autores desta checagem, são Jornalistas. Publicada originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22.10.22, às 00h11