sexta-feira, 6 de maio de 2022

É preciso preservar a autoridade do STF

Supremo tem enfrentado um cenário inédito de resistência e oposição em amplos setores da sociedade. Todos, especialmente os ministros do STF, devem zelar pela autoridade da Corte

A Constituição de 1988 dispõe que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são “independentes e harmônicos entre si”. No entanto, há uma percepção perigosamente generalizada na sociedade de que a Justiça, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), está em uma rota de desarmonia crescente com os outros Poderes. O Supremo estaria num grau inédito de isolamento, resultado de decisões que teriam contrariado parte da opinião pública e, pior, aplicado de forma duvidosa e parcial a Constituição.

A situação é grave. O País precisa não apenas de uma Corte constitucional, mas de uma Corte constitucional respeitada e com autoridade. Suas decisões precisam ser acatadas, concorde-se ou não com elas.

No dia 21 de abril, o presidente Bolsonaro tripudiou de uma sentença condenatória do STF, usando um decreto de indulto como se fosse órgão revisor da Corte. O Executivo federal não respeitou a independência da Justiça, e menos ainda atuou de forma harmônica com o Judiciário. Fez o exato contrário: toda a ação do Palácio do Planalto foi para destacar sua desarmonia com o Supremo.

Ao abusar do cargo, Jair Bolsonaro merece a mais cabal reprovação. Indulto não revisa decisão judicial, não altera entendimento jurisprudencial. No entanto, apesar de todas as evidências de uso antirrepublicano do poder de indultar penas, parte significativa da população entendeu que a ação de Bolsonaro não foi assim tão equivocada. Para essas pessoas, a atuação do Supremo nos últimos anos – não só em questões ligadas ao governo Bolsonaro – estaria de fato merecendo algum tipo de resistência.

Tem-se aqui um problema sério. De acordo com a Constituição de 1988, é o STF quem dá a última palavra sobre a Constituição, como ocorre nas Constituições dos países democráticos. A pretensão de falar depois do Supremo é descumprimento da Constituição, levando à corrosão do funcionamento do próprio regime democrático.

Essa prerrogativa do Supremo, que sempre foi tão cristalina, tem sido cada vez mais questionada, seja pelos golpistas bolsonaristas, seja por cidadãos que entendem que o Judiciário está repleto de ativistas políticos de esquerda. A justificativa é uma só: como o Supremo quer ser a última palavra, se ele mesmo descumpre, quando lhe convém, a Constituição?

Esse é o grande problema. No momento em que o Supremo tem sua autoridade questionada, deixa de ser visto como intérprete legítimo da Constituição, o que afeta a compreensão do próprio texto constitucional. A Constituição já não é mais o que diz o STF, e sim o que cada um entende que ela seja. Nesse diapasão, a decisão judicial que desagrada não é mais vista como um ato que, apesar de contrariar o ponto de vista pessoal, continua dispondo de autoridade e exigindo obediência. Aos olhos de quem foi desagradado, a decisão é tachada de ilegítima, já que estaria descumprindo a Constituição.

Esse cenário inverte o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. Em tese, a atividade jurisdicional, acompanhada da devida fundamentação jurídica, deve gerar uma contínua legitimação do Poder Judiciário perante a população. Mesmo que contrarie a preferência pessoal, a decisão judicial fundamentada deve ser apta a suscitar respeito e obediência. Na situação atual de desprestígio da Corte, ocorre o oposto. Até o exercício jurisdicional do Supremo mais rigorosamente fundamentado parece confirmar, em quem foi contrariado, a ideia de desvio de finalidade da Corte.

O quadro não será revertido batendo boca com o Palácio do Planalto. Todos têm o dever de proteger, dentro de suas possibilidades e atribuições, a independência do Judiciário e a autoridade do Supremo: é parte constitutiva do regime democrático, é elemento necessário de cidadania. No caso dos ministros do STF, cumpre-se esse dever observando as obrigações próprias de juiz, seja qual for a época ou lugar: ser o primeiro cumpridor da lei, falar apenas nos autos, ser consciencioso com os limites de sua função, não buscar os holofotes, não usar o cargo para promover ideias ou convicções pessoais. São juízes, servos da lei, e assim devem ser vistos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de maio de 2022 | 03h00

Os três recados diretos dos EUA a Bolsonaro sobre o sistema eleitoral e a democracia brasileira; leia análise

Os Estados Unidos, maior potência mundial e país-modelo de democracia para Jair Bolsonaro, já deram o recado ao presidente três vezes: as eleições no Brasil e o sistema de urnas eletrônicas são confiáveis e não devem ser questionadas sem provas. Por Felipe Frazão.

Diretor da CIA, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca e subsecretária de Estado para Assuntos Políticos deixaram claro que, para o governo Biden, as urnas eletrônicas são confiáveis (Foto: Brynn Anderson/AP)

A principal autoridade a vocalizar a mensagem do governo Joe Biden foi o diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William J. Burns, em 1º de julho de 2021, conforme revelou nesta quinta-feira, dia 5, a Reuters. A agência de notícias informou ter confirmado o teor do recado, ouvido por Bolsonaro e seus ministros do Palácio do Planalto, com três fontes a par dos assuntos tratados pela delegação da CIA.

Os Estados Unidos, maior potência mundial e país-modelo de democracia para Jair Bolsonaro, já deram o recado ao presidente três vezes: as eleições no Brasil e o sistema de urnas eletrônicas são confiáveis e não devem ser questionadas sem provas. Foto: AP Photo/Eraldo Peres

Os Estados Unidos, maior potência mundial e país-modelo de democracia para Jair Bolsonaro, já deram o recado ao presidente três vezes: as eleições no Brasil e o sistema de urnas eletrônicas são confiáveis e não devem ser questionadas sem provas. Foto: AP Photo/Eraldo Peres 

A visita foi cercada de mistério. Tanto o governo brasileiro quanto a embaixada se recusam a dar mais explicações. Também não divulgaram a agenda previamente. Além das audiências no Palácio do Planalto, ministros do governo Bolsonaro participaram de um jantar no Lago Sul, oferecido pelo então embaixador, Todd Chapman.

Questionados por parlamentares, os generais Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria Geral da Presidência), preferiram termos genéricos, que dificultaram a compreensão do que foi tratado.

”A pauta versou sobre assuntos afetos à promoção da democracia, da segurança e da estabilidade no hemisfério”, afirmou Heleno. “Desconheço, naquela ocasião, a abordagem de assuntos contrários ao Estado Democrático de Direito”, asseverou Ramos. Ambos falaram ainda em diálogos informais, conforme ofícios remetidos por eles ao Congresso.

A principal autoridade a vocalizar a mensagem do governo Joe Biden foi o diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William Burns, em 1º de julho de 2021.

A principal autoridade a vocalizar a mensagem do governo Joe Biden foi o diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William Burns, em 1º de julho de 2021. 

Nesta quinta, durante live com o presidente, Heleno disse que “essa conversa sobre eleições jamais aconteceu”. Bolsonaro também tentou desacreditar a reportagem. “Seria extremamente deselegante chefe de agência como a CIA ir a outro país dar recado”, afirmou o presidente.

Diplomatas do Itamaraty, que não se pronunciou oficialmente, seguem a linha da desconfiança. Dizem, nos bastidores do governo, que o relato sobre a visita do chefe da CIA requenta especulações e pode não ser tão preciso. Um deles lembra que um recado desses poderia soar como interferência e que um diretor da CIA não seria tão contundente, ainda mais com o perfil de Burns, que é diplomata.

Mas a preocupação com a insistência de Bolsonaro em levantar suspeição sobre as eleições brasileiras, sem provas, não se restringem à maior agência de inteligência do mundo. E atravessaram o ano.

Em agosto de 2021, Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, transmitiu pessoalmente a Bolsonaro mensagem similar à de Burns, alertando que o presidente não deveria “desacreditar o processo eleitoral” e que não havia evidências de fraudes no sistema. Na ocasião, outro colaborador de Biden, o diretor sênior do Conselho de Segurança Nacional, Juan González, confirmou a conversa em entrevista promovida pelo governo Biden.

Porta-voz dos EUA afirma que Brasil tem ‘forte histórico de eleições livres e justas’

Ned Price mandou ainda um recado aos eleitores: ‘É importante que os brasileiros confiem em seu sistema eleitoral’

Diretor da CIA disse ao governo Bolsonaro para não mexer com eleição no Brasil, afirma Reuters

Fontes informaram à agência que William J. Burns alertou os ministros Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos sobre falas do presidente durante jantar em Brasília, em julho do ano passado

Na semana passada, a subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland, tratou das eleições em visita no Itamaraty. Despachada em missão oficial do Departamento de Estado a Brasília, disse que, assim como os americanos, os brasileiros também deveriam confiar na tradição nacional de realizar eleições justas e livres, nas instituições democráticas e no sistema de urnas eletrônicas, “inclusive no nível de liderança”. A expressão, embora permita mais de uma interpretação, costuma ser usada no jargão diplomático para se referir aos líderes políticos, ou seja, chefes de Estado e governo, no caso, o presidente Bolsonaro. O porta-voz do departamento, Ned Price, reiterou a fala de Nuland nesta quinta.

Tampouco é a primeira vez que Washington manifesta preocupação com a estabilidade da segunda maior democracia do continente. O episódio de 6 de janeiro de 2021 ainda povoa a cabeça de autoridades do governo Joe Biden. Eles não esqueceram do endosso do governo Bolsonaro às dúvidas e protestos antidemocráticos, incentivadas pelo aliado republicano de Bolsonaro, Donald Trump, que levaram a uma tragédia com mortos no Capitólio.

No ano passado, o risco de ruptura no Brasil e de atos violentos durante o Sete de Setembro, com tentativas de minar a confiança em instituições, figurou em comunicações despachadas pelas missões diplomáticas estrangeiras sediadas em Brasília. Agora, todos os olhos do governo americano – da CIA à Casa Branca, passando pelo Departamento de Estado -, se voltam ao respeito ao resultado das eleições.

Felipe Frazão é jornalista. Publiadooriginalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.05.22

Bolsonaro não é um líder militar, afirma General Bolivar Meirelles

ContraPoder entrevistou o General Bolivar Meirelles sobre o cenário das Forças Armadas e a possibilidade de um golpe no Brasil. A entrevista era para ser apenas em vídeo, porém as respostas em texto são de tanta importância quanto a entrevista gravada.

A entrevista foi feita e organizada pelo Contrapoder e pela professora Virgínia Fontes (UFF). Agradecemos imensamente a disponibilidade da professora em conduzir a entrevista.

Ao final do texto encontra-se a entrevista em vídeo e mais um pequeno artigo escrito pelo General para a Tribuna imprensa livre.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Há duas correntes ou tendências nas FFAA como parece acreditar uma parte da mídia? A relação das diferentes hierarquias (alto escalão e praças) com Bolsonaro é algo novo ou é uma continuidade? 

Gen. Bolivar Meirelles: Uma coisa são os interesses pecuniários, correspondem aos interesses de ordem salarial, que envolvem não apenas militares, mas civis também. São as pessoas menos politizadas que pensam e agem por essa motivação. Hoje fica explicitado que há grupos menos aquinhoados pela Reforma Previdenciária, que beneficiou estratos mais altos da hierarquia militar, mas não beneficiou igualmente parcelas mais baixas dessa categoria. É uma questão a se tratar no âmbito da política.

Contrapoder e Virgínia Fontes: É sabido que Bolsonaro tem estreita relação com milícias no Rio de Janeiro e com policiais – muitos da chamada ‘banda podre’ – da PM. Agora procura controlar diretamente a PF. Como vê a relação das Forças Armadas e de sua hierarquia com esse esquema de privatização e milicialização da segurança pública?

Gen. Bolivar Meirelles: Não vejo como viável o envolvimento total do estamento Forças Armadas brasileiras com as milícias, grupamento de origem nas polícias estaduais que dominam “negócios tópicos” e, por interesse financeiro, se conflitam com narcotraficantes. Isso é uma questão que, no Estado do Rio de Janeiro, é notória, e em São Paulo e Espírito Santo já vem, de certa forma se locando[CSM1] . As Forças Armadas, por sua natureza nacional, podem ser remanejadas. Acho que os grandes conflitos que possam se dar dentro da sociedade brasileira são conflitos de classe. Contradições de interesses. Claro que milicianos e narcotraficantes, hoje, já constituem agrupamentos de interesse econômico — negócios, pois, que podem atuar como componentes, embora ilegais, mas com ideologia similar a uma burguesia espúria. A máfia já teve seu espaço na Itália e nos EUA também; envolvem, pois, interesses de ordem econômica e financeira (os “donos” do negócio são explorados e remunerados por eles).  Essa questão não é, pelo menos, apenas militar, é uma questão social e política.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual a relação entre as FFAA e as polícias na atualidade? Que modificações relevantes podem ser identificadas? Há maior aproximação e confusão de papéis entre elas, pelas GLO, por exemplo?

Gen. Bolivar Meirelles: A Garantia de Lei e Ordem foi uma limitação da Constituição Cidadã de 1988 que cedeu a pressões das Forças Armadas e permitiu remanescer na Carta Magna resíduos do poder militar exercido nos idos dos governos militares implantados com o golpe de Estado de 1º de abril de 1964. Sarney (ARENA) foi um governo transitório — Tancredo Neves (MDB) era o possível candidato da transição —; tinha a confiança da classe dominante e era oriundo da ARENA, partido do Governo Militar. Convoca uma Constituinte, mas permite que ela possa ter, continuamente dentro do Poder Legislativo Nacional, elementos do “lobby” militar pressionando. Tanto que não houve uma revisão da precária Lei da Anistia negociada no governo Figueiredo, pela qual torturadores foram anistiados, nem permitiu a reversão ao serviço ativo dos militares democratas e patriotas atingidos pelos instrumentos ditatoriais, os atos institucionais.

Quanto à ligação das Forças Armadas brasileiras com milicianos, a pergunta já foi respondida no quesito 2.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como o senhor analisa a disseminação de empresas de segurança (legais e ilegais) dirigidas por militares (das FFAA e das polícias) da ativa ou reformados? Saiu recentemente matéria sobre general no norte de MG que dirige com empresários uma milícia contra assentados rurais.

Gen. Bolivar Meirelles: É um negócio inerente à formação profissional de militares. Médicos se dedicam mais a clínicas médicas, engenheiros mais a empresas de engenharia. Crime é para todos, civis e militares, clínicas de aborto clandestinos, empresas de engenharia que constroem em locais indevidos, médicos estupradores em seus consultórios… infelizmente existem. Negócios de igrejas que vendem Jesus como mercadoria… Isso tudo tem de ser combatido e os responsáveis devem ser processados e responder perante a lei.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual a influência dos Estados Unidos na doutrina dominante? VF – Quais os setores estadunidenses com os quais as FFAA têm proximidade? Que tipos de atividades? Formação, armamentos, doutrina, participação em treinamentos?

Gen. Bolivar Meirelles: O Brasil tem forte ligação militar com os EUA, não é de hoje. Participou da Segunda Guerra Mundial, na Itália, sob o comando norte-americano. O General Eisenhower foi o comandante da Segunda Frente Ocidental. Militares brasileiros voltaram da Guerra impressionados com os EUA, e outros com a União Soviética. A ESG, Escola Superior de Guerra, é criada à semelhança do War College norte-americano — este surgido por inspiração da classe dominante norte-americana. A ESG brasileira, criada em 1948, vem da estrutura militar norte americana. No Brasil, as Forças Armadas, principalmente o Exército Brasileiro, têm dupla função; é instrumento repressivo, mas também ideológico. Vários quadros políticos importantes cursaram a ESG. 

A inter-relação das Forças Armadas brasileiras com as dos EUA se dá de várias maneiras: cursos, acordos militares, trocas de informações etc.

Quando eleito em 1950, Getúlio Vargas assina a lei 2004, de iniciativa do deputado Euzébio Rocha, que criou a Petrobrás, mas cede a pressões e assina o Acordo Militar Brasil-EUA. Interessante é que esse acordo venha a ser denunciado no Governo Geisel.

A Guerra Fria foi um período de grande influência norte americana nas questões militares brasileiras. Os EUA influenciaram na queda de Getúlio em 1945 e na queda de Goulart em 1964.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como avalia a liderança real de Bolsonaro nas Forças Armadas? VF – Há tensões?

Gen. Bolivar Meirelles: Bolsonaro não é um líder militar; Geisel fez expressa crítica ao insubordinado Capitão. Bolsonaro, no entanto, se colocou como um sindicalista militar. Auferiu muitos votos no e do estamento militar por isso, inicialmente no Rio de Janeiro e depois nacionalmente. Não acredito que os comandos responsáveis o desejem como ditador brasileiro. Existem muitas contradições internas nas Forças Armadas brasileiras. Bolsonaro hoje se caracteriza como um autoritário entreguista. Muitos militares são autoritários, outros nem tanto e muitos são patriotas, nem todos entreguistas. É uma questão complexa. Agora, muitos civis, inclusive nas camadas médias altas, se associam ao Bolsonaro autoritário, privatista e entreguista. Não é específica essa categoria ao Militar.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como vê o compromisso efetivo dos militares com o respeito à Constituição? VF – Há algum consenso sobre o “Estado de Direito”?

Gen. Bolivar Meirelles: Não vejo grande interesse de os militares brasileiros “rasgarem” a Constituição de 1988. Ela responde, em grande parte, a seus interesses. Os militares têm forma constitucional de exercer certa interferência na política. Os militares acabam, pelas patentes superiores e oficiais generais, sendo beneficiados pela Reforma Previdenciária, muito mais pela atitude do Poder Legislativo do que do Executivo.

Quem dá golpe de Estado é a classe dominante e está dividida. As Forças Armadas são, muito mais, usadas pela classe dominante. Faz lembrar a história do macaco que pediu a mão do gato emprestada para tirar as castanhas que assavam no forno.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como diferencia a composição das Forças Armadas hoje e durante a ditadura militar?

Gen. Bolivar Meirelles: De início, hoje não existe Guerra Fria, o principal consumidor das commodities brasileiras é a China, o Brasil é membro do BRICS. Não existe uma esquerda forte no Brasil. Não existe uma CGT, Comando Geral dos Trabalhadores, sob a direção do Partido Comunista Brasileiro. O PCB não tem a força política que tinha e o PC do B é um partido reformista. Não há situação objetiva nem existe um partido revolucionário com expressão popular. Não há, pois, nem situação objetiva nem subjetiva. As esquerdas e a centro-esquerda são frágeis no momento.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Quais são os principais grupos políticos que influenciam a ação da corporação?

Gen. Bolivar Meirelles: Acho que, hegemonicamente, como as camadas médias altas, o estamento militar, pelos seus oficiais, suboficiais e sargentos, vota mais em partidos conservadores. Não tenho, no entanto, informação empírica, é apenas observação superficial.

Contrapoder e Virgínia Fontes: A que segmento da sociedade os militares respondem? Quais os nexos orgânicos que a corporação tem com a burguesia?

Gen. Bolivar Meirelles: Entre os militares, oficiais, suboficiais e sargentos são componentes das camadas médias da sociedade, uns na alta e outra na intermediária.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Ainda resta algum sentimento nacionalista entre a cúpula dos militares? VF – Houve a defesa do petróleo antes de 1964 –  e quanto ao pré-sal (Amazônia Azul) na atualidade?

Gen. Bolivar Meirelles: Acho que deva haver algum sentimento patriótico residual, a maioria à direita. Em 1964 houve um expurgo muito grande nas Forças Armadas brasileiras — talvez as instituições mais atingidas. Após a Revolução Cubana, em 1961 — eu era cadete então, cursava a Academia Militar das Agulhas Negras —, foi introduzida a concepção do Inimigo Interno. Forte lavagem cerebral anticomunista nas Forças Armadas. As Forças Armadas já tinham forte anticomunismo a partir dos levantes militares em Natal, Recife e Rio de Janeiro em 1935, da Aliança Nacional Libertadora. Esse anticomunismo foi alimentado durante a Guerra Fria e realimentado após a vitoriosa Revolução Cubana.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual deveria ser a política da esquerda socialista em relação aos militares?

Gen. Bolivar Meirelles: Fazer seu trabalho de politização no âmbito da sociedade. Embora haja uma sinergia dialética entre a sociedade e o Estado, é muito mais uma sociedade bem politizada que fará avançar o Estado e seus estamentos, inclusive o militar, no sentido patriótico, mas internacionalista, bem como na constituição de uma sociedade igualitária.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Julga que existe ameaça de intervenção militar? Ela seria com ou sem Bolsonaro?

Gen. Bolivar Meirelles: Embora já haja respondido pergunta similar, volto a respondê-la. Não vejo situação objetiva nem interesse subjetivo das Forças Armadas brasileiras assumirem a responsabilidade pela instalação de uma ditadura no Brasil. Não observo confiança das Forças Armadas no Capitão Bolsonaro para fazê-lo ditador. As classes dominantes brasileiras estão divididas. O Trump não é uma liderança capaz de conduzir o Brasil a um golpe de Estado com militares como protagonistas. A Europa, a Rússia e a China são as principais compradoras das commodities brasileiras. Não havendo realidade objetiva, nem subjetiva… não vejo viabilidade de um golpe com ostensivo uso das Forças Armadas. Agora, o governo Bolsonaro já foi, de certa forma, um golpe de Estado institucional.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual o papel das Forças Armadas na sociedade brasileira?

Gen. Bolivar Meirelles: As Forças Armadas brasileiras cumprem um papel de defesa da Pátria brasileira. Quando eu a elas me integrei, em 1956, fiz o juramento à bandeira de “defender a Pátria com o sacrifício da própria vida”. Ninguém jurou defender o capitalismo ou o imperialismo norte-americano. A Pátria é um processo de “ser e vir a ser”. Quando na vigência do Tratado de Tordesilhas, o Brasil era um, depois até o nome mudou. Espero que, um dia, quando o mundo não tiver mais fronteiras, as Forças Armadas percam a sua razão de existir. A Pátria constitui o território, o solo e o subsolo, reservas aquíferas, suas florestas, seu povo.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Voltando ao passado: em 1963-64, o senhor acredita que os nacionalistas conheciam o projeto/plano de Magalhães Pinto de declarar MG um ‘estado beligerante”?

Gen. Bolivar Meirelles: Acho que não. Mesmo se existisse essa pretensão seria, militarmente, inviável. Minas Gerais é um Estado sem saída para o mar. Seria facilmente reconquistado, pressionado por forças militares do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, as demais Forças Armadas localizadas em outras regiões. Projeto inviável. São Paulo, com saída marítima e forte indústria, seria mais viável.

Publicado originalmente por ContraPoder, em 7 de junho de 2020. (Bolsonaro não é um líder militar, afirma General Bolivar Meirelle. - Contrapoder).

O princípio da retroatividade da lei sancionadora mais benigna

Com a entrada em vigor da Lei 14.230/2021, que implementou algumas alterações na Lei 8.429/1992, chamada de Lei da Improbidade Administrativa, surgiu inesperada discussão, felizmente restrita a certos e conhecidos enclaves punitivistas, sobre se as alterações benéficas aos acusados e réus teriam — ou não — efeitos retroativos. Comentário de Napoleão Maia Filho.

A ideia de que a lei mais benigna opera efeitos sobre os fatos pretéritos (retroatividade), associada à de que a lei mais favorável tem eficácia mesmo depois de revogada (ultratividade) é um dos mais antigos dogmas do Direito Sancionador e está expletivamente inscrito como direito individual no artigo 5o., XL da Constituição, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. A expressão lei penal, como se verá mais adiante, não deve ser, nesse contexto, indicativo de que em matéria não penal a retroatividade mais gravosa poderia atuar livremente, como pareceu a uns poucos leitores menos reflexivos sobre o tema.


O artigo 2º, parág. único do Código Penal, por seu turno, assevera que a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. A súmula 611 do colendo STF assevera que, transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna. Esse dispositivo legal do CPB e o enunciado do verbete 611-STF dão perfeita e exata concreção ao artigo, 5o., XL da Constituição e devem ser interpretados em consonância com ele. Na verdade, as regras benévolas devem aplicadas de forma ampliativa, segundo o velho preceito do Direito Romano benevola amplianda, odiosa restringenda.

Diante dessas disposições tão claras e decisivas, por qual razão ainda se discute se a Lei 14.230/2021 tem — ou não — aplicação retroativa, relativamente aos seus dispositivos que instituem condições mais favoráveis aos acusados e réus? Esta é uma pergunta inquietante e deve a cada dia ser enfrentada, cabendo aos aplicadores da nova Lei de Improbidade Administrativa decidir as causas pertinentes com a cabeça nos ares do mundo.

A grande matriz geradora das resistências à ideia da retroatividade dos dispositivos mais benévolos da Lei 14.230/2021 é, sem dúvida alguma, o pensamento punitivista que tomou conta da jurisdição penal no Brasil. Tomou conta e se espraiou para todas as instâncias sancionadoras, inclusive para as instâncias cíveis, em cujo âmbito se inscrevem as leis e as regras repressoras dos atos de improbidade administrativa. No pensar de alguns doutores, as leis sancionadoras civis, ainda que mais gravosas aos acusados ou réus, poderiam retroagir livremente. Esse é um pensamento estranho e injurídico, pois o Código Tributário Nacional traz disposição em contrário (artigo 106, II, a) e nunca se ouviu dizer que fosse inconstitucional.

Mas o pensamento punitivista é como uma mancha de óleo derramado numa lagoa, que se alastra envenenando as suas águas calmas. Ou uma afirmação deslastreada de elementos consistentes, que à custa de tanta repetição vai assumindo ares de verdade. 

A concepção punitivista dá suporte às condutas radicais da atuação estatal sancionadora. Por essa concepção, a jurisdição sancionadora deve ser estimada como simples e puro gerencialismo dos resultados dos atos ilícitos, que podem ser identificados segundo a metodologia mais rasa e sem apoios doutrinários. Essa administrativização do poder estatal de punir gera a banalização das atividades que lhe correspondem, que ficam sendo vistas apenas como coisas práticas, como uma atividade de mera aplicação silenciosa das regras sancionadoras.

No entanto, o pensamento jus-punitivista não é o único produtor da apontada resistência. Há outro fator igualmente poderoso e propulsor dessa mesma ideia, qual seja, o ponto de vista que afirma que somente a lei penal mais benéfica é que pode retroagir, isso por causa da expressão lei penal no artigo 5o., XL da Constituição, e na sua interpretação magra a mais não poder. Segundo esse raciocínio restritivo, como a Lei de Improbidade não é de natureza penal, estaria excluída de operar efeitos quanto a fatos que lhe são anteriores. É gritante o artificialismo desse argumento e se pode afirmar que se trata apenas de esforço, certamente inútil, para doutrinarizar o punitivismo, dando-lhe ares de nobreza de teoria jurídica.

Quem analisar com um mínimo de isenção intelectual o que dispõe o artigo 5º, LV da Constituição — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes – certamente concluirá que a retroação da lei penal mais benigna (artigo 5º., XL da Constituição) contém direito subjetivo que se aplica a todos os acusados ou réus, em quaisquer processos, inclusive administrativos e cíveis, desde que visem à aplicação de sanção, seja qual for a sua natureza.

Essa diretriz já foi assentada por um dos mais cultos juristas do país, o eminente ministro Luiz Fux, quando ainda judicava no egrégio STJ. Julgando o Recurso Especial 190.721/CE, teve o doutrinador ensejo de afirmar ser uníssona a doutrina no sentido de que, quanto aos aspectos sancionatórios da Lei de Improbidade, impõe-se exegese idêntica a que se empreende com relação às figuras típicas penais, quanto à necessidade de a improbidade colorir-se de atuar imoral com feição de corrupção de natureza econômica.

E arrematou a sua preciosa lição dizendo que tratando-se de ação cível com cunho penal, a atipicidade da conduta assemelha-se à impossibilidade jurídica do pedido, mercê da falta notória do interesse de agir quer por repressão quer por inibição, impondo o indeferimento da inicial e a consequente extinção do processo sem análise do mérito, por isso que ausente a violação do artigo 267 do CPC.

Deve-se pontuar que a benignidade de uma lei afluente mais favorável não se revela somente quando promove, por exemplo, a abolição da figura típica ou, a eliminação ou a redução da pena, embora esses sejam talvez os casos mais frisantes, mas também quando implanta qualquer modalidade de benefício. Na hipótese em estudo, o benefício que advém da lei nova é a retroatividade dos seus dispositivos mais benévolos aos acusados ou aos réus, incidindo sobre a relação jurídica de Direito Sancionador, quando esta se acha em trâmite no curso de processo judicial ou administrativo ou mesmo em processo de qualquer natureza e já encerrado.

A retroatividade da lei sancionadora mais benigna acha-se entre os institutos jurídicos criados para limitar os poderes estatais punitivos, sendo um dos mais relevantes. A eficácia da retroatividade da lex mitior paralisa definitivamente o poder estatal sancionador, qualquer que ele seja. Já se vê que se trata de um instituto que se cerca de ampla aceitação, o que leva a minimizar o insistente pensamento jurídico punitivista que se esmera em dar preponderância ao interesse punitivo, nas relações do processo administrativo ou judicial sancionador.

Pode-se ter a retroatividade da lei mais benigna na conta dos princípios reitores do Direito Sancionador e os princípios jurídicos, como já o disse o eminente professor Miguel Reale (1910-2006), são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas (Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 305). Peço de empréstimo as palavras do dramaturgo alemão Berthold Brecht (1898-1956), para dizer que vivemos tão tempos difíceis, que até o óbvio precisa ser demonstrado. No caso, precisa-se demonstrar que os princípios jurídicos e constitucionais se aplicam a todas as searas e a todos os ramos do Direito;

A inserção da retroatividade da lex mitior na categoria de princípio jurídico constitucional leva, portanto, a que a sua aplicabilidade seja ampla, isto é, que seja reconhecida e praticada em qualquer relação jurídica em que se cogite de impor qualquer gravame a qualquer direito subjetivo, seja em qual área jurídica for. O douto professor José Afonso da Silva acha que a retroativdiade se funda em requisito de justiça, certamente o maior de todos os princípios. Para ele, se o Estado reconhece, pela lei nova, não mais necessária à defesa social a definição penal do fato, não seria justo nem jurídico alguém ser punido e continuar executando a pena cominada em relação a alguém, só por haver praticado o fato anteriormente (Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 138).

É uma coisa exótica pôr-se ainda em discussão a retroatividade de qualquer lei sancionadora mais benéfica ao acusado ou ao réu, porque o colendo STF, no julgamento do MS 23.262/DF, sob a condução do douto ministro Dias Toffoli, já assentou que o princípio da presunção da inocência (artigo 5º, LVII da Constituição), nascido e crescido no Direito Penal, se aplica aos processos administrativos sancionadores, apesar de o dispositivo magno aludir à lei penal. Diante dessa hiperlúcida expansão garantística, não há razão jurídica alguma para se questionar a retroação da Lei 14.230/2021, cujo conteúdo é induvidosamente sancionador. Por essa razão, a oposição à retroatividade de seus dispositivos mais benéficos cai na vala das reações apenas punitivistas, ainda que reivindicantes de pressupostos científicos.    

No egrégio STJ, há exemplares julgados de sua Primeira Turma em que se firmou a aplicabilidade da retroação da lei mais benigna, em julgamentos de matéria cível: no RMS 37.031/SP, sob a relatoria da douta ministra Regina Helena Costa, o colegiado decidiu que a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal. Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator.

E acresceu a eminente julgadora que constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

No julgamento do Recurso Especial 1.153.083/MT, sob esclarecida relatoria do eminente ministro Sérgio Kukina, seguiu-se caminho idêntico, ao se definir de maneira claríssima que o artigo 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage.

Esse contexto deveria levar à conclusão que todos os institutos garantísticos do processo penal contemporâneo deveriam ser aplicados de logo e imediatamente no processo sancionar administrativo e judicial. Será preciso sempre relembrar que a retroação da lei mais benéfica é um instituto que deve ser apreendido em favor do imputado ou réu, ou seja, é um instituto pro reo. Não se deve esquecer, porém, que essa expressão — pro reo — provoca arrepios nos juristas punitivistas, pois o pensamento geral, dominante entre eles, é o de que os direitos subjetivos e as garantias jurídicas e processuais servem apenas para empecer a atividade estatal sancionadora, favorecer a impunidade dos infratores e retardar — ou mesmo eliminar — a eficiência do sistema repressivo.

Esse discurso eficientista ou gerencialista da função punitiva é sempre carregado de valores anti-democráticos, de autoritarismos e repressões e mesmo de sentimentos excludentistas ou vinditas institucionais. Isso se pode facilmente ver, por exemplo, no livro do jurista alemão professor Günther Jakobs, que em 1985 iniciou a teoria da técnica punitivista que sustenta que o Direito Penal — e o Direito Sancionador em geral — serve a propósitos somente repressivos.

Nunca será demasiado pontuar e repontuar que não é lícito às autoridades incumbidas da repressão estatal — sejam elas administrativas, policiais ou judiciais — atuar com as mesmas armas que os agentes das ilicitudes geralmente empregam. Essa é a advertência de outro jurista alemão, o professor Winfried Hassemer (1940-2014) que se manifesta dizendo que, também nos tempos da ameaça flagrante à segurança interna, nós precisamos de esferas rígidas, de ponderação e indisponíveis da liberdade dos cidadãos.

O pensamento punitivista quer que todo mundo creia no mito de que as sanções fortalecem o poder e que as absolvições, ao revés, o enfraquecem. A voz retroação benéfica, além de assustar, provoca reações tão adversas nos punitivistas, que chegam ao paroxismo. No entanto, o ilustre mestre argentino professor Eugênio Raúl Zaffaroni, hoje integrante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, discorda frontalmente das propostas do Direito Penal do Inimigo. Ele levanta a voz para dizer que a cisão entre cidadãos e inimigos serve ao propósito de criar, artificialmente, a condição primá­ria que justificaria a tendência para radicalizar a supressão de direitos aos inimigos.  

E explica didaticamente o professor Zaffaroni o seu ponto de vista, observando o seguinte, a propósito deste tema, sublinhando que este conceito bem preciso de inimigo remonta à distinção romana entre o inimicus e o hostis, mediante o qual o inimicus era o inimigo pessoal, ao passo que o verdadeiro inimigo político seria o hostis, em relação ao qual é sempre colocada a possibilidade de guerra como negação absoluta do outro ser ou realização extrema da hostilidade. O estrangeiro, o estranho, o inimigo, o hostis era quem carecia de direitos em termos absolutos, quem estava fora da comunidade (op. cit., p. 21).    

Pode-se identificar na ideologia sancionadora eficientis­ta a mesma concepção que orienta as escolas jurídicas agrupadas sob o rótulo de funcionalistas, cujos integrantes costumam apontar o con­traste, que imaginam existente, entre a eficiência do sistema de repressão dos ilícitos e o sistema assegurador de garantias subjetivas. Esses escolásticos parecem acreditar que há um autêntico dilema entre a necessidade de efetivar o combate aos ilícitos e a preservação dos direitos subjetivos das pessoas. Esse dilema é falso, mas se afigura muito forte à percepção dos ideólogos do punitivismo.   

Este é o cenário em que medrou e se desenvolveu a adversidade ao instituto da retroatividade da lei mais benigna, que atua na mente dos julgadores como se fosse um sinal — ou mesmo uma prova — de que sistema repressivo não funcionou a contento, porque funcionar a contento significaria condenar. É a mesma coisa que se passa com a acusação, quando se admite que a toda acusação deve corresponder um processo e a todo processo deve corresponde uma condenação. E a retroação benévola caminha, segundo essa visão punitivista do Direito Sancionador, na contra-mão da ideologia garantística.

Deve ser posto em alto destaque que a retroatividade — como também a ultratividade — da lei mais benigna nasceram efetivamente na seara penal, mas ambas se acham estabelecidas como princípios de Direito, nos sistemas jurídicos do Ocidente. No Brasil, estão elevadas à dignidade de regra constitucional explícita (artigo 5º, XL), que expressamente repercutiu no campo tributário (artigo 106 do CTN), por exemplo, mas também em todos os outros em que há obrigações legais. Pode-se dizer, aliás, que os princípios jurídicos na pertencem à exclusividade de alguma seara do Direito, mas podem ser aplicados em todas elas, sempre em atenção às suas peculiaridades.

A outra face da retroatividade da lei mais benigna, tão relevante quanto ela própria, é a ultratividade da regra mais favorável, ou seja, a sua plena eficácia, mesmo depois de revogada, se dela resulta situação mais favorável ao imputado ou réu. A esse respeito o ilustre ministro Celso de Mello elaborou lapidar conceituação, dizendo que o sistema constitucional brasileiro impede que se apliquem leis penais supervenientes mais gravosas, como aquelas que afastam a incidência de causas extintivas da punibilidade sobre fatos delituosos cometidos em momento anterior ao da edição da lex gravior.

Disse, ainda, o douto ministro que a eficácia ultrativa da norma penal mais benéfica — sob cuja égide foi praticado o fato delituoso — deve prevalecer por efeito do que prescreve o artigo 5º, XL, da Constituição, sempre que, ocorrendo sucessão de leis penais no tempo, constatar-se que o diploma legislativo anterior qualificava-se como estatuto legal mais favorável ao agente. Doutrina. Precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC 90.140/GO. DJe 16.10.2008).

A leitura do artigo 5º, XL da Constituição, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu, deve levar à inevitável conclusão de que o termo penal abrange todas as regras sancionadoras, seja qual for a sua natureza, e que o benefício que proporciona também pode ser de qualquer espécie, seja material ou processual. Representa uma acintosa fraude à Constituição dizer que lei penal, no contexto desse item normativo da Constituição, significaria somente a lei penal incriminadora.

Napoleão Maia Filho, o autor deste artigo, é Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça. Publicado no Consultor Jurídico, em 04.05.22

quinta-feira, 5 de maio de 2022

O golpe pode dar errado

Estratégia de Bolsonaro não vingará se a sociedade defender as instituições democráticas

Ele não disse nada, nem precisava. Ao participar, no Primeiro de Maio, de dois atos promovidos para atacar a Suprema Corte e ameaçar as instituições democráticas, Bolsonaro disparou um aviso pontiagudo do que intenta neste ano eleitoral. Que seu discurso vazio tenha sido recebido com certo alívio é um indício desalentador do quanto a política nacional foi sequestrada pelas provocações do ex-capitão.

Isso porque ele se prepara para tumultuar o processo de sua sucessão e contestá-lo pela violência se o resultado lhe for desfavorável. Abdicando de governar, dia sim, o outro também, a pé ou de moto, ele se dedica a açular a militância raivosa. Quando necessário, mostra que defende a sua turma —como fez com o Daniel Silveira— e vai dosando o xingatório contra ministros do STF, a Justiça Eleitoral e a urna eletrônica

Nos porões dessa radicalização, ataques mais virulentos circulam nas redes bolsonaristas. Segundo o professor Marcelo Alves, do Departamento de Comunicação da PUC do Rio de Janeiro, de setembro do ano passado a março último, pipocaram no YouTube 1.701 vídeos contra o sistema eleitoral, vistos 69 milhões de vezes. Por fim, é explícita a corte do presidente às Forças Armadas, bem como o uso que delas faz para desfilar autoridade. Que outro sentido teria sua participação, fora da agenda, na reunião do Alto Comando do Exército, na terça-feira passada (3/5).

São mínimas as chances de serem pacíficas as eleições para o Planalto. Mesmo assim, o desfecho dessa anunciada tragédia política ainda não está dado. Para o pensador americano Robert Dahl, no seu clássico "Poliarquia", editado no Brasil (Edusp), a democracia se estabelece quando as elites políticas consideram que os custos da repressão superam os de aceitar os resultados de eleições livres e limpas.

Uma solução violenta, que abra caminho para o autoritarismo sem disfarces, teria custos elevados não só para os brasileiros comuns, mas também para uma parcela importante das referidas elites. Como observou o historiador Luiz Felipe Alencastro, não basta dar o golpe em Brasília. Numa federação como a nossa, se as eleições forem contestadas, serão numerosos os interesses golpeados: dos candidatos a governos e câmaras legislativas, todos com campanhas nas ruas e vultosos recursos empenhados.

A estratégia de Bolsonaro está traçada, com objetivo e métodos definidos. Mas pode acabar dando errado se o grande arco de forças presentes no sistema político e na sociedade colocar a defesa das instituições democráticas à frente de disputas que, aliás, só podem ser travadas em regime de liberdade.

Maria Hermínia Tavares, a autora deste artigo, é Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 04.05.22

A seguir: ditadura com Bolsonaro

Já não se dão à pachorra nem de desmentir o golpe

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia do Dia do Exército, em Brasília - Lúcio Távora - 19.abr.22/Xinhua

Há dois anos, quando comecei a dizer aqui que a cooptação por Jair Bolsonaro de militares, policiais e civis armados era a preparação para um golpe em caso de derrota na eleição, ouvi que estava vendo fantasmas debaixo da cama. No passado, essa imagem se aplicava aos comunistas, que, solertes, esperavam a hora de se pôr de pé, acender a luz e render os inocentes de pijama e camisola. Passaram-se 60 anos. Os comunistas seguem debaixo da cama, de onde nunca saíram, e quem hoje prepara o golpe —o autogolpe, como o definiu, com descaro, um general— é quem já está no poder.

É um golpe preparado às claras, com direito a ser pregado em carreatas, motociatas, cavalatas e outras atas bancadas com dinheiro público, sob a indiferença de instituições também pagas para coibi-las. E é tão ostensivo que, desde há algumas semanas, passou a ser abertamente denunciado pelos jornais e demais veículos de opinião, e nem assim os suspeitos de tramá-lo se dão à pachorra de desmenti-lo. É como se já o déssemos de barato —algo previsto para acontecer entre a eleição e o Dia de Finados.

Os golpes são dados para manter ou derrubar o status quo. O golpe que se anuncia pertence à primeira categoria. Significa que seus adeptos militares e civis estão contentes com o Brasil de Bolsonaro. Para eles, não há alta corrupção, destruição do meio ambiente, estupro e assassinato de indígenas, dissolução das instituições e afronta à autoridade por mandriões bombados açulados pelo mandrião mor.

É normal que nada disso diga respeito aos empresários. Mas eles parecem não se alterar também pelo desemprego, inflação, miséria, asco administrativo e estagnação da economia. A Bolsa não acaba de perder R$ 7,7 bi de investimento estrangeiro e o Brasil não continua fora do G7 nem cada vez mais esnobado pela comunidade internacional.

A solução? Ditadura com Bolsonaro —é o que nos prometem a seguir.

Ruy Castro, o autor deste artigo é jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 04.05.22.

Se Bolsonaro conseguir melar as eleições, o golpe será militar

Forças Armadas lideram criação de roteiro para anular votação em caso de derrota

Jair Bolsonaro reunido com o ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira, e comandantes das Forças Armadas - @DefesaGovBr no Twitter

O ministro Luís Roberto Barroso foi até generoso quando perguntou se as Forças Armadas são "orientadas para atacar" as eleições. Depois de três anos no coração do poder, com uma adesão continuada às ameaças golpistas de Jair Bolsonaro, é impossível ver os generais como colaboradores que apenas obedecem cegamente às ordens do presidente.

Se Bolsonaro levar adiante o plano de melar as eleições, o golpe será militar. As Forças Armadas trabalham ativamente na confecção do roteiro que o presidente parece disposto a seguir para invalidar a votação e continuar no poder. Além disso, os generais passaram a disparar insinuações cada vez mais ameaçadoras de intervenção nesse processo.

Há meses, o militar indicado pelo Exército para atuar no TSE procura as brechas que Bolsonaro e seus sócios pretendem usar para anular a votação em caso de derrota.

Num ofício ao tribunal, o general Heber Garcia Portella tentou abrir a porta para a realização de novas eleições caso sejam apontadas irregularidades. Os governistas querem saber quais são os critérios para repetir a votação caso haja perda de dados nas urnas –uma hipótese que o TSE considera remota.

Os militares também decidiram forçar a barra para justificar sua interferência na disputa. Em duas notas, o Ministério da Defesa afirmou que "as eleições são questão de soberania e segurança nacional" e avisou que a instituição estará em "permanente estado de prontidão" para cumprir missões constitucionais.

As Forças Armadas se comportam como protagonistas políticos, não como personagens que só acompanham Bolsonaro nessa história. Não há notícias, aliás, de que o capitão tenha dado ordem ao general Eduardo Villas Bôas, em 2018, quando o comandante do Exército tentou pressionar o STF no julgamento de um habeas corpus de Lula.

Ainda há quem alimente a ilusão de que uma "ala militar" poderia frear as aspirações autoritárias de Bolsonaro. Lances recentes já deveriam ter sepultado essa fantasia.

Bruno Boghossian, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi repórter da Sucursal da Folha de S. Paulo, em Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA). Publicado originalmente na Folha de S, Paulo, em 04.05.22

Não tem conversa

Chefes militares não querem ajudar nem Bolsonaro nem o Supremo. Leia aqui o artigo de William Waack

Jair Bolsonaro está arrastando menos oficiais-generais do que pensa na irresponsável aventura política, especialmente a de contestar o sistema eleitoral. Mas conseguiu ajudar a quebrar uma cadeia de entendimento que já foi bastante sólida entre o topo das Forças Armadas e o STF.

O presidente não perde oportunidade de participar de reuniões de fardados com muitas estrelas, como aconteceu esta semana com o Alto Comando do Exército. Só não percebe, diz um conhecedor dessas rodas, que já virou “encontro de comadres com restos da comida do dia anterior, não serve para nada”.

A crise do presidente com o STF é vista por comandantes militares como 'jogo político eleitoral'.

A crise do presidente com o STF é vista por comandantes militares como 'jogo político eleitoral'. Foto: Eraldo Peres/AP Photo

Os comandantes militares não estão dispostos a marchar com Bolsonaro rumo à insensatez. Contudo, repetem exatamente as mesmas críticas de Bolsonaro ao STF. Consideram que o Supremo deixou de ser um tribunal “unido” e se transformou num ajuntamento de togados obcecados por holofotes.

Mais ainda: interferem nos outros Poderes e exercem influência perniciosa na política, sem terem sido eleitos. A paciência se esgotou, resume oficial da ativa, quando integrantes do Supremo como o ministro Luís Roberto Barroso, ainda por cima falando a estrangeiros, distorcem a participação das Forças Armadas no processo eleitoral.

Ela é, asseguram, estritamente técnica e profissional, e destinada a ajudar o TSE com o conhecimento específico de guerra cibernética, além de serviços de logística. Essa participação é “sigilosa” devido ao caráter sensitivo da questão, e não por desígnio bolsonarista de duvidar das urnas eletrônicas.

Pouco antes das eleições de 2018 o então chefe do Estado-Maior do Exército, general Fernando Azevedo, foi nomeado assessor do então presidente do STF, Dias Toffoli. A ideia, desenhada pelo então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, era “pacificação” do ambiente político. De lá para cá os canais de entendimento entre o STF e os militares em postos de comando se deterioraram sensivelmente.

Em parte, argumentam ministros da Corte, perdeu-se a capacidade de diálogo por causa de incompreensões mútuas. Quando é que os generais se deixaram seduzir pelo poder e por Bolsonaro, perguntam ministros. E como podem ministros associar Forças Armadas a genocídio, indagam generais. Em parte, reflete um senador com largo tempo na política, “não há quem atue hoje como algodão entre as peças de cristal”, muito menos os chefes dos Poderes.

A crise do presidente com o STF é vista por comandantes militares como “jogo político eleitoral”. Asseguram que é um jogo no qual não têm intenção de interferir. Mas também não querem conversa.

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.05.22.

Por que Bolsonaro ainda pode crescer

Estamos aprendendo, tarde demais, que não é por desinformação que muita gente o idolatra, mas por ódio a tudo o que seja informação. O desastre quica na área.

Até pouco tempo atrás, as passeatas de esquerda encenavam uma predisposição para o embate físico. A característica se fazia presente na coreografia de todos os comícios anticapitalistas, e não apenas no Brasil. Punhos erguidos socando o espaço sinalizavam a vontade de esmurrar o oponente. As palavras de ordem jorravam carregadas de agressividade quase bélica. Com frequência, lá vinham os black blocs atirando pedras nas vitrines e coquetéis molotov nos policiais. Naqueles tempos idos, embora tão recentes, a voz e o corpo da esquerda se opunham à ordem estabelecida, e sua linguagem eram as jornadas teatrais contra o establishment, a autoridade, as regras de trânsito e as boas maneiras.

Agora é o oposto. A velha gramática dos protestos virou de ponta-cabeça. Ano passado, nos Estados Unidos, quem promoveu arruaças foi a extrema-direita trumpista, que chegou ao cúmulo de promover a invasão do Capitólio. O símbolo mais icônico do atentado foi aquele sujeito enrolado num cobertor que parecia pele de urso e coroado, usando um capacete com dois chifres hediondos. O tipo ganhou o apelido midiático de “viking” e ficou famoso (no Brasil, um imitador do tal “viking” tem animado os convescotes golpistas do bolsonarismo).

A esquerda seguiu por outra via. Nos Estados Unidos, por exemplo, andou mais preocupada em filiar eleitores na Georgia para garantir a vitória do Partido Democrata. Enquanto a extrema-direita tomou para si o gestual, a coreografia e a torpeza dos vândalos, a esquerda se reagrupou na defesa da legalidade e do Estado de Direito. Em Paris, foi a mesma coisa. Agora mesmo, tão logo foi anunciada a derrota de Le Pen no segundo turno, seus cabos eleitorais (neonazistas e congêneres) saíram pelos logradouros públicos chutando portas e latas de lixo; os personagens da esquerda, de sua parte, preferiram ritualizar o congraçamento entre as classes. Num mundo em que ninguém tem mais endereço certo e sabido, a pancadaria mudou de lado, espetacularmente.

Essa inversão dá ao presidente da República, Jair Bolsonaro, uma oportunidade eleitoral explosiva. Não obstante seja o incumbente da vez, encarregado de cuidar da máquina pública, ele bombardeia a máquina pública todos os dias, sem tréguas. Seu lema é destruir a institucionalidade. Seu método é empregar o aparelho de Estado para demolir o aparelho de Estado. Com a aproximação das eleições, não rivaliza com os adversários ou com a oposição: sua guerra preferencial é contra as urnas eletrônicas e contra a Justiça Eleitoral. Ele não quer derrotar seus rivais, ele quer derrotar todo o sistema eleitoral.

Bolsonaro está em cruzada permanente. Na falta de um inimigo externo, elegeu o Supremo, a imprensa e os ecologistas, além de artistas, cientistas e intelectuais, como alvos prioritários. Ele não tem apenas uma “narrativa”, palavra mágica que seus apoiadores se comprazem em repetir: sua estratégia de comunicação consiste em convocar seus fanáticos para assumir o papel de protagonistas anônimos nas batalhas campais contra a lei e a ordem. Bolsonaro entrega às suas falanges, além das certezas feitas exclusivamente de mentiras (certezas que lhes acalentam a alma ressentida), a emoção de agir diretamente no combate discursivo, corporal e armado contra os inimigos da Pátria e de Deus. Esse combate não passa de um delírio, mas isso também não importa a mínima.

O que está vindo aí é uma onda, e essa onda pode crescer. Com sua lógica colada na dinâmica das redes sociais, o presidente aposta suas fichas na conflagração e no convulsionamento. O resultado não importa; o que lhe rende pontos é o movimento. Ele não tem nem precisa ter compromisso com a coerência ou com os fatos, pois sua fonte de energia política é a barulheira incendiária. Quanto ao mais, seus seguidores também não ligam para os fatos.

Estamos aprendendo, tarde demais, que não é por desinformação que muita gente o idolatra, mas por ódio a tudo o que seja informação. As multidões obcecadas pelo presidente abominam a verdade factual e, mais ainda, repudiam os que falam em nome da verdade factual. Para as massas ensandecidas e sedentas de tirania, a onda bolsonarista oferece uma paixão violenta e irresistível, que combina paixão e certezas irracionais, mais ou menos como se deu com o fascismo no século 20. O desastre quica na área.

“O trabalhador se sentirá autorizado a descontar no corpo de sua esposa toda a opressão vivida na cidade”, antecipa o cientista político Miguel Lago, um dos pouquíssimos que enxergam, ouvem e sentem o que está para desabar sobre a Nação. O alerta está no ensaio Como explicar a resiliência de Bolsonaro?, que faz parte do livro Linguagem da destruição (Companhia das Letras, 2022), que tem Heloisa Starling e Newton Bignotto como coautores. “O homofóbico se sentirá autorizado a espancar uma pessoa por sua orientação sexual”, prossegue Miguel Lago, desfiando a longa lista de “guardas da esquina”. Com a nossa pasmaceira hesitante e paralisante, nós estamos pagando para ver o pior acontecer.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo é Jornalista e Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.04.22

Lula calado é um poeta

Líder petista parece que tem uma cota de besteiras para dizer até a eleição. Não é à toa que o principal foco de crises de sua campanha seja a área de comunicação

A julgar por suas declarações nas últimas semanas, parece que o ex-presidente Lula da Silva tem uma cota de besteiras para dizer até a eleição. É impressionante. Não é à toa que o principal foco de crises em seu comitê de campanha seja a área de comunicação. 

Muito distante daquele líder político dotado de um acurado tino eleitoral, atributo que é reconhecido até por seus adversários, o Lula de 2022 nem parece ser alguém que precisa, mais uma vez, conquistar eleitores fora da tradicional órbita de atração do lulopetismo para confirmar seu favoritismo na disputa pela Presidência da República. O que o líder petista anda dizendo tem chocado até aliados históricos. Tanto é assim que próceres do PT e “marqueteiros” preparam o discurso que Lula deverá ler no ato de lançamento de sua pré-candidatura, no próximo sábado, tal é o receio quanto aos danos que a incontinência verbal do ex-presidente pode causar.

O mais recente desatino de Lula, dito em entrevista à revista Time, foi atribuir ao presidente da Ucrânia, Volodmir Zelensky, uma parcela da responsabilidade pela invasão de seu país por tropas russas. “Ele (Zelensky) quis a guerra. Se ele não quisesse a guerra, teria negociado um pouco mais”, disse Lula à Time, como se houvesse espaço para uma negociação de boa-fé com quem se senta à mesa armado até os dentes. Lula trata como simétricas as posições da vítima e do agressor, o autocrata russo Vladimir Putin, um despautério que não tem o respaldo de nenhum líder democrático no mundo.

Lula, que não sabe o que é uma guerra, ainda teve o desplante de censurar o comportamento de Zelensky, dando a entender que seu passado como ator o faria buscar mais os holofotes do que a diplomacia. “O comportamento dele é um pouco esquisito, porque parece que ele faz parte de um espetáculo. Ele aparece na televisão de manhã, de tarde e de noite (...) como se estivesse em campanha. Ele deveria estar mais preocupado com a mesa de negociação.” 

A incrível insensibilidade de Lula em relação ao líder de um país que tem de confortar seus concidadãos em meio às agruras de uma guerra só perde para seu cinismo – afinal, se alguém busca os holofotes todo o tempo e transforma cada gesto seu em peça de campanha, este é, inequivocamente, Lula da Silva.

Chega a ser embaraçoso para alguém que se arvora em líder de uma notável “frente ampla” pela democracia e contra o autoritarismo no Brasil dar amparo a um evidente ato de violência injustificada perpetrado contra um país soberano, sobretudo em entrevista à imprensa estrangeira. Ao fim e ao cabo, Lula se junta ao presidente Jair Bolsonaro na condescendência com que trata os crimes de guerra cometidos por Putin contra o povo ucraniano.

Em relação aos temas domésticos, Lula também não tem poupado esforços para chocar – ou ao menos constranger – apoiadores e afugentar eleitores mais moderados. Semana sim e outra também, o ex-presidente tem dito, entre outras bobagens, que é preciso “abrasileirar o preço da gasolina”, como se a política de preços da Petrobras não estivesse fundamentalmente ligada às oscilações do mercado internacional, assim como o milho, a soja e outras commodities.

Há poucos dias, em outra fala desastrada, Lula deu a entender que policiais não seriam “gente” ao dizer que Bolsonaro “não gosta de gente, gosta de policiais”. O petista se desculpou com a categoria logo em seguida.

Em outro aceno a seu público cativo, Lula prometeu, novamente, revogar a reforma trabalhista, a despeito dos dados que atestam a importância da medida, aprovada no governo de Michel Temer, para a redução do desemprego. Isso o fez levar sermão de ninguém menos que Paulinho da Força (Solidariedade). “Esquece essa história de reforma trabalhista. Ganha a eleição que eu resolvo com o (deputado) Marcelo Ramos na Câmara em dois meses”, disse o notório líder da Força Sindical ao petista.

Nessa toada, o País ainda haverá de sentir saudades de Dilma Rousseff e sua “saudação à mandioca”. Malgrado o desastre de seu governo, ainda era possível achar graça nas bobagens de Dilma. Com Lula, não há graça nenhuma. 

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 05 de maio de 2022 | 03h00

Campanha de Lula teme descontrole verbal de petista às vésperas de lançamento de pré-candidatura

A série de declarações com repercussões negativas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) expôs uma preocupação crescente na pré-campanha do petista a três dias do lançamento oficial da chapa com o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB). 

Reservadamente, auxiliares do entorno do petista temem que o foco em uma base fiel à esquerda venha a minar eventuais alianças ao centro e afastar potenciais eleitores.


Lula pediu desculpas por fala sobre policiais em palanque na Praça Charles Miller, no Dia do Trabalho. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Em entrevista à revista ‘Time’, ex-presidente diz que o ucraniano é ‘tão responsável’ quanto o russo pela guerra; fala expõe preocupação às vésperas de lançamento da chapa

No episódio mais recente, em entrevista publicada nesta quarta-feira, 4, na revista Time, Lula afirmou que o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, é “tão responsável” quanto o presidente russo, Vladimir Putin, pela guerra. De acordo com Lula, “foi errado invadir”. “Mas eu acho que ninguém está procurando contribuir para ter paz”, disse. Criticou ainda os Estados Unidos, a União Europeia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Embaixada da Ucrânia diz que Lula está ‘mal informado’ e convida ex-presidente para audiência

Sob o título de capa “Segundo Ato de Lula”, o que repercutiu no Brasil foi a comparação. Ao Estadão até mesmo aliados mais próximos de Lula a classificaram como “um erro”. Não que eles discordem do teor das falas que se avolumam com discursos sobre aborto, gafe com policiais, propostas de revogação da reforma trabalhista e críticas ao politicamente correto.

O problema, afirmaram ao Estadão integrantes da pré-campanha, é que o petista tem levantado em momentos tidos como “inoportunos” debates que podem desagradar parte do eleitorado situado mais à centro-direita, com quem Lula conta para se eleger e derrotar Jair Bolsonaro (PL).

Recentemente, Lula chegou, por exemplo, a defender o direito ao aborto. Em entrevista à BandNews em Fortaleza, ele teve de recuar. O ex-presidente afirmou ter “deixado de falar” que é “contra o aborto”, mas a questão deve ser tratada como um tema de “saúde pública”. Reservadamente, aliados dizem que Lula não está errado ao defender que o aborto não seja crime.

Durante um encontro com mulheres na Brasilândia, na zona norte de São Paulo, Lula afirmou ainda que Bolsonaro “só conhece o ódio” e “não gosta de gente, ele gosta de policial”. Após a repercussão negativa, o petista pediu desculpas em palanque na Praça Charles Miller, no Dia do Trabalho, em evento ao lado de aliados e sindicalistas. Internamente, petistas atribuíram a declaração sobre policiais a um “ato falho” no calor do discurso.

Coube a um aliado mais ao centro – o único até agora –, o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força (Solidariedade-SP), repreender em público o que se discute nos bastidores da pré-campanha. “Acho que temos perdido tempo com algumas coisas. Uma vaia dali, uma Internacional (hino socialista) dali, reforma trabalhista”, disse em evento na terça-feira ao anunciar apoio a Lula e Alckmin.

Os aliados descontentes mais próximos de Lula evitam levar ponderações ao ex-presidente. À reportagem um integrante da pré-campanha relatou que a inércia em aconselhar e até tirar o petista do caminho das “cascas de banana” se deve a indefinições na coordenação eleitoral.

O primeiro atrito levou à queda do ex-ministro Franklin Martins do controle da comunicação da campanha, após divergências com petistas como a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, e o secretário de Comunicação, Jilmar Tatto. A briga também provocou a demissão do marqueteiro Augusto Fonseca, que fora bancado pelo ex-ministro.

Nas últimas semanas, petistas têm se reunido em um hotel em São Paulo para pôr fim ao impasse. Estão divididos entre os nomes do prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT), e o ex-presidente do partido, Rui Falcão, para comandar a comunicação. O nome favorito é o de Edinho, mas Falcão deve assumir algum posto na coordenação.

“Eu não estou na campanha do presidente Lula, não estou no cotidiano da campanha, não sei em que circunstâncias ele deu essas declarações”, disse Edinho, ao ser questionado sobre as repercussões negativas. Edinho tem dito que só aceitará cargo que não exija seu afastamento da prefeitura de Araraquara.

Falcão e Edinho foram chamados para uma reunião com Lula na terça-feira, na qual receberam ao lado do ex-presidente o resumo de pesquisas encomendadas pelo partido. Saíram do evento quase ao mesmo tempo. Os presentes disseram que a coordenação não foi discutida. A diferença entre Lula e Bolsonaro tem caído, mostra análise feita pelo Estadão em 12 pesquisas recentes de intenção de votos para a Presidência da República.

A preocupação em alinhar Lula ao centro e dialogar com setores que vão além da esquerda está também no marketing eleitoral. Recém-contratado, o publicitário Sidônio Palmeira fará de tudo para evitar que inserções e peças tratem de temas considerados “bola dividida”.

Ele prefere focar em assuntos como o desemprego e questões sociais. Palmeira fará uso do verde e amarelo da Bandeira Nacional – mesmo que não venha a esconder totalmente o vermelho, alvo de críticas em 2018, na campanha Fernando Haddad. Ele também prefere que o PT busque o diálogo com o empresariado e o centro.

Aliados reclamam do que consideram excesso de escrutínio sobre as declarações do ex-presidente. “Há uma cobrança exagerada em relação ao ex-presidente Lula. A todo momento, cobra-se que ele fale sobre tudo, e, quando ele se manifesta, as interpretações sempre são esdrúxulas e muito pouco generosas”, afirmou o líder do Grupo Prerrogativas, Marco Aurélio de Carvalho, um dos articuladores da campanha de Lula e da aliança com Alckmin.

Por Luiz Vassallo e Beatriz Bulla para o Estado de S. Paulo, em 05.05.22

França de Macron deve seguir distante de Brasil de Bolsonaro, dizem analistas

Com a reeleição do presidente Emmanuel Macron, a França deverá manter relação distante com o Brasil do governo de Jair Bolsonaro (PL), segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil. 

Uma eventual reaproximação dependerá do resultado das eleições presidenciais brasileiras em outubro e de uma mudança real na política ambiental do país

O presidente francês, Emmanuel Macron, foi reeleito com 58,6% dos votos (Reuters)

."As relações entre os dois países devem se manter frias pelo menos até as eleições no Brasil. Se Lula for eleito em outubro, deve haver uma mudança importante na relação bilateral. A posição francesa em relação ao acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia poderá ser destravado com a chegada de Lula ao poder, desde que haja vontade política dos dois lados", afirma Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e Caribe da universidade Sciences Po, em Paris.

Estrada acrescenta que, caso Bolsonaro seja reeleito, a tendência é a de que as relações entre os dois países permaneçam distantes, a não ser que haja uma alteração significativa na política de meio ambiente do governo brasileiro.

O especialista afirma que, no caso de um terceiro nome vencer as presidenciais no Brasil, hipótese que considera "muito improvável" em função das pesquisas espontâneas a seis meses do pleito, "qualquer nome seria melhor do que o do Bolsonaro" para reaproximar a França do Brasil, mas ressalta que o avanço efetivo nessa direção dependeria das propostas desse eventual terceiro nome.

Macron foi reeleito com 58,6% dos votos, enquanto sua rival, Marine Le Pen, da direita radical, obteve 41,4%, o melhor resultado já conquistado pela Reunião Nacional (ex-Frente Nacional) em uma corrida presidencial na França.

A votação foi marcada por uma forte abstenção, de 28%, a segunda maior desde 1969, além de mais de 8% de votos em branco e nulos. Na França, o voto não é obrigatório.

Macron não tem boas relações com o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), que zombou da aparência da primeira-dama francesa, Brigitte Macron, nas redes sociais, causando indignação no governo francês, e cancelou um compromisso com o chanceler da França, Jean-Yves Le Drian, para cortar o cabelo.

Um forte ponto de atrito entre os dois chefes de Estado é o desmatamento da Amazônia, que já provocou várias trocas de farpas desde 2019, quando os incêndios na floresta ganharam destaque mundial.

No final do ano passado, Macron afirmou que a relação entre o Brasil e a França "já foi melhor" e ressaltou, em uma reunião do G20, a necessidade de ampliar a cooperação para a preservação da Amazônia.

O presidente francês também tem se recusado a avançar no processo de ratificação do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, firmado em 2019 após 20 anos de negociações, devido à política ambiental do governo brasileiro.

No único debate desta campanha presidencial francesa, realizado entre Macron e Le Pen, às vésperas do segundo turno, quando o frango brasileiro foi evocado pela líder da direita radical como um exemplo de concorrência desleal, Macron retrucou que a França se recusou a avançar no acordo Mercosul-União Europeia.

Essa postura francesa ocorre, segundo Macron, porque não houve respeito dos compromissos climáticos do Acordo de Paris, nem da biodiversidade e ressaltou que a Europa propôs medidas para lutar contra o "desmatamento importado". Elas visam proibir a entrada no continente europeu de alguns produtos, como carne, soja, café e madeira, que provenham de áreas desmatadas.

Relação distante com a América Latina

A França (representada por Macron) comanda até o final de junho a presidência rotativa da União Europeia e espera obter um acordo sobre a proibição de importações ligadas ao desmatamento durante esse período.

A França também propôs, como lembrou Macron durante o debate na TV, incluir no acordo Mercosul-União Europeia a chamada "cláusula espelho", o que na prática obrigaria os produtores do Mercosul a respeitar as mesmas exigências que são feitas aos agricultores e industriais europeus. Essa proposta francesa também precisa ser aprovada pelos demais 26 países-membros da União Europeia.

Macron foi criticado por sua política ambiental, vista como insuficiente e deixada em segundo plano por uma parte da população.

Para conquistar o eleitorado jovem, que preferiu majoritariamente no primeiro turno o candidato Jean-Luc Mélenchon, da esquerda radical, e eleitores da esquerda em geral, Macron prometeu no final da campanha presidencial tornar a questão uma prioridade de seu segundo mandato, que começa em maio.

Nesse contexto político, dificilmente o líder francês mudará de posição em relação ao acordo Mercosul-União Europeia enquanto o Brasil continuar registrando recordes de desmatamento na Amazônia, como ocorreu no primeiro trimestre deste ano.

Analistas estimam que mudanças na política ambiental brasileira só poderiam ocorrer se um novo governo sair das urnas nas eleições presidenciais deste ano.

Mas, se Le Pen tivesse vencido as eleições presidenciais, as relações comerciais com o Brasil poderiam recuar. Além de restabelecer controles de mercadorias na fronteira, mesmo que elas já tivessem sido inspecionadas em outro país membro, o que violaria o acordo de livre circulação de mercadorias, Le Pen também queria excluir a agricultura dos acordos comerciais firmados pelo bloco europeu.

Macron não teve uma relação próxima com outros países da América Latina. Ele só visitou a Argentina para uma reunião do G20 e não fez nenhuma visita oficial à região, apesar da maior fronteira da França ser entre a Guiana Francesa e o Brasil.

Bolsonaro não felicitou Macron por sua vitória na presidencial até o momento.

O Itamaraty divulgou uma curta nota no dia seguinte à eleição francesa cumprimentando o presidente francês e reafirmando "a disposição do Brasil de trabalhar pelo aprofundamento dos laços históricos que unem os dois países".

Já os presidentes da Colômbia, da Argentina, do México e do Chile saudaram Macron, como também líderes de vários outros países, incluindo a Rússia.

Pré-candidatos às eleições presidenciais no Brasil, como João Doria (PSDB), Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB), felicitaram o presidente francês. Atual líder nas pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) publicou em redes sociais uma foto sua ao lado de Macron e o cumprimentou "pela ampla vitória nas urnas", afirmando ainda torcer "pelo sucesso de seu governo."

Lula foi recebido por Macron no Palácio do Eliseu em novembro passado com o protocolo oficial tradicionalmente concedido a ex-chefes de Estado.

Embora Lula não ocupe nenhum cargo público, eles discutiram no encontro temas globais e ligados ao Brasil, como os impactos sociais da crise sanitárira, a transição climática e a luta contra o desmatamento.

Avanço da direita radical na França

Marine Le Pen teve seu melhor desempenho em uma eleição presidencial (Reuters)

Marine Le Pen disputou sua terceira eleição presidencial pela legenda fundada por seu pai, Jean-Marie Le Pen, nos anos 1970. Ela foi derrotada, mas teve um desempenho inédito, ultrapassando 40% dos votos. É um avanço considerável da direita radical na França, afirmam especialistas.

Le Pen moderou seu discurso, embora tenha mantido em seu programa vários fundamentos do partido da época de seu pai. Ela conquistou cerca de 2,6 milhões de votos a mais do que em 2017 e ampliou seu resultado no segundo turno em quase oito pontos percentuais.

Le Pen e Jean-Luc Mélenchon, da esquerda radical, que ficou em terceiro lugar no primeiro turno, com 22% dos votos, esperam agora conseguir um bom desempenho nas eleições legislativas de junho para impedir que Macron obtenha maioria parlamentar.

"Le Pen ganhou sua aposta, apesar de não ter vencido as eleições. Ela se projeta no horizonte dos próximos cinco anos (quando haverá uma nova disputa presidencial)", diz o professor Jean-Jacques Kourliandsky, do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas e diretor do Observatório da América Latina da Fundação Jean Jaurès, ligada ao Partido Socialista.

Segundo o analista, a alta taxa de abstenção nessas eleições presidenciais francesas mostra que há uma "disfunção grave da democracia" e que, se os eleitores consideram que não vale a pena votar ou que é melhor protestar votando, a oferta política não corresponde mais às expectativas dos eleitores e o sistema eleitoral não permite uma representação desse eleitorado.

Como o Brasil, a França também está dividida. Em seu discurso após a divulgação de sua vitória, Macron prometeu unir o país. Mas a polarização na França é sobretudo de ordem econômica.

As pessoas de maior renda, com maior nível de ensino e de grandes centros urbanos, além de aposentados de classe média e alta, optaram mais por Macron. Já as classes de menor renda, operários, desempregados e moradores de pequenas localidades rurais, além de agricultores, preferiram Le Pen.

Daniela Fernandes, de Paris para a BBC News Brasil, em 04.05.22

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Os presidentes e a lei

Brasil parece ter se acostumado a negligências no cumprimento da legislação

Gostemos ou não dos juízes, concordemos ou não com suas decisões, não há como achar normal o indulto com que o Supremo Tribunal Federal foi recentemente confrontado.

Agir para desmoralizar a ordem institucional do país não é modo fiel de exercer competências presidenciais. Também não o é a sistemática sabotagem das leis. Elas podem ter seus problemas e anacronismos; mas, para melhorá-las democraticamente, o caminho é o processo legislativo.

Quem assume a Presidência da República jura respeitar a ordem institucional do país: manter, defender e cumprir a Constituição e observar as leis, jamais atentando contra o cumprimento destas e das decisões judiciais. As peças que compõem essa ordem institucional podem ter seus defeitos. Por isso, não são imutáveis. É papel da chefia do Estado, quando entender necessário, propor sua melhoria em caráter geral ou acionar os recursos para corrigir erros pontuais, inclusive quando vierem da Justiça. Mas nem todos os meios são legítimos. Nem política nem juridicamente.

O presidente Jair Bolsonaro (PL) e o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) posam com cópia emoldurada do perdão presidencial durante ato em defesa da liberdade de expressão no Palácio do Planalto, em Brasília - AFP

O presente governo federal dá mostras claras de desprezo pelas leis ambientais. Não quanto às exigências sobre produtores rurais estabelecidos regularmente. Em relação a eles, há evidências de evolução no cumprimento dos requisitos ambientais aplicáveis. Mas não é assim quanto às leis de preservação do bioma amazônico por meio da repressão à grilagem, ao desmatamento, ao garimpo ilegal e à invasão das terras indígenas e devolutas.

Muitas formas de infidelidade têm sido usadas. E seu efeito geral tem sido solapar o cumprimento da legislação.

Não é normal desmontar pouco a pouco o aparato repressivo, em especial a estrutura do Ibama. Não é natural que autoridades façam pronunciamentos públicos em favor de infratores. São atitudes para enfraquecer e inibir a aplicação das leis.

A desmoralização do arcabouço ambiental do país é atestada pelo crescimento de 75% na taxa de desmatamento na Amazônia desde a posse do atual governo. Gostemos ou não das leis ambientais vigentes, não podemos achar normal que o Poder Executivo atue com desleixo ou desinteresse na sua aplicação.

Não é opção legítima de governo, é sabotagem da ordem institucional.

Também não é razoável querer submeter as terras indígenas ao regime do projeto de lei 191, proposto pelo governo ao Congresso Nacional para legalizar situações irregulares. Acenar com a perspectiva de impunidade é um modo de encorajar infratores, não de aprimorar a ordem jurídica.

Mas é fato que, antes mesmo do atual governo, nosso país parece haver se acostumado às negligências públicas no cumprimento de leis importantes. Um exemplo talvez sejam as leis que regem os conflitos sobre a propriedade da terra. Há indícios de possível negligência quanto a elas, em anos anteriores.

Segundo o relatório "Conflitos no Campo 2020", da Comissão Pastoral da Terra, entre 2011 e 2017 as ocupações e acampamentos foram em torno de 220 e 20 por ano. Em 2019 e 2020, caíram para uma média de 37 e 4, respectivamente. Uma queda entre 75% e 85%. E isso, segundo a mesma fonte, apesar do aumento nos conflitos de terra: no período de 2011-2017 foram 850 anuais; em 2019, 1.260; e, em 2020, 1.576.

Esses dados parecem indicar que, nos anos mais recentes, autoridades aumentaram o rigor, levando as partes a recorrer à Justiça, e não às invasões ilegais, para solucionar conflitos agrários.

As eleições estão chegando. Será a hora de, pelo voto, exercer nossa cidadania e cumprir nosso dever para com o país. Uma das escolhas, talvez a principal, é quanto à pessoa que, na presidência da República, vai exercer a chefia do Estado.

Em um Estado democrático de Direito, as eleições não servem para os eleitores escolherem seu sabotador preferido, segundo interesses e percepções individuais.

Divergências de programa entre candidatos são naturais e necessárias em uma democracia. Mas todos os candidatos devem ter o mesmo compromisso básico com a ordem institucional. Esse compromisso tem de ser integral, ou simplesmente não existe.

Carlos Ari Sundfeld, Professor titular da FGV Direito SP e Candido Bracher, Administrador de empresas formado pela FGV, foi executivo do setor financeiro por 40 anos, são os autores deste artigo. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 03.05.22.

Múltiplos vícios de inconstitucionalidade no decreto de indulto de Bolsonaro

Celso de Mello, Ministro aposentado e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, analisa a graça do Presidente da República na condenação do deputado bolsonarista

Só posso apoiar e concordar, integralmente, com o que a comunidade jurídica tem dito e enfatizado por intermédio de juristas eminentes, em manifestações agora reforçadas pelo brilhante e primoroso parecer do professor Lenio Streck, relator da matéria na Comissão de Estudos Constitucionais da OAB Federal, que se pronunciou, com substanciosa (e inatacável) fundamentação, pela inconstitucionalidade do decreto de indulto individual (ou de graça em sentido estrito) editado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Nesse ato presidencial, vislumbram-se múltiplos vícios de inconstitucionalidade, como ofensas patentes aos princípios da impessoalidade, da separação de poderes, da moralidade, da proteção penal insuficiente (dimensão negativa do postulado da proporcionalidade), tudo a por em evidência o claro (e censurável) desvio de finalidade que contamina e transgride o coeficiente de validade desse decreto juridicamente imprestável!!! Não se pode desconhecer que o desvio de finalidade qualifica-se como vício gravíssimo apto a contaminar a validade jurídica do ato estatal, mesmo quando fundado no poder discricionário do agente público (no caso, o presidente da República) , inquinando-o de nulidade, tal como adverte o magistério de eminentes doutrinadores (HELY LOPES MEIRELLES, "Direito Administrativo Brasileiro", p. 176, item n. 1.2.2, 42a ed., 2016, Malheiros; FERNANDA MARINELA, "Direito Administrativo", p. 341/342, item n. 3.5, 10a ed., 2016, Impetus; MÁRCIO PESTANA, "Direito Administrativo Brasileiro", p. 273, item n. 9.4.5, 2a ed., 2010, Campus Jurídico; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, "Curso de Direito Administrativo”, p. 203/204, item n. 5.1.4, 9a ed., 2008, Malheiros; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, "Direito Administrativo", p. 216/217, item n. 7.7.4, 25a ed., 2012, Atlas; MARÇAL JUSTEN FILHO, "Curso de Direito Administrativo", p. 431/434, item n. 7.15.4.5, 11a ed., 2015, RT; EDIMUR FERREIRA DE FARIA, "Curso de Direito Administrativo Positivo", p. 263/264, item n. 7.4, 6a ed., 2007, DelRey; DIOGENES GASPARINI, "Direito Administrativo", p. 44/45, item nº 4, 1989, Saraiva; CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, "Curso de Direito Administrativo", p. 410, item n. 46, 29a ed., 2012, Malheiros; RAQUEL MELO URBANO DE CARVALHO, "Curso de Direito Administrativo: Parte geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração", p. 383/389, item n. 2.5, 2008, JusPODIVM, v.g.).

A configuração desse grave vício jurídico, que recai sobre um dos elementos constitutivos do ato administrativo, pressupõe a intenção deliberada, por parte do administrador público, de atingir objetivo vedado pela ordem jurídica ou divorciado do interesse público, tal como tive o ensejo de advertir em decisão proferida no Supremo Tribunal Federal, apoiando-me, para tanto, em importante magistério doutrinário  (JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, "Manual de Direito Administrativo", p. 118/119, item n. 5, 25a. ed. 2012, Atlas. v.g.).

A prática desviante de conduta ilegítima, como essa em que Bolsonaro incidiu, revela-se , no caso desse inconstitucional decreto presidencial, pela prova inequívoca de que o Chefe de Estado, não obstante editando ato revestido de aparente legalidade, valeu-se desse comportamento político-administrativo para perseguir e realizar fins completamente desvinculados do interesse público! Advirta-se, finalmente, que, mesmo atos de perfil discricionário , estão sujeitos ao controle jurisdicional quanto à sua legitimidade constitucional.

O antijudiciarismo que nega a possibilidade de fiscalização jurisdicional dos atos em geral, inclusive os de natureza estatal, nada mais reflete senão típica característica de regimes autocráticos, que temem o controle de seu comportamento por juízes e Tribunais independentes! A inafastabilidade do judicial review constitui, como lembra o saudoso publicista espanhol García de Enterría, "o parágrafo régio do Estado de Direito" fundado em bases eminentemente democráticas!

É plena (e legítima) a sindicabilidade jurisdicional de qualquer ato estatal, ainda que discricionário e impregnado de índole política, se houver incidido em transgressão à ordem constitucional! Essa orientação, além de antiga e correta, traduz posição consagrada pela jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, como o revela julgado da nossa Corte Suprema proferido no final do governo do Marechal Hermes da Fonseca, ocasião em que o STF, em 23 de maio de 1914, assim se pronunciou:  "(….) Desde que uma questão [de governo ou de natureza política — observação minha] está subordinada a textos expressos na Constituição, deixa de ser questão exclusivamente política" e, em consequência, expõe-se ao controle do Poder Judiciário!!!"

José Celso de Mello Filho, o autor deste artigo, foi Presidente do Supremo Tribunal Federal e decano da Corte. Publicado originamente pelo Consultor Juridico, em 04.05.22.