quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Consórcio falido

STF agravou a briga dentro do Centrão pelo acesso ao cofre aberto por Bolsonaro

O orçamento secreto agora não tão secreto vai continuar por outros meios, mas a decisão do STF garantiu a briga no consórcio montado para gastar à vontade em ano de eleição. Os consorciados são parlamentares do Centrão e Jair Bolsonaro.

O processo que levou ao orçamento secreto agora não tão secreto começou lá atrás, ainda durante Dilma, e tinha como objetivo limitar a capacidade do Executivo de manipular votos no Parlamento via distribuição de emendas. Foi “aperfeiçoado” por Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre dentro do mesmo espírito, ou seja, o Legislativo avançando em suas prerrogativas.

Coube ao “gênio” político Jair Bolsonaro consumar a entrega de fatia importante de seus poderes – a alocação de recursos através do Orçamento – aos chefões do Centrão, hoje os verdadeiros donos das principais decisões de governo. Eles já estavam em rota de colisão entre si por conta do único fator que lhes interessa, que é acesso aos cofres e máquina públicas.

A disputa tinha sido trazida a público no começo da semana pelo chefão do PL, ao qual Bolsonaro pretende se filiar, e que já tem um pedaço do Palácio do Planalto. Concorre ali com o chefão do PP, dono de um outro pedaço. O enfraquecimento de outro chefão do PP, o presidente da Câmara, trazido pela decisão do STF de suspender em parte o orçamento secreto, complica o jogo entre esses senhores.

Que já era intrincado o suficiente considerando-se o papel do Senado, do qual depende agora a tramitação da PEC dos precatórios e seus R$ 90 bilhões de “espaço fiscal” (na verdade, uma gambiarra despudorada). Apenas nas aparências o presidente do Senado manifestou muxoxo com o ataque do STF ao orçamento secreto que ele diz que não existia. Na prática, seu poder político de barganha aumentou consideravelmente.

Há quem enxergue na decisão claramente política do STF de suspender as emendas do relator um esforço de “salvar” a democracia e princípios da Constituição. O que o Direito não consegue, porém, é salvar o Brasil do seu próprio sistema político, que funciona (desde sempre?) para alimentar grupos privados (partidos políticos) que se juntam para apropriar-se de recursos públicos (estruturas do Estado e fundos) em benefício próprio.

O resultado dessa confusão, em parte um espelho da confusão mental de Bolsonaro, e da qual o grande público está alheio, é uma considerável paralisia política agravada por um quadro econômico que permanece em crescimento muito abaixo do necessário com medíocre recuperação de emprego e renda. O consórcio Centrão-Bolsonaro tem condições apenas de agravar esse quadro. 

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista. Apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 11.11.21.

11 de novembro de 2021 | 03h00

PT celebra eleição fraudulenta de Ortega na Nicarágua, mas volta atrás e tira nota do ar

Partido apoia pleito sem opositores ou observadores internacionais, constrangendo o ex-presidente Lula no momento em que articula volta ao Palácio do Planalto

Lula discursa no lançamento do Memorial da Verdade, em São Paulo, em agosto deste ano. (Marcelo Chello, AP)

Uma “grande manifestação popular e democrática”, é como os dirigentes do PT definiram as eleições que confirmaram a permanência de Daniel Ortega no poder da Nicarágua. O pleito fraudulento, que já tinha um vencedor definido antes mesmo do início das votações, ocorreu no último domingo, quando os rivais de Ortega estavam todos presos ou exilados. Ainda assim, o partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se apresenta como pleiteante à presidência em 2022, encarou o resultado como “o apoio da população a um projeto político que tem como principal objetivo a construção de um país socialmente justo e igualitário”. A nota, publicada no site da legenda na segunda-feira, foi amplamente criticada, tanto por opositores quanto por apoiadores do partido. Nesta quarta-feira, não estava mais no ar.

Enquanto o PT celebrava as eleições fraudulentas na Nicarágua, quatro ex-presidentes, incluindo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), assinavam uma carta exigindo que a região ignore o resultado do pleito. Diante das críticas, a presidenta nacional da legenda, a deputada Gleisi Hoffmann, usou sua conta no Twitter para colocar panos quentes, afirmando que a nota não havia sido submetida à direção partidária. “Posição do PT em relação qualquer país é de defesa da autodeterminação dos povos, contra interferência externa e respeito à democracia, por parte de governo e oposição”, escreveu ela. Depois, a legenda publicou uma nova nota no site do partido, dizendo que Gleisi “esclarece posição do PT sobre eleição na Nicarágua” e incluindo seu tuíte.

Em um momento em que Lula se apresenta como presidenciável e anuncia uma agenda de encontros internacionais com lideranças europeias, o gesto do PT vai na contramão dessas costuras democráticas. Em agosto, Lula aconselhou Ortega a “não abrir mão da democracia”. “Se eu pudesse dar um conselho ao Daniel Ortega, daria a ele e a qualquer outro presidente. Não abra mão da democracia. Não deixe de defender a liberdade de imprensa, de comunicação, de expressão, porque isso é o que favorece a democracia”, disse o petista em uma entrevista ao Canal Onze, do México.

Mas as eleições deste domingo na Nicarágua ocorreram em um contexto antidemocrático, a despeito dos conselhos de Lula —que não tocou mais no assunto. Ortega, que tem o apoio de somente 19% da população, segundo pesquisas sérias, teve 75% de apoio no pleito, de acordo com os resultados iniciais oficiais, que projetaram também uma participação de 65% da população. Os números foram considerados uma farsa pela oposição e pela comunidade internacional. A organização Urnas Abiertas informou que, de acordo com seus 1.450 observadores em todo o país, a abstenção foi em média de 81,5%.

Esta não é a primeira vez que o PT sofre críticas por apoiar uma eleição questionada. No fim do ano passado, o partido lançou uma nota saudando as eleições legislativas que ocorreram na Venezuela quase sem nenhuma oposição, sem o reconhecimento dos Estados Unidos e da Europa e com grande abstenção. “As eleições são a resposta democrática a esta política de bloqueio, que visa a atingir o governo constitucional do país, mas tem como grande vítima o povo venezuelano, gravemente prejudicado no acesso a alimentos, medicamentos e outros direitos”, afirmava a nota.

Marina Rossiafonso Benites, de São Paulo / Brasília para o EL PAÍS, em 10.11.21

Liberdade para as drogas

Os Estados não podem competir com quem gasta e esbanja somas delirantes para garantir o controle de certas cidades ou regiões, nas quais estes substituem, pouco a pouco, as autoridades. Leia aqui o artigo de Mário Llosa, publicado no EL PAÍS.

Planta de cannabis na fazenda de produção da Associação de Pesquisa e Apoio ao Paciente de Cannabis Médica (APEPI) em Paty dos Alferes, estado do Rio de Janeiro, Brasil em 9 de setembro de 2021. (Mauro Pimentel, AFP)

O Partido Socialista, no poder, e o Partido Popular, na oposição, forjaram uma momentânea aliança no Parlamento espanhol para pôr fim à Cannabis, que, ao que parecia, seria tolerada na Espanha. Equivocaram-se gravemente. Com essa proibição, só conseguirão que as máfias de narcotraficantes que já pululam na Espanha, embora menos que no México e em outros países latino-americanos, se fortaleçam e aumentem sua prática criminosa, assim como o consumo de drogas no país.

Quando fui candidato, nos anos oitenta do século passado, vivíamos na Frente que me apoiava a paixão pelo programa. Acreditávamos que desempenharia um papel crucial na eleição e nos enganamos redondamente: não desempenhou nenhum, e a maioria de eleitores nem sequer o leu. Mas para mim foi estimulante; segundo o programa, todos os problemas peruanos tinham solução. Menos as drogas, que fugiam do controle do país porque eram um assunto internacional.

Na área que nós, peruanos, chamamos de “sobrancelha de montanha”, entre os Andes e a Amazônia, o território da coca, fonte da cocaína, são feitas até três colheitas por ano; embora os camponeses não consumam a droga, só a semeiam e vendem. Eles chacchan a folha de coca, ou seja, mastigam-na, e o suco que extraem os protege do frio, da fome e do cansaço. Os aviõezinhos colombianos chegam às solitárias paragens dessa serra e seus pilotos pagam em dólares pela carga que transportam. Quem convenceria os camponeses de que deveriam substituir seus cultivos de coca por produtos alternativos que iriam vender, atravessando caminhos espantosos, que tomam muitos dias, até o Agrobanco das cidades, que lhes paga em sóis e, além disso, tarde, mal e nunca? Ninguém, é claro. E, por isso, a produção de coca é cada vez mais extensa no Peru e na América Latina, e o comércio da cocaína, que muitas vezes chega até nós importada do exterior, mais intenso.

A única solução para esse problema é a decisão corajosa que o Uruguai tomou: liberalizar o comércio da droga, embora eu não entenda por que apenas uma empresa estatal exerça esse direito; a lei deveria ser liberal, e as empresas privadas também deveriam desfrutar desse comércio (sob a supervisão do Estado, é claro).

Essa foi a solução que propôs, há muitos anos, um economista liberal, Milton Friedman, que, além disso, acrescentou que se continuasse crescendo o combate às drogas, aqueles que viviam desse trabalho seriam os piores inimigos de sua liberação. E ocorreu exatamente isso.

Atualmente, aqueles que lutam contra as drogas são muitos milhares de pessoas e instituições no mundo, começando pelos Estados Unidos, onde os funcionários da DEA [Drug Enforcement Administration, ou Departamento de Fiscalização de Drogas, em livre tradução] são hoje enérgicos adversários de sua redenção legal. Estamos acostumados a que nos informem, com base em estatísticas e pesquisas, que a luta contra a droga conquista muitas vitórias, que sua circulação está diminuindo e coisas parecidas. Mas a verdade é que as drogas são vendidas em toda parte − os narcotraficantes as dão de presente nas portas das escolas para que os jovens, e até as crianças, tornem-se usuários precoces − e a corrupção e a violência promovidas pelos poderosos cartéis não têm limites. Centenas de mulheres, suas vítimas preferidas, e outros tantos homens morrem diariamente nos países latino-americanos, em lutas pela posse de territórios ou rivalidades pessoais, enquanto, ao mesmo tempo, as lutas por aeroportos clandestinos ou delegacias de polícia ou, como na Venezuela, pelo domínio da força militar, vão minando os Estados, no nível ministerial e, às vezes, até no do próprio presidente, como foi o triste caso do Peru.

O problema é ainda mais profundo. Os sistemas de governo e as autoridades estão ou serão corrompidos pela enxurrada de dinheiro que as drogas produzem, a ponto de que, em alguns lugares que irão se espalhando, tudo depende delas e dos funcionários que têm a ver com sua circulação. Os Estados não podem competir com quem gasta e esbanja somas delirantes para garantir o controle de certas cidades ou regiões, que praticamente ficam nas mãos dos narcotraficantes e nas quais estes substituem, pouco a pouco, as autoridades.

Diante desse drama, não há mais remédio a não ser a legalização. É lógico que se comece pelas drogas menores, como já fizeram alguns países avançados, para medir suas consequências, e depois, sob receita médica, incluam-se as drogas maiores que sejam efetivamente um remédio contra a esquizofrenia e outras doenças. É verdade que, pelo menos no Peru, há uma velha polêmica − com discussões a viva voz, artigos e livros − entre os médicos que veem na legalização da cocaína um grave perigo para a saúde dos usuários (são minoria) e aqueles que, pelo contrário, acreditam que o vício nessa droga não seria pior do que o provocado pelo cigarro e pelo álcool. Mas o que interessa agora é acabar com esse contrapoder inesperado que, em muitos lugares, já substituiu o Estado e dita a lei.

Não estou exagerando nem um pouco. Em cidades onde o uso das drogas era secreto e inconfessável, hoje é quase público, está ao alcance de todo mundo e se tornou uma exibição de modernidade, de juventude e de progresso.

Em todo caso, a pior solução é endurecer as penas e aumentar as forças da ordem que combatem o narcotráfico. Já vimos − e o caso do México não é nem de longe o único − que à medida que cresce a perseguição, os narcotraficantes, que têm todo o dinheiro do mundo, armam-se com metralhadoras e fuzis mais sofisticados, comprados nos Estados Unidos, e multiplicam as demonstrações de força, deixando um rastro de mortes nos povoados e nas cidades que controlam. Esse caminho, o das hecatombes e matanças, não é realista.

É claro que a liberdade para as drogas tem seus riscos e o Estado deve combatê-los, neste caso com um maior controle judicial e policial daqueles que se veriam prejudicados por essa lei. Do mesmo modo, é imperioso que os sistemas de saúde prestem um serviço de desintoxicação e cura àqueles que estiverem dispostos a se livrar desse fardo, que também pode ser um grave perigo para a saúde. Tudo isso é útil e produtivo. Não é assim, no entanto, agir como se, na verdade, estivéssemos derrotando os narcotraficantes. Não é assim. São eles que estão ganhando a guerra. É preciso tirar a venda dos olhos e admitir. E eles continuarão ganhando enquanto os Estados pretenderem destruí-los. Eles é que estão nos destruindo.

O pior é a violência associada a essa situação em que os grandes traficantes são objeto de culto − as revistas e programas mais frívolos informam sobre eles, pois sua popularidade é grande − e as perseguições e guerras que travam entre eles já fazem parte da realidade cotidiana, como se as consequências de tudo isso não fossem os torturados e os mortos que se multiplicam por toda parte. A solução do problema não está só na legalização das drogas, é claro. Mas, de imediato, é a única maneira de acabar com a ilegalidade que rodeia essa questão, em que todos os dias morrem, em horríveis condições, dezenas ou centenas de inocentes. A legalização colocará ponto final a essa violência desmedida que paralisa o progresso e mantém muitos países no subdesenvolvimento.

Mário Vargas Llosa, o autor deste artigo, é escritor. Prêmio Nobel de Literatura. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 06.11.21.

Moro candidato? Como ex-ministro pode afetar corrida à Presidência

O ex-ministro Sergio Moro não anunciou, até o momento, uma pré-candidatura à Presidência da República, mas sua filiação ao partido Podemos, nesta quarta (10/11), é um passo a mais na direção de concorrer a um cargo público nas eleições de 2022.

Moro escolheu o Podemos para se filiar (Adriano Machado, Reuters)

Longe do cenário político no último ano — que passou morando nos Estados Unidos — Moro volta ao Brasil sem ter a mesma popularidade que tinha como juiz no auge da operação Lava Jato.

Sua imagem foi desgastada por crises que vão desde uma passagem conturbada pelo governo Bolsonaro até a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que considerou o ex-juiz parcial no julgamento do ex-presidente Lula.

Mas apesar das crises e do distanciamento, Moro ainda mantém uma popularidade que não pode ser desconsiderada — nas pesquisas feitas pelo Datafolha que incluíram seu nome, o ex-ministro ficou pouco abaixo dos 10% de intenção de votos.

"Eu diria que ele está hoje no mesmo patamar do (governador de SP) João Doria", afirma Mauro Paulino, diretor do Instituto Datafolha.

O ex-ministro é considerado uma grande "aquisição" pelo Podemos, cujo integrante mais conhecido nacionalmente era até hoje o senador Álvaro Dias (Paraná). Mesmo que Moro acabe não concorrendo à Presidência, seu capital eleitoral será aproveitado pelo partido, que também considera a possibilidade de lançá-lo como candidato ao Senado.

Entenda quais são os pontos fortes e as fraquezas de Moro em uma eventual campanha presidencial e seu impacto na disputa de 2022 — caso o ex-ministro decida realmente enfrentar Lula e Bolsonaro nas urnas.

Rosto conhecido

Embora Lula e Bolsonaro sejam hoje os favoritos para as eleições presidenciais do ano que vem, não se pode desconsiderar a possibilidade de um outro candidato ir para o segundo turno, explica Mauro Paulino, do Datafolha.

"Nos últimos anos, de maneira geral os eleitores têm se dividido em três grupos. Um mais de esquerda, um mais de direita e um grupo 'pêndulo', ou seja, que tende a votar no centro ou que varia de um extremo a outro", explica Paulino.

"Apesar do favoritismo atual de Lula e Bolsonaro, não dá para desconsiderar um terceiro nome por causa desse grupo mais ao centro — que votou em Bolsonaro em 2018 mas agora está descontente."

Moro é um de muitos nomes entre os possíveis candidatos conhecidos como "nem-nem" — de eleitores que não querem nem Lula, nem Bolsonaro. Políticos como Ciro Gomes (PDT), João Doria e Eduardo Leite (ambos do PSDB) e Luiz Henrique Mandetta (DEM) ainda podem ser lançados como pré-candidatos pelo seu partido e disputar uma vaga no segundo turno.

Uma vantagem que Moro tem em relação a esses e outros políticos que se colocam como uma "terceira via", aponta Mauricio Moura, diretor do instituto de pesquisa Ideia Big Data, é o fato de seu nome já ser conhecido nacionalmente.

"O fato de ser amplamente conhecido pela opinião pública é um grande diferencial em relação a outros candidatos", diz Moura.

Colocado sob os holofotes na última década por causa de sua atuação como juiz dos processos da operação Lava Jato, Moro foi tratado como símbolo do combate à corrupção durante anos, atingindo alta popularidade no auge da operação.

"O positivo desse reconhecimento (do seu nome) é que ele já tem uma imagem consolidada com o público, não precisa de muito pra reforçar essa imagem", afirma Mario Paulino.

No entanto, aponta o pesquisador, o fato de Moro ser um rosto conhecido também traz aspectos negativos — ele também precisa lidar com desgastes associados à sua imagem.

Moro rompeu com Bolsonaro um ano após assumir Ministério da Justiça (Reuters)

Alta rejeição

O lado negativo de ser mais amplamente conhecido é ter que lidar com uma índice de rejeição relativamente maior.

No caso de Moro, cerca de 26% dos brasileiros diziam que não votariam no ex-ministro de jeito nenhum em pesquisa divulgada pelo Datafolha em maio deste ano (última na qual ele foi incluído).

A passagem do juiz pelo governo Bolsonaro e a suspeição declarada pelo STF são principais fatores dessa rejeição.

"Moro saiu do governo Bolsonaro menor do que entrou", afirma Maurício Moura, do Ideia Big Data.

Ministro da Justiça e da Segurança Pública de Bolsonaro entre janeiro de 2019 e abril de 2020, Moro rompeu com o governo dizendo que o presidente não estava cumprindo as promessas feitas quando o convidou para o ministério. O episódio se deu pouco depois de uma polêmica envolvendo a acusação de que o presidente havia interferido na Polícia Federal para proteger seus filhos.

A aliança mal sucedida com Bolsonaro foi especialmente problemática para Moro porque acabou afetando sua imagem com dois públicos: pessoas que rejeitam Bolsonaro e ficaram decepcionadas quando Moro entrou no governo, e bolsonaristas, que o consideraram "traidor" ao abandonar o presidente.

Já a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que o considerou parcial no julgamento de Lula no âmbito da Lava Jato prejudicou sua imagem como juiz.

"Essa imagem amplamente associada à Lava Jato se deteriorou, ele teve seu capital reputacional diminuído", afirma Maurício Moura.

"Moro vai ter que lidar com algumas perguntas indigestas em uma campanha", afirma Creomar de Souza, CEO da consultoria política Dharma e professor da Fundação Dom Cabral. "Ele interferiu nas eleições de 2018 ao condenar Lula, como acusa a esquerda? Por que ele aceitou ser ministro de Bolsonaro?"

O ex-ministro não foi incluído nas últimas pesquisas de rejeição feitas pelo instituto, em julho e setembro. Na última, que ouviu 3.667 eleitores em 190 cidades nos dias 13 a 15 de setembro, a maior rejeição era de Bolsonaro (59%), seguido por Lula (38%).

Tradicionalmente, candidatos com alta rejeição não iam para o segundo turno das eleições presidenciais, explica Mauro Paulino. "Mas isso mudou em 2018, quando a disputa no segundo turno ficou entre Haddad e Bolsonaro, ambos com alto índice de rejeição."

Decisão do STF sobre suspeição de Moro no julgamento de Lula fortaleceu discurso de perseguição política adotado pelo ex-presidente (Getty Images)

Corrupção e economia

O público que votaria em Sergio Moro para presidente hoje é composto basicamente por eleitores "órfãos do PSDB" no sul, sudeste e centro-oeste, diz Mauro Paulino, do Datafolha.

"Eleitores que consideram a corrupção o principal problema do país, têm uma tendência conservadora, optaram por Bolsonaro em 2018 e agora estão insatisfeitos", explica Paulino.

Ter a imagem fortemente associada à pauta anticorrupção é um ponto a favor de Moro caso dispute a Presidente contra Bolsonaro e Lula, cujos governos tiveram que lidar com uma série de escândalos.

Por outro lado, Moro terá o desafio de fazer uma campanha em uma momento em que a sociedade está pressionada por outras questões, de ordem econômica: inflação, desemprego, desigualdade.

"As pessoas não sabem como Moro se posiciona em relação à política econômica", afirma Creomar Souza. Seu posicionamento em diversos outros assuntos também não é conhecido. Moro evitou se posicionar até agora, por exemplo, sobre a postura do governo Bolsonaro no combate à pandemia, outro tema que deve ser central na campanha para 2022.

A economia sempre foi um fator importante na eleição, explica Mauro Paulino, e o tamanho que o tema da corrupção teve em 2018 foi atípico. "Se as previsões de que a situação econômica no ano que vem vai estar até mais difícil do que hoje, o assunto vai readquirir o protagonismo perdido em 2018", diz ele.

"Por outro lado, ainda existe uma capilaridade desse tipo de discurso anticorrupção. Combater a corrupção é algo que tradicionalmente é visto no Brasil como a missão de um 'herói político'", lembra Souza. "Basta lembrar que o PT, antes do mensalão, tinha esse discurso. E Bolsonaro foi eleito em 2018 com esse discurso."

Letícia Mori, de São Paulo para a BBC News Brasil em São Paulo, em 10.11.21

Novo partido de Bolsonaro: PL esteve no centro do escândalo do mensalão no governo Lula

A participação de integrantes do PL no caso foi denunciada pelo presidente nacional do PTB e então deputado federal Roberto Jefferson (RJ). Na época apoiador de Lula e hoje aliado de Bolsonaro, o ex-parlamentar está preso por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes no inquérito das fake news.

O presidente Jair Bolsonaro (E) e o presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto

Provável destino partidário do presidente Jair Bolsonaro, o Partido Liberal (PL) esteve no centro do escândalo do mensalão, que abalou o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005. O presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, anunciou que a cerimônia de filiação de Bolsonaro ao PL acontecerá no próximo dia 22 em Brasília.

O PL e o próprio Costa Neto foram manchete em 2005 durante o chamado escândalo do mensalão, em que o governo Lula foi acusado de pagar dinheiro a deputados em troca de apoio a projetos do governo.

Foi Jefferson o primeiro a utilizar o termo "mensalão", em entrevista à jornalista Renata Lo Prete, então editora da coluna Painel do jornal Folha de S. Paulo, publicada em 6 de junho de 2005. Ele acusou o então tesoureiro nacional do PT, Delúbio Soares, de pagar parlamentares do partido e do PP para votar favoravelmente a projetos de interesse do Palácio do Planalto.

O deputado afirmou: "Um pouco antes de o Martinez (José Carlos Martinez, presidente do PTB morto em 2003 num acidente aéreo) morrer, ele me procurou e disse: 'Roberto, o Delúbio está fazendo um esquema de mesada, um mensalão, para os parlamentares da base. O PP, o PL, e quer que o PTB também receba. R$ 30 mil para cada deputado. O que você me diz disso?'".

PTB, PP e PL, entre outros partidos, faziam parte da base parlamentar do governo Lula.

No dia seguinte, o presidente nacional do PL, deputado federal Valdemar Costa Neto (SP), ingressou com representação contra Jefferson na Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara.

Valdemar da Costa Neto, em foto de 2005, foi condenado por por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no escândalo do mensalão (Evaristo Sá / AFP via Getty Images)

A equipe da BBC News Brasil lê para você algumas de suas melhores reportagens

"A ofensa, da forma como foi praticada, atingiu e maculou, quiçá de forma irreparável, a reputação ilibada não só dos parlamentares nominados, mas também a credibilidade, o conceito moral e administrativo desta Casa", afirmou Costa Neto.

Na dupla condição de acusador e acusado, Jefferson redobrou a aposta: citou como beneficiários dos pagamentos o próprio Costa Neto e os deputados do PL Sandro Mabel (GO) e Bispo Rodrigues (RJ), além de três parlamentares do PP (Pedro Corrêa, então presidente da sigla, José Janene e Pedro Henry).

Na sessão da Comissão de Ética em que Jefferson foi ouvido, em 14 de junho, Costa Neto confrontou-o: "Então dê os nomes".

O presidente do PTB respondeu: "Afirmo que Vossa Excelência recebe e repassa".

Jefferson foi condenado em votação secreta à perda de mandato por quebra de decoro.

Jefferson, Costa Neto, Corrêa, Henry e Rodrigues, entre outros, foram denunciados pela Procuradoria-Geral da República no caso do mensalão e, posteriormente, julgados e condenados a penas variadas pelo Supremo Tribunal Federal em 2012.

No total, 41 pessoas foram julgadas e 26 condenadas no processo, incluindo o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu e o ex-presidente nacional do PT José Genoino.

Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto com a ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (D)

"O PL é um partido estruturado nacionalmente, mas é também uma das siglas mais implicadas em corrupção na história recente. Essa escolha de Bolsonaro entra em contradição com o discurso do presidente contra a velha política, o toma-lá-dá-cá e a moralidade. Os bolsonaristas terão de se contorcer para explicar essa opção", afirma Victor Gandin, cientista político e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Base dos governos Lula e Dilma

Desgastado pelo episódio, o PL mudou de nome para disputar as eleições do ano seguinte.

Assumiu a identidade de Partido da República (PR), após fusão com o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona), do deputado federal e ex-candidato à Presidência Enéas Carneiro (SP). O objetivo declarado da fusão foi assegurar o cumprimento da cláusula de barreira, que exigia de cada sigla um percentual mínimo de 5% dos votos para eleger deputados.

No ano seguinte, já com 34 deputados, o então PR passou a fazer parte da base parlamentar de Lula, reeleito para um segundo mandato, e indicou Alfredo Nascimento para o Ministério dos Transportes. Mais tarde, compôs a aliança que elegeu a também petista Dilma Rousseff por dois mandatos.

Em 2019, o PR mudou novamente de identidade e voltou a se chamar PL.

O partido foi criado em 1985, logo após o fim da ditadura militar. Seus fundadores provinham sobretudo de partidos que haviam sustentado o antigo regime, como o então Partido Democrático Social (PDS, hoje PP), ou desertado no último minuto, como o Partido da Frente Liberal (PFL, hoje Democratas) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

À frente da nova sigla, destacavam-se políticos como Afif Domingos, ex-secretário de Agricultura do governo Paulo Maluf, de São Paulo, e Álvaro Valle, dissidente do PFL do Rio de Janeiro. Em 1989, o PL lançou Afif à Presidência, mas obteve apenas o sexto lugar entre 21 candidatos, com 3,2 milhões de votos (4,8% do total).

O partido apoiou as candidaturas presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 1994 e Ciro Gomes (PPS) em 1998, mas chegou ao poder em 2002 ao emplacar o então senador por Minas Gerais José Alencar como vice de Lula.

Fundador do conglomerado têxtil Coteminas, Alencar tivera uma passagem frustrada pelo PMDB nos anos 1990, tendo sido preterido por caciques tradicionais do partido em disputas pelo governo do Estado. Sua presença na chapa presidencial ao lado de Lula ajudou o candidato do PT a se tornar mais palatável a setores conservadores. Na prática, a relação de Alencar com o PL, no qual era novato, permaneceu distante.

Nos últimos 10 anos, o PL consolidou-se como um dos pilares do Centrão, bloco de partidos que domina a Câmara dos Deputados e serve de fiel da balança em votações decisivas na relação do Legislativo com o governo federal.

A sigla soma atualmente 43 deputados, atrás apenas do PSL (54 parlamentares) e do PT (53). Os votos do PL foram fundamentais para a eleição de Artur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara, e o partido emplacou a deputada federal Flávia Arruda (DF) como ministra-chefe da Secretaria de Governo.

"O movimento de Bolsonaro em direção ao PL é um casamento de conveniência. Ele precisa de estrutura partidária e tempo de TV se quiser disputar com chances a reeleição. Por outro lado, o PL e o Centrão também buscam crescimento. Será difícil governar sem o Centrão a partir de 2023", analisa Paulo Sergio Peres, professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Luiz Antônio Araujo, de Porto Alegre para a BBC Brasil, em 11.11.21

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Após eleição com opositores presos, PT celebra vitória de Ortega na Nicarágua

Em nota, legenda classifica pleito, altamente questionado internacionalmente, como 'uma grande manifestação popular e democrática'.

Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, ao lado de sua mulher e vice-presidente, Rosario Murillo, após eleição Foto: CESAR PEREZ / AFP

A reeleição de Daniel Ortega na Nicarágua, rejeitada pelos governos das principais democracias ocidentais, foi celebrada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que, em nota, classificou o  pleito do último domingo como “uma grande manifestação popular e democrática”. As eleições que deram vitória a Ortega, segundo os números oficiais com 75% dos votos, foram realizadas após uma série de prisões de opositores, incluindo dissidentes sandinistas e sete possíveis adversários na disputa, dentre eles sua principal oponente, Cristiana Chamorro.

“Os resultados preliminares, que apontam para a reeleição de Daniel Ortega e Rosario Murillo, da FSLN [Frente Sandinista de Libertação Nacional], confirmam o apoio da população a um projeto político que tem como principal objetivo a construção de um país socialmente justo e igualitário”, diz a nota, publicada na noite de segunda-feira e assinada por Romenio Pereira, secretário de Relações Internacionais do partido. “Esta vitória será conquistada apesar das diversas tentativas de desestabilização do governo e do bloqueio internacional contra a Nicarágua e seu atual governo, uma situação que penaliza principalmente os mais pobres e necessitados.”

Sem adversários e com o  Conselho Supremo Eleitoral (CSE) controlado por aliados do governo, o presidente foi reeleito para seu o quarto mandato consecutivo.

Na América Latina, países com governos de esquerda, como o Peru, também rejeitaram o pleito que “não atende aos critérios mínimos de eleições livres, justas e transparentes estabelecidos pela Carta Democrática Interamericana”, segundo comunicado da Presidência de Pedro Castillo. Outros, no entanto, como Cuba, Venezuela e Bolívia, comemoraram os resultados.

Nesta terça-feira, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), instou os países da região a agirem após as “eleições ilegítimas" no país. “Rejeitamos os resultados das eleições ilegítimas na Nicarágua”, tuitou  Luis Almagro. “Insto os países da OEA a responderem a esta clara violação da Carta Democrática durante sua Assembleia Geral”.

Vivi para contar: 'Me dei conta de que era o próximo a ser preso, pois Ortega já não respeitava os velhos lutadores'

Em agosto deste ano, o próprio ex-presidente Lula chegou a pedir que Ortega — que já acumula mais de 25 anos no poder nos últimos 40 anos — respeitasse a democracia, durante uma entrevista ao canal mexicano Once.

— Quando a gente pensa que não tem ninguém para nos substituir, nós estamos virando ditadores — disse Lula na entrevista. — Quando eu era presidente do sindicato, convoquei uma assembleia de trabalhadores e decidi que o presidente do sindicato só poderia ser eleito duas vezes. Quando era presidente da República, muita gente queria que eu tivesse um terceiro mandato, mas não aceitei, porque sou amplamente favorável à alternância de poder. Tem que ter revezamento na governança do país para a sociedade ir aprimorando sua participação democrática.

Após o resultado, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, disse que Washington está disposta a usar várias ferramentas, incluindo possíveis sanções, restrições de vistos e ações coordenadas com seus aliados contra aqueles que apóiam os “atos antidemocráticos" das autoridades nicaraguenses.

O subsecretário de Estado americano para as Américas, Ricardo Zúñiga, disse hoje que Ortega impôs "uma ditadura baseada no personalismo", que comparou à de Anastasio Somoza, o ditador derrubado na Revolução Sandinista em 1979. A União Europeia (UE) também rejeitou os resultados, dizendo que as eleições “completam a conversão da Nicarágua em um regime autocrático”.

Após as críticas, Ortega  classificou os EUA como “imperialistas”, “fascistas” e, no caso da Espanha, como “descendentes do franquismo”. Ele também acusou os prisioneiros políticos de seu regime de serem “filhos da puta dos imperialistas ianques”.

—  Eles deveriam ser levados para os Estados Unidos. Eles não são nicaraguenses, não têm pátria! — disse em um discurso inflado na segunda-feira, na Praça da Revolução, no coração da capital, Manágua.

O presidente, que governa o país desde 2007, tem hoje o apoio de menos de 20% população, segundo pesquisa do Gallup de outubro, uma queda drástica após os protestos de 2018, que tomaram conta do país e deixaram dezenas de mortos. 

Marina Gonçalves e agências internacionais. Publicado originalmente n'O Globo, edição online, em 09.11.21, às 17:45.

Os principais recados que Moro dará em seu discurso de filiação amanhã

No discurso que marcará o seu ato de filiação ao Podemos, em Brasília, nesta quarta-feira, Sergio Moro dirá que está à disposição do povo brasileiro. 

A fala é tratada internamente como a senha do ex-juiz de que será o candidato à Presidência da República em 2022, e não ao Senado, como aposta boa parte do universo político. Informa Bela Megale, de O Globo.

Ex-ministro e ex-juiz da Lava-Jato, Sergio MoroEx-ministro e ex-juiz da Lava-Jato, Sergio Moro | Foto: Pablo Jacob/ Agência O GLOBO

Focado em trilhar o caminho da terceira via, Moro também defenderá a necessidade de união do país, hoje polarizado entre Lula e Bolsonaro. O ex-ministro dirá que o Brasil precisa deixar para trás pessoas que usam a política para favorecer interesses pessoais e fará críticas tanto ao governo do ex-chefe, Jair Bolsonaro, quanto às gestões petistas. Por ora, porém, a ideia é evitar a citação nominal a seus adversários.

Em paralelo, será exibido um vídeo com contribuições de Moro ao Brasil. Fotos pessoais do juiz foram cedidas à organização do evento para compor a peça, como imagens de seu casamento e retratos com os filhos pequenos.

A filiação do ex-juiz também marcará a estreia de Moro em uma nova plataforma, o YouTube. A conta oficial já está no ar e deve ter como primeira transmissão o ato de filiação do ex-ministro.

Texto de Bela Megale publicado originalmente n'O Globo online, em 09.11.21, às 16:59

A misteriosa facada em Bolsonaro volta ao jogo em clima eleitoral

Não deixa de causar estranheza que justo agora, quando a reeleição do presidente parece cada vez mais complicada, tenha sido tomada a decisão de reabrir o caso para tentar investigar se havia ou não um mandante —e se era alguém de esquerda

O presidente Jair Bolsonaro tira foto com apoiadores em Miracatau (SP), no dia 13 de outubro, durante entrega de títulos de propriedades rurais. (Alan Santos / PR)

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, acaba de reabrir, de surpresa, o processo sobre a facada contra Jair Bolsonaro, algo que já tinha sido encerrado duas vezes. Antes, decidiu-se que o agressor, Adélio Bispo, deveria ser absolvido por se tratar de uma pessoa com problemas psicológicos e que havia agido sozinho —ou seja, sem mandantes. Hoje, é consenso entre os analistas políticos que foi a facada desferida em Bolsonaro durante a campanha eleitoral que o ajudou em sua eleição, por dois motivos: primeiro, porque o transformou em um mártir, um mito protegido por um Deus que o salvou; também, porque o impediu de participar dos debates eleitorais com os demais candidatos. Algo decisivo, já que são conhecidas as dificuldades naturais do capitão.

O caso parecia encerrado, embora Bolsonaro e sua família nunca tivessem aceitado as investigações e continuassem com o sonho de poder provar que um terceiro —que seria um político e de esquerda— teria participado do atentado.

Não é difícil entender por que justo agora, já em plena campanha pela reeleição, voltem a ressuscitar a misteriosa facada sobre a qual se criou até a fantasia de que seria um falso ataque criado pelos seguidores do então candidato Bolsonaro. Tudo para criar a imagem do mártir, que teria, depois, milhões de votos dos evangélicos.

E não deixa de causar estranheza que, justo agora, quando a reeleição de Bolsonaro parece cada vez mais complicada, tenha sido tomada a decisão de reabrir o caso para tentar investigar se havia ou não um mandante e se era alguém de esquerda. Ao mesmo tempo, o recente documentário do jornalista Joaquim de Carvalho, Uma facada no coração do Brasil, desenterrou a inusitada hipótese de que o atentado foi apenas uma ficção criada pelos seguidores de Bolsonaro para mitificá-lo. E para provar isso difundiu-se a teoria de que não existe uma única foto de sua barriga ensanguentada depois do esfaqueamento e de que houve uma suposta cumplicidade entre os médicos que o atenderam e operaram.

Agora, segundo o jornal O Globo, o que se deseja com a investigação é saber se, além do veredicto dos que conduziram o caso (que insistiram que Adélio agiu sem cúmplices), houve algum mandante que forjou o atentado, usando uma pessoa que aparentemente havia pertencido ao PSOL. Agora que já se respiram ares eleitorais, Bolsonaro e seus filhos insistem que a família precisa saber se houve ou não alguém que planejou tudo. E o sonho dos Bolsonaros e seus seguidores sempre foi tentar provar que o mandante foi algum militante de esquerda para mudar o rumo das eleições.

O último gesto de mau gosto de Bolsonaro sobre o atentado ocorreu dias atrás, por ocasião da morte da jovem cantora Marília Mendonça, amada por todo o Brasil. O presidente, sem nomear a morte da artista, referindo-se apenas à dor de um filho que ficava órfão, aproveitou para relembrar seu atentado, algo que desencadeou uma lista de críticas nas redes sociais, condenando sua já conhecida falta de sensibilidade.

Quem também apareceu foi o polêmico advogado de Bolsonaro e de sua família, Frederick Wassef. Ele voltou ao jogo nos últimos dias para defender a tese de que houve um mandante do atentado. Segundo ele, “há fortes indícios e um conjunto robusto de provas de que a esquerda brasileira ordenou a morte do presidente”. Para ele e para a família Bolsonaro, as duas investigações realizadas pela polícia, que convergiam para a tese de que o agressor agiu sozinho, não teriam mais valor.

Parece não haver dúvida de que há um interesse especial em tentar provar neste momento que o agressor agiu instigado por um político de esquerda, já que, segundo todas as pesquisas, Lula poderia derrotar Bolsonaro ainda no primeiro turno. Seria, portanto, um sonho para o presidente que antes da data da reeleição a polícia descobrisse que o verdadeiro mandante era alguém à esquerda, o que se tornaria o tema central de todas as discussões eleitorais. Como escreveu o jornalista Ricardo Noblat em seu blog, se alguém está interessado hoje em desenterrar a já desmentida hipótese de que o atentado foi organizado pela esquerda, esse alguém é Bolsonaro.

As forças democráticas precisam estar atentas para que esse sonho de Bolsonaro e sua família seja abortado o mais rápido possível para que não obscureça uma eleição já carregada de ameaças. A última é a chegada de Sérgio Moro, considerado uma esfinge difícil de decifrar e que continua a acrescentar ambiguidade e confusão extra às eleições.

O fantasma que Bolsonaro deseja desenterrar justo neste momento de tensão pré-eleitoral pode ser, sem dúvida, um elemento novo e perigoso que acrescenta dramaticidade e intriga à já complexa eleição que ocupa o interesse de toda a vida política, enquanto se agrava a crise econômica, que, como sempre, afeta os mais desfavorecidos, que os políticos usam somente na hora de tentar comprar voto.

Juan Arias, o autor deste artigo, é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente. Publicadi no EL PAÍS, em 08.11.21.

STF forma maioria contra 'orçamento secreto' da Câmara

A decisão representa uma derrota para o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tem usado esses recursos para garantir o apoio de parlamentares do Centrão. A informação foi revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo.

Com placar parcial de 6 a 0, a Corte manteve decisão liminar da ministra Rosa Weber (Felipe Sampaio, SCO/STF)

O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria nesta terça-feira (9/11) para barrar repasses às emendas de relator, também conhecidas como "orçamento secreto" da Câmara dos Deputados.

O governo sempre negou haver qualquer direcionamento das emendas para angariar apoio

Na tarde desta terça-feira, o placar no STF chegou a 6 a 0, consolidando a formação de maioria.

Uma liminar suspendendo as emendas de relator foi concedida pela ministra Rosa Weber na sexta-feira (5/11). Além da relatora, votaram contra as emendas: Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes.

Para entender o esquema do "orçamento paralelo" de Bolsonaro, primeiro é preciso compreender como funcionam as emendas do Orçamento federal.

Segundo o site do Senado Federal, as emendas do Orçamento "são propostas por meio das quais os parlamentares podem opinar ou influir na alocação de recursos públicos em função de compromissos políticos que assumiram durante seus mandatos, tanto junto aos Estados e municípios, quanto a instituições".

As emendas são de quatro tipos: individual, de bancada, de comissão e do relator.

As emendas individuais são destinadas a cada senador ou deputado. As emendas de bancada são coletivas, de autoria das bancadas estaduais ou regionais. Também são coletivas as emendas apresentadas pelas comissões técnicas da Câmara e do Senado.

Já as emendas do relator (também conhecidas no jargão burocrático pelo código RP9) são feitas pelo deputado ou senador que, num determinado ano, foi escolhido para produzir o parecer final sobre o Orçamento.

Ao contrário das emendas individuais, que seguem critérios bem específicos e são divididas de forma equilibrada entre todos os parlamentares, as emendas de relator não seguem critérios usuais e beneficiam somente alguns deputados e senadores.

Foram essas emendas que possibilitaram a distribuição de bilhões a parlamentares da base do governo.

"Causa perplexidade a descoberta de que parcela significativa do orçamento da União Federal esteja sendo ofertada a grupo de parlamentares, mediante distribuição arbitrária entabulada entre coalizões políticas, para que tais congressistas utilizem recursos públicos conforme seus interesses pessoais, sem a observância de critérios objetivos", escreveu a ministra Rosa Weber em sua decisão.

BBC News Brasil, em 09.11.21

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Moro aciona STF contra depoimento de Bolsonaro no inquérito que apura interferência do presidente na PF

Ex-ministro questiona interrogatório sem presença de seus advogados e da Procuradoria-Geral da República

Presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro Sérgio Moro. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Pivô do inquérito que investiga se o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir politicamente na Polícia Federal, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) contra o depoimento do chefe do Executivo. Ele pede ao ministro Alexandre de Moraes, relator da investigação, que cobre parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a oitiva.

O principal ponto questionado por Moro é que o interrogatório foi feito pela Polícia Federal sem a participação de seus advogados e da PGR. A defesa do ex-ministro diz que faltou isonomia no tratamento dispensado ao presidente.

“Esperavam os signatários da presente serem comunicados da data de oitiva do segundo investigado – e assim também o fosse a própria PGR – mantendo-se o mesmo procedimento adotado quando do depoimento prestado pelo ex-Ministro Sérgio Fernando Moro, em homenagem à isonomia processual. Nada obstante, o depoimento do Sr. Presidente da República foi colhido em audiência reservada, presidida pela autoridade policial em período noturno, sem participação desta Defesa e da Procuradoria Geral da República”, dizem os advogados ao STF.

Em depoimento, Bolsonaro admitiu que pediu trocas na diretoria-geral e nas superintendências da Polícia Federal e disse que o ex-ministro da Justiça condicionou as substituições a uma vaga no STF. O presidente também afirmou que viu necessidade em mudar a chefia da PF para ter ‘maior interação’.

Interlocutores de Moro disseram que as perguntas foi selecionadas para ‘blindar’ do presidente. A defesa chegou a preparar uma lista de questionamentos, mas não foi comunicada da data da oitiva, o que impediu o comparecimento no Palácio do Planalto na última quinta-feira, 4, quando Bolsonaro foi ouvido.

Interrogado pela Polícia Federal em maio do ano passado, Moro afirmou que a troca na diretoria-geral teria sido solicitada por Bolsonaro porque o presidente ‘precisava de pessoas de sua confiança, para que pudesse interagir, telefonar e obter relatórios de inteligência’.

A modalidade do depoimento de Bolsonaro, se presencial ou por escrito, travou as investigações por meses. Em um primeiro momento, o presidente recorreu ao STF para depor por escrito, mas depois quis ‘desistir’ de apresentar sua versão sobre as declarações de Moro. No início de outubro, um anos depois de acionar a Corte, manifestou ‘interesse’ em comparecer pessoalmente diante dos investigadores. O interrogatório era uma das últimas pendências para a produção do relatório final do inquérito.

Rayssa Motta, O Estado de São Paulo online, em 08.11.21, às 15h:47

Quatro ex-presidentes latino-americanos exigem que a região isole o regime de Daniel Ortega

Fernando Henrique Cardoso, Laura Chinchila, Juan Manuel Santos e Ricardo Lagos pedem que governos ignorem resultados da eleição do domingo e suspendam a Nicarágua da OEA.


Nicaraguenses participam de uma manifestação contra as eleições presidenciais de seu país, no domingo, em San José, na Costa Rica. (Jeffrey Arguedas - EFE)

Daniel Ortega enfrenta o repúdio regional. Na noite de domingo, quatro ex-presidentes latino-americanos exigiram aos governos da América Latina que isolem o regime da Nicarágua e ignorem os resultados das eleições presidenciais deste domingo, em que Ortega concorreu sem adversários e se proclamou vencedor. O apelo foi assinado por Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Laura Chinchilla (Costa Rica), Juan Manuel Santos (Colômbia) e Ricardo Lagos (Chile). Os ex-mandatários consideram que o pleito nicaraguense carece de legitimidade e que o financiamento de organismo internacionais ao Governo de Ortega deveria ser suspenso. Separadamente, o Governo da Costa Rica anunciou que não reconheceria os resultados eleitorais da nação vizinha.

“Neste 7 de novembro se registrou na Nicarágua uma jornada eleitoral marcada pela violação dos direitos dos cidadãos para escolher suas autoridades de maneira livre e democrática. O corrido é grave tanto para o futuro do povo nicaraguense como para o resto da América Latina, porque lá se aplicou rigorosamente o itinerário mediante o qual uma democracia se transforma em autocracia”, advertem os ex-presidentes. “Estas eleições tiveram lugar em um contexto de forte repressão, com todos os espaços de oposição democráticos fechados, carente das garantias básicas de integridade eleitoral e sem a presença de observadores internacionais confiáveis. O resultado foi o esperado: a reeleição ilegítima de Daniel Ortega para um quarto mandato e sua intenção de se perpetuar de maneira indefinida no poder”, alegam.

A eleição presidencial deste domingo foi considerada uma farsa pela oposição porque nos últimos meses Ortega mandou prender sete possíveis adversários que teriam chances reais de derrotá-lo. Além disso, desatou uma forte repressão e a detenção de vozes críticas, entre eles empresários, ativistas, feministas e jornalistas. Também tirou do jogo dois partidos políticos da oposição. Apesar disso, o Governo argumentou que as eleições foram transparentes e destacou a participação dos nicaraguenses, embora as imagens deste domingo mostrassem seções eleitorais desoladas e ruas vazias, num sinal de apoio à estratégia da oposição, que orientou a população a ficar em casa. “As condições sob as quais se convocou às urnas determinam a ilegitimidade destas eleições”, afirmam os ex-presidentes.

Os ex-mandatários solicitam que todos os governos do continente se recusem a reconhecer o resultado eleitoral e que a crise da Nicarágua seja tratada como prioridade na próxima Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, de 10 a 12 de novembro na Guatemala. Também defendem “aprofundar o isolamento internacional do regime”, o que pode incluir a suspensão da Nicarágua da OEA, e suspender todos os programas ou negociações das instituições financeiras internacionais com a Nicarágua “enquanto as condições mínimas de vigência da institucionalidade democrática não retornarem”.

Neste domingo, também o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se pronunciou sobre o processo eleitoral nicaraguense, que descreveu como uma pantomima, enquanto o Governo da Costa Rica, liderado pelo presidente Carlos Alvarado, afirmou que não reconhecerá os resultados por causa da ausência de garantias democráticas.

Em seu pronunciamento, os quatro ex-presidentes que assinam a carta fazem uma alusão à Revolução Sandinista de 1979, liderada pelo próprio Ortega, quando dizem que “há quatro décadas o povo do Nicarágua empreendeu um caminho de resgate da democracia após longos anos sob uma ditadura opressiva extrema”. “Hoje aqueles sonhos estão sufocados por um mandatário que, instalado no poder, assumiu o mesmo caminho e impede o seu povo de escolher com plena liberdade o devir do seu futuro. Perante isso, os povos e governos da América Latina não podem ser indiferentes”, pedem Cardoso, Chinchilla, Lagos e Santos.

Carlos Salinas Maldonado, da Cidade do México para o EL PAÍS, em  08 NOV 2021

Daniel Ortega consuma sua farsa eleitoral na Nicarágua

Regime reivindica 75% de apoio com uma participação de 65% nas eleições de domingo, realizadas com a oposição na prisão ou no exílio. Organização aponta abstenção de 81,5%

Daniel Ortega e Rosario Murillo em seu local de votação na manhã de domingo. (César Perez / AFP)

A Nicarágua se dividiu mais um pouco após a votação de domingo. O país centro-americano não escolheu entre um e outro partido, e sim entre afiançar ou não com sua participação as eleições para renovar um quarto mandato de Daniel Ortega. Em um contexto de prisões maciças, exílio e repressão, a oposição a Ortega protestou ficando em casa como se a eleição não existisse. O líder sandinista, que tem somente 19% de apoio de acordo com as pesquisas sérias, projetou para 7 de novembro uma votação cercada de opositores inofensivos. Apesar disso, o órgão eleitoral divulgou os resultados parciais iniciais que deram à Ortega 75% de apoio, com uma participação de 65% dos eleitores. Estes números contrastaram com a baixa participação detectada nas seções eleitorais no dia das eleições. O presidente havia projetado uma votação para 7 de novembro cercado por oponentes confortáveis. A chamada foi considerada uma farsa pela oposição e pela comunidade internacional. A organização Urnas Abiertas informou que, de acordo com seus 1.450 observadores em todo o país, a abstenção foi em média de 81,5%.

Durante todo o dia o esforço do Governo sandinista foi tentar impor uma narrativa de normalidade democrática e grande afluência nos colégios eleitorais. Desde o começo da manhã os canais oficiais mobilizaram todos os seus recursos tentando mostrar um país votando em paz que abarrotava as urnas para participar da “festa cívica”. As televisões utilizavam para isso planos fechados e mais de um jornalista passou apuros quando nas primeiras conexões não encontraram nenhum eleitor a quem entrevistar quando o estúdio chamava uma entrada ao vivo.

Grupos tão díspares como estudantes, camponeses e empresários se uniram no domingo para pedir à população que ficasse em casa, que não saísse para passear, que não usasse o carro, que não fosse a restaurantes e não saísse para praticar esportes. Nada que demonstrasse normalidade. Ao mesmo tempo em que a propaganda oficial divulgava longas filas diante das urnas, a imprensa independente transmitia imagens com ruas e praças vazias e colégios à míngua em sinal de desprezo a eleições consideradas uma “pantomima” pelos Estados Unidos. O presidente Joe Biden chamou de “autocratas” o casal Ortega-Murillo e também anunciou uma investida internacional contra o sandinista. “Os Estados Unidos, em estreita coordenação com outros membros da comunidade internacional, utilizarão todas as ferramentas diplomáticas e econômicas a nosso alcance para apoiar o povo da Nicarágua e exigir responsabilidades ao Governo de Ortega-Murillo e aos que facilitam seus abusos”, disse no domingo. “Fecharam os veículos de comunicação independentes, prenderam jornalistas e membros do setor privado e amedrontaram as organizações da sociedade civil para que fechassem suas portas”, disse ao casal presidencial.

A realidade é que na falta de líderes políticos por sua prisão, as organizações civis e veículos da imprensa como o Confidencial, 100% Noticias e o Divergente são o rosto com quem se identificam os 65% de nicaraguenses que, de acordo com a empresa de pesquisa Gallup, repudiam os Ortega. Todos eles destacaram sua surpresa pelas ruas vazias e o desprezo à votação em um povo que gosta de votar desde o final da guerra civil e tem uma das mais altas taxas de participação do continente, acima de 68%.

O medo de que a paralisação fosse bem-sucedida fez com que a polícia suspendesse a lei seca, a proibição de vender álcool durante a jornada eleitoral, com a única intenção de promover certa vida nas ruas com bares e restaurantes trabalhando normalmente.

Mas poucas coisas eram normais na Nicarágua no domingo. Até a última hora o regime não descansou. Entre a sexta-feira e o domingo foram presas 21 pessoas de nove distritos diferentes de acordo com o Observatório Cidadão e a organização Urnas Abertas, que monitoraram o processo. A Aliança Cívica, uma coalizão de oposição, denunciou “hostilidade, vigilância, intimidação, agressões, ataques, prisões ilegais e arbitrárias” de alguns de seus líderes. Quatro deles foram libertados depois, mas 16 continuavam presos ao final do domingo. Paralelamente, grupos policiais e paramilitares foram gravados nas ruas de Managua tirando fotos e registrando os movimentos dos poucos opositores que agem com certa liberdade.

As votações foram realizadas com sete candidatos presos, entre eles Cristiana Chamorro, de acordo com as pesquisas a grande favorita para vencer Ortega de goleada. Três partidos foram colocados na ilegalidade e mais de 30 líderes civis e políticos de diferentes correntes, entre os quais há empresários, camponeses, estudantes, defensores dos Direitos Humanos, analistas e jornalistas continuam encarcerados no presídio de El Chipote há cinco meses. A última pesquisa da Gallup mostra que 65% da população disse que no caso de eleições livres votaria em qualquer um que não fosse Ortega e somente 19% disse apoiar o comandante sandinista.

As eleições foram realizadas sem observadores internacionais e o Centro Carter afirmou que a eleição não reuniu os requisitos mínimos para ser considerada como tal. Enquanto isso ocorria, veículos como o The Washington Post, Wall Street Journal, Le Monde, BBC e TVE se amontoavam na fronteira com a Costa Rica pela impossibilidade de entrar no país para informar. Todos eles foram expulsos e tiveram a entrada proibida. Nesse contexto, o jornalista Carlos Fernando Chamorro já especulava que o Conselho Eleitoral daria nessa noite eleitoral 70% dos votos a Daniel Ortega.

“Eu ou a guerra”

Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo votaram no centro de Managua. O mandatário e a copresidenta, como foi nomeada, avançaram entre aplausos espontâneos e em poucos minutos abandonaram o lugar em um Mercedes Benz. Pouco depois, o presidente obrigou as redes de rádio e televisão a conectar um discurso de 45 minutos em que acusou os opositores de golpistas e terroristas ao mesmo tempo em que criticou as sanções norte-americanas.

Durante seu discurso, Ortega se colocou como o único capaz de manter a paz em um país assediado pelo terrorismo. “Há os que optam pela guerra, pela violência, pelo terrorismo e pelas calúnias. Querem que o país se veja envolto em um confronto violento e em uma guerra como a que vivenciou ao longo da história. A guerra não deixa escolas, a guerra não constrói hospitais, não constroem estradas (...) Que o povo não se banhe de sangue. O voto está aí para evitar”, alertou Ortega em rede nacional, ainda com as urnas abertas. “As eleições são um compromisso dos nicaraguenses de votar pela paz e não pela guerra”, acrescentou entre mais aplausos. De Caracas, o presidente Nicolás Maduro manteve o discurso oficial ao afirmar que “votar nesse domingo na Nicarágua é votar pela paz”, ao mesmo tempo em que cumprimentava Ortega “de antemão”.

Apesar do ar triunfalista, entretanto, o dia depois das eleições surge pior do que o anterior para a Nicarágua. Além da crise política e social que deve gerir, o regime de Ortega precisa lidar com o pacote de sanções econômicas que os Estados Unidos preparam contra a Nicarágua. Nos próximos dias se espera que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, assine a entrada em vigor da conhecida como Lei Renascer e que permite torpedear os empréstimos da instituições financeiras e revisar o Tratado de Livre Comércio (CAFTA).

A Nicarágua exporta aos Estados Unidos 62% de seus produtos e importa a preços preferenciais 30% do que consome, de modo que um possível cancelamento do CAFTA colocaria o país à beira do colapso e do desabastecimento. Uma aplicação rígida das sanções econômicas pioraria a situação do segundo país mais pobre do continente depois do Haiti e provocaria um aumento da imigração e das caravanas aos Estados Unidos, outro dos grandes temores da Casa Branca.

Jacobo Garcia, da Cidade do México para o EL PAÍS, em 8 NOV 2021

Os desempregados 'desesperados para ter algo no currículo' que tentam a sorte em cursos profissionais

Em sua maioria, os alunos estão "parados" há vários meses (alguns, há anos). São moradores de bairros das periferias da cidade ou da região metropolitana, tem baixa escolaridade e pouca perspectiva de mobilidade no mercado de trabalho.

Depois de uma década como vigilante, Soraya Ribeiro, 55, concluiu o curso de portaria

O professor Carlos Quiroga aconselha: "Vocês colocam e-mail no currículo? Muita gente não coloca, não, viu? Erro fatal. E vocês atendem o telefone? Tem que atender, gente. Vocês acham que é só telemarketing com cobrança? Mas e aí, se a empresa quer contratar vocês, como ela faz se não tem e-mail e vocês não atendem ligação?"

Manhã de segunda-feira, quarto andar do Edifício Claudina, rua Barão de Itapetininga, centro de São Paulo. Esse é só o começo da aula. Seis pessoas desempregadas iniciam o curso de portaria, controlador de acessos, recepção e fiscal de piso - carga de oito horas em um dia - na escola Discimus ("aprendemos", em latim).

Todos os meses, centenas de pessoas procuram escolas como essa em busca de cursos profissionalizantes de um único dia, a chamada "reciclagem profissional", no centro de São Paulo. Em outubro, a BBC News Brasil acompanhou duas aulas em duas escolas na região.

Em sua maioria, os alunos estão "parados" há vários meses (alguns, há anos). São moradores de bairros das periferias da cidade ou da região metropolitana, tem baixa escolaridade e pouca perspectiva de mobilidade no mercado de trabalho.

Alguns culpam a crise econômica pela situação difícil. Segundo o IBGE, o Brasil tinha 14,1 milhões de desempregados em julho, taxa de 13,7% da população. Esse índice vem caindo lentamente, mas os economistas não acreditam em uma ampla retomada do mercado nos próximos meses.

Já outros alunos reclamam das empresas por não darem oportunidades a quem tem mais de 40 anos. Por outro lado, os mais jovens dizem que a falta de experiência também pesa na hora da seleção.

Para ir ao centro da cidade, muitas vezes eles gastam o pouco dinheiro que sobrou do mês, ou pegam emprestado de parentes. Tudo válido pela busca do certificado de conclusão da "reciclagem". Veem na profissão de porteiro (ou controlador de acessos, ou recepcionista), uma chance de reencontrar um salário novo no fim do túnel.

E quem sabe agora, com o currículo um pouco mais recheado, algum empregador não se convença de que chegou a hora de dar uma oportunidade?

No início da aula, o professor Carlos Quiroga explica aos alunos como se faz um currículo

'Ninguém me chama'

A rua Barão de Itapetininga ganhou a fama de Meca dos desempregados paulistanos por causa das dezenas de agências de recrutamento, lan houses que escrevem e imprimem currículos, empresas terceirizadas de serviços gerais, escritórios de advogados trabalhistas e centenas de anúncios de emprego colados nos postes do calçadão de pedras portuguesas.

No quarto andar do edifício Claudina, número 273 da Barão, fica a escola Discimus Cursos e Treinamentos, um dos locais procurados por desempregados todos os dias.

Em média, ela vende cursos a 200 pessoas por mês: tem de zelador, portaria virtual, gerente de condomínio, monitoramento por vídeo, controlador de acessos, informática básica. As aulas, em duas salas, duram no máximo dois dias e custam de R$ 40 a R$ 270, a depender do curso.

Antes de falar sobre questões técnicas de cada profissão, o professor Carlos Quiroga sempre ensina como fazer um currículo e dá dicas de boas maneiras para se portar em uma entrevista.

Segundo ele, no dia do embate final: 1) "Esteja descansado, não beba na noite anterior"; 2) "Evite gírias, tenha postura, vá bem vestido, nada de boné"; 3) "não fale mal de sua ex-empresa nem de seus antigos colegas"; 4) "seja verdadeiro, não venha com textos prontos"; 5) "explique como você será útil para aumentar os lucros da empresa".

Para Aldo Amaro dos Santos, de 54 anos, o problema é que as entrevistas ainda parecem distantes. "Para mim, a dificuldade mesmo é ser chamado. Ninguém me chama. Nem para a entrevista", conta ele, desempregado desde março.

Foram 20 anos organizando um arquivo até que... "A empresa fechou na pandemia, fui o último funcionário. No final eu não não era nem mais registrado", diz, num dos intervalos da aula. "Acho que conta muito a idade, desistem de me chamar quando veem 54 anos..."

Nos últimos meses, tem vivido do pé de meia que construiu com seu emprego anterior, onde ganhava R$ 1.600 por mês. "Minha sorte é que desde jovem sempre guardei um pouquinho aqui, outro ali. Mas uma hora o dinheiro acaba: eu tinha para um ano, mas já são sete meses parado", conta ele, que mora no Jardim Monte Azul (periferia da zona sul paulistana).

Então Aldo dos Santos decidiu que era melhor mudar de área para ter mais chances de receber um salário de novo - um porteiro ganha por volta de R$ 1.500 em São Paulo. "Acho que essa área de segurança e de portaria tem mais vagas e não se importam tanto com a idade", diz.

Na Barão de Itapetininga, em São Paulo, vagas de emprego são expostas na rua e em postes (imagem de 2019)

Para Tailane de Almeida, 24, o empecilho não é a idade, mas a falta de experiência. "Se você tenta entrar numa área nova, pedem experiência. Mas como a gente vai ter isso se ninguém te dá uma chance de entrar? Não dão oportunidade de você aprender...", diz ela, desempregada desde o início do ano.

De família pobre, Tailane parou de estudar no 6º ano do ensino fundamental. Trabalhou como operadora de telemarketing e, mais recentemente, em uma lanchonete de São João do Miriti, na Baixada Fluminense, onde vivia com a família. Mas o comércio fechou na pandemia de covid-19. "Vim para São Paulo pra tentar alguma coisa. No Rio estava muito difícil", diz.

Hoje ela mora no Tremembé (periferia da zona norte), onde divide a casa com outros familiares. Soube do curso de fiscal de piso por uma prima, que também emprestou os R$ 170 da inscrição. "Acho que é uma área que posso deslanchar, porque tem bastante vaga. A gente só coloca a mão onde consegue alcançar", diz.

Sem emprego garantido

Um dos sócios da escola Discimus é Fábio de Oliveira, de 50, que por duas décadas trabalhou na área de segurança. Em 2018, juntou-se a um primo e abriu a empresa de cursos no Edifício Claudina.

"Somos procurados por pessoas desesperadas por colocar alguma coisa no currículo. Eu diria que a maioria tem ensino médio incompleto, ou parou de estudar no fundamental", diz ele, que anota os dados dos alunos em uma planilha.

Segundo Oliveira, a procura pelos cursos aumentou durante a pandemia, principalmente depois que o governo Bolsonaro instituiu o auxílio emergencial de R$ 600, em abril do ano passado. "Muita gente pegou o dinheiro e pensou: 'preciso melhorar, fazer um curso, me atualizar", diz. Depois da diminuição do benefício para valores abaixo dos R$ 400, o movimento caiu um pouco, afirma.

Na escola Discimus há cursos de portaria e monitoramento eletrônico

"A maioria das empresas não exige experiência na área de portaria, mas só contrata se tiver certificado", explica Oliveira.

Porém, o diploma não significa emprego garantido, ressalta. "Um médico consegue emprego só com a faculdade? Eu acho que não. Mas é o que sempre digo para os alunos: a qualificação é o que vai te diferenciar, ou, pelo menos, é o que vai colocar você na média", explica.

Segundo Oliveira, embora algumas empresas terceirizadas procurem a Discimus em busca de candidatos, a escola não promete emprego certo para ninguém.

Empresas e escolas que condicionam uma vaga à compra de um curso, por exemplo, podem ser alvo de operações da polícia por fraude. Há diversos vídeos na internet sobre desempregados que caíram em golpes de empresas que garantiam trabalho se elas fizessem um curso em determinado local - ao final, a vaga não existia.

Produção de currículos

Embora menos procurado, o curso de informática básica (R$ 40 por quatro horas de aula) também reúne alguns desempregados ao longo do mês.

"Muita gente não tem computador em casa, às vezes não sabe nem ligá-lo. Mas, quando chega na empresa, os chefes pedem para a pessoa fazer uma planilha de Excel com nome dos visitantes do condomínio. A gente ensina o básico: abrir o Word, o Excel, fazer uma planilha", diz Oliveira.

Na aula, o professor Quiroga pergunta se Aldo dos Santos é quem faz o próprio currículo. "Minha irmã me ajuda", responde. "Sua irmã deve saber disso, mas, se não souber, explica que nunca colocamos um idioma estrangeiro se a pessoa estiver um nível abaixo do intermediário. Inglês básico, não. Melhor não colocar", explica.

Fazer o currículo dos desempregados é uma atividade que movimenta o comércio da Barão de Itapetininga. Algumas lan houses escrevem e imprimem o documento por R$ 2. Uma delas fica na "sala F" do próprio Edifício Claudina, três andares abaixo da Discimus.

Quem produz o resumo é Robson Silva, 60, que há 22 anos trabalha no prédio. Na verdade, a principal atuação dele é tocar uma empresa de contabilidade na mesma sala, mas aproveita o espaço para escrever e imprimir currículos aos desempregados - às vezes até de graça.

"O pessoal até tem acesso (a computadores), mas não sabe fazer. Hoje em dia, aparece pouca gente aqui, o pessoal da periferia não tem dinheiro para vir até o centro. Precisa de pelo menos uns R$ 30 pra condução e alimentação. Muita gente não tem. Faço muito currículo de graça aqui... O cara não tem dinheiro, eu pego e faço, e Deus ajude...", diz.

No edifício Claudina é possível fazer e imprimir um currículo por R$ 2

Silva também arrisca algumas dicas para um bom currículo. "O objetivo tem que ser claro: 'estou à disposição'. O que tiver, você pega", brinca.

"Se você tiver mais de 35 anos, coloca a data de nascimento, nunca a idade. O recrutador tem que ler vários currículos por dia. Ele bate o olho e vê '40 anos', já exclui... Se tiver a data de nascimento, ele vai ficar com preguiça de fazer a conta", diz.

'Futuro melhor'

Outra escola que oferece cursos de reciclagem profissional, o Instituto Educacional 6 de Maio, fica no primeiro andar da Galeria Boulevard, na rua 24 de Maio, paralela à Barão de Itapetininga.

Ali, o curso de porteiro e fiscal de piso custa R$ 70 por oito horas de aula. No período, o estudante aprende, por exemplo, os códigos repassados pelo rádio dos condomínios (QAP: na escuta; QRV: estou à disposição; QSM: repita a mensagem).

Depois de uma aula no início de outubro, a ex-vigilante Soraya Ribeiro, 55, desempregada desde fevereiro, exibiu orgulhosa à reportagem seu certificado de conclusão dos quatro cursos dos quais participou na manhã de um sábado.

Antes, ela já trabalhou de faxineira, ajudante geral, assistente de produção, vendedora de roupas e, no último emprego, foi segurança particular.

"Fiquei dez anos na empresa. Terminou o contrato, eles não renovaram e me dispensaram. Estou tentando uma nova área agora, na portaria, porque acho que nesse setor é mais fácil de conseguir emprego com minha idade. Parece que mulher não serve mais depois dos 40", diz.

Soraya mora em São Caetano, e hoje vive da ajuda de uma das filhas e do seguro-desemprego. Mas as parcelas do benefício estão chegando ao fim. "A gente se vira como pode, esperando um futuro melhor, dependendo da mão de Deus", afirma.

Renan Batista está desempregado desde 2014

Já Renan Batista, 38, foi ascensorista, telefonista, assistente administrativo e, nos últimos meses, detetive particular - até nessa área o serviço anda escasso.

Ele não tem um trabalho regular desde 2014, sobrevivendo de bicos e do salário mínimo que recebe como pensão por ser cadeirante. O custo de vida e o aluguel de sua casa no Capão Redondo (periferia da zona sul) estão pesando no bolso. As conta se avolumam, diz. Se a situação apertar, ele pretende voltar para a Bahia para viver com a família que tem por lá.

Então ele decidiu tentar a vida como porteiro ou controlador de acessos. "Estou investindo nessa área, porque tem mais vagas. Sou otimista: uma hora o emprego vai aparecer, tenho certeza", diz, segurando o certificado do curso.

Agora é a atualizar o currículo.

Leandro Machado, de S. Paulo para a BBC News Brasil em 6 novembro 2021

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Rebatizar e dobrar Bolsa Família é como recomendar que pobre continue pobre, diz 'pai' do programa no México

Foi em parte pelas mãos do economista mexicano Santiago Levy que o programa Bolsa-Família nasceu, há 18 anos. Em 2003, Levy foi à Granja do Torto, casa de campo presidencial em Brasília, para uma reunião com o então recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outros sete ministros da gestão petista. 

Ali, explicou as bases do seu Progresa (mais tarde rebatizado como Oportunidades), programa de transferência de renda condicionada implantado por ele no México seis anos antes e cujos princípios serviriam de base para o Bolsa Família.


"Lula optou pelo Bolsa Família e achei uma decisão muito boa. Mas, depois disso, tudo o mais que precisava ter sido feito não foi feito", diz Levy (Jefferson Rudy / Ag, Senado)

Naquele momento, Lula ainda nutria dúvidas entre apostar no Fome Zero, compêndio de políticas públicas contra a pobreza que se mostrariam pouco eficientes, ou unificar sob um único cartão, com escala nacional, benefícios como o vale-gás e o bolsa-escola.

"No fim ele optou pelo Bolsa Família e achei uma decisão muito boa. Fiquei feliz, claro. Mas, infelizmente, depois disso, tudo o mais que precisava ter sido feito em termos de rede de seguridade social no Brasil não foi feito. E o mesmo aconteceu no México, na Colômbia. Os políticos perceberam que o programa era muito eficaz e disseram a si mesmos: OK, é isso, e ponto", disse Levy à BBC News Brasil.

Poucos dias após o último pagamento feito aos beneficiários do Bolsa-Família, na última sexta-feira (29/10) Levy afirmou à BBC News Brasil que o maior problema na questão do combate à pobreza não está necessariamente no fim ou renomeamento do programa — já que o governo Bolsonaro trabalha para lançar o Auxílio Brasil —, mas no fato de que o país não tem respondido à questão central para compreender as raízes da pobreza não só internamente como em toda a América Latina: por que os pobres seguem sem conseguir emprego formal, que lhes daria acesso aos benefícios de seguridade social?

O economista mexicano Santiago Levy, criador do programa Progresa e estudioso de pobreza (Divulgação)

O economista, que foi vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) entre 2008 e 2018 e é referência no assunto, afirma que o Brasil e seus vizinhos de continente passam muito tempo discutindo programas de baixo custo, como o Bolsa-Família, e deixam de focar na informalidade do mercado de trabalho para os mais pobres, "o grande responsável pela pobreza na América Latina hoje".

Diferente do que afirmou o presidente Jair Bolsonaro na semana passada, para quem os 17 milhões de beneficiários "não sabem fazer quase nada e estão fora do mercado", Levy afirma que os pobres que recebem o auxílio trabalham, sim.

O ponto é que aqueles que se enquadram no corte de linha da pobreza do programa (renda per capita de até R$ 178 por mês) não conseguem ou não podem assumir um emprego formal. Ficam presos no que ele chama de "armadilha da pobreza" e "armadilha da informalidade" já que seus rendimentos informais somados ao valor do benefício tendem a ser superiores ao que conseguiriam de renda em um emprego formal.

Para exemplificar o que diz Levy cita uma pesquisa dos economistas Sérgio Firpo e Alysson Portella, do Insper, publicada em março de 2021 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. No trabalho, Firpo e Portella mostram que 37% da força de trabalho brasileira são hoje trabahadores informais e por isso estão excluídos dos sistemas de pensão e seguridade garantidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas. Muitos enfrentam subempregos.

"Se apenas rebatizar o programa e dobrar o benefício, o governo só vai aumentar a armadilha da pobreza", argumenta Levy, já que fica ainda mais difícil que o salário de um emprego consiga fazer frente ao rendimento obtido com trabalho informal e benefício.

O escopo do novo Auxílio Brasil, proposto pelo governo Bolsonaro, deve ser apresentado ainda esta semana. Preliminarmente e sem valores, o programa pretende dobrar o valor médio do Bolsa Família, que passaria a ser de R$ 400 e dar benefícios adicionais para crianças que pratiquem esportes, para jovens no fim do ensino médio e para quem consiga um emprego formal, entre outros.

Valores e condições, no entanto, seguem sendo dúvida, o que é criticado por quem estuda a área.

"É inacreditável, mas praticamente não se discutiu nada sobre o programa em si, tudo o que interessava era chegar a um número de beneficiários e o valor do benefício", disse à BBC News Brasil Fernando Veloso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, que se dedicou a dissecar os termos da Medida Provisória 1061/2021, que criou o Auxílio Brasil.

Presidente Jair Bolsonaro rodeado por parlamentares durante entrega da MP do Auxílio Brasil, em agosto; ainda não há clareza sobre regras do novo benefício (Cleia Viana / Câmara dos Deputados)

Nas próximas semanas, o Congresso e o governo precisam viabilizar os pagamentos do Auxílio Brasil aos beneficiários desassistidos pelo fim do Bolsa Família. Na visão de Levy, o esforço pode acabar sendo uma perda de tempo em termos de combate à pobreza.

Para ele, mexer no Bolsa Família para resolver a questão da informalidade e da pobreza é como tentar curar uma dor de estômago com remédio hipertensivo. Ele afirma que o país precisaria enfrentar uma reforma da previdência que tornasse o sistema menos regressivo, por exemplo, e uma reforma das leis trabalhistas que aumentassem o acesso à população ao mercado de trabalho formal.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Santiago Levy à BBC News Brasil, editada por clareza e concisão.

BBC News Brasil - O Bolsa família foi extinto ao completar 18 anos, seu último pagamento foi na sexta-feira da semana passada. O governo aparentemente criou um programa apenas para gastar mais, dobrar o recurso para a população atendida. O senhor tem dito que só o aumento do gasto não gera resultado inclusivo. Poderia explicar então o que deveria ser feito?

Santiago Levy - Todo programa que é direcionado, não só o Bolsa Família, mas todo programa com alvo claro tem que ser muito cuidadoso para que não vire uma armadilha. E isso tem a ver com o desenho do programa e também com os valores das transferências do programa. Suponha que você seja pobre e ganhe US$ 100 (R$ 560) de renda. Suponha que por isso o programa lhe dê um benefício de US$ 50 (R$ 280) por mês. Portanto, sua renda total é US$ 150 (R$ 840).

Se você conseguir um emprego que lhe pague US$ 130 (R$ 730) em vez de US$ 100, mas por isso você perca o benefício, você aceita o emprego? Não. Portanto, o governo deve ter cuidado, porque do ponto de vista social, você gostaria que essa pessoa conseguisse um emprego que pague à ela US$ 130 em vez de US$ 100, porque provavelmente é um emprego mais produtivo. Mas se você disser: "eu sei agora que você ganha US$ 130, não vou lhe dar mais o benefício", isso cria incentivos contra essa pessoa aceitar o emprego. A isso chamamos de armadilha da pobreza.

A mesma lógica também funciona pra questão da informalidade. Enquanto você for informal, você receberá o benefício. Mas se você conseguir um emprego formal, não terá mais essa transferência. Suponha que você tenha um emprego informal que pague US$ 100. E agora você consegue um emprego formal que paga US$ 140 (R$ 790). Mas se você for informal, receberá US$ 150: US$ 100 de sua própria renda e mais US$ 50 do benefício. Se você conseguir um emprego formal, sua renda total cai. Isso é chamado de armadilha da informalidade.

São dois exemplos de incentivos errados dos programas de transferência de renda. Em um caso, você não quer mudar porque, independentemente de ser formal ou informal, uma renda mais alta implica a perda do benefício. No segundo exemplo, mudar de informal para formal implica perda de renda. E quanto maior for a transferência do programa, maior será o risco de que você crie uma armadilha da pobreza ou armadilha da informalidade.

Portanto, se o governo dobrar as transferências do Bolsa Família para o Auxílio Brasil, ele estará aumentando os riscos de que os brasileiros pobres sejam pegos na armadilha da pobreza ou na armadilha da informalidade. Então não sei qual é a análise que o governo fez e não sei quais são as condições do novo programa, mas, em princípio, se você dobrar a transferência e não fizer mais nada, estará criando uma armadilha maior da pobreza para os pobres.

Você está dizendo a eles: "É melhor você continuar sendo pobre". Isso é exatamente o oposto do que os programas de transferência condicionada de renda deveriam fazer.

Santiago Levy critica o fato de o Brasil e seus vizinhos deixarem de focar na informalidade do mercado de trabalho para os mais pobres (Getty Images)

BBC News Brasil - Recentemente, Bolsonaro justificou a necessidade de dobrar o benefício do Bolsa Família porque os 17 milhões de beneficiários "não sabem fazer quase nada, eles nunca vão entrar no mercado de trabalho". É isso o que as pesquisas mostram?

Levy - Vamos separar as coisas aqui. Há evidências de que esses programas estão fazendo as pessoas não trabalharem? Muito pouca ou nenhuma. Esta é uma pergunta muito diferente de: esses programas estão impedindo as pessoas de conseguir empregos melhores? Existem duas questões distintas. Sim, os pobres estão trabalhando. Portanto, não é uma questão de trabalho. É uma questão de que tipo de trabalho. Quando falei sobre as armadilhas da pobreza e da informalidade, não estava dizendo que as pessoas não vão mais trabalhar, porque elas estão, sim, trabalhando. Mas os programas como Progresa e Bolsa Família não estão facilitando que as pessoas a consigam empregos melhores.

No caso particular do Brasil, como mostra o economista Sergio Firpo, o programa Bolsa Família tem uma regra que diz o seguinte: se a renda per capita da família for maior que um quarto de um salário mínimo, a família não pode se qualificar para o benefício. Suponha que haja uma família com três pessoas e uma das pessoas da família consiga um emprego formal.

O que acontece? Porque para conseguir um emprego com carteira assinada, paga-se pelo menos o salário mínimo. Você divide um salário mínimo por três e a renda domiciliar per capita é de um para três, maior do que um para quatro. Essa regra específica do programa Bolsa Família faz com que seja muito difícil para famílias pequenas, de três ou quatro pessoas, conseguirem empregos formais, porque se conseguirem um emprego formal, perdem o Bolsa Família. Não é impossível que elas consigam, claro. O trabalho supostamente informal paga US$ 100, o bolsa paga US$ 50. Se o emprego formal paga US$ 200 (R$ 1,1 mil), o beneficiário ainda vai optar por ele. Mas se pagar menos de US$ 150, já não vale a pena.

Então a regra importa muito, as regras do Bolsa Família eram discriminatórias contra o trabalho formal, e não contra o trabalho em si. A taxa de informalidade entre os pobres realmente aumentou. Não sei como esse Auxílio Brasil vai lidar com isso e por isso não quero emitir uma opinião específica sobre ele. Mas, em princípio, se o que governo fez foi mudar o nome do programa e depois dobrar a quantia, é claro que essa não é uma boa ideia.

BBC News Brasil - Você falou sobre o desafio da informalidade dos pobres. Embora não saibamos valores ou regras com exatidão, sabemos que o Auxílio Brasil vai oferecer um benefício adicional ao beneficiário que conseguir um emprego formal. Isso faz sentido?

Levy - Eu teria que saber os detalhes para analisá-los, mas do ponto de vista conceitual, esta é a melhor maneira de incentivar a formalidade? Minha resposta é não. Antes de mudar ou não o Bolsa Família ou Auxilio Brasil, você tem que responder a uma pergunta: por que trabalhadores pobres não conseguem um emprego formal? Não fizemos essa pergunta.

É muito improvável que sem essa resposta, mudar um programa social vá resolver [o problema da pobreza], porque o motivo pelo qual as pessoas não têm empregos formais não está relacionado ao Bolsa Família exclusivamente. Então, mexer no Bolsa Família pra fazer as pessoas arrumarem empregos formais nunca vai funcionar.

Informalidade entre os pobres aumentou e impulsiona pobreza ( Camila Domingues / Palácio Piratini)

BBC News Brasil - A informalidade é o maior motor de pobreza na América Latina hoje?

Levy - Sim, e esse desafio não vai ser respondido via Bolsa Família.

BBC News Brasil - O que deveríamos estar fazendo, então?

Levy - Esta é uma pergunta que tem uma resposta diferente em diferentes países, mas em geral, o problema é que o desenho das instituições que regulam o mercado de trabalho: previdência social, salários mínimos, regras de demissão, regras de contratação, todas as instituições estão na verdade muito mal planejadas.

O verdadeiro problema no Brasil é que a forma como a seguridade social funciona no Brasil é muito ineficaz porque seu sistema de pensões, seu sistema de seguro social é extremamente caro, porque o salário mínimo é muito alto e porque as regulamentações que as empresas enfrentam para contratar trabalhadores são muito complexas.

E então, além disso, você diz às pessoas: OK, se você não conseguir um emprego formal e não contribuir pro sistema de pensão, ainda assim nós lhe daremos uma pensão mínima gratuita. Portanto, é muito fácil. Você diz: vou colocar muitas barreiras para as pessoas entrarem na formalidade e vou dar benefícios gratuitos quando as pessoas são informais.

O que você acha que vai acontecer?

“Sistema de pensões é extremamente caro, porque o salário mínimo é muito alto e porque as regulamentações que as empresas enfrentam para contratar são muito complexas“, diz Levi

BBC News Brasil - Políticos e economistas progressistas e de esquerda dizem que a rede de seguridade social do Brasil deve ser mantida como uma defesa contra a pobreza para idosos, crianças, os mais necessitados. Mas o que você está dizendo é que de maneira geral isso também é uma armadilha?

Levy - Como projetado hoje, sim. O que a esquerda diz é certo no seguinte sentido: você precisa de uma rede de segurança social muito forte pra proteger as pessoas, os idosos, as crianças. Mas você escolheu o modelo errado pra fazer isso. As pessoas confundem uma crítica à rede previdenciária social com uma defesa de que ela deve ser abolida.

BBC News Brasil - E isso tem obstruído o debate sobre o que deveria ser feito?

Levy - Você tem que reformar esse sistema, mantendo os objetivos de proteção aos mais vulneráveis. Mas é preciso que funcione melhor. Vou dar um exemplo do problema: as empresas têm de pagar mais de 50% do valor do salário em impostos e encargos para contratar funcionários formais. Cerca de 25% disso vai para a previdência. Por outro lado, há a regra de que para receber uma pensão ou aposentadoria via sistema, é preciso contribuir por pelo menos 15 anos. Algumas pessoas não podem contribuir por 15 anos.

Você sabe o que acontece no Brasil com as pessoas que contribuem por 13 anos? Eles recebem uma pensão não-contributiva. Agora pense no dinheiro. Os trabalhadores que contribuíram por 8 anos, por 3 anos ou que não contribuíram nada, recebem o mesmo que quem contribuiu por 13 anos. Então, por que alguém deveria contribuir (especialmente pensando nos custos da contribuição)? Alguém acha que o trabalhador pobre do Brasil é burro? As pessoas são inteligentes, aprendem as regras e se ajustam às regras. Portanto, as regras estão erradas, não os objetivos.

BBC News Brasil - Como diferentes presidentes mexicanos lidaram com o Progresa/ Oportunidades e o que isso deveria ensinar ao Brasil?

Levy - O México foi pioneiro com o Progresa, mas o México não mudou o resto do sistema de proteção social, a forma como funciona a seguridade social, a calibragem do salário mínimo, as regulamentações sobre demissões, a forma como todos esses outros programas funcionam. Infelizmente, muitas pessoas confundem proteção social com um programa individual. A proteção social é muito maior do que um programa individual.

O Bolsa Família é um componente muito pequeno do sistema de proteção social brasileiro. As pessoas falam muito sobre isso, mas em termos de dinheiro é pouco. O mesmo acontece com o México. O Progresa é um pequeno componente do sistema de proteção social mexicano. E o que os governos não fizeram na América Latina foi dar uma olhada em todo o sistema de proteção social. Eles têm discutido programas individuais, não têm discutido todo o sistema.

Em 2003, bem no início do governo Lula, ele e seu gabinete ministerial me convidaram para conversar com eles sobre a experiência do Progresa. E então eu tive uma reunião com o presidente Lula e os ministros, expliquei para eles o que tinha acontecido com o Progresa, que começou seis anos antes, em 1997. No fim, ele optou pelo Bolsa Família e achei uma decisão muito boa. Fiquei feliz, claro.

Mas, infelizmente, depois disso, tudo o mais que precisava ter sido feito em termos de rede de seguridade social no Brasil não foi feito. E o mesmo aconteceu no México, na Colômbia. Os políticos perceberam que o programa era muito eficaz e disseram a si mesmos: 'OK, é isso, e ponto'.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington-DC, em 04.11.21 para a BBC News Brasil.