terça-feira, 23 de agosto de 2022

Vergonha brasileira

O caso do menino que ligou para a polícia pedindo ajuda, pois a família não tinha o que comer, deveria vexar todo o País, sobretudo quem tem poder de acabar com a fome, e não o faz

Com voz firme e clareza incomum para a idade, o menino Miguel, de 11 anos, assombrou o País por sua coragem e maturidade ao ligar para a polícia e pedir ajuda para ele e a família, que passavam fome. Foi no dia 2 de agosto, na região metropolitana de Belo Horizonte, mas poderia ser em qualquer dia e em qualquer um dos muitos lugares em que sobrevivem os milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar. 

A fome, que costuma surgir somente em razão de catástrofes naturais ou de guerras, aparentemente começa a tornar-se parte do cotidiano do Brasil, um país que não sofreu nenhuma catástrofe natural recente nem está em guerra. Aos poucos, os brasileiros parecem se acostumar com essa tragédia, e a vida segue – até que um menino de 11 anos decide fustigar a consciência do País.

“Ô seu policial, aqui, é por causa que aqui em casa não tem nada pra gente comer e eu tô com fome. Minha mãe só tem farinha e fubá pra comer”, disse o menino em seu telefonema desesperado para o serviço 190 da Polícia Militar. Desconfiados de que se tratava de maus-tratos, os policiais foram à casa do menino e lá se chocaram com a realidade. A família passava fome havia pelo menos três dias. “Minha mãe estava chorando”, explicou o menino mais tarde, em entrevistas nas quais contou por que tomou a iniciativa de ligar para a polícia.

Naquele instante, a fome ganhou rosto e voz de criança – em quem se costumam depositar as esperanças de uma nação. Se uma criança passa fome, e se essa criança deve ela mesma tomar a iniciativa de procurar ajuda, significa que a nação fracassou em todos os aspectos. Em países decentes, as crianças nem passam fome nem precisam amadurecer antes do tempo para encontrar maneiras de sobreviver. Em países decentes, governos e sociedades investem tudo o que podem no desenvolvimento de suas crianças, tratando-as, em primeiro lugar, como sujeitos de direitos. Em países decentes, as autoridades não dormem tranquilamente se houver crianças com fome.

O Brasil, dono de uma das maiores economias do mundo, e orgulhoso de sua imensa capacidade de produzir alimentos, deveria considerar inaceitável que um único menino brasileiro não tenha o que comer. No entanto, a despeito dos vergonhosos números da insegurança alimentar, o País parece mais empenhado em discutir o preço dos combustíveis, a confiabilidade das urnas eletrônicas e o papel dos militares nas eleições. Ademais, enquanto poucos políticos se dedicam a enfrentar o drama da fome, e quando o fazem é quase sempre de maneira calculista, não faltam interessados no rateio das bilionárias verbas do orçamento secreto para seus redutos eleitorais. Em meio à balbúrdia estéril daqueles que fazem três refeições por dia e só deixam de comer quando estão de dieta, o telefonema de um menino de 11 anos pedindo socorro à polícia porque estava com fome é um tapa na cara.

A eleição de outubro deveria ser a oportunidade para discutir mecanismos de curto e médio prazos para enfrentar essa calamidade. Os candidatos deveriam se sentir obrigados a detalhar o que pretendem fazer imediatamente, a partir do instante da posse como presidente, a respeito disso, pois nada pode ser considerado mais prioritário. E os candidatos deveriam ser obrigados a dizer o que pretendem fazer para que essa situação jamais volte a ocorrer. Ou seja: não merecem o voto aqueles candidatos que se orgulham de investir em programas de ajuda aos mais pobres que apenas se prestam a alimentar uma clientela eleitoral, sem mudar substancialmente a realidade. Por outro lado, candidatos que propuserem uma sólida política de inclusão, que não se limite a transferir renda para evitar a miséria e que invista em educação pública como prioridade real do País, deveriam ter a atenção do eleitor.

É preciso, portanto, que o País, se tem verdadeiro apreço por si mesmo, não fique indiferente ao pedido de socorro do menino Miguel, pois essa criança, como tantas outras em situação semelhante, não pode ser privada do mais básico da vida em sociedade. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 23.08.22

Uma decisão prudente

Exército acertou ao cancelar desfile do 7 de Setembro no Rio, em razão de ameaças de violência e de uso político-partidário

O Exército foi prudente ao decidir não participar dos atos programados para a orla de Copacabana por ocasião do 7 de Setembro. O presidente Jair Bolsonaro queria contar com a presença dos militares, vontade esta que representava uma nítida tentativa de uso político-partidário das Forças Armadas. A presença das tropas e de seus blindados na Avenida Atlântica, em meio a apoiadores da reeleição do presidente, podia ser equivocadamente entendida como apoio dos militares a um determinado candidato ou partido.

Diante da tentativa bolsonarista de exploração política de uma festa cívica, o Exército cancelou também a tradicional parada militar na Avenida Presidente Vargas, no centro da capital fluminense. Agora, está prevista uma cerimônia militar sem público ou desfile para as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil.

A decisão por essa participação mais discreta dos militares foi motivada não apenas pelo risco de exploração político-partidária da data nacional. O setor de inteligência do Exército detectou indícios de preparação material de atos de violência por parte de radicais bolsonaristas. Esses apoiadores de Jair Bolsonaro pretendiam se infiltrar nas manifestações em Copacabana para provocar tumultos que, no limite, levassem a uma intervenção militar por meio de decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou, ao menos, criassem um clima no País para discussões dessa natureza, totalmente descabidas. Definitivamente, um militar ferido ou morto durante esses atos é o que de menos o País precisa neste momento. Campanha eleitoral é tempo de paz, não de bagunça, violência ou uso político-partidário das instituições de Estado.

A insistência de Jair Bolsonaro para levar a principal celebração do Bicentenário para o Rio de Janeiro, e especificamente para a orla de Copacabana, onde já ocorreram manifestações favoráveis ao presidente, não foi aleatória. No Rio concentra-se o maior número de radicais bolsonaristas. Neste sentido, toda prudência das autoridades é bem-vinda.

A decisão do Exército de cancelar o desfile do 7 de Setembro no Rio de Janeiro é um triste sintoma dos tempos estranhos que o País atravessa. É lamentável que uma celebração cívica tão importante, como é o Bicentenário da Independência do Brasil, tenha de ser alterada por ameaças de uso político-eleitoral e de risco de atos de violência. Definitivamente, o governo de Jair Bolsonaro não apenas é incapaz de promover a paz, a ordem e a civilidade, como estimula o exato contrário.

É preciso investigar rigorosamente os indícios detectados pelo Exército a respeito da preparação material de atos de violência por parte de radicais bolsonaristas. O País não pode ficar refém de baderneiros autoritários e fora da lei, que querem impor seus delírios sobre o restante da população. O 7 de Setembro é data de celebração cívica do País, de sua história e de suas instituições. Não pode ser convertido em tempo de ameaça ou de medo, antíteses da cidadania e da liberdade.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 23.08.22

Resposta de Kirchner às acusações na Argentina é parecida com a de Lula na Lava Jato, diz analista

Vice-presidente acusa Justiça de perseguição política e tenta impugnar processo por supostas ilegalidades; sociólogo compara resposta a do ex-presidente brasileiro

Foto: Celso Junior/ AE - 07/09/2008

As acusações da Promotoria da Argentina contra a vice-presidente Cristina Kirchner e o pedido de sentença de prisão e anulação dos direitos políticos têm uma repercussão política que se assemelha a um episódio brasileiro recente: o caso Lula e a Lava Jato, segundo a avaliação de um analista político argentino. Na segunda-feira, 22, Kirchner e seus apoiadores consideraram o processo judicial contra ela um “pelotão de fuzilamento midiático-judicial” e acusaram se tratar de uma perseguição. “O melhor exemplo que se toma disso é justamente o Lula”, declarou o sociólogo Carlos de Angelis, professor da Universidade de Buenos Aires (UBA).

De acordo com Angelis, as semelhanças residem principalmente na resposta dos dois líderes aos processos. Assim como Lula, Kirchner acusa a promotoria e juízes de atuarem juntos e ferirem os direitos de defesa. Poucos minutos depois do promotor Diego Luciani acusá-la de chefiar um esquema de associação ilícita e fraude ao Estado.

Em um discurso em seu próprio gabinete no Senado, transmitido em redes sociais, Cristina acusou o Ministério Público de agir motivado por uma “feroz campanha política e midiática” e disse que a “a sentença já estava escrita” quando promotoria pediu sua condenação na segunda-feira. “Os promotores puderam ler seu roteiro durante nove dias. Eu gostaria de ter falado em frente ao tribunal”, disse Cristina. “Não deveria me surpreender, porque, como disse na época, a sentença já estava escrita”, acrescentou.

Apoiador de Cristina Kirchner carrega cartaz em apoio à vice-presidente durante protesto na segunda-feira, 22. Foto: Juan Mabromata/ AFP

Durante o discurso, a vice-presidente argumentou que não há provas contra ela e que nenhum dos convocados para testemunhar durante o julgamento apoiou a versão dos promotores, que segundo ela adotam o “roteiro” de veículos de imprensa e da oposição ao governo.

Em uma publicação nas redes sociais na segunda-feira, Cristina já havia comparado o tribunal a um “pelotão de fuzilamento”. “Se faltou algo para confirmar que não estou perante um tribunal da Constituição, mas sim perante um pelotão de fuzilamento midiático-judicial, é me impedir de exercer o direito de defesa perante questionamentos que nunca apareceram na acusação do Ministério Público a que assisti por 5 dias em maio de 2019″, declarou.

As menções aos processos enfrentados por Lula na Operação Lava-Jato foram feitas pelos próprios apoiadores de Kirchner e membros do governo. “A extrema direita na América Latina é antidemocrática. O fizeram com Perón e, recentemente, com líderes populares da região como Evo Morales e Lula. Mas nossos povos são justos: não abandonam os que apostaram por eles”, escreveu o ministro das Relações Exteriores, Santiago Cafiero, em sua conta no Twitter.

Longe de significar uma prisão num futuro próximo, as acusações contra Kirchner aumentam a crise política de um país que precisa lidar com o caos econômico. Um sinal disso ficou evidente nesta segunda-feira, com manifestações pró e contra diante da residência dela em Buenos Aires – finalizadas com conflitos com a polícia.

Segundo Angelis, o caso Lula deve ser muito discutido na Argentina nos próximos meses e anos porque Kirchner acusa Diego Luciani de ter relações pessoais com o juiz Rodrígo Giménez Uriburu, um dos três magistrados que a julgará. Há alguns dias, uma imagem se espalhou mostrando os dois juntos em uma partida de futebol amador organizada pelo ex-presidente Mauricio Macri, adversário político de Kirchner. Ela pediu que os dois fossem afastados do processo, mas não obteve êxito.

“Seguramente, há alguns elementos que Cristina vai pôr na mesa para impugnar o processo, pelo menos a legitimidade dele”, declarou Angelis. “Por isso, creio que o caso Lula deve ser muito discutido e difundido na Argentina”.

O paralelo com o ex-presidente Lula acontece devido às alegações de ilegalidades feitas pela defesa do ex-presidente nos quatro processos criminais da Operação Lava Jato contra ele que tramitaram na 13ª Vara Federal de Curitiba, que resultaram na anulação das condenações no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021. Em um dos processos, referente ao caso do Triplex do Guarujá, a Segunda Turma do STF decidiu que o ex-juiz Sérgio Moro foi parcial no julgamento.

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O petista, assim como Kirchner faz neste momento, mobilizou durante todo o processo os seus apoiadores a saírem em sua defesa difundindo a tese de perseguição.

Outra semelhança está nos direitos políticos. Caso seja condenada a sentença solicitada nesta segunda-feira, que pede 12 anos de prisão e anulação perpétua dos direitos políticos, Kirchner terá a sua carreira na política institucional, na qual ela foi presidente em dois mandatos, encerrada. “Foi o que aconteceu com Lula em 2018, quando perdeu os direitos políticos e não pode disputar as eleições que Jair Bolsonaro ganhou. Agora, ele pode. Creio que é uma discussão que também vai crescer na Argentina”, declarou Angelis.

Consequências políticas imediatas

Kirchner só deve ser julgada em dezembro por um tribunal da primeira instância e o caso deve ser apelado à Corte Superior do país, estendendo-se por anos. Por isso, o pedido de sentença feito nesta segunda-feira está longe de significar a prisão dela em um futuro próximo. A principal consequência é, segundo os analistas, o aumento da crise política em um país que lida com o caos econômico.

“Isso é um pouco mais do mesmo: o Kirchnerismo denuncia perseguição política, como está fazendo, e a oposição faz a campanha com o argumento da corrupção”, disse a cientista política María Lourdes Puente, diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina.

“Não vejo que há um procedimento possível de detenção efetiva (com as acusações desta segunda-feira), somente uma agitação do vespeiro político”, acrescentou.

Manifestante se veste de presidiária para pedir prisão de Cristina Kirchner. Foto: Magali Druscovich/ REUTERS

A vice-presidente também se vale do foro privilegiado concedido pelo cargo para não ser presa. Com eleições marcadas para o ano que vem é provável que ela seja candidata ao Senado – o que manteria a imunidade até 2029, caso consiga a provável vitória. Nesse contexto, ela ainda teria que passar por um processo de impeachment no Congresso Nacional da Argentina para perder o cargo. E, para isso, seriam necessários dois terços dos votos dos senadores e deputados a favor da sua saída.

Dentro deste jogo, no qual há um conflito de anos entre a esquerda e a direita argentina, uma pergunta ainda sem resposta é como o governo de Alberto Fernandez vai lidar com as acusações – e como as acusações respingam nele. O atual presidente e Cristina racharam politicamente durante o governo e não se falam, mas isso não o impediu de também chamar as acusações contra ela de perseguição. “Transmito o meu mais profundo afeto e solidariedade a Cristina”, escreveu no Twitter,

Na avaliação de Carlos de Angelis, entretanto, a resposta é limitada. Por um lado, o governo não possui muitos recursos para defender Cristina em uma outra esfera de poder. Por outro, precisa centrar forças para lidar com a crise econômica, que atingiu 71% no ano, o pior número em 30 anos. “O governo está mais envolvido nos problemas econômicos na nova gestão de Sergio Massa”, declarou Angelis.

Resposta da oposição

Um fator é visto como crucial pelos analistas para livrar Alberto Fernández da pressão causada pelo processo de Cristina Kirchner: a resposta contida da oposição. De acordo com o analista político Sergio Berensztein, presidente da agência International Press Service (IPS) para América Latina, os políticos opositores não devem inflamar mais o cenário para não fortalecer a narrativa de perseguição de Cristina Kirchner. “Se a oposição usar as acusações contra Cristina, elas serão vistas como politizadas e parte dessa perseguição”, declarou Berensztein.

“O governo de Fernández está muito debilitado politicamente pela crise política. Fernández não tem credibilidade e está afastado de Cristina Kirchner, que tem uma liderança política muito forte. A crise econômica deve continuar sendo o maior motivo de pressão sobre ele neste momento”, acrescentou o analista.

A pressão poderia recair em Fernández caso Kirchner fosse condenada e recebesse um indulto político. Isso, entretanto, é improvável pelo tempo que o processo pode durar.

Segundo os analistas, isso não significa que as acusações não serão utilizadas politicamente contra Kirchner. Elas devem ser o tema central da campanha eleitoral no ano que vem, quando Cristina deve se candidatar ao Senado. “Eles vão usar, com certeza na campanha eleitoral vai ser uma questão central, por mais que não haja condenação firme para aquele momento”, concluiu Angelis.

Luiz Henrique Gomes para o Estado de S. Paulo online. Publicado originalmente em 23.08.22 às 10h16

Bolsonaro conta 1 mentira a cada 3 minutos no Jornal Nacional

Presidente repetiu alegações falsas sobre pandemia e processo eleitoral que já foram desmentidas anteriormente    

Presidente Jair Bolsonaro (PL) durante entrevista ao Jornal Nacional. Foto: Globo/Reprodução

O presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, repetiu informações enganosas sobre a pandemia de covid-19 e a integridade do processo eleitoral na entrevista exibida pelo Jornal Nacional. Errou ao citar dados de desemprego da época da ex-presidente Dilma Rousseff e distorceu informações sobre a situação e preservação do meio ambiente sob seu governo. 

Bolsonaro imitou pessoa com falta de ar diferentemente do que disse no Jornal Nacional; veja vídeo

Durante 40 minutos de entrevista com os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcelos, o presidente apresentou ao menos 13 informações falsas ou enganosas. Não foi possível checar todas as alegações feitas por ele. Confira a seguir a checagem do Estadão Verifica.

Ataques contra ministros do STF

O que Bolsonaro disse: que nunca xingou ministros do Supremo Tribunal Federal.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Em mais de uma situação, o presidente insultou os ministros Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral até o primeiro semestre deste ano, e Alexandre de Moraes, responsável por inquéritos que envolvem o presidente e seus aliados.

Em uma manifestação no dia 7 de Setembro na Avenida Paulista, em São Paulo, Bolsonaro ameaçou não mais respeitar decisões do STF. Ele chamou Alexandre de Moraes de “canalha” e pediu que ele deixasse o cargo. Dois dias depois, criticou o inquérito dos atos antidemocráticos, comandado por Moraes, e xingou o ministro de “otário”.

Diante de apoiadores, na mesma data, Bolsonaro declarou que Luís Roberto Barroso era um “imbecil” por defender o sistema eleitoral eletrônico do País. “Resposta de um imbecil, lamento falar isso de uma autoridade do STF, só um idiota para fazer isso.”

Em 6 de agosto de 2021, Bolsonaro foi além e chamou Barroso de “aquele filho da puta” diante de apoiadores em Santa Catarina. Sua declaração foi transmitida ao vivo por sua conta no Facebook por volta das 14h50. Às 15h19, o vídeo havia sido apagado.

Inquérito de ataque hacker ao TSE

O que Bolsonaro disse: que a ministra Rosa Weber, então presidente do TSE, enviou em 2018 uma denúncia de fraude à Polícia Federal para abertura de um inquérito, que continua em apuração.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: falta contexto. Em 2018, a Polícia Federal instaurou um inquérito, a pedido do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para apurar uma invasão a sistemas da Justiça Eleitoral. Técnicos da corte alegaram em relatório que um hacker chegou a ter acesso a senhas, mas, segundo o tribunal, o acesso indevido não comprometeu a integridade do processo de votação. Até o momento, não há indícios públicos de que houve fraude nas urnas eletrônicas.

O que Bolsonaro disse: Imediatamente a PF pediu os logs do que ocorreu em 2018. O TSE poderia ter respondido no mesmo dia, mas depois de 7 meses o TSE disse que os logs foram apagados. 

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: falta contexto. Bolsonaro cita um trecho do inquérito da Polícia Federal sobre invasão hacker aos sistemas do TSE em 2018. Os autos do relatório vazado pelo presidente em suas redes sociais mostram que, em 10 de junho de 2019, um técnico da corte respondeu para a PF que “o servidor de build dos códigos fonte da urna eletrônica não possuía qualquer tipo de log habilitado”.

O servidor também informou que não poderia repassar dados adicionais porque essas informações haviam sido perdidas por conta de uma manutenção e do armazenamento limitado do sistema. O pedido da PF não consta nos arquivos, o que impossibilita saber exatamente do que se tratava.

Isso não quer dizer que os dados foram apagados propositalmente pelo TSE, nem que isso impossibilite saber qual foi a extensão do ataque. Em resposta ao Estadão Verifica, a Justiça Eleitoral esclareceu que todas as versões do código-fonte ficam armazenadas no servidor e que nenhuma alteração foi detectada. Além disso, a alteração do código-fonte não é permitida em ambiente externo — o hacker só conseguiu visualizar e fazer o download do arquivo, não modificá-lo.

Ao dizer que o servidor de build não possuía log habilitado, o servidor do TSE informa que não tinha como verificar quais microcomputadores dentro da rede interna do TSE realizaram acessos ao servidor Jenkins, que elabora programas de computador. Ele também menciona uma manutenção no sistema realizada em agosto, antes do incidente ser notado e da abertura do inquérito, que ocasionou perda de informações específicas, além de uma limitação de armazenamento que fazia com que os dados fossem sobrescritos automaticamente com o passar do tempo.

Bolsonaro omite ainda que o TSE colaborou, sim, com o envio de máquinas e dados desde o começo do inquérito — cujo pedido partiu do próprio tribunal, em ofício assinado pela ministra Rosa Weber, que o presidia na época. A partir dessas informações, a PF refez a linha do tempo da invasão e deu encaminhamento ao inquérito a fim de identificar o hacker.

Em 9 de novembro de 2018, por exemplo, o delegado Victor Neves Feitosa Campos solicitou a Janino as imagens das máquinas invadidas, relatório do incidente e informações de logs e IPs suspeitos (registros de acesso ao sistema e endereço dos dispositivos conectados). A solicitação foi respondida dentro de uma semana, segundo consta nos autos.

Compra das vacinas contra a covid-19

O que Bolsonaro disse: que o governo federal comprou mais de 500 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 mais rápido do que outros países.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Até o final de 2020, mais de 50 países já tinham iniciado a vacinação, enquanto o Brasil só aplicou a primeira dose em 17 de janeiro de 2021.

O Reino Unido foi o primeiro a iniciar a vacinação da população contra a covid-19, em 8 de dezembro de 2020. Enquanto isso, ao longo de 2020, pelo menos 53 e-mails da farmacêutica Pfizer com ofertas de vacinas ficaram sem resposta por parte do governo brasileiro.

Em maio do ano passado, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse à CPI da Covid que o Brasil tinha contratado 562 milhões de doses de vacina, mas admitiu ter inflado os números. O Estadão mostrou, na época, que o número era de cerca de 280 milhões de doses contratadas, ou seja, a metade. A marca de 500 milhões de doses aplicadas da vacina contra a covid-19 foi alcançada em meados de junho de 2022.

O que Bolsonaro disse: que a Pfizer não garantia a entrega da vacina.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Documentos entregues à CPI da Covid, do Senado, provam o compromisso assumido pela farmacêutica Pfizer de reembolsar o valor pago pelo Brasil por doses de vacina se o prazo de entrega fosse descumprido. Essa premissa consta de telegrama diplomático enviado em 27 de agosto de 2020 pela embaixada do Brasil em Washington ao Itamaraty.

O documento diz que a empresa “se comprometeria a devolver ao governo brasileiro todo e qualquer pagamento antecipado, na hipótese em que a empresa não consiga honrar a obrigação de entregar a quantidade acordada da vacina”. Na época, a farmacêutica oferecia 30 milhões de doses de vacina contra a Covid ao governo brasileiro.

A Pfizer fez exigências no contrato de venda de vacinas. Entre elas, a assinatura, pelo governo brasileiro, de um termo de responsabilidade sobre possíveis efeitos colaterais.

Inquérito das fake news contra ministros do STF

O que Bolsonaro disse: que a procuradora-geral da República Raquel Dodge deu parecer para arquivar inquérito sobre ofensas e fake news contra o STF.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é verdade, mas o inquérito não foi arquivado. Em 16 de abril de 2019, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, enviou parecer ao Supremo Tribunal Federal determinando o arquivamento do inquérito aberto na Corte pelo ministro Dias Toffoli para apurar ataques a ministros do STF. Segundo Dodge, o inquérito era inconstitucional porque Toffoli não poderia agir de ofício para abrir a investigação, nem poderia nomear um relator – o ministro Alexandre de Moraes.

No mesmo dia, contudo, o relator indeferiu o pedido de arquivamento alegando que o pedido não era constitucional, nem lícito. O inquérito seguiu, apesar da manifestação de Raquel Dodge.

Vagas de empregos em 2014 e 2015

O que Bolsonaro disse: que em 2014 e 2015, tivemos uma perda de quase 3 milhões de empregos no Brasil.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), publicados pelo Ministério do Trabalho em 2015, apontam que o Brasil perdeu 1,5 milhão de vagas de emprego formal naquele ano, mas registrou um saldo positivo de 623 mil em 2014. O déficit entre os dois anos citados por Bolsonaro, portanto, foi de cerca de 877 mil empregos. 

Além disso, informações do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) publicadas pelo Estadão na época apontam uma perda de postos de trabalho distante da quantidade mencionada pelo presidente. Em 2014, o Brasil registrou um saldo positivo de 420 mil empregos, seguido por um fechamento de 1,54 milhão de vagas.

Casos de corrupção no governo federal

O que Bolsonaro disse: que o governo não tem escândalos de corrupção.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Em março, o então ministro da Educação, Milton Ribeiro, deixou o cargo após uma série de acusações de corrupção. O Estadão revelou um suposto esquema de pastores que cobravam propinas de prefeitos para intermediar encontros com Ribeiro. Ele chegou a ser preso pela Polícia Federal, mas foi solto logo depois por decisão judicial.

O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles também foi alvo de investigação da Polícia Federal por suspeita de corrupção. Para a PF, ele estaria envolvido em venda ilegal de madeira.

Transposição do Rio São Francisco

O que Bolsonaro disse: que concluiu as obras de Transposição do Rio São Francisco que estavam paradas desde 2012.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Conforme já verificado por agências de checagem, notícias e documentos oficiais indicam que ao menos 92,5% da execução física dos dois eixos estruturantes do projeto estavam prontos quando o atual presidente assumiu. Um deles, inclusive, foi inaugurado no governo de Michel Temer.

Agravamento da pandemia em Manaus

O que Bolsonaro disse: cilindros de oxigênio chegaram a Manaus em menos de 48 horas após colapso.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O governo federal foi informado de que uma crise de oxigênio estava para eclodir em Manaus ainda no início de janeiro de 2021, mas minimizou os alertas. Nos dias 11 e 12, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, esteve na capital do Amazonas para promover o tratamento precoce e confirmou que havia uma crise de oxigênio.

No dia 13 de janeiro, quando o sistema entrou efetivamente em colapso e pacientes começaram a morrer por falta de oxigênio, Bolsonaro começou a ser cobrado e respondeu, pelas redes sociais, que havia mandado oxigênio para Manaus em maio de 2020. No dia 17 de janeiro de 2021, 96 horas após o colapso, o governo anunciou que balsas tinham atracado em Manaus com 70 mil metros cúbicos de oxigênio, mas a remessa era suficiente para apenas um dia de demanda na cidade.

No dia 18 de janeiro, um carregamento com 107 mil metros cúbicos de oxigênio doados pela Venezuela chegou ao Brasil. No final de janeiro, um comboio com 160 mil metros cúbicos de oxigênio atrasou a chegada a Manaus por causa das más condições da BR-319.

Proteção de vegetação nativa

O que Bolsonaro disse: que o Brasil preserva 66% da sua área verde.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. O presidente refere-se ao fato de que 66,5% do território brasileiro é coberto por vegetação nativa, como mostra levantamento do MapBiomas. O Projeto Comprova já mostrou ser enganoso que essa cobertura vegetal esteja intacta.

Somos o país com a maior área absoluta de florestas tropicais e os que mais desmatam este tipo de bioma. Segundo a iniciativa Global Forest Watch, que monitora os índices de perda de cobertura florestal no mundo, o Brasil perdeu 1,361 milhão de hectares de florestas tropicais úmidas primárias em 2019. Isto equivalia a mais de um terço do observado em todo o mundo (3,8 milhões de hectares). O país liderou o ranking de perda de florestas primárias naquele ano.

Lockdown e distanciamento social

O que Bolsonaro disse: Estudo de Nova York aponta que as pessoas se contaminam mais dentro do que fora de casa.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é impreciso. O Projeto Comprova demonstrou ser verdadeira uma pesquisa apontando que, de cada três novos pacientes de covid-19 no Estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos, dois estavam em casa. Mas isso não quer dizer que o distanciamento social determinado pelo estado norte-americano tenha falhado, e sim que essas pessoas tiveram contato com infectados. Em 6 de maio de 2020, o governador Andrew Cuomo falou em entrevista coletiva sobre os dados coletados pelo Departamento Estadual de Saúde que apontaram a contaminação domiciliar, mas ressaltou que a amostragem da pesquisa foi relativamente pequena e afirmou que o número de casos começou a cair no Estado depois das medidas de isolamento social, colocadas em vigor no dia 22 de março.

Auditoria do PSDB em 2014

O que Bolsonaro disse: Em 2014, no segundo turno, o PSDB duvidou da lisura e contratou uma auditoria. Conclui que as urnas são inauditáveis.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é impreciso. Depois do pleito de 2014, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aceitou um pedido do PSDB para auditar as urnas eletrônicas e concedeu acesso a dados, arquivos e parte dos programas usados nos equipamentos naquela eleição para uma auditoria externa. O relatório da investigação concluiu que não foi possível identificar fraudes na votação de 2014 e, de fato, destacou que o sistema não permitia uma auditoria externa independente e efetiva.

Apesar disso, o TSE sustenta que há diversas formas de auditar e recontar os votos, definidas na legislação eleitoral. Como explicado diversas vezes por agências de checagem e imprensa profissional, é possível auditar votações. No dia da eleição, cada urna eletrônica emite um comprovante com os votos recebidos, chamado de Boletim de Urna (BU). Esse documento é impresso pelos mesários e se torna público logo após o fim da votação – qualquer pessoa pode comparar os números impressos com o resultado divulgado pelo TSE.

No dia da eleição o TSE promove um sorteio de urnas eletrônicas que serão fiscalizadas. A ação é para verificar a autenticidade e demonstrar a integridade do processo eleitoral “para eleitores sem conhecimentos específicos em tecnologia”, como afirma o site do órgão. As urnas sorteadas são encaminhadas para os tribunais regionais eleitorais, onde é feita uma simulação de voto. “Cédulas em papel são preenchidas e depositadas em uma urna de lona, para que os participantes digitem esses votos tanto na urna eletrônica quanto em um sistema específico que computará os votos consignados em paralelo”, explica o TSE. Se houvesse fraude, apareceria uma divergência entre os números da urna de lona e os da urna eletrônica. Nunca foi constatada irregularidade.

Clarissa Pacheco, Luciana Marschall, Pedro Prata, Victor Pinheiro e Denise Chrispim, especial para o Estadão. Publicado originalmente em 22 de agosto de 2022 às 22h45.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Bolsonaro mente no JN e coloca condição para aceitar resultado das eleições

Presidente deu relato falso sobre atuação na pandemia e disse que nunca xingou ministro, mas já chamou Moraes de 'canalha'

O presidente Jair Bolsonaro em entrevista ao Jornal Nacional - Reprodução/TV Globo

O presidente Jair Bolsonaro (PL) colocou condições para aceitar os resultados das eleições e mentiu, durante sabatina no Jornal Nacional, ao tratar de ações na pandemia da Covid-19 e ao negar que tenha xingado ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).

Ele foi o primeiro candidato ao Planalto a participar da série de entrevistas com presidenciáveis no programa da TV Globo. Durante a sabatina, houve panelaços em diversas capitais do país.

No ano passado, Bolsonaro chamou o ministro Alexandre de Moraes de "canalha". Além disso, diante de apoiadores, já chamou o ministro Luís Roberto Barroso de "filho da puta".

Após ter dito no JN que nunca xingou algum magistrado do Supremo, o apresentador do programa, William Bonner, recordou do episódio em que chamou Moraes de "canalha".

Bolsonaro, então, admitiu que atacou o magistrado, mas disse que o entrevero teria sido apenas com ele —e omitiu o xingamento a Barroso.

No Jornal Nacional, Bolsonaro também mentiu sobre as ações do governo na pandemia, ao negar ter barrado a compra de vacinas.

O mandatário começou a entrevista mais calmo, dando respostas em um tom sereno. No decorrer do programa, porém, ficou mais irritado, principalmente após ser questionado se tinha algum arrependimento por ter imitado pessoas sem ar ao comentar os problemas da Covid-19.

Ele, porém, disse que foi solidário às vítimas da pandemia. "A solidariedade eu manifestei conversando com o povo nas ruas, visitando as periferias de Brasília, vendo pessoas humildes que foram obrigadas a ficar em casa sem ter um só apoio de governador ou prefeito", disse.

Bolsonaro também voltou a levantar dúvidas sobre a segurança das urnas eletrônicas, citando informações que já foram rebatidas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e pela própria PF.

O delegado Victor Neves Feitosa Campos, responsável pelo inquérito sobre o ataque hacker ao sistema do TSE que o presidente costuma citar, disse em depoimento à corporação que não encontrou indícios de que a ação pudesse ter resultado em manipulação de votos, fraude ou problemas na integridade das urnas.

O presidente foi cobrado pelos apresentados a assumir um compromisso de que respeitará o resultado das eleições. No entanto, novamente colocou uma condicionante de que faria isso se considerar que as eleições foram "limpas" —o que ele nega ocorrer, já que segue colocando em dúvida o sistema eleitoral do país.

"Serão respeitados os resultados das urnas desde que as eleições sejam limpas", afirmou o presidente.

Em outro momento, Bolsonaro foi questionado sobre as ações antidemocráticas de seus apoiadores, como a recorrente defesa da ditadura militar em manifestações em seu favor.

Respondeu que se trata de "liberdade de expressão". "Quando alguns falam em fechar o Congresso, é liberdade de expressão deles. Eu não levo para esse lado."

Bolsonaro tem feito neste ano seguidos ataques ao sistema eleitoral e aos ministros do STF para acusar uma suposta fraude caso não vença as eleições.

O sistema eletrônico de votação, porém, foi exaltado e ovacionado diante de Bolsonaro na posse do ministro Alexandre de Moraes como presidente do TSE, na semana passada.

A retórica golpista do presidente inclui ainda o flerte com as Forças Armadas, que participam de uma comissão de transparência eleitoral e, na prática, têm sido uma das linhas de frente do questionamento do presidente às urnas.

O ataque mais grave às urnas ocorreu em 18 de julho, quando ele chamou embaixadores estrangeiros para expor suas mentiras acerca das urnas e do processo eleitoral, repetindo argumentos já descartados após sua exposição em uma live no ano passado.

A reação veio no último dia 11, com um ato que reuniu milhares de pessoas para a leitura de duas cartas de apoio à democracia na Faculdade de Direito da USP. A primeira carta foi endossada por entidades como a Fiesp e centrais sindicais. Já a segunda, inspirada na Carta aos Brasileiros de 1977, ultrapassou 1 milhão de assinaturas.

No JN, Bolsonaro afirmou que não retardou a compra de vacinas e repetiu as alegações de que a Pfizer pretendia impor condições impraticáveis para fornecer os imunizantes. A CPI da Covid, no entanto, apontou que as propostas da farmacêutica americana ficaram meses sem resposta.

O presidente também se negou a afirmar que a aliança com o centrão foi contraditória em relação à campanha de 2018, quando costumava criticar duramente o grupo político composto por partidos de centro.

Bolsonaro aproveitou a oportunidade para elogiar seus ministros, mas deixou de fora da lista expoentes desse bloco que estão na Esplanada, como o chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, e o chefe das Comunicações, Fábio Faria.

Ao ser questionado sobre desmatamentos, o presidente respondeu que há 30 milhões de brasileiros vivendo na região e que isso deve ser foco de preocupação do governo. Na sequência, Bolsonaro ainda criticou o Ibama por destruir o maquinário das pessoas que devastam as florestas.

"A destruição [dos equipamentos], como está em lei, é se você não puder tirar o equipamento daquele local. O que vinha acontecendo e ainda vem, infelizmente, é que o material pode ser retirado do local, porque se chegou lá pode ser retirado e há o abuso de uma parte...", afirmou o presidente, sendo questionado de quem partiria o abuso. "Por parte do Ibama", acrescentou.

Bolsonaro também repetiu a estratégia usada em debates de 2018 e foi à entrevista com anotações na mão, com as seguintes palavras: Nicarágua, Argentina, Colômbia, Dario Messer.

As críticas do mandatário aos três países, que são comandados por governantes de esquerda, são recorrentes.

Em relação a Messer, que ele não mencionou na entrevista, a anotação ocorreu porque o doleiro já disse, em delação premiada, que realizou repasses de dólares em espécie à família Marinho, dona do Grupo Globo.

Em nota emitida na época, os proprietários da emissora negaram as acusações de Messer e ressaltaram que o doleiro não apresentou provas.

Ao final da entrevista ao JN, o presidente transmitiu em suas redes uma live, a partir do carro onde estava. Nela, voltou a chamar apoiadores para os atos do 7 de Setembro. Lembrou que haverá desfile militar, pela manhã, em Brasília, e que à tarde estará no Rio de Janeiro, com apresentações das Forças Armadas.

Projeção com réplica da cabeça de Bolsonaro é vista em prédio em São Paulo durante entrevista do presidente ao JN - Carla Carniel/Reuters

Nesta semana também serão sabatinados pelo JN os candidatos Ciro Gomes (dia 23), Luiz Inácio Lula da Silva (25) e Simone Tebet (26).

Apesar de Bolsonaro fazer críticas recorrentes à Globo e de já ter até orientado sua militância a não assistir a emissora, a entrevista ao Jornal Nacional foi tratada pelo entorno do presidente como um dos momentos mais importantes da campanha.

Bolsonaristas prepararam uma grande mobilização nas redes sociais para aumentar a repercussão da sabatina. A hashtag #BolsonaroNoJN foi usada em postagens nas redes sociais por ministros do governo, por filhos do mandatário e por outros aliados.

O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e o ministro das Comunicações, Fábio Faria (PP), publicaram nas redes um vídeo no qual Bolsonaro olhava para o celular e um interlocutor falava "olha a cara do presidente preocupado hoje com o JN". Bolsonaro então respondia: "Vou dar um beijo no [William] Bonner hoje."

A aposta de estrategistas da campanha era que a participação do mandatário no telejornal de maior audiência do país pudesse alavancar o presidente nas pesquisas e ajudar a expor ações do governo federal.

A entrevista concedida em 2018, por exemplo, foi amplamente explorada por seus apoiadores na época durante todo o período eleitoral.

Na ocasião, Bolsonaro defendeu a ditadura militar, espalhou fake news sobre livros distribuídos às escolas e questionou o salário da apresentadora Renata Vasconcellos.

O então candidato apresentou um exemplar do livro "Aparelho Sexual e Cia." e disse erroneamente que a obra havia sido entregue em colégios públicos. Na ocasião, porém, a Cia. das Letras, que editou o livro, afirmou que a publicação nunca foi distribuída em escolas pelo MEC (Ministério da Educação).

A Fundação Biblioteca Nacional, ligada ao Ministério da Cultura, comprou, em 2011, 28 exemplares do título, que foram distribuídos em bibliotecas públicas —não nas escolas.

O MEC, em 2016, já havia negado que tivesse adquirido exemplares desse título.

Nas negociações sobre a participação de Bolsonaro no JN neste ano, a campanha chegou a exigir que a sabatina fosse realizada no Palácio do Alvorada, argumentando que Luiz Inácio Lula da Silva (2006) e Dilma Rousseff (2014) tiveram o mesmo tratamento quando tentaram a reeleição.

O presidente depois cedeu e aceitou ir aos estúdios da emissora no Rio de Janeiro.

A participação no programa acontece em um momento de crescimento de Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto, que ocupa o segundo lugar, atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Levantamento do Datafolha divulgado na semana passada mostrou que o presidente conseguiu diminuir para 15 pontos percentuais a diferença para o líder Lula. A diferença entre os dois na pesquisa anterior, de 28 de julho, era de 18 pontos.

Essa foi a primeira pesquisa Datafolha divulgada após o início do pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600.

Apoiadores de Bolsonaro se reúnem em Belo Horizonte para assistir à entrevista no JN - Douglas Magno/AFP

Matheus Teixeira, Renato Machado e Ricardo Della Coletta, de Brasíia, DF, originalmente, para a Folha de S. Paulo, em 22.08.22 às 22h47.

Ucrânia organiza "desfile" de tanques russos capturados

Exibição em Kiev de veículos russos ocorre poucos dias antes da celebração do Dia da Independência da Ucrânia . "Invasores queriam realizar um desfile em nossa capital. Agora eles estão aqui. Como sucata", diz ministro.

"Os russos finalmente conseguiram seu desfile militar no centro de Kiev. No entanto, há uma pegadinha", tuitou o jornalista ucraniano Oleksiy Sorokin neste sábado (20/08), enquanto moradores de Kiev observavam ou tiravam selfies com vários tanques russos capturados ou destruídos que foram levados para serem exibidos em uma das principais vias da capital ucraniana.

A exibição das dezenas de veículos militares russos - entre tanques, peças de artilharia e blindados em geral - ocorre a poucos dias do aniversário da independência ucraniana. A data marca o 24 de agosto de 1991, quando o parlamento da Ucrânia, conhecido como Rada, proclamou a independência do país da antiga União Soviética.

Um site que contabiliza perdas de equipamentos militares na guerra estima que a Rússia já perdeu mais de 900 tanques.Foto: Kyodo/picture alliance

"Em fevereiro, os russos estavam planejando um desfile no centro de Kiev. Seis meses após o início da guerra, a vergonhosa exibição de metal russo enferrujado é um lembrete para todos os ditadores de como seus planos podem ser arruinados por uma nação livre e corajosa", disse uma mensagem com imagens dos tanques divulgada pelo perfil no Twitter do Ministério da Defesa da Ucrânia.

Anteriormente, um porta-voz das Forças Armadas ucranianas disse que os soldados russos que avançaram até os arredores de Kiev no início do conflito haviam trazido uniformes de desfile, numa demonstração de confiança de que a capital ucraniana seria facilmente capturada. Mas os russos acabaram se retirando das proximidades da capital e Moscou não conseguiu a vitória rápida que esperava contra os ucranianos.

Agora, os tanques russos estão em Kiev, mas como troféus de guerra.

No início de agosto, um site que contabiliza perdas de equipamentos militares na guerra da Ucrânia, apontou que Moscou já havia perdido 5.000 veículos militares desde o início da invasão, em 24 de fevereiro, incluindo mais de 900 tanques.

Um relatório de inteligência do Reino Unido aponta que a Rússia falhou em equipar adequadamente seus tanquesFoto: Nacho Doche/REUTERS

O ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov, por sua vez, tuitou: "Os agressores sonhavam em capturar Kiev em três dias. Os invasores pretendiam realizar um desfile em nossa capital. Ok. Eles estão agora aqui. Como toneladas de sucata", escreveu.

Na quinta-feira, um relatório de inteligência do Ministério da Defesa do Reino Unido relatou "grande desgaste" dos tanques russos na Ucrânia, que atribuiu parcialmente à "falha da Rússia em empregar adequadamente armadura explosiva reativa (ERA) adequada" nos veículos.

"Isso sugere que as forças russas não corrigiram uma cultura de mau uso do ERA, que remonta à Primeira Guerra da Chechênia em 1994", disseram autoridades de defesa britânicas.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 21.08.22

Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno, não perdoou o Judiciário de seu tempo

Gregório de Matos Guerra (1636-1696) não perdoou os magistrados de seu tempo. Pior. Foi um deles. Chegou a desembargador. Nasceu na Bahia. A família era rica. Viveu alguns anos em Portugal. Ocupou vários cargos na burocracia colonial. Irreverente, foi demitido e desterrado para Angola. Quando voltou para o Brasil foi proibido de ficar na Bahia. Morreu no Recife. Casou-se com uma viúva, a quem abandonou, bem como abandonou a advocacia.

Segundo José Guilherme Merquior, Gregório teve um impulso boêmio, bem semelhante ao que tomaria, nos "Velhos Marinheiros" de Jorge Amado, o Capitão Vasco Moscoso de Aragão. Os historiadores da literatura (José Veríssimo) dizem que Gregório era vaidoso, muito vaidoso. Talvez mais do que por ser poeta, o orgulho com o título de doutor fazia de Gregório um reincidente no mais pesado dos pecados capitais (a soberba). Era um letrado arrogante, como insinuavam os inimigos. E os tinha muitos.

Gregório de Matos insistia que a justiça protegia os poderosos: "O Fidalgo de solar se dá por envergonhado de um tostão pedir prestado para o ventre sustentar: diz, que antes o quer furtar por manter a negra honra, que passar pela desonra, de que lhe neguem talvez; mas se o virdes nas galés com honras de Vice-Rei, esta é a justiça, que manda El-Rei."

Também não perdoava advogados que contraditoriamente defendiam causas opostas: "Os letrados peralvilhos citando o mesmo doutor. a fazer de Réu, o Autor, comem de ambos os carrilhos: se se diz pelos carrilhos sua prevaricação, a desculpa, que lhe dão, é a honra de seus parentes e entonces os requerentes, fogem desta infame grei: esta é a justiça, que manda El-Rei." Tem-se a impressão de que acusava os advogados por receberem de ambos os lados.

Tinha horror dos juramentos: "No que toca aos juramentos, de mim para mim me admiro por ver a facilidade, com que os vão dar a juízo. Ou porque ganham dinheiro, por vingança, ou pelo amigo, e sempre juram conformes, sem discreparem do artigo... Dizem, que falam verdade, mas eu pelo que imagino, nenhum, creio, que a conhece, nem sabe seus aforismos."

Tratando de Gregório de Matos há um romance delicioso e imperdível, de autoria de Ana Miranda, uma de nossas mais notáveis romancistas, imbatível no romance histórico. Dedicado a Rubem Fonseca, a autora trabalhou dez anos na construção do enredo e na reconstrução do tempo do Boca do Inferno, que é o título desse belíssimo livro. O livro levou prêmio Jabuti de revelação em 1990 e é um marco nesse dificílimo campo que é o romance histórico.

Ana Miranda, que é cearense (e que viveu em Brasília e no Rio), vinculou definitivamente Gregório de Matos à Bahia que "não deixaria de ser, nunca, a cidade onde viveu o Boca do Inferno". A autora descreve um tempo barroco, como se barroca fosse; a Bahia, "parecia ser a imagem do Paraíso. Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para o Inferno".

Gregório de Matos foi pesado com Salvador: "Que falta nesta cidade? Verdade. Que mais por sua desonra Honra Falta mais que se lhe ponha Vergonha. (...) E que justiça a resguarda? Bastarda. É grátis distribuída? Vendida! Quem tem, que a todos assusta? Injusta. Valha-nos Deus, o que custa, O que El-Rei nos dá de graça, Que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta." Essa poesia, que para alguns é crueldade, para outros exibicionismo, pode ser na verdade absoluta expressão da coragem.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, o autor deste artigo, é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Publicado originalmente no Consultor Juridico, em 21.08.22

Atentar contra a democracia é crime

Neste 7 de Setembro, há uma novidade importante. Aprovada no ano passado, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito está vigente

Diante da informação, revelada pelo jornal Metrópoles, de que empresários bolsonaristas se articulam para, em caso de derrota nas urnas, impedir a posse de quem o povo eleger, é preciso lembrar que, nestas eleições, há uma novidade importante. Aprovada pelo Congresso no ano passado, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021) está vigente. O País conta agora com uma nova proteção jurídica para fazer respeitar o regime democrático, o que pode e deve servir de alerta a todos aqueles que tentam burlar as regras do jogo democrático, bem como às autoridades competentes. Polícia e Ministério Público têm o dever de proteger o Estado Democrático de Direito.

Além de revogar a antiga Lei de Segurança Nacional (LSN, Lei 7.170/1983), a Lei 14.197/2021 criou no Código Penal uma seção específica para os tipos penais contra o Estado Democrático de Direito, incluindo crimes (i) contra a soberania nacional, (ii) contra as instituições democráticas, (iii) contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral e (iv) contra o funcionamento dos serviços essenciais. Continuam vigentes todos os direitos e garantias fundamentais, como as liberdades de expressão, de opinião e de associação, mas atentar contra a democracia é agora um crime previsto no Código Penal.

Trata-se de importante aperfeiçoamento da legislação penal, cuja finalidade é precisamente proteger os bens essenciais de uma sociedade. Por exemplo, não fazia sentido o Código Penal punir o ato de desacatar um funcionário público e, ao mesmo tempo, deixar impune um atentado contra o regime democrático.

Com a entrada em vigor da Lei 14.197/2021, é crime “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, com pena de reclusão de quatro a oito anos, além da pena correspondente à violência. Vale frisar que o Código Penal pune não apenas a extinção do Estado Democrático de Direito, e sim sua tentativa, “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.

O Congresso traçou uma linha nítida. Ações, com emprego de violência ou grave ameaça, para impedir ou restringir o exercício do Legislativo, do Judiciário ou do Executivo não são mera expressão de opinião. Não são gestos políticos aceitáveis. São crimes, a exigir a atuação da polícia e do Ministério Público.

É também crime, com pena prevista de três a seis anos de reclusão, “impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral”. Essa disposição do Código Penal é muito significativa nos tempos atuais, expressando e reiterando que a paz nas eleições é um bem de grande relevância para a sociedade. A punição não está reservada apenas a quem impedir a votação ou a apuração dos votos, mas também a quem “perturbar a eleição”.

Corretamente, a Lei 14.197/2021 definiu de antemão que não constitui crime a manifestação crítica aos Poderes constitucionais, assim como a “reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”. Num país livre, a manifestação política é livre. O importante é, como a nova lei o faz, diferenciar entre o que é crítica e manifestação de pensamento e o que é ameaça, violência ou perturbação do livre funcionamento das instituições democráticas, em especial das eleições.

Não é segredo que, tal como houve no ano passado, bolsonaristas pretendem utilizar o 7 de Setembro para intimidar o Judiciário e o Legislativo. A diferença é que, no ano passado, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito ainda não estava vigente. Agora ela está, o que confere um caráter criminoso a todas as movimentações que visam a impedir a validade do resultado das urnas. Não há nenhum patriotismo na prática de crimes.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 22.08.22

Volta do PT ao poder e reeleição de Bolsonaro causam medo no eleitor

Pesquisa mostra que 45% dos eleitores têm medo da continuidade do atual governo e 40% temem um novo mandato de Lula; campanhas atuam para reforçar sentimento

O ex-presidente Lula durante comício no Vale do Anhangabaú; petista lidera as pesquisas de inteção de voto  Foto: Marcelo Chello/AP

Uma grande parte do eleitorado diz ter medo da volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder e da reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). Os dois rivais, que lideram as pesquisas de intenção de voto, provocam nos brasileiros o mesmo sentimento de temor do que pode ocorrer se forem eleitos.

Os motivos do medo, segundo pesquisas de opinião, têm base em fatos concretos das trajetórias dos dois candidatos. O eleitor teme que, com Lula, voltem a corrupção, o alinhamento internacional com ditaduras de esquerda e o empoderamento de pautas progressistas – tema delicado para os segmentos conservadores. Com Bolsonaro, o medo é de aumento da pobreza, acirramento do discurso de ódio e até de uma ruptura democrática.

Fake news têm sido usadas para reforçar o medo que o eleitor já tem. A mistura de fatos concretos com pós-verdade (a disseminação deturpada de informações que se sobrepõem aos fatos em si) fortalece o sentimento negativo no eleitor com relação aos dois.

Levantamento feito pela Quaest para a Genial Investimentos apontou que 45% dos eleitores têm mais medo da continuidade do governo Bolsonaro; 40% temem a volta do PT. A diferença entre os dois grupos caiu de 17 para apenas cinco pontos porcentuais entre junho e agosto. O levantamento, divulgado semana passada, não considera a intenção de voto em um candidato específico, mas o sentimento do eleitor na hora da escolha.

Pesquisadores estimam que metade do eleitorado não é fiel nem a Bolsonaro e nem a Lula, mas admite votar em um por ter medo do outro. “Existem dois polos muito influentes na cabeça do brasileiro, e existe um eleitor que não é apaixonado por nenhum desses dois polos, mas acaba ficando de um lado porque tem medo do que o outro representa”, diz o cientista político Bruno Soller, do Instituto Real Time Big Data.

Segundo Soller, o medo de Lula cresce com a sensação de volta da corrupção, alinhamento internacional com ditaduras de esquerda, risco para o empresariado, empoderamento de pautas como aborto, drogas e LGBTQUIA+ e a fragilidade no combate ao crime.

Histórico

O governo do petista foi marcado por escândalos de corrupção, como o mensalão, que envolvia compra de apoio no Congresso. Quatro integrantes do primeiro escalão do PT foram presos, incluindo José Dirceu e José Genoino. Depois do impeachment de sua sucessora, Dilma Rousseff, o próprio Lula foi encarcerado pela Operação Lava Jato, em 2018, acusado de receber propina de empreiteiras em troca de favores no governo. Os processos contra ele foram arquivados, mas por falhas processuais.

Como presidente, Lula se alinhou a Hugo Chávez na Venezuela e a ditaduras na África, como a de Omar Bongo no Gabão e de Teodoro Obiang na Guiné Equatorial. Também fez alianças com Kadafi na Líbia e José Eduardo dos Santos em Angola.

O medo de Bolsonaro nos eleitores, por outro lado, está associado à piora na condição de vida dos mais pobres, no acirramento do discurso de ódio contra minorias, na falta de preparo para comandar crises como a pandemia, na ruptura democrática e no isolamento internacional.

Bolsonaro termina os quatro anos de mandato como um pária por ignorar fóruns globais. Aliado de Donald Trump, ele não reconheceu a eleição de Joe Biden nos Estados Unidos num primeiro momento e travou um embate direto com o presidente da França, Emmanuel Macron, envolvendo questões ambientais.

Na pandemia, negou a doença que matou mais de 680 mil pessoas no Brasil e foi contra a vacinação. O Supremo Tribunal Federal (STF) investiga uma rede de fake news operada por aliados diretos dele para atacar seus adversários. Já na economia, Bolsonaro encerra os quatro anos de gestão com número recorde de pessoas em situação de pobreza.

Insegurança

Um dos mais tradicionais políticos do MDB, o ex-governador gaúcho Pedro Simon afirma que o comportamento imprevisível de Bolsonaro e sua postura radical reforçam o temor do eleitor com um segundo mandato. “A gente olha para o Bolsonaro, vê que ele é uma pessoa que não passa em um (teste) psicotécnico. É uma pessoa que a gente não tem confiança.”

Lula, por sua vez, na avaliação de Simon, provoca medo ao emitir sinais dúbios. “Em primeiro lugar, ele não foi absolvido, anularam o processo, mas não esclareceram o assunto. Segundo, essa interrogação do Lula... Trazer como seu vice uma pessoa da qual ele disse horrores lá atrás é uma grande interrogação”, declarou.

“Para o Lula, a área mais complicada e sensível é a questão do combate à corrupção e o desempenho do PT durante o mandato de sua sucessora, que não trouxe bons frutos”, complementou o cientista político e professor do Insper Leandro Consentino.

Provocar medo no eleitorado sempre foi uma estratégia dos marqueteiros de campanhas eleitorais. A diferença agora é que, pela primeira vez, estão na disputa um ex-presidente contra o atual. Lula e Bolsonaro são as duas maiores lideranças políticas do País, ambos têm torcidas e suas gestões e histórias despertam no eleitor incertezas sobre que Lula ou que Bolsonaro virão nesse possível novo mandato.

Após ter trabalhado em 91 campanhas majoritárias pelo País, o cientista político Antonio Lavareda afirma que o medo é uma das ferramentas emocionais usadas pelas candidaturas para reforçar os sentimentos de raiva e ansiedade. “Os brasileiros estão inseguros com o seu futuro, com o futuro das suas famílias. Isso desperta ansiedade e leva as pessoas a reavaliarem as escolhas anteriores”, afirmou.

Em 1989, o então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Mário Amato, causou polêmica ao dizer que 800 mil empresários deixariam o País se Lula ganhasse. Em 1995, a campanha de Fernando Henrique Cardoso aproveitou o sucesso do Plano Real para propagar o medo da volta da inflação. A disputa de 2002 foi marcada pela atriz Regina Duarte, na campanha de José Serra. “Eu tenho medo”, disse, em relação a Lula. Em 2014, a propaganda da petista Dilma Rousseff divulgou que a proposta de Marina Silva (então no PSB, hoje na Rede), de dar autonomia ao Banco Central tiraria comida da mesa das famílias. A fake news do PT ajudou a derrubar a adversária.

A “campanha do medo” deste ano reeditou Regina Duarte. Na terça-feira, 16, ela, que foi secretária de Cultura de Bolsonaro, disse que o presidente “é exemplo de democracia para o mundo”. “Como em 2002, eu tenho medo (de Lula)!”, repetiu a atriz.

Do outro lado, o deputado André Janones (Avante-MG), que tem forte presença nas redes sociais, entrou de cabeça na campanha digital de Lula e tem se referido a Bolsonaro como “futuro presidiário”.

Daniel Weterman e Lauriberto Pompeu, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 22.08.22

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

A campanha da mentira começou e Lula não está pronto para enfrentar Bolsonaro

Entre os candidatos democratas, é preciso ter uma máquina que saiba reagir à desinformação

Ex-presidente Lula e presidente Jair Bolsonaro são os favoritos na corrida ao Palácio do Planalto (Até agora, digo eu, o editor do blog)

O vídeo impressiona de tão bem editado. Renata Vasconcellos, âncora do Jornal Nacional, apresenta a pesquisa do Ipec anunciada na segunda. Quando corta para o gráfico, porém, os números contam uma história bem distinta daquela que realmente foi ao ar.

No vídeo que bomba no WhatsApp, o presidente Jair Bolsonaro (PL) lidera com 44%, seguido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 32%. O Ipec de verdade afirmou exatamente o contrário. Mas a edição do áudio é tão precisa que o receptor desavisado não perceberá nada. A máquina bolsonarista de fake news já está a toda. Começou o inferno que será esta eleição. E o principal adversário do presidente, Lula, está completamente despreparado para esta batalha.

A campanha do presidente trabalha de forma sofisticada a desinformação – há coordenação. O foco da semana foi um dos eleitores chaves desta eleição: o brasileiro evangélico.

A máquina bolsonarista de fake news já está a toda

Na publicidade oficial, Bolsonaro circulou calado enquanto a primeira-dama, Michelle, falava. Ele precisa conquistar mais mulheres, corte que dá imensa vantagem a Lula. Entre evangélicos, mulheres formam maioria. Por ser mulher, Michelle gera empatia. Ela também fala a língua dos louvores. Enquanto parte da elite olha constrangida, cheia de preconceitos , Michelle está num espaço em que se move à vontade

Enquanto ela falava de um Palácio do Planalto consagrado a Deus hoje, corriam informações absolutamente mentirosas no Zap. Por exemplo, a de que, se eleito, Lula mandaria fechar templos.

A vítima hoje é Lula – fossem Ciro Gomes (PDT) ou Simone Tebet (MDB) em primeiro, seriam ele ou ela. Mas enquanto o bolsonarismo atacava a credibilidade do petista, nos Zaps oficiais da campanha de Lula havia figurinhas do candidato. Nos grupos não-oficiais, o clima era um de indignação. Não com Bolsonaro, mas com quem se fiava em pesquisas que sugeriam uma eleição apertada.

Demorou quase uma semana para que um discurso de defesa contra esta linha de ataque começasse a aparecer.

Num mundo ideal, não haveria ameaça à democracia. Não haveria grupos de Zap de empresários bolsonaristas defendendo uma Ditadura. Num mundo ideal, um dos candidatos não teria uma máquina publicitária baseada exclusivamente na mentira. Mas não vivemos no mundo ideal.

Sobram os candidatos democratas – Lula, Ciro, Simone. Principalmente Lula, por estar na frente. É preciso ter uma máquina que saiba reagir à desinformação. Houve quatro anos para prepará-la.

Pedro Dória, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 18.08.22, às 17h26

O equilíbrio essencial à democracia

Devemos realizar promessas sociais para afastar as sombras do autoritarismo

Convidado a debater o equilíbrio entre os Poderes no seminário que a Esfera Brasil promove nesta sexta-feira (19), em São Paulo, ao lado do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, e dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), lanço uma provocação: qual é o equilíbrio democrático que buscamos neste mundo de profundas mudanças?

Vivemos tempos de disrupção tecnológica e de uso de algoritmos que conduzem multidões para o conflito. Trata-se de desafios ainda não totalmente assimilados pela sociedade e pelas instituições democráticas em particular, mas que têm gerado severa erosão do espaço político e social da democracia liberal.

Às instituições cumpre diagnosticar, com precisão, as razões do desgaste do modelo democrático em todo o mundo. Precisamos refletir sobre o papel do Estado diante de uma cidadania mais consciente de seus direitos e carente de respostas na velocidade própria do mundo digital. É essa mesma cidadania que está sujeita aos perigos da desinformação em massa e das notícias fraudulentas produzidas nas bolhas antidemocráticas.

No Brasil, desde as manifestações de 2013, vivemos uma sucessão de momentos turbulentos. Tendo a Constituição como norte, nossa jovem democracia tem mostrado resiliência institucional. Mas só resiliência não é suficiente. As insurgências contra nossa democracia se sustentam em sentimentos difusos de insatisfação da população em face do Estado e da precária implementação das promessas constitucionais.

Alcançar esse novo equilíbrio requer foco na cidadania. O Estado é provedor de direitos, de segurança e de múltiplos serviços. Com a instantaneidade da era digital, a cidadania exige respostas efetivas e céleres. Os cidadãos e as cidadãs não aceitam mais ficar em compasso de espera. A eficiência do Estado é a chave para o resgate da confiança na democracia, mediante a entrega de melhores serviços

Como gerar esses resultados em tempos de crispação? O conflito permanente impõe custos pesados à economia e, sobretudo, aos mais pobres e marginalizados pela desigualdade. As urgências da cidadania exigem diálogo propositivo, serenidade e resolução democrática e pacífica das diferenças.

Nesse caminho, a harmonia e o equilíbrio de forças entre os Poderes são fundamentais. Cabe à política —por meio dos representantes eleitos para o Executivo e o Legislativo— liderar a realização das exigências da cidadania a tempo e modo adequados às exigências sociais.

Na busca pelo equilíbrio, cabe ao Judiciário garantir segurança jurídica e harmonia social. Cabe a ele realizar o direito na vida do cidadão e manter a estabilidade democrática, tendo como guia a Constituição.

O momento é oportuno. Em outubro, cada cidadão projetará nas urnas seus anseios e, assim, participará do ritual de renovação da democracia. As urgências do Brasil exigem propostas, programas e rumos claros. É preciso indicar concretamente à cidadania os caminhos que se pretende percorrer. Insultos e gritaria não resolvem os problemas nacionais.

A democracia brasileira já mostrou sua pujança. Foi nela que superamos desafios como os da dívida externa, da alta inflação, da indisciplina fiscal na federação e da instabilidade da moeda. Na área social, também há conquistas a celebrar, como nosso sistema público de saúde —cuja importância testemunhamos nesta trágica pandemia— e nossos mecanismos econômicos e sociais de distribuição de renda e de atendimento à população mais vulnerável.

Mas ainda precisamos de soluções para questões concretas e urgentes relativas à educação, à segurança pública, aos regimes tributário e fiscal, à administração pública e à desburocratização. Problemas como as profundas desigualdades sociais e regionais, a pobreza, a marginalização, a situação de risco de crianças e jovens, a violência doméstica e de gênero, dentre outros, são grandes óbices à concretização da cidadania e da justiça social no Brasil.

Como já advertia Hannah Arendt, as soluções totalitárias surgem como uma forte tentação "sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica do homem de um modo digno". Para afastar as sombras do autoritarismo, em democracia e para a preservação da própria democracia, precisamos ser capazes de realizar as promessas sociais da Constituição Cidadã. É assim que vamos alcançar o equilíbrio essencial à democracia: o equilíbrio social que se constrói com a superação das desigualdades, a partir de uma sociedade mais desenvolvida, justa e igualitária.

José Antonio DIAS TOFFOLI, o autor deste artigo, é Ministro do Supremo Tribunal Federal - STF. Foi Presidente do TSE e do STF. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.08.22, às 21h00

Risco de golpe bolsonarista cai, mas o de confusões continua alto

Só estaremos seguros mesmo quando Bolsonaro estiver no xadrez

Posse de Alexandre de Moraes no TSE - Mateus Vargas - /Folhapress

Menos de uma semana após a sociedade civil ter afirmado de forma crível que não aceitará um golpe, foi a vez de a classe política dizer o mesmo. A mensagem foi dada na posse do ministro Alexandre de Moraes como presidente do TSE. A impressionante salva de palmas que as urnas eletrônicas receberam no discurso de Moraes mostrou que não será fácil desacreditar o sistema de contagem de votos. A Bolsonaro, que estava no evento, só restou fazer cara de tacho.

Isso significa que agora o presidente vai parar com a pregação golpista? Não é tão simples. Até acho que Bolsonaro entendeu que as resistências a seu plano de pôr as eleições sob suspeição serão maiores do que ele antecipava, mas daí não decorre que a estratégia será abandonada. O problema de Bolsonaro é que, quando acuado, ele só sabe reagir radicalizando.

Bolsonaro, porém, não era o único destinatário dos recados. Os comandantes militares também os ouviram e espera-se que os tenham assimilado de forma mais madura que o presidente. Isso significa que estamos livres do risco de insurreições pós-eleitorais? De novo, não é tão simples. Não creio que as Forças Armadas entrarão numa aventura golpista, mas não é impossível que eleitores de Bolsonaro, eventualmente militares, policiais ou só valentões, o façam por conta e risco. Foi um pouco esse o perfil dos revoltosos que invadiram o Capitólio em Washington em 2021.

Com um exército de Brancaleone fica difícil ter êxito numa empreitada sediciosa, mas é o que basta para criar confusão. Pessoas meio malucas, armadas e agindo sem comando hierárquico e sem objetivos definidos ficam ao sabor de flutuações quânticas. Podem tanto acovardar-se ao primeiro sinal de resistência quanto envolver-se em incidentes com mortes, como ocorreu nos EUA.

A defesa das instituições está hoje em melhor posição do que há 15 dias, mas só estaremos seguros mesmo quando Bolsonaro estiver no xadrez.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.08.22, às 18h02

'Putain du Centrao': cobertura global tenta traduzir 'tchutchuca'

Francês Le Figaro e argentino La Nación usam alternativas como 'perrita del Centrao'; outros evitam expressão ao noticiar

Apoiada em vídeo, a notícia do confronto físico entre Jair Bolsonaro e o influenciador Wilker Leão deu volta ao mundo, com a cobertura se esforçando para traduzir "tchutchuca do Centrão", um dos insultos usados contra o presidente-candidato.

O conservador francês Le Figaro, com AFP, usou "putain du Centrao", prostituta do Centrão, e explicou que Leão perguntou "por que ele havia se aliado a uma nebulosa de partidos que comercializam seu apoio para obter vantagens".

O Washington Post, com AP, descreveu o insulto como "the 'darling' of a pork-barrel faction in Congress", o "queridinho" de uma facção clientelista no Congresso. E ouviu de um analista da Medley Advisors que "foi muito ruim para o presidente em termos eleitorais, mostra falta de contenção".

Outros americanos, como Bloomberg, noticiaram sem a expressão. "Tchutchuca", registre-se, já havia levado a um esforço de tradução no exterior há três anos, quando o deputado Zeca Dirceu usou a palavra para se referir ao ministro Paulo Guedes.

O vídeo chegou a sites como o diário econômico NBD, de Xangai (acima). O jornal Huanqiu, o original em chinês do Global Times, e o portal Sohu noticiaram, traduzindo "tchutchuca" como 宠儿 ou chǒng ér, que significa "queridinho", no caso, "dos membros do Congresso envolvidos na alocação de verbas".

Em russos como Gazeta.Ru e a emissora OTR, destacados pelo agregador Yandex, a expressão foi evitada, falando genericamente em "perguntas desconfortáveis" e "obscenidades".

Alemães como Der Spiegel também evitaram, mas não a RND, que traduziu o insulto por "liebling politischer hinterwäldler", algo como "queridinho dos políticos caipiras" ou do interior.

Na Argentina, o Página/12, usualmente mais severo com Bolsonaro, também evitou, mas o conservador La Nación não se conteve: "perrita del Centrao", cadelinha do Centrão.

Nelson de Sá, o autor deste texto, é Jornalista. Publica a coluna Toda Mídia e cobre cultura e tecnologia para a Folha de S. Paulo. O texto acima foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 19.98.22, às 12h51.

Jornalista, publica a coluna Toda Mídia e cobre cultura e tecnologia

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A diferença entre direito e regalia

Indenizações generosas pagas a militares que passam para reserva distorcem direito à proteção social da categoria

O pagamento de generosas remunerações a militares nos últimos anos, revelado recentemente pelo Estadão, expõe de forma cristalina um dos elos que sustentam a relação entre o presidente Jair Bolsonaro e as Forças Armadas. 

No auge da pandemia de covid-19, quando o País buscava uma forma de ajudar milhões de famílias vulneráveis e contabilizava milhares de mortes diárias em decorrência de uma doença ainda sem vacinas nem tratamento eficaz, o governo depositava valores milionários a militares como Walter Braga Netto e Bento Albuquerque, que ocupavam os Ministérios da Casa Civil e de Minas e Energia à época, e a Luiz Eduardo Ramos, à frente da Secretaria-Geral da Presidência da República.

Os dados, levantados pelo deputado Elias Vaz (PSB-GO), jogam luz sobre benesses exclusivas, que garantem à categoria militar a invejável condição de aumentar a renda na aposentadoria – chamada de passagem para a reserva. O Ministério da Defesa argumentou haver amparo legal em todos os pagamentos, que incluíram indenizações por férias, adicionais e licenças especiais não usufruídas ao longo da carreira. A força do relatório do deputado está na revelação de que a situação dos ministros não é caso isolado. Quase 1,6 mil militares receberam mais de R$ 100 mil por mês entre janeiro e maio deste ano, totalizando despesas de R$ 262,5 milhões. Entre os contemplados está o ex-ministro Eduardo Pazuello, conhecido pela ruinosa gestão à frente do Ministério da Saúde e por ter violado a disciplina militar ao participar de um comício bolsonarista quando ainda era general da ativa. Ele recebeu R$ 305,4 mil em março.

É um fenômeno que o colunista Pedro Fernando Nery, do Estadão, chamou de “marechalcracia”, que garante aos militares uma promoção de patente na passagem para a reserva, a integralidade dos vencimentos e o direito de se aposentar com a maior remuneração da carreira. Aos privilégios que já vigoram há anos, Bolsonaro adicionou novos apanágios. No ano passado, permitiu que os militares acumulassem salários e aposentadorias acima do teto constitucional de R$ 39,2 mil, medida autorizada por portaria e que beneficiou inclusive o próprio presidente. Recentemente, criou um bônus para o militar que continua trabalhando mesmo depois de atingir o tempo para passar à reserva. Aos trabalhadores civis que se aposentam pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), resta arcar com um benefício calculado a partir da média das contribuições e limitado a um teto de pouco mais de R$ 7 mil, que proporciona um padrão de vida bem mais modesto.

O assunto suscita o debate sobre a diferença entre legalidade e moralidade. As indenizações militares podem até não violar nenhuma lei, mas são constrangedoras do ponto de vista moral, considerando os valores auferidos e o momento em que eles foram pagos. Como instituições permanentes de Estado, as Forças Armadas exigem dedicação exclusiva de seus quadros; em contrapartida, o País oferece uma proteção social permanente aos que seguem a carreira e às suas famílias. É um direito que deve ser preservado, mas que não pode ser distorcido ou usado como pretexto para a concessão de regalias.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18.08.22

Demonstração de união contra o golpismo

Ao expressar firme união do País em torno da democracia e do TSE, cerimônia de posse de Alexandre de Moraes foi auspiciosa. Não há espaço para devaneios golpistas  

Em tempos normais, a cerimônia de posse de um novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é ato meramente protocolar e burocrático. Como não vivemos tempos normais, a posse do ministro Alexandre de Moraes na presidência do TSE, anteontem, foi meticulosamente organizada para expressar a imperturbável disposição de fazer valer a vontade dos eleitores nas eleições de outubro, ante as ameaças golpistas do presidente Jair Bolsonaro.

Além do próprio presidente Bolsonaro, estiveram presentes os presidentes da Câmara e do Senado, o presidente do Supremo Tribunal Federal, quatro ex-presidentes da República, numerosas autoridades de diversas esferas, parlamentares, candidatos e lideranças da sociedade civil. Ou seja, a República compareceu em peso para ouvir o ministro Alexandre de Moraes garantir que o sistema eleitoral, difamado por Bolsonaro, é seguro e transparente. Foi aplaudido de pé.

A cerimônia de posse do novo presidente do TSE expressou a firme união do País em torno da democracia e de sua Justiça Eleitoral. As urnas eletrônicas não são um tema que cause divisão na sociedade. Ao contrário: como mostraram os atos suprapartidários em favor do atual sistema de votação na semana passada, a campanha bolsonarista contra o sistema eleitoral é artificial e minoritária. Sem provas e sem apoio, Jair Bolsonaro, claramente deslocado na cerimônia do TSE, está cada vez mais solitário na tentativa de difamar e bagunçar as eleições brasileiras.

Com o auditório do TSE inteiramente lotado, Alexandre de Moraes disse que a cerimônia de posse simbolizava “o respeito pelas instituições como único caminho de crescimento e fortalecimento da República e a força de democracia como único regime político onde todo poder emana do povo e deve ser exercido pelo bem do povo”. Ou seja, se os tempos têm um evidente caráter excepcional, com o presidente da República tentando interferir explicitamente no processo eleitoral, é também evidente que o País e suas instituições estão do lado da democracia. Não há espaço para devaneios golpistas.

“Somos a única democracia do mundo que apura e divulga os resultados eleitorais no mesmo dia, com agilidade, segurança, competência e transparência. Isso é motivo de orgulho nacional”, disse o novo presidente do TSE, sendo ovacionado pela plateia. Eis a resposta da sociedade aos ataques de Bolsonaro: uma união ainda mais forte, um reconhecimento ainda mais explícito, um aplauso ainda mais entusiasmado à Justiça Eleitoral.

As palmas eram também um reconhecimento do trabalho feito até aqui pelo anterior presidente do TSE, ministro Edson Fachin. Nas justas palavras do corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Mauro Campbell Marques, Edson Fachin mostrou na presidência do TSE um firme compromisso com o exercício do diálogo, com a transparência e com a harmonia institucional entre seus integrantes.

Com suas circunstâncias peculiares, a cerimônia de posse do novo presidente do TSE serviu para reiterar um aspecto fundamental do processo eleitoral: seu caráter civil. Os militares não foram citados nos discursos. E essa ausência, longe de representar qualquer menoscabo, é importante reconhecimento do papel constitucional das Forças Armadas. Respeitam-se os militares respeitando suas funções, que nada têm a ver com contagem de votos.

Ao expressar a firme união do País em torno da democracia e do TSE, a cerimônia de posse foi especialmente auspiciosa. Mas os desafios continuam. Como lembrou Alexandre de Moraes, “liberdade de expressão não é liberdade de agressão, de destruição da democracia, das instituições, da dignidade e da honra alheias”. O novo presidente do TSE prometeu uma atuação da Justiça Eleitoral célere, firme e implacável no combate à desinformação e a outras práticas abusivas, de forma a “proteger a integridade das instituições do regime democrático e a vontade popular”.

Em sua fala, o procurador-geral da República, Augusto Aras, garantiu que o Ministério Público “respeita o voto votado e o voto apurado” e que está especialmente atento à defesa do sistema eleitoral. É o que o País espera. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18.08.22

Chamado de 'tchutchuca do Centrão', Bolsonaro reage e puxa camisa de youtuber; veja o vídeo

Influencer Wilker Leão, que costuma gravar vídeos provocando bolsonaristas no Palácio da Alvorada, também chamou presidente de covarde

O presidente Jair Bolsonaro se envolveu em uma confusão ao agarrar a camisa e tentar tirar o celular de um youtuber após ser provocado durante conversa com apoiadores na manhã desta quinta-feira, ao deixar o Palácio da Alvorada, em Brasília. Wilker Leão, que tem um canal na internet, chamava o presidente de "tchutchuca do Centrão" e questionava medidas tomadas por Bolsonaro, quando foi confrontado pelo presidente. O vídeo da confusão foi publicado pelo portal G1.

Perfil: Saiba quem é Wilker Leão, youtuber que irritou Bolsonaro ao chamá-lo de 'tchutchuca do Centrão'

Antes do embate com Bolsonaro, Wilker já havia sido derrubado no chão por apoiadores do presidente. O influencer costuma ir à saída do Alvorada para gravar vídeos nos quais provoca Bolsonaro e militantes bolsonaristas. Em abril deste ano, Wilker já havia discutido com o presidente após questionar Bolsonaro sobre declarações a respeito da realidade de cabos e soldados do Exército nos quartéis.

No episódio desta quinta-feira, Bolsonaro cumprimentava apoiadores na saída do Palácio do Alvorada quando começou a ser questionado por Wilker:

— Por que o senhor limitou delação premiada, presidente? — perguntou, sendo empurrado em seguida.

Após a queda, Wilker Leão perguntou a Bolsonaro o que ele achava desta violência e foi ignorado pelo presidente, o influencer, no entanto, continuou gritando xingamentos em meio aos bolsonaristas:

—Quero ver se você é corajoso de sair para conversar comigo, tchutchuca do Centrão. O Lula é ladrão também, mas esse aí está fazendo tudo que o PT faz, senão o PT volta — disse Wilker Leão. — Seu covarde, tchutchuca do Centrão. Safado! Você é vagabundo.

Após essas falas, o presidente saiu do carro e foi em direção a Wilker tentando tirar o celular da mão do influencer.

— Vem cá, quero falar contigo, vem cá— disse Bolsonaro enquanto puxava o youtuber pela camisa e segurava seu braço.

Paula Ferreira, de Brasília-DF para O Globo, em 18.08.22