terça-feira, 25 de outubro de 2022

O STF e a proteção do voto: uma ADPF à procura de um autor

 Impressiona que o afastamento tenha ocorrido "a despeito de ainda não haver denúncia oferecida", conforme voto da ministra relatora.

Lênio Streck na tribuna do STF

1. O caso do governador Paulo Dantas

No dia 11 de outubro último, o governador alagoano Paulo Dantas (MDB) foi afastado cautelarmente do cargo em razão de uma decisão concedida pela ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça. Dantas é candidato à reeleição, tendo sido cumpridos nada mais do que 30 mandados de busca e apreensão. Em pauta, acusações de peculato e lavagem de dinheiro que seguem tramitando nos autos do Inquérito 1.582.

Em nota, MPF e PF afirmaram que a "necessidade e a urgência das medidas cautelares foram amplamente demonstradas nos autos da investigação policial", mas, segundo a Folha de S.Paulo, os fatos investigados remontam à época em que Dantas era deputado estadual (aqui). Bom, de pronto, há um fato: Dantas assumiu o governo em maio. Não há nesse inquérito fatos sobre esse período do novo cargo.

Por maioria de votos, a Corte Especial do STJ referendou a decisão em 13/10 (aqui e aqui). Impressiona que o afastamento tenha ocorrido "a despeito de ainda não haver denúncia oferecida", conforme voto da ministra relatora.

Eis um resumo: candidato afastado 19 dias antes do segundo turno e uma operação lastreada em nenhuma denúncia por parte do Ministério Público. O mérito, em si, não me interessa discutir. Quero falar do problema da inserção do Poder Judiciário nessa seara: o voto popular às vésperas do pleito.

O governador é a figura diretamente prejudicada — foi para o segundo turno com larga margem de votos.

Porém, penso que o maior derrotado, ainda, foi o que levou uma goleada: a instituição do Ministério Público. Dono da ação penal? Dominus litis? Como assim? Lembro-me do primeiro ato de controle de constitucionalidade feito no Brasil, no dia 6 de outubro de 1988. Fui eu. Em uma comarca do interior do RS. Para dizer, em alto e bom som que o MP era o dominus litis [1]. Passados mais de 34 anos, percebo que estava enganado. O MP abriu mão de suas prerrogativas. Em nome de quê?

Explico. O MP concorda que a polícia federal peça o afastamento de um governador. O STJ afastou um governador com base em inquérito. Sem denúncia. Nos casos de afastamento anteriores que se encaixam no precedente citado (QO na AP 970-DF), todos tinham denúncia. Aqui, portanto, o precedente não se encaixa(ria).

De todo modo: não há polícia federal que atua especificamente junto ao STJ. Só o MP. Trata-se do foro por prerrogativa de função. Essa garantia é do povo e não dos governadores. Logo, só o MP — que atua junto ao STJ — poderia pedir o afastamento de um governador. A PF não tem atribuição para tal. O MP achou normal que a polícia assumisse o seu lugar. Vai se saber as razões dessa autofagia... Como dizia o velho "conselheiro", as consequências sempre vêm depois.

Abstraindo o resultado em si, vale salientar o essencial: a suspensão do mandato do governador interfere diretamente nas eleições. Veja-se, nesse sentido, a reportagem do UOL que aponta nesse sentido — e isso a partir de opiniões de ministros da mais alta corte, segundo a jornalista Mônica Bergamo (aqui).

Sem pretender exaurir essa discussão levantada pela jornalista e por parte da comunidade política e jurídica, cumpre refletir sobre a razão pela qual tudo ocorreu pouco antes do segundo turno e que disso não se conclua que nenhuma investigação possa ocorrer neste período. Qual seria a urgência?

Todavia, a questão é outra: será que uma decisão dessa magnitude não trará consequências para o contexto eleitoral? Será que foi adequada?

De novo: passados mais esses dias, ainda não há denúncia. Note-se: a ministra do STF, Rosa Weber, negou pedido do governador para retornar.

Eis a questão posta.

2. Uma pequena genealogia

Pois olhemos para o retrovisor para compreendermos uma resposta e uma solução para o que o expus.

Apurando acontecimentos de 2014 — cuja investigação terminou em 2016 — uma prisão temporária foi imposta ao ex-governador Beto Richa em pleno trâmite eleitoral de 2018. Liderando as pesquisas, foi destroçado por uma decisão judicial. Que redundou em nada. Mas era tarde. Seu mandato se esfumaçou. Também escrevi sobre o caso mais de uma vez [2].

Enfim enfrentando a (in)adequação e as consequências de decisões que imponham medidas midiáticas em pleno processo eleitoral, respondo sem qualquer dúvida: o Direito não está a nossa disposição e torna-se importante compreender que quando o assunto é eleição, minar o processo eleitoral será sempre uma decisão inadequada, a não ser um caso de plena e grave flagrância delitiva.

Expor um candidato a acusações que não vão ser brevemente resolvidas inexoravelmente será algo que mudará a equação dos votos do eleitor.

Nem preciso falar da divulgação dias antes das eleições de 2018 de delação (bichada) de Palocci.

Tampouco necessitamos trazer à baila o caso Marconi Perillo.

Interessante: todos os presos e suspensos de suas funções perderam as eleições que disputavam. Claro. Por isso, precisamos falar sobre essa relação voto x decisão judicial.

3. Uma solução possível — o que fazer?

Penso que medidas dessa gravidade não poderiam jamais dispensar denúncia e pedido do MP. É o mínimo que se exigiria para salvaguardar pleitos eleitorais.

Afastar um governador ou um prefeito alguns dias antes da eleição pode ferir gravemente o princípio democrático e também a vontade popular. Ou seja: influencia indevidamente na vontade popular. E isto é fundamental que se compreenda.

Diante de tudo: exsurge a necessidade de o voto ser protegido e daí porque de estarmos diante de um caso de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Cabe ao Supremo proteger o devido processo eleitoral de forma urgente. Uma ADPF à procura de um autor. Claro que o parlamento deve agir também.

Vários preceitos fundamentais estão sob violação: a vontade popular (veja-se que até mesmo um eleitor não-candidato não pode ser preso três dias antes da eleição). A ratio é proteger o voto popular. Por analogia, o que podemos dizer sobre prender um candidato ou o afastar do cargo 15, 20 ou 30 dias antes do pleito?

Todavia, ainda no que diz respeito a jurisdição constitucional, importantíssimo frisar este ponto de uma possível APDF: cabe ao Supremo Tribunal Federal resguardar o devido processo eleitoral. Afinal, sempre corremos o risco de a polícia ou o MP levarem ao judiciário, dias antes do pleito, investigações seletivas. A democracia não pode ser transmudada em um espetáculo.

Por conseguinte, torna-se importante que o próprio Judiciário reconheça seu papel de garantidor do processo eleitoral; e em face disso deve o STF evitar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público. In casu, reparar lesão que atingiu a vontade popular, que foi resultado de decisão proferida pelo STJ e que sequer possui respaldo numa denúncia do Ministério Público.

Quer dizer que nunca o Judiciário deve interferir no processo político? Não. O Judiciário deve, sim.

Só que é o Direito que controla a política, não o contrário. Sou o primeiro a sustentar isso.

O que estou dizendo é que uma decisão drástica como a que afastou o governador de Alagoas não está vedada se o governador estivesse burlando a lei eleitoral em plena eleição. Ainda assim, há que cuidar, uma vez que sempre é possível cassar uma chapa depois de eleita.

Portanto, é óbvio que não se pode burlar a lei eleitoral para vencer uma eleição. Mas também não é recomendável, cautelarmente (portanto, provisoriamente), tomar medidas dias antes da eleição cujas consequências, querendo ou não, sempre são nefastas para o candidato afastado ou preso. Que o digam Beto Richa e Perillo. E tantos outros.

Por tudo isso necessitamos de uma ADPF para que o STF diga que no mínimo 30 dias antes das eleições operações desse tipo não podem acontecer. Afastamentos e coisas do gênero só se decorrerem de flagrante.

Para preservar o voto popular. Afinal, todo poder emana do povo.

[1] Ver meu livro Trinta anos de Constituição em trinta julgamentos: uma radiografia do STF. Gen Forense, 2019.

[2] Por todas elas, conferir: https://www.conjur.com.br/2018-set-13/senso-incomum-comum-casos-richa-haddad-advogada-algemada

Lenio Luiz Streck, o autor deste artigo, é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados. Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 24.10.22, às 15h28

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