sexta-feira, 13 de maio de 2022

Bruxelas alerta para as graves deficiências dos exércitos europeus face à capacidade de agressão da Rússia

A Comissão Europeia quer assumir a coordenação do rearmamento da UE para garantir que o maior investimento em defesa desde a Segunda Guerra Mundial seja eficiente

Exercícios da OTAN durante a Operação Lança de Ferro 2022, em 11 de maio no acampamento militar de Adazi (Letônia). (INTS KALNINS /REUTERS)

A Comissão Europeia fez um inventário das deficiências do investimento europeu na defesa e o resultado do exercício, ao qual o EL PAÍS teve acesso, revela uma situação de vulnerabilidade assustadora, sobretudo num cenário de guerra aberta como a provocada pela Rússia em 24 de fevereiro passado. O órgão presidido por Ursula von der Leyen insta os governos dos 27 Estados membros a fortalecer suas capacidades porque a agressão russa contra a Ucrânia "deteriorou substancialmente o cenário de segurança na União Europeia". Mas ele pede que seja feito de forma coordenada e exige a Bruxelas a tarefa de organizar e incentivar o rearmamento para garantir que as deficiências mais graves dos exércitos europeus sejam cobertas.

A defesa dos países europeus tem quase tantos calcanhares de Aquiles quanto soldados. A lista de deficiências, elaborada pelo braço executivo da UE a pedido do Conselho Europeu, inclui defesas aéreas para proteger cidades ou infraestruturas-chave de ataques de mísseis, drones de vigilância e aviões de combate, tanques ou forças navais. Somam-se a esta falta de armas de grande porte os obstáculos de mobilidade e logística, a ausência de uma rede de conectividade via satélite com cobertura europeia e criptografada, falhas na segurança cibernética ou falta de munição após envios de material para ajudar o exército ucraniano.

A minuta do documento da Comissão repete várias vezes que esta situação é insustentável em vista do "aumento das ameaças à segurança". E ele ressalta que a guerra do presidente russo Vladimir Putin contra a Ucrânia revelou "os efeitos negativos, não apenas de anos, mas décadas, de baixos gastos com defesa em tempos de paz".

Bruxelas calcula que as despesas europeias com a defesa, que rondavam os 200.000 milhões de euros por ano antes da guerra na Ucrânia, aumentarão cerca de 60.000 milhões por ano se os 21 países da União que pertencem à OTAN atingirem o objectivo de investir na defesa o equivalente a 2% do PIB. Em todo o caso, a Comissão dá como certo que “a Europa enfrenta o maior aumento das despesas militares nos Estados-Membros desde o final da Segunda Guerra Mundial”.

Mas a Comissão receia que esta volumosa injecção não atinja a sua plena eficácia se for feita à escala puramente nacional , com o risco acrescido de beneficiar indústrias não comunitárias se for feita sem dar prioridade ao desenvolvimento de projectos continentais. “Infelizmente, outros aumentos de gastos anteriores tiveram desempenho inferior a nossos aliados e, o que é muito pior, nossos rivais”, afirma o documento da comunidade, referindo-se a compras materiais do aliado dos EUA. O texto aponta como exemplo que em 2020, ano que já registrou expansão dos gastos militares, o investimento conjunto foi de apenas 11% , longe dos 35% que a UE estabeleceu como meta.

Von der Leyen apresentará ao Conselho Europeu, que realizará uma cimeira extraordinária no final deste mês e outra ordinária em junho, várias propostas para incentivar o desenvolvimento de uma política de defesa europeia e pôr fim à atual fragmentação e incentivar cooperação. Todos aspiram a dar a Bruxelas um papel central num campo como o militar, praticamente vetado até agora às instituições comunitárias e reservado exclusivamente aos governos nacionais ou a um organismo intergovernamental como a Agência Europeia de Defesa.

A Comissão, de acordo com a minuta do documento que será levado à cimeira, propõe estabelecer "uma série de instrumentos para rastrear, coordenar e incentivar uma abordagem conjunta no desenvolvimento, aquisição e propriedade ao longo de todo o ciclo de vida do equipamento de defender".

Para as necessidades mais urgentes, como reabastecer os estoques de munições esvaziados em parte para ajudar a Ucrânia, a Comissão está correndo para organizar compras conjuntas, como fez com as vacinas para a covid-19 e como quer fazer com o fornecimento de gás para o confronto com Moscou. Bruxelas acredita que isso evitaria "uma corrida de encomendas, que provocaria uma espiral [de subida] de preços e a impossibilidade de os Estados mais expostos obterem o material necessário", refere o referido documento.

Mas as propostas de Bruxelas também incluem mudanças de longo alcance e longo prazo, destinadas a transformar radicalmente a política de defesa nacional e, incidentalmente, acelerar a integração das indústrias de armas da UE. "A compra conjunta [de armas] deve se tornar a norma em vez de ser a exceção", afirma a Comissão. E destaca que uma integração tanto da demanda quanto da oferta traria retornos econômicos importantes para os Estados.

A integração, segundo Bruxelas, seria incentivada por incentivos econômicos comunitários. A Comissão propõe abolir a regra que impede o Banco Europeu de Investimento (BEI) de financiar o setor da defesa. O recém-criado fundo europeu de defesa, dotado de 8.000 milhões de euros até 2027, também deve ser ampliado e reformado para poder financiar todas as fases do ciclo de produção de armas e não apenas, como é o caso agora, até a fase de protótipo.

O órgão comunitário sugere ainda uma renegociação dos orçamentos comunitários para o período 2021-2027, acordado na cimeira de julho de 2020 que criou o fundo de recuperação contra as consequências económicas da pandemia. O objetivo dessa revisão do orçamento é aumentar significativamente o fundo de defesa. Bruxelas acredita, segundo o texto, que esse debate “pode surgir como resultado de uma discussão mais ampla sobre as consequências do ataque da Rússia à Ucrânia”.

BERNARDO DE MIGUEL, de Bruxelas, em 13.05.22 para o EL PAÍS. 

Urina pode ser alternativa a fertilizantes convencionais?

Em meio a preocupações com escassez e alta de preços devido à guerra na Ucrânia, cientistas apontam que xixi tem potencial para substituir adubos sintéticos. E já existem tecnologias para a reciclagem do "ouro líquido".

Granulados de urina desenvolvidos na Suécia são semelhantes a adubos tradicionais (Foto: Sanitation 360)

A cidade de Brattleboro, no estado americano de Vermont, ficou conhecida por um curioso concurso: de quem doa a maior quantidade de xixi. A cada ano, cerca de 200 participantes entram na competição. O evento é organizado pelo Rich Earth Institute, uma ONG local que pasteuriza as doações e as distribui entre fazendas da região para substituir fertilizantes sintéticos.

A urina contém nitrogênio, fósforo, potássio e micronutrientes que ajudam as plantas a crescer. Geralmente, porém, o xixi costuma ser descartado. Devido a essas propriedades, o instituto instalou na casa dos voluntários vasos sanitários que separam a urina para que ela possa ser bombeada e transportada para onde for necessária.

"Os voluntários têm muito orgulho do que estão fazendo. Eles veem isso como uma forma de reciclagem", conta Abraham Noe-Hays, diretor de pesquisa do instituto.

Aumento da resiliência de sistemas alimentares

Não é apenas a cidade de Brattleboro que transforma xixi em adubo. Uma subsidiária do Rich Earth Institute está desenvolvendo um sistema de coleta de urina voltado para expandir o programa para outras regiões.

Em países como Suécia, França, Alemanha, África do Sul e Austrália, outras organizações trabalham para reaproveitar os dejetos humanos a fim de reduzir a dependência de fertilizantes tradicionais, que representam um conjunto de desafios ambientais e econômicos.

Fertilizantes sintéticos de nitrogênio, por exemplo, poluem lençóis freáticos, além de impulsionar as mudanças climáticas. A produção e o uso desse tipo de adubo são responsáveis por 2,4% das emissões globais, segundo um estudo de 2021.

As reservas globais de fósforo também estão diminuindo. Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia – um grande exportador de fertilizantes –, agricultores de todo o mundo enfrentam escassez desses produtos e uma explosão dos preços.

Segundo Prithvi Simha, químico da Universidade Sueca de Ciências Agrícolas (SLU), há muito cientistas já apontam para os recursos encontrados em dejetos humanos para reduzir a dependência.

"Quando há um choque na cadeia de abastecimento, como cultivamos alimentos? Ao reciclar urina, aumentamos a resiliência do nosso sistema alimentar", destaca.

Cerca de um terço de todo o nitrogênio e fósforo usados na agricultura global pode ser substituído pelos nutrientes obtidos na urina, diz Simha. Essa parcela aumenta bastante em países como Uganda e Etiópia, onde a população é grande e poderia fornecer urina e não são usados adubos sintéticos devido ao alto custo.

"Ouro líquido"

Simha faz parte de uma equipe de pesquisadores que desenvolveu um método para transformar urina em um fertilizante sólido, que se parece com granulados sintéticos usados na agricultura.

A empresa Sanitation 360, ligada à SLU, equipa vasos sanitários com um coletor que alcalina a urina. O processo permite que os nutrientes que ela contém permaneçam estáveis enquanto um ventilador faz a água evaporar, restando no fim apenas um pó seco.

"Há muita química complexa por trás de como chegamos lá, mas na realidade é muito simples de implementar. É por isso que funciona no mundo todo", diz Simha.

A Sanitation 360 possui uma cooperação com empresas que alugam banheiros químicos. Com isso, ampliou de 1,5 mil litros para 25 mil litros a coleta de urina, e estima coletar 250 mil litros no próximo ano. O fertilizante obtido é usado em plantações de cevada na Suécia. Simha ressalta que a cerveja feita com essa cevada tem exatamente o mesmo sabor do que qualquer outra cerveja.

Para se tornar popular, o adubo de urina precisa ser capaz de competir com os fertilizantes sintéticos produzidos em massa. Isso envolve a certificação por reguladores nacionais, pois, em alguns países, o xixi separado na fonte ainda é considerado esgoto. Também é necessário ampliar o acesso a tecnologias e equipamentos. O vaso separador de urina é uma peça fundamental desse processo.

Separar antes da reciclagem

Para ser utilizada como adubo, a urina precisa ser separada das fezes e da água do vaso sanitário. Vasos sanitários destinados a essa finalidade coletam o resíduo líquido em um reservatório na parte da frente. Esses modelos foram inicialmente desenvolvidos para reduzir a poluição da água. A urina representa apenas 1% das águas residuais nas estações de tratamento da Europa, mas é a principal fonte de nutrientes, como o nitrogênio, que poluem rios e lagos.

Vaso sanitário da Sanitation 360 possui sistema para secar a urinaFoto: Sanitation 360

Um dos maiores desafios dos vasos separadores de urina é o fato de eles serem considerados inviáveis no uso e produção, segundo a química Tove Larsen, do Instituto Federal Suíço de Ciência e Tecnologia Aquática. Mas um novo modelo, desenvolvido onde a pesquisadora trabalha em parceira com a empresa Laufen, pode mudar isso.

Esse modelo é baseado no "efeito bule". O patamar frontal é fabricado numa forma que permite que a urina escoe por um orifício separado – parecido com o chá que sai pela parte externa do bule quando este está num ângulo determinado.

A descarga também é projetada para limpar o patamar frontal com o mínimo de água, o suficiente apenas para remover odores. Segundo Larsen, a grande vantagem dessse modelo é que pode ser fabricado e usado como qualquer vaso sanitário de cerâmica.

Por enquanto, apenas alguns edifícios ao redor do mundo possuem esse sistema. Cientistas, no entanto, esperam que, à medida que essas tecnologias se espalhem lentamente, a reciclagem do "ouro líquido" seja tão fácil para todos quanto se sentar e fazer xixi.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 13.05.22

Streck: O mundo é um lugar muito mais feliz quando você é estúpido

O neurologista e pesquisador químico na Companhia Sleepthinker, Cornelius Grouppe, já em 2013 fazia um interessante anúncio, que se antecipa à crescente simplificação TikTok e quejandices (aqui a lista é longa). Cornelius é, assim, um visionário de tiro curto. Mas certeiro. 

E assista ao vídeo original (em inglês):

Dizia, já então[1] (leiam a NR):

— Você já percebeu o quanto é cercado de idiotas?

— Se não percebeu, você pode ser uma delas. Neste caso você pode parar por aqui e seguir com a sua vida. E não se fala mais nisso.

— Ah, percebeu? Muito bem. Então sigamos.

— Não é segredo que burros e néscios são a maioria na população mundial. Eles certamente não vão ficar mais inteligentes, ou começar a agir racionalmente. Não há chance de melhora.

— Por isso, se você quiser entrar para a maioria, é você quem tem de mudar. Para isso, desenvolvemos uma pílula que, dependendo da concentração do princípio ativo, pode reduzir o QI de uma pessoa permanentemente. Nós temos pílulas de -10, -30 e a mais forte -50. Mas porque você pensaria em diminuir o seu QI?

— Simples. Porque a vida é mais fácil e o mundo é um lugar muito mais feliz quando você é burro. Se você for da área jurídica, então...

— Se você quer ser maioria, recomendamos diminuir o seu QI para aproximadamente 70. Mas não se preocupe. Tudo vai ficar bem. Com um QI de 70, você ainda consegue amarrar os sapatos e escrever uma letra de rap comum ou ser compositor de música de sofrência sertanejo-universitária. E se dar bem fazendo comentários em sites, esculhambando com quem lê livros. E postar piadas sobre políticas de distribuição de absorventes. Além de fazer discurso nas redes dizendo que urnas eletrônicas são uma fraude. Pode escrever "testos" (com "s") em favor da intervenção militar. E poderá facilmente, é claro, ser influencer. Afinal, você conhece algum influencer com QI acima de 70? Sim? Que bom. Para você. Falando claramente: a pílula alivia a sua mente. Mas é preciso reprogramar.

— Então depois de tomar a pílula, você passa o resto do dia ouvindo músicas do Amado Batista, do Gustavo Lima e do DJ Pitbull, enquanto lê e repassa fake news nos seus grupos de WhatsApp e, de quebra, dá uma boa expiada no mais recente reality show tipo "surviver". E passa achar o "veio da Van" o maior patriota. E zapeia em alguns programas que falam sobre "fofocas de ex-integrantes-de-reality". Será o máximo! Depois você toma um banho quente, lê o J.R. Guzzo, posta suas xingações ao STF, vai dormir e no dia seguinte acorda mais burro do que era antes. É o nirvana.

— Autoconsciência, decência, falta de confidência e até medo deixarão de existir. Vida nova! Pule do teto, dirija bêbado (afinal, você é livre!), pregue o AI-5, elogie Ustra e diga, com orgulho "sou negacionista". E diga que o camarão mais barato e mais gostoso (embora atulhado de molhos e custando uma fortuna) é do Coco Bambu. Claro, se você for rico. Se for pobre, bom, aí a coisa aperta... Nem saberá do que se está falando. De todo modo, todas essas atividades sem sentido e perigosas — que você nunca tentou até agora — vão se tornar muito agradáveis e divertidas.

— Infelizmente, há um efeito colateral que eu devo mencionar. Todas as pessoas que você desconhece vão começar a provocar-lhe irritação. Pessoa de outras raças, outras orientações sexuais, pessoas que escrevem frases longas. Pessoas que leem livros... serão odiadas por você. Basicamente qualquer um diferente de você.

— Mas o lado bom é que você não terá que odiá-las sozinho. Você fará muitos amigos que pensam igual. Muitos. E dirá: "você me representa"! E pode correr para a academia ficar bombadão. E poderá se eleger a um cargo. E aumentará os seus grupos de redes sociais. Poderá competir com Zambeli. Porque você estará na maioria. Pense nisso. O mundo é muito melhor quando você não é muito esperto para ele.

Pronto. Fim do tutorial.[2] Deixe seu laique!

[1] Faço pequenas adaptações. Em homenagem a imensa legião das gentes do direito macdonaldizado.

[2] Por via das dúvidas, aviso que o anúncio do cientista é uma broma. Vai que as pessoas pensem que as pílulas existem, mesmo... De todo modo, dado o nível da jusmacdonaldização, as pílulas são despiciendas. Existe a nesciedade adquirida sem exigir esforços.

Lenio Luiz Streck, o autor deste artigo, é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados. Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, em 12.05.22

quinta-feira, 12 de maio de 2022

É do TSE a palavra final sobre eleição

A sociedade precisa superar a falácia da ‘insegurança’ das urnas eletrônicas. O TSE já demonstrou que o processo eleitoral é limpo. O resto é desinformação ou má-fé

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fez uma deferência às Forças Armadas ao convidá-las a indicar representante para compor a Comissão de Transparência Eleitoral (CTE) da Corte e ao responder às dúvidas levantadas por alguns militares acerca da segurança das urnas eletrônicas. A rigor, não precisava nem deveria, pois as Forças Armadas não existem para validar o processo eleitoral e, ademais, não há qualquer dado objetivo que justifique a desconfiança no sistema por meio do qual o País escolhe seus representantes há 26 anos, sem a ocorrência de fraudes. Referência internacional em segurança, eficiência e rapidez na realização de eleições, o sistema eleitoral brasileiro é motivo de orgulho, não de suspeição.

Como o Estadão revelou há poucos dias, as Forças Armadas fizeram 88 questionamentos ao TSE sobre o processo eleitoral nos últimos oito meses, e 81 já tinham sido respondidos e divulgados. No dia 9 passado, a equipe técnica da Corte respondeu às sete dúvidas remanescentes. Em detalhado ofício às Forças Armadas, os técnicos do TSE esclareceram, uma por uma, as suspeitas de “fragilidade” das urnas eletrônicas e outras “vulnerabilidades do processo eleitoral” apontadas pelos militares. É assim que se combate a desinformação.

Muitas das suspeitas enumeradas pelos militares, de acordo com os especialistas do TSE, são apenas “opiniões” e provêm de “equívocos” e “erros de premissa”, como, por exemplo, acreditar que a totalização dos votos de todo o País é feita em uma “sala escura” em Brasília, também chamada de “sala secreta” pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores. Trata-se de uma mentira difundida por Bolsonaro com o evidente propósito de provocar falsas dúvidas nos eleitores quanto à lisura do processo eleitoral. Do presidente, seria ocioso esperar comportamento diferente. É lamentável, no entanto, que alguns militares se prestem ao papel de fiadores desse ardil.

“Não há, com o devido respeito, uma ‘sala escura’ de apuração”, responderam os técnicos do TSE. “Os votos digitados na urna eletrônica são imediatamente computados e podem ser contabilizados em qualquer lugar, em todos os pontos do País”, diz trecho do documento enviado pela Corte às Forças Armadas. “É impreciso afirmar que os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) não participam da totalização. Muito pelo contrário, os TREs continuam comandando as totalizações em suas respectivas unidades da Federação.”

Isso é tão verdadeiro que nem é preciso ir tão longe na história das urnas eletrônicas. Nas eleições municipais de 2020, quando o TSE enfrentou problemas técnicos que causaram atraso na divulgação da totalização dos votos, muitos candidatos a prefeito Brasil afora já comemoravam sua eleição porque contabilizaram os votos recebidos com base nos boletins de urna em seus respectivos municípios. Superado o problema que causou a lentidão, o TSE confirmou os mesmíssimos resultados, como era esperado.

Lá se vão quase quatro décadas desde que o processo eleitoral – do início ao fim – passou a ser uma responsabilidade intransferível de autoridades civis do País. E, em todo esse tempo, nunca houve problemas graves o bastante para justificar a mais tênue desconfiança sobre a lisura dos resultados das urnas.

A participação institucional dos militares na realização das eleições limita-se ao transporte das urnas até localidades remotas do País. Por si só, isso já é uma contribuição inestimável das Forças Armadas à democracia, pois garante que todos os brasileiros, sem exceção, exerçam seu direito ao voto.

Respondidas as dúvidas levantadas pelas Forças Armadas, a sociedade deve superar esse falso debate em torno da segurança das urnas eletrônicas. Convém lembrar que a Polícia Federal, analisando inquéritos abertos desde 1996, jamais encontrou indícios de fraudes na votação eletrônica. Ademais, e sobretudo, é do TSE a palavra final sobre eleições no País. E a Corte já se pronunciou. Basta de dar trela aos arautos do caos. Só eles ganham com a confusão.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 12.05.22

EUA superam marca de um milhão de mortes por Covid-19

País detém o recorde mundial de vítimas fatais na pandemia. Presidente Joe Biden pede que norte-americanos sigam 'vigilantes'.

Os Estados Unidos superaram nesta quinta-feira (12) a sombria marca de mais de um milhão de pessoas mortas por causa da Covid-19, segundo informou a Casa Branca.

Em comunicado, o presidente do país, Joe Biden, pediu aos norte-americanos que continuem "vigilantes" e lamentou as mortes.

"Nós devemos permanecer vigilantes contra esta pandemia e fazer tudo para salvar o maior número possível de vidas, como fizemos com mais testes, vacinas e tratamentos do que nunca antes", afirmou o presidente.

"Hoje, chegamos a um trágico marco: um milhão de vidas americanas perdidas para a Covid-19. Um milhão de cadeiras vazias ao redor da mesa de jantar. Cada uma delas uma perda irreparável. Cada uma delas deixando para trás uma família, uma comunidade, e uma nação que mudou para sempre por causa dessa pandemia. Jill (Biden, sua mulher) e eu rezaremos por cada uma delas", continua o comunicado.

Os EUA detêm o recorde mundial de mortes por Covid-19. No mundo inteiro, mais de 6,2 milhões de pessoas perderam a vida por conta da doença, segundo a universidade Johns Hopkins, que monitora os casos em tempo real desde o início da pandemia. No entanto, na semana passada, a Organização Mundial da Saúde disse que a contagem oficial está defasada, e o balanço total pode beirar as 15 milhões de vítimas fatais.

Coreia do Norte

Também nesta quinta-feira (12), a Coreia do Norte confirmou o primeiro caso Covid-19, que até hoje afirmava não haver infectados dentro do país.

Agora, o governo declarou o primeiro surto do país e uma "grave emergência nacional", o que levou o líder norte-coreano, Kim Jong Un, a ordenar confinamento no país inteiro.

Publicado originalmente por g1, em 12.05.22

Metade dos primeiros hospitalizados por coronavírus ainda apresentam sintomas dois anos depois

O acompanhamento de mil pacientes em um hospital de Wuhan mostra a persistência das sequelas da covid

Admissão de um dos primeiros infectados com coronavírus no hospital Jin Yintan em Wuhan, China, em 17 de janeiro de 2020. Até então, apenas duas pessoas haviam morrido.WANG HE (GETTY IMAGES)

55% dos primeiros infetados com o coronavírus que tiveram de ser hospitalizados continuam, dois anos depois, com um ou mais sintomas de covid. O acompanhamento dos infectados no início da pandemia em Wuhan (China) mostra, no entanto, que o número e a intensidade dos problemas melhoraram. No topo da lista está a fadiga ou fraqueza muscular, problemas de sono e perda de cabelo. Entre 12 e 24 meses, o estudo detectou reativação da maioria das sequelas.

Com o passar do tempo e muitas pessoas se recuperando da covid, cresceram as evidências de que muitas delas foram curadas, mas não se recuperaram . Sem nenhum vestígio do coronavírus em seu corpo, eles relataram dezenas de sintomas diferentes de que ele estava lá. Da perda do olfato ao nevoeiro mental, passando por palpitações ou dores nas articulações, muitos dos afetados estavam moldando o que hoje é chamado de síndrome covid persistente. Embora muito se saiba sobre esta pintura, a questão do tempo ainda precisa ser esclarecida: quanto tempo dura? Quando os problemas desaparecem? Por que alguns ficam e outros não?

Pesquisadores de várias instituições científicas chinesas acompanham a evolução de várias centenas de pessoas que foram infectadas nos primeiros meses de 2020 desde o início da pandemia. foram entrevistados, submetidos a vários testes físicos e até tiveram seus pulmões ou cérebros escaneados. Os acompanhamentos foram feitos seis meses após a alta e aos 12 meses . Agora, a revista médica The Lancet Respiratory Medicine publica os resultados das visitas feitas aos 24 meses. É, portanto, o trabalho que tem ido mais longe e que permite uma boa caracterização do que é o covid persistente.

“Embora possam ter eliminado a infecção inicial, um certo número de sobreviventes de Covid que foram hospitalizados precisa de mais de dois anos para se recuperar totalmente” Bin Cao, professor do Hospital da Amizade China-Japão e chefe do estudo de Wuhan

O professor Bin Cao, do Hospital de Amizade China-Japão, com sede em Pequim, é o principal autor deste acompanhamento. Em nota, diz: “Nossas descobertas indicam que, embora possam ter eliminado a infecção inicial, um certo número de sobreviventes de Covid que foram hospitalizados precisa de mais de dois anos para se recuperar totalmente”. Especificamente, dos quase 1.200 que participaram do estudo todo esse tempo, 68% tiveram pelo menos um sintoma 18 meses após a alta. O percentual caiu para 49% no final do ano, mas voltou a subir para 55% na última revisão, em 24 meses.

Para covid persistente, já foram descritos mais de 200 sintomas ou sequelas. No caso desta amostra de Wuhan, todas afetadas pela variante Alpha do coronavírus, um terço dos entrevistados sofria de fraqueza ou fadiga muscular, 25% tinham algum distúrbio do sono e 12% sofriam de perda total ou parcial do sono. cabelo. Entre os 10 sintomas mais comuns, e todos abaixo de 10% dos casos, estão também distúrbios do olfato ou paladar, dores nas articulações, palpitações, tonturas ou mialgias. Embora a covid seja uma doença causada por um vírus respiratório, o único sintoma relacionado notável na lista é a dor no peito. Na maioria dos casos, dois ou mais problemas ocorrem simultaneamente.

O acompanhamento mostra que, com poucas exceções, a maioria dos sintomas desaparece com o passar do tempo. Por exemplo, mais da metade dos estudados teve fraqueza muscular aos seis meses, uma porcentagem que cai para metade aos 24 meses. Reduções semelhantes ocorrem com problemas de cabelo e cheiro. Mas há outras sequelas que aumentam entre a primeira revisão e a segunda. Assim, o percentual de pessoas com distúrbios do sono permanece o mesmo, em torno de 25% dos entrevistados. E há outros sintomas, como mialgia ou tontura que, embora com números iniciais baixos, são duplicados.

Esses aumentos não preocupam Joan Soriano, epidemiologista do Serviço de Pneumologia do Hospital Universitário de La Princesa, em Madri, que liderou o grupo de especialistas internacionais que concordou com a Organização Mundial da Saúde na primeira definição de covid persistente.. "Essas inconsistências nas tendências são comuns em estudos de acompanhamento, porque alguns pacientes mudam para melhor ou pior entre as entrevistas, e os questionários são administrados por pessoas e métodos diferentes", diz ele. Sobre os resultados em si, comenta que “em Espanha estamos a ver praticamente a mesma coisa”. Aqui, “fadiga, falta de ar e problemas cognitivos (nevoeiro cerebral) são os três mais frequentes”, acrescenta. Para Soriano, é importante notar que toda essa lista de sintomas se repete com outras variantes do SARS-CoV-2, já que “este estudo chinês se refere apenas à variante Alpha”.

“Existem outros vírus respiratórios que apresentam sintomas subsequentes que duram três, quatro ou cinco meses. Havia esperança de que o coronavírus se comportasse assim e não está fazendo isso. "Pilar Rodríguez Ledo, vice-presidente e chefe de pesquisa da Sociedade Espanhola de Médicos Gerais e de Família

A Dra. Pilar Rodríguez Ledo, vice-presidente e chefe de pesquisa da Sociedade Espanhola de Médicos Gerais e de Família (SEMG), é cautelosa ao extrapolar os resultados deste estudo para a situação em outros países, como a Espanha. "Primeiro, porque são pacientes da primeira onda com alta carga viral e poucas defesas", diz. Além disso, há o fator cultural. Muitos dos sintomas são auto-relatados e podem variar entre pessoas de diferentes culturas de trabalho. Por exemplo, apesar de seus problemas de saúde, 98% dos investigados no hospital Wuhan retornaram ao trabalho pré-pandemia. "Mas esse trabalho é muito valioso: além das sequelas de uma doença aguda grave, aparecem sintomas que se mantêm ao longo do tempo", comenta.

Ao longo deste artigo, os termos sequelas e sintomas foram usados ​​como sinônimos, quando na verdade não são. O dicionário da Royal Academy of Language considera as primeiras consequências de uma doença e as segundas como manifestações de uma patologia. Rodríguez Ledo fala das primeiras como “cicatrizes, sintomas posteriores de uma lesão orgânica”. Mas aqui o que há é “uma persistência dos sintomas na ausência daquela lesão, mas são uma condição limitante. Com o coronavírus eles se misturam.”

Quando esses sintomas ou sequelas desaparecerão? É a pergunta feita por muitos dos afetados. Os autores do estudo não têm a resposta. Mas eles trazem à mente o caso da epidemia de SARS de 2002. Então, um acompanhamento semelhante mostrou que a fadiga crônica continuou quatro anos após a cura. “Existem outros vírus respiratórios que apresentam sintomas subsequentes que duram três, quatro ou cinco meses. A diferença é que eles são autolimitados no tempo, desaparecem depois de alguns meses”, lembra o gerente de pesquisa da SEMG. “Havia esperança de que o coronavírus se comportasse assim e não é. Sim, há remissão, mas também pode ser uma mera adaptação à nova situação e é muito difícil chamar-lhe cura”, conclui.

Miguel Angel Ressuscitado, o autor desta reportagem, é Jornalista. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 12.05.22.

Quando foi que se perdeu o respeito pela Justiça no Brasil?

Para muitos, a Justiça brasileira morreu quando o STF se recusou a julgar o mérito do impeachment de Dilma e nada foi feito contra as bravatas do então deputado Bolsonaro, plantando a semente de ameaças às instituições

"As instituições não reagiram às injúrias e bravatas de Bolsonaro e agora serão desafiadas repetidamente por pessoas como o deputado Daniel Silveira, que provoca as autoridades sem medo de consequências"Foto: Lucas Landau/REUTERS

O deputado Daniel Silveira e apoiadores de Bolsonaro em manifestação em Copacabana, em 1 de maior de 2022O deputado Daniel Silveira e apoiadores de Bolsonaro em manifestação em Copacabana, em 1 de maior de 2022

"Na Justiça, no Senado, bravata pra todo lado, ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação..."

Duvidar do processo eleitoral sem apresentar ou ter provas de falhas é brincar com fogo. E parece que há muita gente querendo botar fogo nas instituições. Estão buscando o caos para quê? São anarquistas raiz vestidos de direitistas "Nutella"?

Apesar de até agora não haver evidências, Jair Messias Bolsonaro fala há anos sobre supostas falhas nas urnas eletrônicas brasileiras, sem nunca apresentar provas. Ao questionar o processo eleitoral, o presidente brinca com a ameaça de um golpe, seguindo os roteiros escritos por seu ídolo Donald Trump.

Nos últimos dias, viu-se uma troca de notas entre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e as Forças Armadas, com os militares usando argumentos e premissas que não correspondem aos fatos. Eles falaram numa suposta "sala escura" onde os votos seriam apurados e pediram uma contagem paralela dos votos controlada pelas Forças Armadas, algo que foi defendido por Bolsonaro.

Tudo isso foi muito longe, longe demais, até o TSE decidir dar um basta no começo desta semana. Um basta que veio tarde, pois, quando pessoas respeitadas como os militares começam a levantar dúvidas sobre o processo eleitoral, corroem a democracia brasileira e suas instituições – que são difíceis de construir, mas fáceis de danificar.

Nos Estados Unidos, as Forças Armadas deixaram claro que não fariam parte de um eventual golpe de Trump depois das eleições. Os militares americanos conhecem o próprio papel, as próprias limitações e atribuições, o seu lugar. Não sonham com aventuras autocratas. Tudo isso são fatores que, com certeza, contribuíram para que a transição do poder para Joe Biden se concretizasse. É importante ter adultos em casa quando as crianças brincam com palitos de fósforo.

Semente das ameaças

Mas, afinal, quando foi que a Justiça brasileira começou a ser colocada contra a parede?

Lembro-me dos processos do Mensalão, com brigas e bate-bocas homéricos entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), tudo transmitido ao vivo pela televisão. E com ministros trocando acusações até em entrevistas e nas redes sociais. O mesmo se repetiu nos processos do Petrolão. Na época, muita gente achou ótimo transmitir tudo isso ao vivo, como uma lição educativa para o público.

Aí veio o impeachment de Dilma Rousseff. Que pode até ter seguido as regras do jogo ao pé da letra constitucional. Mas que foi marcado pela rejeição do STF em julgar o mérito do impeachment. Para muitos, a Justiça brasileira morreu aí.

Somam-se a isso as palavras de Bolsonaro na votação do impeachment na Câmara, no dia 17 de abril de 2016: "Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff!"

Não houve quebra de decoro parlamentar? Nada aconteceu. Bolsonaro recebeu carta branca para suas injúrias e bravatas. E aí foi plantada a semente das ameaças ao Judiciário e às instituições.

As instituições não reagiram e agora serão desafiadas repetidamente por pessoas como o deputado Daniel Silveira, que provoca as autoridades sem medo de consequências. Perdeu-se o respeito e o medo da Justiça. E, com isso, há cada vez mais sapos a serem engolidos.

E agora? Como consertar?

Thomas Milz, o autor deste artigo, saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 11.05.22. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Prescrição intercorrente, ressarcimento ao erário e dolo nas ações de improbidade

 A Lei Federal nº 14.230, publicada no dia 25 de outubro de 2021, trouxe profundas alterações ao regime sancionador de improbidade. 

Dentre as inovações, impende destacar o incremento do instituto jurídico da prescrição intercorrente, que passou a ser previsto no artigo 23, § 5º, da Lei n. 8.429/92. 

Leia aqui o artigo de Rafael Araripe Carneiro e Leonardo Dantas da Nóbrega Ruffo.

Até então, por ausência de previsão legal a jurisprudência entendia não ser possível a decretação da prescrição intercorrente em ações de improbidade (STJ, REsp nº 1.289.993/RO, relatora ministra Eliana Calmon, DJe 26/9/2013; REsp nº 1.142.292, relator ministro Herman Benjamin, DJe 16/3/2010; dentre outros). Agora, por força da novel previsão legal a inércia do titular do direito pode resultar na perda da pretensão punitiva, reconhecível inclusive de ofício. De acordo com o novo regramento, o prazo de consumação da prescrição intercorrente é de quatro anos, a ser contado a partir da data em que for interrompido o prazo prescricional, sempre em observância aos marcos interruptivos incorporados ao rol do § 4º do artigo 23.

Por outro lado, cabe lembrar que o Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2018, no âmbito do Recurso Extraordinário nº 852.475/SP – Tema 897, assentou que são consideradas "imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa". Em apertada maioria (6 a 5), a corte entendeu que o artigo 37, § 5°, da Constituição impõe a imprescritibilidade das ações cíveis de recomposição do erário por improbidade dolosa.

Parece não haver dificuldades em se afirmar que a interpretação dada pela Suprema Corte ao artigo 37, § 5°, da Constituição igualmente deve se aplicar às hipóteses de prescrição intercorrente. Com efeito, não há motivo para ressalvar essa modalidade prescricional da exegese do texto constitucional adotada pelo STF. Logo, a pretensão de ressarcimento ao erário não será atingida pela prescrição, inclusive intercorrente, quando decorrente de ato doloso de improbidade.

Interessante notar, nesse contexto, que após o julgamento do Tema 897, o elemento subjetivo (dolo) passara a ser elemento central no exame da imprescritibilidade das ações de ressarcimento. É que, naquela oportunidade, o STF consignou que só poderiam ser consideradas imprescritíveis as ações fundadas em ato de improbidade na forma dolosa. Nesse sentido, o ministro Luís Roberto Barroso ressaltou, durante o julgamento, ser necessário "cingir a imprescritibilidade do ressarcimento às hipóteses de dolo e excluir as hipóteses de culpa, em que, por uma falha humana, não intencional, se tenha eventualmente causado um prejuízo ao Erário".

Por sua vez, a recente Lei nº 14.230/2021 pôs fim à modalidade culposa por improbidade, outrora permitida para a hipótese de lesão ao erário. O atual diploma legal exige o dolo para a configuração da improbidade em qualquer de suas modalidades, sem exceção. Com isso, o exame do elemento subjetivo deixa de ser relevante para a aplicação do Tema 897 do STF no âmbito de vigência da nova lei, dado que somente haverá improbidade se houver dolo.

Não se pode olvidar, contudo, que permanece a controvérsia a respeito da retroatividade da nova lei. Para essa perspectiva pretérita, cabe destacar que os contornos para a aferição do dolo foram significativamente modificados e podem repercutir na análise da imprescritibilidade das ações de ressarcimento. No ponto, mister rememorar que o entendimento jurisprudencial estabelecido sob a égide da Lei nº 8.429/92 era de que o dolo genérico seria suficiente para a configuração da improbidade (STJ, AgInt no REsp nº 1.590.530/PB, relatora ministra Herman Benjamin, DJe 6/3/2017).

Já a Lei n. 14.230/2021 estabeleceu, no artigo 1º, § 1º, que "considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente". Passou-se a exigir, portanto, o dolo específico, isto é, a comprovação da livre e consciente do réu em alcançar determinados resultados ilícitos. Em sentido similar, Teori Zavascki há muito defendia que no sistema de improbidade devem ser observados, mutatis mutandis, os mesmos padrões conceituais que orientam o sistema penal, fundados na teoria finalista, segundo a qual a vontade constitui elemento indispensável à ação típica de qualquer crime. No crime doloso, afirmava o ministro, a finalidade da conduta é a vontade do concretizar um ilícito (vontade de resultado).[1]

À luz de tais ponderações, para que seja configurado o dolo na nova sistemática da improbidade revela-se necessário a comprovação inequívoca, mediante elementos de prova robustos e idôneos, de condutas praticadas pelo réu, imbuídas de má-fé e desonestidade, que objetivem, ardilosa e de forma livre e consciente, o alcance de resultados ilícitos, visando deliberadamente obter vantagens e benefícios de cunho pessoal, seja para si ou para terceiras pessoas de seu ciclo pessoal ou profissional.[2]

Nesse contexto, em boa hora o STF afetou o ARE nº 843.989/PR como Tema nº 1.199 para julgar, em sede de repercussão geral, sobre a aplicação ou não, em caráter retroativo, i) dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente em ações de ressarcimento fundadas na prática de ato de improbidade; e ii) dos inovadores parâmetros do elemento subjetivo (dolo) para a caracterização de ato ímprobo. A escolha da Corte em examinar conjuntamente a retroatividade das novas regras prescricionais com a retroatividade dos recentes critérios para a aferição do dolo foi acertada, porquanto ambos os temas repercutem com relevância nas ações de ressarcimento por improbidade.

[1] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 7. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 109.

[2] Nessa linha, em recente decisão datada em 25 de março de 2022, o e. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no âmbito do processo n. 0004573-61.2011.4.01.4000, consignou que “a improbidade administrativa não pode ser confundida com mera ilegalidade ou inabilidade do agente público. É dizer, nem toda ilegalidade ou deficiência formal traduz um ato ímprobo, assim entendido aquele que carrega a marca imprescindível do propósito malsão, da desonestidade e deslealdade funcional no trato da coisa pública. Em outras palavras, não há improbidade sem desonestidade. Muito embora todo ato ímprobo seja um ato ilícito, “nem todo ilícito ou irregularidade constituem atos de improbidade”.

Rafael Araripe Carneiro é doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim, professor e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Improbidade Administrativa do IDP. Sócio-fundador do Carneiros & Dipp Advogados.

Leonardo Dantas da Nóbrega Ruffo é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico pela PUC-MG, sócio-fundador do escritório Leonardo Ruffo Advocacia.

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2022

Queremos eleições livres e justas no Brasil

Nuland, responsável por assuntos políticos na diplomacia americana comandada por Antony Blinken, esteve há poucas semanas no Brasil, junto a uma delegação americana de alto nível. Os diplomatas dos dois países trataram, entre outros temas, de cooperação na área de defesa e de agricultura.

Na ocasião, os americanos voltaram a expressar "confiança na democracia brasileira". Segundo Nuland, no entanto, ela alertou o governo e a oposição sobre o risco de interferência russa nas eleições deste ano.


Victoria Nuland, subsecretária de Estado dos EUA

No momento em que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) volta a lançar dúvidas sobre o processo eleitoral, sugerindo que os militares deveriam supervisionar a contagem de votos do pleito presidencial de 2022, a subsecretária de Estado dos Estados Unidos, Victoria Nuland, afirmou em entrevista exclusiva à BBC News Brasil que, no Brasil, "o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que já serviram bem a vocês (brasileiros) no passado".

Candidato à reeleição e em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro tem feito uma série de comentários sobre supostas fragilidades das urnas eletrônicas, sem apresentar provas, e atacado o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que conduz o processo.

Na semana passada, a agência de notícias Reuters noticiou que, em julho de 2021, o diretor da agência de inteligência americana, a CIA, William Burns, teria advertido assessores diretos de Bolsonaro de que o presidente, que àquela altura já levantava dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, deveria deixar de questionar a integridade das eleições no país.

Tanto Bolsonaro como o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que teria estado presente na conversa, negam que ela tenha acontecido.

Militantes de direita pedem golpe militar na Avenida Paulista durante manifestações do 7 de setembro (EPA)

Questionada sobre o que os EUA fariam em caso de uma tentativa de golpe no país, Nuland afirmou: "Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e, particularmente, nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil".

Ao citar observadores externos, Nuland toca indiretamente em mais um ponto sensível no atual debate político brasileiro. Depois que o TSE remeteu dezenas de convites para instituições estrangeiras acompanharem o pleito, em outubro, o Itamaraty reclamou do convite à União Europeia, e o TSE teve de recuar. Bolsonaro também disparou críticas públicas à presença dos observadores, que acompanham eleições brasileiras ao menos desde 1994.

Brasil e EUA vivem uma "recalibragem" de suas relações, depois do mal-estar causado nos americanos pela visita do presidente brasileiro a Moscou em fevereiro, dias antes de o líder russo Vladimir Putin ordenar a invasão da vizinha Ucrânia. Entre diplomatas brasileiros existe a expectativa de que Bolsonaro e Biden se falem pela primeira vez pessoalmente em Los Angeles (EUA), em junho, durante a Cúpula das Américas.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.

BBC News Brasil - Os EUA mudaram recentemente de tom em relação à Rússia: falam em 'enfraquecer' o país, enviam altos funcionários e parlamentares (como a presidente da Câmara, Nancy Pelosi) a Kiev, estão treinando soldados ucranianos. Não existe o risco de que essa nova postura contribua para o discurso de Putin de que esta é uma guerra do Ocidente contra a Rússia e aumente as chances de uma guerra nuclear? O que há para os EUA ganharem com essa nova abordagem?

Victoria Nuland - Eu diria que nosso tom em relação à Rússia é uma resposta direta ao fato de que Putin e seus militares invadiram a Ucrânia e à agressão cruel que estão perpetrando no país, incluindo os tipos de crimes de guerra que temos visto em Bucha e Kramatorsk etc. E os Estados Unidos, junto com o Brasil e muitos outros países, 141 países, foram ao Conselho de Segurança da ONU e à Assembleia Geral da ONU e disseram 'não' à agressão da Rússia.

Portanto, temos que chamar as coisas pelos seus nomes, e isso não é apenas uma guerra cruel contra a Ucrânia, mas uma violação de todos os princípios da carta da ONU e da soberania e integridade territorial dos países. Estamos defendendo o Estado de Direito, as regras globais que levaram à paz e à segurança por tantos anos e que a Rússia está violando flagrantemente agora.

Biden e Putin se reuniram em Genebra em meados de 2021, em uma que reunião durou menos do que era previsto e não impediu o início da guerra na Ucrânia em fevereiro de 2022 (Reuters)

BBC News Brasil - O ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, favorito para vencer as eleições de 2022 segundo pesquisas eleitorais, deu uma entrevista recente à revista Time em que critica o presidente dos EUA Joe Biden por não ter embarcado em um avião para Moscou para tentar dissuadir o líder russo Vladimir Putin da guerra. Como os EUA recebem essa crítica?

Nuland - Bem, em primeiro lugar, o presidente Biden falou com o presidente Putin duas, três, quatro vezes antes desta guerra, argumentando com ele. Como você deve se lembrar, os EUA descobriram esses planos de guerra no final de outubro e começaram a alertar o mundo em novembro, dezembro, janeiro, fevereiro que Putin tinha esses planos.

E durante esse período, o presidente Biden trabalhou muito para tentar convencer o presidente Putin a não ir à guerra, e em vez disso, seguir um caminho diplomático, trabalhar conosco, trabalhar com aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), trabalhar com a Ucrânia, negociar quaisquer preocupações que ele tinha sobre as visões de segurança russas na Ucrânia. E nos oferecemos para ajudar. Tivemos uma rodada de conversas.

Enviamos uma proposta de dez páginas analisando todos os tipos de coisas, como preocupações (russas) com armas ocidentais, etc. Mas, em vez de vir à mesa diplomática, o presidente Putin optou por invadir e invadir de uma maneira muito, muito sangrenta. Portanto, não acreditamos que ele esteja ouvindo alguém.

BBC News Brasil - O presidente brasileiro Bolsonaro sugeriu ao governo turco recentemente uma missão conjunta a Moscou para participar das negociações para o fim da guerra. Os EUA diriam que essa tentativa é bem-vinda?

Nuland - Não temos dificuldade com nenhum líder global tentando convencer Putin a acabar com esta guerra. E vários já tentaram. O presidente Putin não está ouvindo. Esse é o problema. Então, torna-se uma questão de, se ao ir a Moscou você não for muito cuidadoso, parece estar dando apoio à guerra de Putin, especialmente visto que ele não mostrou nenhuma evidência de mudança de rumo com telefonemas e visitas recentes.

BBC News Brasil - Cerca de uma semana antes do início da guerra na Ucrânia, dois grandes líderes da América Latina, os presidentes da Angentina e do Brasil, foram a Moscou para se encontrar com Putin. O que isso diz sobre as relações dos EUA com esses países da região?

Nuland - Sabíamos que essas visitas iriam acontecer. Exortamos tanto o Brasil quanto a Argentina a darem a Putin a mesma mensagem que o presidente Biden estava enviando a ele e aos funcionários russos em todos os níveis, pública e privadamente, de que esta guerra seria um desastre, não apenas para a Ucrânia, mas para a Rússia, para a liderança de Putin e para sua economia e sua posição militar. E nosso entendimento é que em ambas as visitas, ambos os líderes, tentaram argumentar com Putin, mas ele não estava ouvindo. Então este é o problema, Putin não está ouvindo ninguém.

BBC News Brasil - Teremos eleições presidenciais este ano no Brasil. Os EUA têm alguma preocupação ou motivo para acreditar que os russos tentarão interferir ou se intrometer no processo?

Nuland - Obviamente, temos preocupações. Vimos a Rússia se intrometer em eleições em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos e na América Latina. Por isso, em minha recente visita ao Brasil, exortei o governo a ser extremamente vigilante, e a oposição também, para garantir que forças externas não estejam manipulando seu ambiente eleitoral de forma alguma. Isso precisa ser uma eleição de brasileiros para brasileiros, sobre seu próprio futuro.

Assim como aconteceu com Trump 2020 nos EUA, o presidente Bolsonaro está lançando dúvidas sobre o processo eleitoral no Brasil antes do pleito (Reuters)

BBC News Brasil - Assim como aconteceu em 2020 nos EUA, Bolsonaro está lançando dúvidas sobre o processo eleitoral no Brasil de antemão, exigindo a participação do Exército na apuração dos votos e dizendo que pode não reconhecer os resultados. Como os EUA veem esse tipo de declaração?

Nuland - Acreditamos que o Brasil tem um dos sistemas eleitorais mais fortes da América Latina. Vocês têm instituições fortes, salvaguardas fortes, uma base legal forte. Então, o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando suas estruturas institucionais que já serviram bem a vocês no passado. Temos confiança no seu sistema eleitoral. Os brasileiros também precisam ter confiança.

BBC News Brasil - O que os EUA fariam caso alguma tentativa de subversão dos resultados eleitorais acontecesse no país?

Nuland - Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e particularmente nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil. Vocês têm uma longa tradição nisso. E isso é o mais importante para manter a força do Brasil daqui para frente.

BBC News Brasil - Os fertilizantes são um suprimento crítico para a produção de alimentos e o Brasil enfrenta a falta do produto, importado principalmente da Rússia. Os EUA apoiariam a criação de algum corredor seguro ou um salvo-conduto para navios russos carregados de fertilizantes para o Brasil, como o presidente brasileiro solicitou recentemente à diretora da Organização Mundial do Comércio?

Nuland - O fato de haver uma escassez global de fertilizantes - e uma escassez no Brasil - é resultado direto da decisão de Putin de lançar essa guerra. No meu entendimento, a única coisa que impede o fertilizante russo de chegar ao mercado é a guerra que Putin lançou.

Então, o que os Estados Unidos estão tentando fazer é trabalhar com países como o Brasil. E o secretário Blinken terá uma reunião, para a qual o Brasil está convidado, em algumas semanas sobre alimentação, segurança e fertilizantes etc., para ajudar países como o Brasil que precisam de fertilizantes. E então, com fertilizantes, podemos ajudar a alimentar o mundo, porque também temos muitos países com insegurança alimentar que dependem de grãos vindos da Ucrânia.

Quando eu estive no Brasil, nós trabalhamos em um projeto do Departamento de Agricultura dos EUA, para ver como vocês usam os fertilizantes nas lavouras (brasileiras). Estamos tentando aumentar a produção de fertilizantes nos EUA.

Estamos trabalhando com o Canadá e outros países que podem ajudar, para acelerar isso, para que vocês tenham uma safra muito forte, para poder alimentar a si mesmos e seus parceiros de exportação habituais, mas também possa ajudar a alimentar o mundo, (para o Brasil) ser generoso com alimentos, como já foi com o petróleo, com o aumento da produção brasileira de petróleo neste momento de necessidade para o mundo.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington, DC, em 10.05.22

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Bento Albuquerque resistia a 'jabuti' de R$ 100 bi do centrão que beneficia o 'rei do gás'

Ex-ministro queria condicionar obra bilionária à viabilidade econômica e ao preço do produto

O ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, (foto acima), exonerado nesta quarta (11) pelo presidente Jair Bolsonaro, resistia ao projeto bilionário que prevê a construção de gasodutos pelo país.

A proposta, patrocinada pelo centrão, tem um custo de R$ 100 bilhões e é polêmica por beneficiar diretamente Carlos Suarez, ex-sócio da empreiteira OAS e conhecido como o "rei do gás".

O empresário e seus sócios são hoje os únicos donos de autorizações para distribuir gás em oito estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Ele possui ainda quatro autorizações para a construção de redes de gasodutos. Mas precisa de recursos para bancar os dutos que conectariam regiões isoladas onde está o gás com grandes centros, onde estão seus potenciais clientes.

A movimentação do centrão foi antecipada pelo jornal "O Estado de S. Paulo" e confirmada pela coluna.

O projeto é antigo –e polêmico. Por isso, desde 2015 está travado na Câmara dos Deputados, por falta de consenso sobre como criar um fundo que financie as obras bilionárias.

O centrão agora pretende retirar R$ 100 bilhões da exploração do pré-sal que iriam para o Tesouro Nacional e direcioná-los para as obras.

A ideia seria apresentar uma emenda de última hora no projeto de lei que discute a modernização do setor elétrico. Pela possibilidade de ser aprovada sem maiores discussões ela foi apelidada de "jabuti", que não sobe em árvore. Se está em uma delas, ou foi enchente ou foi mão de gente, diz o ditado.

A manobra já teria sido combinada com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).

Bento Albuquerque resistia à ideia, e afirmou a autoridades de Brasília que não aceitaria o pacote da forma como estava sendo fechado no Congresso.

O então ministro negociava uma regra para garantir que a construção do gasoduto estaria condicionada a valores e condições de mercado. E que apenas andaria com o aval do Ministério das Minas e Energia.

A saída repentina dele da pasta está sendo creditada, num primeiro momento, aos aumentos de combustíveis patrocinados pela Petrobras, e que entraram no alvo do presidente Jair Bolsonaro.

O fato de Bento Albuquerque ser substituído por Adolfo Sachsida, homem de confiança do ministro Paulo Guedes, da Economia, no entanto, já leva autoridades de Brasília a ficarem em dúvida sobre a verdadeira motivação de Bolsonaro.

Sachsida era assessor especial de Assuntos Estratégicos do ministério de Paulo Guedes, que sempre reafirma posições de não intervenção no mercado. Não seria um ex-auxiliar dele, portanto, a intervir de maneira direta nos preços da Petrobras.

A equipe econômica tem se posicionado contra um subsídio direto ao preço dos combustíveis, por exemplo, por avaliar que a medida custaria caro e teria pouco efeito nas bombas.

A questão do gasoduto, portanto, também poderia ter contribuído para a queda, na visão de interlocutores do próprio Bento Albuquerque.

Bolsonaro, que pretende buscar a reeleição neste ano, tem criticado a política de preços da Petrobras. Na quinta-feira (5), o presidente afirmou que o lucro de R$ 44,5 bilhões da companhia no primeiro trimestre deste ano é um "estupro" e um "absurdo".

"Petrobras, estamos em guerra. Petrobras, não aumente mais o preço dos combustíveis. O lucro de vocês é um estupro, é um absurdo. Vocês não podem aumentar mais o preço do combustível", disse durante sua live semanal.

O novo reajuste deflagrou uma nova onda de pressões sobre o governo para o lançamento de medidas para conter o preço dos combustíveis em ano eleitoral.

Nos últimos dias, técnicos do governo voltaram a discutir possíveis soluções, entre elas o uso de dividendos pagos pela Petrobras à União para atenuar a alta dos preços nas bombas, mas não há ainda uma definição.

Mônica Bergamo com BIANKA VIEIRA, KARINA MATIAS e MANOELLA SMITH. Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo, em 11.05.22

Um mesmo momento longo

A conta da política e de partidos disfuncionais chegou para os brasileiros com o nome de polarização e hiperatividade de interesses.

Entender a psicologia do brasileiro e sua parte de responsabilidade naquilo que vive, a que se submete e de que reclama ajuda a analisar a eleição. Nosso problema não é somente culpa de presidentes com problemas com as Justiças Criminal e Eleitoral, cassados, encarcerados ou processados no exercício do mandato. É, também, do eleitor capturado pelo cansaço de tudo.

O mero sustento da vida que o leva a decidir em quem votar não deveria colocar em segundo plano a preocupação com a melhor chance de vida estável a que tem direito. Submetido à informação truncada e à passividade, ele não percebe que perde todas as forças de análise e defesa. Como animal civilizado que acha que é, sofre contusões, cai em armadilhas e se oferece ao predador de forma tão ingênua e cativa de fazer vergonha a animal solto em seu ecossistema natural.

Um país com tantas florestas e recursos naturais, é nas cidades que a luta pela domesticação se faz de maneira mais selvagem. Eleição entre nós é um circo, bichos trapezistas que atraem o público. E é o público que os paga, a troco de ilusões. Deveria ser possível escolher alguém maior do que aquele com o qual temos interesses pessoais envolvidos em nossa decisão. A angústia da esperança paralisa o bom senso em eleição.

A conta da política e de partidos disfuncionais chegou para os brasileiros com o nome de polarização e hiperatividade de interesses – uma eleição pernilongo, que, como a inflação, pousa, pica e deixa ali coçando, podendo virar infecção. A forma psicológica que a preguiça encontrou de impedir a pessoa de usar a inteligência da negatividade a seu favor é carregar na emoção e obscurecer o discernimento.

A principal carência da rigidez binária em política, muito parecida com o homem ativo de Nietzsche, é que “aos ativos falta usualmente a atividade superior e, nesse sentido, eles são preguiçosos. Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica”. São máquinas às quais falta a capacidade de hesitar, não admitem interrupções, pausa para pensar. Sua aceleração geral e frenética é impulsionada por analistas de TV, internet, postagens em redes sociais, autores e livros oportunistas.

“Você viu o que fulano disse?” e “E a pesquisa, hein?” são o início da conversa mais corriqueira e burra dos últimos tempos. Um ser doente de certeza sempre começa assim sua catequese para impedir que se manifeste a negatividade sadia. Negar é o que põe dúvida ao lugar-comum para emergir a novidade, a liberdade da mudança.

Assim como na famosa frase caluniai, caluniai, alguma coisa sempre fica, o mal da polarização como um sistema é produzir medo, confusão e distorção. Os polarizados não são personagens de dois momentos diferentes da nossa história, mas de um mesmo momento longo, produzido pela polarização. Assim, um quer a volta dos militares, outro, o jingle de 1989, eleição polarizada, sem governadores e parlamentares.

Até agora, o que predomina é o rosário de traços discordantes com a normalidade democrática e hostis aos pilares da civilização ocidental – democracia, racionalidade e competitividade econômica. O risco de ser governado por quem tem identidade com Putin, o engolidor do sol do outro, é eclipse e nudez.

Enfim, em situação não heroica ninguém sente a perda do presente. Se tudo é eterno retorno, falta força para pensar alternativa reflexiva. E a pobreza do cardápio de ideias quer dar ao prato feito a aparência de saciedade. É uma histeria da sociedade extenuada, contida pela política dos partidos financiados pelo Estado que apostam tudo na rixa entre eleitores.

Não é hora de elogiar candidato. Com a política tão excessiva e cotidiana entre nós, as ideias fora do lugar, instituições civis fora do eixo, militares sensualmente provocados em suas emoções e a economia a Deus-dará, melhor olhar o futuro. Até agora, são interesses políticos privados que impõem ao inconsciente do eleitor tal noção de preferência, ordem e hierarquia. Tal fato alterou definitivamente o sistema imunológico do cidadão, tornando-o incapaz de distinguir entre ele e o outro, o cru e o cozido. O inessencial é visível aos olhos.

A política da pressa e sem filosofia gosta de fato consumado. É só observar a baixa vocação para o progresso no caso de cidades e Estados onde líderes populistas, manipuladores, mandam e desmandam até o fim da vida, sem deixar os moradores em paz. Não existe liberdade nesta coisa do “tudo em um”. É uma coação desmedida expor-se ao interesse insaciável do outro que vê o eleitor como uma tralha velha.

Quando a política de preservação do poder prevalece sobre todos os outros objetivos, não há interesse nacional. Prevalece a lógica da nomenklatura burocrática dos partidos. Não importam direita, esquerda, masculino, feminino, farda ou terno. Já tivemos de tudo e demos com os burros n’água. O eleitor disperso, cansado, que se acha vivo demais para morrer na mão do outro, é tratado como morto demais e não consegue mudar nada. Política dos políticos, a morta-viva que esmaga e impede o cidadão de ajudar o Brasil desinteressadamente.

Paulo Delgado, o autor deste artigo, é sociólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 11.05.22.

Os limites da imunidade parlamentar

Preocupação do STF com proliferação de discursos contra as instituições e a democracia é justificada pela despreocupação do Congresso em punir a quebra de decoro de seus membros

Na semana passada, a 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu seis queixas-crime contra o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) por críticas feitas ao senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) e ao ex-deputado, também por Goiás, Alexandre Baldy. Kajuru agora é réu por difamação e injúria (artigos 139 e 140 do Código Penal).

Prevaleceu no julgamento o voto do ministro Gilmar Mendes. Para ele, a imunidade parlamentar não comporta discursos difamatórios, mas apenas declarações vinculadas ao mandato político. Daí, segundo o ministro, não estarem acobertadas por essa imunidade (nem pela liberdade de expressão) as declarações do senador Kajuru, que chamou Baldy de “vigarista” e chefe de uma “quadrilha” no Detran de Goiás. Já Cardoso foi chamado por Kajuru de “inútil” e “idiota incompetente”, além de ter sido acusado de usar o mandato de senador para fazer “negócio”.

O caráter ofensivo e o mau gosto das declarações de Kajuru são inegáveis, e contribuem para o empobrecimento do debate político. O mesmo se afirmaria se o senador tivesse sugerido que um procurador-geral da República é alcoólatra, como já fez o próprio Gilmar Mendes durante sessão do STF, ou se tivesse dito que um colega anda com “capangas”, como fez o ministro Joaquim Barbosa a respeito de Gilmar Mendes também no plenário da Corte.

Como se vê, é necessário distinguir os limites da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar. Entretanto, no julgamento de Jorge Kajuru, o Supremo não indicou um critério para separar a crítica ofensiva, mas própria do exercício do mandato (e recorrente na interação parlamentar), da violação aos limites daquela imunidade.

Se algumas das declarações de Kajuru extrapolaram a imunidade parlamentar, o Tribunal deveria tê-las indicado. Se feriram o decoro parlamentar, é o Congresso quem tem de agir. Se apontaram alguma malversação, cabe ao Ministério Público investigar. Por outro lado, se expressões duras como “inútil” ou “pateta bilionário” não podem ser ditas por um parlamentar a respeito de um adversário político do mesmo Estado, sob pena de configurar crime contra a honra, o que os demais cidadãos estariam livres para dizer?

Também é importante separar o caso Jorge Kajuru do caso Daniel Silveira. O parlamentar bolsonarista, diferentemente de Kajuru, não se limitou a qualificações esdrúxulas como “pateta desprezível xumbrega” ou afirmações de que o patrimônio do adversário político foi amealhado num “golpe do baú”.

Daniel Silveira foi condenado não por ter proferido “suas opiniões, palavras e votos” (artigo 53 da Constituição Federal), mas por ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo. Num infame vídeo, Silveira, entre outras tantas ameaças, instiga a população a entrar no STF, agarrar o ministro Alexandre de Moraes pelo colarinho, sacudir sua cabeça e jogá-la dentro de uma lixeira. Para o deputado, “qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada” na cara do ministro Edson Fachin, “de preferência após cada refeição, não é crime”.

Essa grande diferença entre as duas situações aponta o exagero cometido pela 2.ª Turma do STF ao afastar a imunidade parlamentar no caso de Kajuru. É verdade que vivemos tempos em que alguns parlamentares se aproveitam dessa imunidade para conturbar a democracia. Ou seja, instalam-se no Parlamento e recorrem à liberdade de atuação parlamentar para defender não a democracia, mas sua supressão (Daniel Silveira, por exemplo, defende o ditatorial Ato Institucional n.º 5).

Daí a preocupação do STF com a proliferação de discursos atentatórios às instituições e à democracia, preocupação que é justificada pela despreocupação do Congresso Nacional em punir a quebra de decoro de seus membros. Ainda assim, o Supremo precisa considerar que seus pronunciamentos sobre a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar não se reportam apenas aos acontecimentos da atualidade; eles também pavimentam a compreensão mais ampla desses institutos, imprescindíveis ao futuro da nossa democracia.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 11.05.22

The Economist: Exército da Rússia está em estado lastimável, e não aprendeu com erros

Fiasco na Ucrânia poderia ser reflexo de má estratégia ou de uma força de batalha ruim

O trabalho de organizar o maior exercício militar da Otan desde o fim da Guerra Fria manteve o almirante James Foggo, então comandante das forças navais americanas na Europa e na África, ocupado durante o verão de 2018. O Trident Juncture deveria reunir 50 mil soldados, 250 aeronaves e 65 navios de guerra no Ártico europeu em outubro. A movimentação logística de tamanha magnitude foi café-pequeno em comparação ao que a Rússia planejava fazer em setembro na Sibéria. Os exercícios Vostok deveriam ter sido os maiores organizados por Moscou desde os colossais exercícios Zapad, de 1981, gabou-se o ministro da Defesa russo, SergUei Shoigu - deveriam envolver 300 mil soldados, mil aeronaves e 80 navios de guerra.

Foi um feito enorme. “Para nós, foi um esforço enorme transportar 50 mil pessoas para o campo de batalha”, recordou-se o almirante Foggo. “Como eles tinham conseguido aquilo?”. A resposta, ele eventualmente descobriu, foi que eles não fizeram aquilo. Uma companhia de soldados (150, no máximo) foi contabilizada em Vostok como um batalhão ou até um regimento (de aproximadamente 1.000 homens). Navios de guerra foram registrados como esquadras inteiras. Essa trapaça pode ter sido um sinal de alerta de que nem tudo é o que parece nas Forças Armadas russas, antes mesmo delas terem atolado nos subúrbios de Kiev.

“Não é um Exército profissional que combate por lá”, afirmou o almirante Foggo. “Eles parecem um bando, uma ralé indisciplinada.” Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, as forças russas conseguiram capturar apenas uma cidade grande, Kherson, juntamente com ruínas de Mariupol e fatias do Donbas, a região industrial do leste ucraniano que os russos ocuparam parcialmente em 2014 e agora esperam conquistar totalmente. Esse resultado pífio custou 15 mil vidas de soldados russos, de acordo com uma recente estimativa britânica, excedendo em dois meses as perdas soviéticas em uma década de guerra no Afeganistão. A invasão foi claramente um fiasco. Mas em que medida reflete as verdadeiras capacidades militares da Rússia? Perguntam-se generais ocidentais estupefatos.

Na véspera da guerra, a força de invasão russa era considerada formidável. Agências de inteligência americanas estimavam que Kiev cairia em questão de dias. Algumas autoridades europeias pensaram que a capital ucraniana resistiria poucas semanas. Ninguém imaginou que a cidade receberia autoridades como Antony Blinken e Lloyd Austin, respectivamente os secretários americanos de Estado e da Defesa, dois meses após o início dos combates. Todos acreditaram que a Rússia faria na Ucrânia o que os EUA fizeram no Iraque em 1991: uma campanha de choque e pavor, de força avassaladora, que submeteria o país de maneira rápida e decisiva.

Essa crença tinha como base a presunção de que a Rússia havia realizado o mesmo tipo de reforma militar, de cabo a rabo, que os EUA haviam feito durante o hiato de 18 anos entre sua derrota no Vietnã e sua vitória na primeira Guerra do Golfo. Em 2008, a guerra da Rússia contra a Geórgia, um país com menos de 4 milhões de pessoas, apesar de finalmente bem-sucedida, expôs vicissitudes do Exército russo. A Rússia usou em batalha equipamentos obsoletos, teve dificuldade para localizar a artilharia georgiana e se atrapalhou em seu comando e controle. Num estágio determinado, o Estado-Maior russo alegadamente ficou sem conseguir contato com o ministro da Defesa por dez horas. “É impossível não notar um lapso entre teoria e prática”, reconheceu um comandante militar russo na época. Para encerrar esse lapso, as Forças Armadas diminuíram em tamanho e ganharam um lustro.

Espadas de ambição

O gasto militar russo, quando mensurado de maneira apropriada — ou seja, em taxas de câmbio ajustadas em função do poder de compra —, quase dobrou entre 2008 e 2021, aumentando para mais de US$ 250 bilhões, cerca de três vezes os níveis do Reino Unido ou da França. Aproximadamente 600 aviões, 840 helicópteros e 2,3 mil drones novos foram adicionados ao arsenal entre 2010 e 2020. Novos tanques e mísseis foram ostentados em paradas militares em Moscou. A Rússia testou técnicas e equipamentos novos no Donbas, após sua primeira invasão à Ucrânia, em 2014, e em sua campanha para sustentar o ditador sírio, Bashar Assad, no ano seguinte.

Um general europeu aposentado afirma que assistir esse Exército reformulado fracassar o recorda de uma visita à Alemanha Oriental e à Polônia depois do fim da Guerra Fria, quando ele viu o inimigo de perto. “Percebemos que o 3.º Exército de Choque era uma m...”, afirmou ele, referindo-se a uma renomada formação militar soviética com base em Magdeburgo. “Permitimo-nos novamente tropeçar na propaganda que eles colocam no nosso caminho.” Era sabido que o Exército russo tinha problemas, afirma Petr Pavel, general checo aposentado que presidiu o comitê militar da Otan entre 2015 e 2018, “mas a abrangência desses problemas surpreendeu muitos, incluindo a mim mesmo — pois achei que os russos tinham aprendido a lição”.

Corpo de um soldado russo é abandonado em vilarejo na região de Kharkiv, na Ucrânia 

A interpretação benevolente é que o Exército russo não tem cambaleado na Ucrânia tanto por conta de suas próprias deficiências, mas em razão das ilusões de Putin. Sua insistência em planejar a guerra secretamente complicou o planejamento militar. A FSB, sucessora da KGB, disse-lhe que a Ucrânia estava repleta de agentes russos e cairia rapidamente. Isso provavelmente produziu a insensata decisão de iniciar a guerra enviando paraquedistas com armas leves para a tomada de um aeroporto na região de Kiev e colunas solitárias de blindados avançarem sobre a cidade de Kharkiv, o que causou baixas pesadas em unidades de elite.

Ainda assim, com esse malogrado coup de main, o Exército escolheu então invadir o segundo maior país da Europa por várias direções, dividindo cerca de 120 grupos táticos de batalhão (BTGs) em contingentes de forças isoladas e ineficazes. A tática ruim, por sua vez, combinou-se a uma estratégia ruim: blindados, infantaria e artilharia combateram em campanhas desconectadas. Tanques que deveriam ter sido protegidos com infantaria terrestre vaguearam solitários e acabaram emboscados e capturados pelos ucranianos. A artilharia, principal esteio do Exército russo desde o período czarista, apesar de direcionada com ferocidade contra cidades como Kharkiv e Mariupol, não foi capaz de romper as linhas ucranianas em torno de Kiev.

Problemas em profusão

Nas semanas recentes, autoridades e especialistas debateram as causas do fracasso russo. Alguns estabeleceram comparações com o colapso do Exército francês em 1940. Mas esta analogia não cabe, afirma Christopher Dougherty, ex-estrategista do Pentágono. “A França fracassou porque seguia uma doutrina ruim”, afirma ele. “O fracasso da Rússia se deve em parte ao seu Exército não adotar nenhuma doutrina nem princípios básicos de guerra.”

Falta de experiência é parte do problema. Conforme notou certa vez o historiador Michael Howard, a técnica que um oficial militar aprimora “é quase singular, no sentido de que ele somente terá de exercê-la uma vez em sua vida, se chegar a tanto. É como se um cirurgião praticasse a vida inteira em bonecos para realizar uma única operação”. Os EUA têm segurado o bisturi quase continuamente desde o fim da Guerra Fria; no Iraque, nos Bálcãs, no Afeganistão, na Líbia, na Síria etc. A Rússia não combate numa guerra dessa magnitude contra um Exército organizado desde que tomou a Manchúria do Japão, em 1945.

Estratégias das quais a Rússia conseguiu se valer em guerras menores, no Donbas e na Síria — como usar sensores eletrônicos em drones para localizar alvos para sua artilharia — provaram-se mais difíceis numa escala maior. E coisas que pareciam fáceis nas guerras dos EUA, como aniquilar defesas antiaéreas do inimigo, são na realidade bastante difíceis de fazer. A Força Aérea russa está realizando centenas de missões diariamente, mas ainda tem dificuldades para detectar e atingir alvos em movimento e depende muito de bombas não guiadas, ou “burras”, que só podem ser lançadas com precisão a partir baixas altitudes, o que expõe suas aeronaves ao fogo antiaéreo.

Todos os Exércitos cometem erros. Alguns mais que outros. A característica distintiva dos bons Exércitos é que eles aprendem rapidamente com os próprios erros. Ao abandonar Kiev, colocar o foco no Donbas e instaurar um único general, Alexander Dvornikov, no comando de uma campanha cacofônica, a Rússia dá sinais tardios de adaptação. No início de abril, uma autoridade ocidental, ao ser questionada se a Rússia estava melhorando taticamente, observou que colunas de blindados ainda estavam sendo enviadas sem apoio e em filas únicas para atravessar território controlado pelos ucranianos — uma manobra suicida. Em 27 de abril, outra autoridade afirmou que as forças russas no Donbas pareciam indispostas ou incapazes de avançar sob chuva forte.

Em parte, as dificuldades da Rússia devem-se à heroica resistência ucraniana, apoiada pela torrente de armamentos e informações de inteligência dos ocidentais. “Mas o crédito quanto pela ruína das ilusões russas jaz, tanto quanto, num fenômeno bem conhecido pela sociologia militar”, escreve Eliot Cohen, da Universidade Johns Hopkins, “de que Exércitos, de modo geral, refletem as qualidades das sociedades das quais emergem”. O Estado russo, afirma Cohen, “assenta-se sobre corrupção, mentiras, ilegalidade e coerção”. Todos esses elementos foram revelados pelo Exército russo nesta guerra.

“Eles injetaram muito dinheiro em modernização”, afirma o general Pavel. “Mas grande parte desse dinheiro se perdeu no processo.” A corrupção certamente ajuda a explicar por que os veículos russos são equipados com pneus baratos de fabricação chinesa e por isso acabam atolados em lamaçais na Ucrânia. Também é capaz de explicar por que tantas unidades russas encontraram-se sem rádios criptografados e foram forçadas a substituir sua comunicação por mecanismos civis sem segurança ou até apelar para as redes de telefonia celular ucranianas. Isso, por sua vez, pode muito bem ter colaborado para as baixas entre os generais russos (a Ucrânia alega ter matado dez deles), já que as comunicações dos comandantes nas linhas de frente foram fáceis de interceptar.

Soldados ucranianos conversam em front na região de Zaporizhzhia 

Ainda assim, a corrupção não explica tudo. A Ucrânia também é corrupta, e não muito menos que a Rússia: os países se colocam respectivamente nas 122.ª e 136.ª posições no Índice de Percepção de Corrupção da ONG Transparência Internacional, um grupo de pressão. O que realmente distingue os dois países é o espírito de luta. Os soldados ucranianos estão lutando pela existência de sua nação. E muitos russos nem sabiam que entrariam em guerra até que receberam a ordem para atravessar a fronteira. Uma autoridade europeia de inteligência afirma que os conscritos russos — que Putin prometeu repetidamente que não iria mandar para a guerra — resistiram à pressão de assinar contratos que os transformaram em soldados profissionais; outros se negaram a servir absolutamente. A autoridade afirma que as unidades afetadas incluem a 106.ª Divisão de Guarda Aerotransportada e o 51.º Regimento de Paraquedistas, que são parte da suposta elite das Tropas Aerotransportadas da Federação Russa (VDV), e o 423.º Regimento de Fuzileiros Motorizados, que compõe uma importante divisão de tanques.

Dificuldades em massa

Soldados mal treinados e pouco motivados são um inconveniente em qualquer conflito; especialmente inadequados às complexidades da guerra moderna de armas combinadas, que requer tanques, infantaria, artilharia e poder aéreo trabalhando em sincronia. Tentar uma coordenação de tamanha magnitude na Ucrânia com adolescentes amuados, coagidos ao serviço, alimentados com rações de validade expirada e equipados com veículos com péssima manutenção foi o pico do otimismo.

Tamanha tarefa exige, no mínimo, liderança consistente. E isso também está em falta. Oficiais não comissionados — homens maduros alistados, que treinam e supervisionam os soldados — são a espinha dorsal das Forças Armadas da Otan. A Rússia não possui um quadro militar comparável. “Há coronéis demais e cabos de menos”, afirma uma autoridade europeia de defesa. O treinamento é rígido e antiquado, afirma ele, com obsessão na 2.ª Guerra e pouca atenção em conflitos mais atuais. Isso pode explicar por que a doutrina foi jogada pela janela. Manobras que pareceram fáceis em Vostok e outros exercícios conduzidos pelo Estado russo provaram-se mais difíceis de reproduzir sob fogo e longe de casa.

Se os oficiais russos estudaram a história militar de seu país, parecem ter depreendido as piores lições das guerras no Afeganistão, na Chechênia e na Síria. Durante sua ocupação do norte da Ucrânia, os soldados russos não apenas ingeriram grandes quantidades de bebidas alcoólicas e saquearam lares e comércios, mas também assassinaram grandes números de civis. Alguns deles foram recompensados por isso. Em 18 de abril, a 64.ª Brigada de Infantaria Motorizada, acusada de massacres de civis em Bucha, foi condecorada por Putin por seu “extremo heroísmo e coragem”, que lhe conferiu a honra de se tornar uma unidade de “Guarda”.

Crimes de guerra nem sempre são irracionais. Eles podem servir a propósitos políticos, como aterrorizar a população para sua submissão. Também não são incompatíveis com destreza militar: a Wehrmacht da Alemanha nazista era boa tanto em combater quanto em assassinar. Mas a brutalidade também pode ser contraproducente, inspirando o inimigo a lutar implacavelmente, em vez de se render e arriscar ser morto mesmo assim.

Ataques atingiram o porto, principal porta de entrada de armas e grãos da Ucrânia

A selvageria e a confusão das forças russas na Ucrânia são consistentes com sua recente conduta na Síria. Seus bombardeios contra hospitais ucranianos ecoam os bombardeios contra instalações médicas na Síria. Ainda assim, oficiais militares israelenses que assistiram atentamente a Força Aérea russa atuar na Síria ficaram surpresos por suas atuais dificuldades em defesa antiaérea, localização de alvos e decolagens frequentes. Num determinado estágio, eles consideraram que o envolvimento de sírios em operações aéreas era a única explicação plausível para um nível de profissionalismo tão baixo.

No fim, os israelenses concluíram que falta aos russos treinamento, doutrina e experiência para aproveitar plenamente suas avançadas aeronaves. Pilotos militares israelenses ficaram impressionados, tanto em suas missões de combate quanto nos seus empregos cotidianos como pilotos comerciais, pela tosca abordagem russa em relação à guerra eletrônica, que envolveu bloquear sinais de GPS sobre grandes faixas do leste do Mediterrâneo, às vezes por semanas a fio. Quando a invasão russa à Ucrânia empacou, analistas israelenses perceberam que as forças terrestres da Rússia eram afligidas por muitos desses mesmos problemas.

Alguns amigos dos russos parecem ter a mesma percepção. Syed Ata Hasnain, um general indiano aposentado que comandou as forças da Índia na Cachemira, nota uma “incompetência da Rússia no campo de batalha”, fundamentada em “arrogância e relutância em seguir noções militares básicas já comprovadas”. Um painel de diplomatas e generais indianos aposentados afiliados à Vivekananda International Foundation, um instituto de análise nacionalista próximo ao governo indiano, discutiu recentemente a “visível e abjeta falta de preparo” da Rússia e a “severa incompetência logística” do país. O fato de a Índia ser a nação que mais importa armas russas conferiu um peso especial à conclusão: “a qualidade da tecnologia russa que anteriormente era considerada superlativa está sendo cada vez mais questionada” — apesar da Ucrânia, evidentemente, utilizar em grande parte esse mesmo equipamento.

Ucranianos desmantelam tanque russo nas proximidades de Kiev 

Um processo similar de reavaliação ocorre neste momento nas Forças Armadas ocidentais. Um campo argumenta que a ameaça russa à Otan não é tão grande quanto temeu-se. “O Exército russo teve a reputação abalada e levará uma geração para se recuperar”, afirma uma análise recente de um governo da Otan. “Ele provou valer menos do que a soma de suas partes num espaço de batalha moderno e complexo.” Mas outra escola de pensamento alerta contra julgamentos precipitados. É cedo demais para tirar conclusões absolutas, alerta uma graduada autoridade da Otan, com a guerra ainda se desdobrando e ambos os lados se adaptando.

Se um dos erros da Rússia foi depreender uma falsa confiança de seu sucesso ao tomar a Crimeia da Ucrânia, em 2014, e em evitar a queda do regime de Assad, na Síria, em 2015, segundo este argumento há um risco similar de que os inimigos da Rússia infiram exageradamente das atuais desordens na Ucrânia. Michael Kofman, do CNA, um instituto de análise, reconhece que ele e outros especialistas “superestimamos o impacto das reformas…e subestimamos a podridão sob Shoigu”. Mas contexto é tudo, nota ele. Nos anos recentes, os cenários que têm preocupado estrategistas da Otan não são guerras na escala do atual conflito, mas operações mais modestas e realistas, com objetivos limitados e pequenas conquistas de território, como uma invasão russa em partes dos Estados bálticos ou uma tomada de ilhas como a norueguesa Svalbard.

Guerras como essas podem se desenrolar de maneiras muito diferentes que o conflito na Ucrânia. Começariam com um front mais estreito, envolveriam menos forças e colocariam menos pressão sobre logística, afirma Kofman. O Kremlin e o Estado-Maior russo não subestimariam a Otan necessariamente da maneira equivocada com a qual desprezaram o Exército ucraniano. E se o governo russo não estivesse tentando minimizar um futuro conflito, qualificando-o como nada além de uma “operação militar especial”, como faz na Ucrânia, poderia mobilizar muito mais forças e conscritos. Não há informação de que muitas das principais capacidades militares dos russos, como armamentos antissatélites e submarinos avançados, tenham sido testadas na Ucrânia de nenhuma maneira.

O Exército ucraniano

A view of damaged building after the shelling is said by Russian forces in Ukraine's second-biggest city of Kharkiv on March 3, 2022. - Ukraine and Russia agreed to create humanitarian corridors to evacuate civilians on March 3, in a second round of talks since Moscow invaded last week, negotiators on both sides said. (Photo by Sergey BOBOK / AFP)

População se junta a Exército ucraniano 'disposta a tudo' para resistir à invasão russa

Moscou não conseguiu dominar a capital, Kiev, nem a segunda maior cidade ucraniana, Kharkiv



Ucranianos que deixaram suas casas embarcam em trem na tentativa de voltar para casa na estação de Lviv. Recuo das tropas russas e avanço do exército da Ucrânia estimula refugiados a voltar para Kiev, capital do país, mesmo com aviso do Prefeito Vitali Klitschko de que ainda não é seguro o retorno. O mesmo movimento é visto em regiões sem combate ou ataques. FOTO - STEFAN WEICHERT / ESTADÃO

Ganhos militares da Ucrânia permitiram a volta para casa de muitos que fugiram da guerra

Geografia também é importante. Enquanto a logística russa “remete assustadoramente” ao antigo Exército soviético, afirma Ronald Ti, um especialista em logística militar que leciona no Baltic Defence College, na Estônia, sua dependência de ferrovias seria um problema menor em um ataque contra os Estados bálticos. “Uma operação ‘fato consumado’, em que eles extirpem uma fatia de território estoniano, está perfeitamente dentro de suas capacidades”, afirma Ti, “porque eles são capazes de alimentá-la com facilidade por terminais ferroviários”. (Se a Força Aérea russa, com sua falta de experiência e fragilidades agora expostas, seria capaz de proteger esses terminais dos ataques aéreos da Otan é outra questão.)

Lições em abundância

Kofman acredita que a pergunta sobre “quanto dessa guerra decorre de um Exército ruim, o que de importantes maneiras acho que claramente é o caso, e quanto disso é fruto de um plano verdadeiramente terrível” ainda não foi respondida. E ainda assim, é essencial respondê-la. Num artigo seminal, de 1995, o cientista político James Fearon, da Universidade Stanford, na Califórnia, argumentou que guerras caras e destrutivas que governos racionais prefeririam evitar por meio de negociação podem, apesar disso, ainda ocorrer, graças a erros de cálculo sobre capacidades do outro lado. Na teoria, um acordo de paz que evite a guerra refletiria o poder relativo de dois possíveis beligerantes. Mas as partes podem fracassar em alcançar tal barganha, porque esse poder relativo nem sempre é óbvio.

“Líderes sabem coisas a respeito de suas capacidades militares e disposição para a luta que outros Estados não sabem”, escreve Fearon, “e em situações de barganha, eles podem ter incentivos para deturpar tais informações para conseguir um acordo melhor”. Isso ajuda a explicar por que a Rússia inflou tão loucamente sua suposta destreza nos exercícios de Vostok. E isso pode funcionar. “Suspeito que muitos de nós nos deixamos levar pelas paradas do Dia da Vitória que nos mostraram todos os elementos escolhidos estrategicamente desse kit”, afirma o general europeu.

A batalha pelo Donbas não encerrará inteiramente este debate. Um Exército russo que prevalece numa guerra de desgaste por meio de seu poder de fogo superior e maior contingente poderia estar longe daquela força ágil e de alta tecnologia propagandeada ao longo da última década. É mais provável que os passos pesados e desajeitados das forças russas se exauriam muito antes de alcançar objetivos no sul e no leste da Ucrânia, sem mencionar outra tentativa de conquistar Kiev. Estrategistas militares de todo o mundo estarão assistindo de perto, para observar não apenas quão longe a Rússia chegará nas próximas semanas, mas também o que seu desempenho revelará sobre a resiliência, a adaptabilidade e a liderança de suas forças. Como uma faca enfiada num tronco caído, o progresso da campanha revelará a profundidade da podridão. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Publicado originalmente por The Economist. Reproduzido no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 11.05.22. © 2022 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM