segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Investigados por fake news, empresários bolsonaristas têm ‘offshores’ em paraísos fiscais

Otávio Fakhoury declarou empresas milionárias à Receita Federal, conforme determina a lei; Marcos Bellizia não informou se ‘offshore’ é de conhecimento das autoridades brasileiras

Marcos Bellizia e Otávio Fakhoury durante evento de conservadores CPAC Brasil em 2019 (REPRODUÇÃO/FACEBOOK)

Os empresários bolsonaristas Otávio Fakhoury e Marcos Bellizia, investigados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no inquérito das fake news — que apura o financiamento e a disseminação de notícias falsas e ataques contra ministros da Corte —, são donos de offshores nas Ilhas Virgens Britânicas, paraíso fiscal no Caribe. Fakhoury, presidente do PTB de São Paulo e alvo da CPI da Pandemia, também possui uma empresa sediada no Panamá, cujos ativos chegam a 3 milhões de dólares. “Todas estão dentro da lei”, diz ele, que apresentou comprovantes do Imposto de Renda à Agência Pública.

As informações constam nos Pandora Papers, arquivos inéditos analisados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) em parceria com mais de 600 jornalistas de 151 veículos — dentre os quais, a Pública — em 117 países e territórios. Os 11,9 milhões de documentos foram obtidos a partir de bases de dados de 14 escritórios especializados na criação e gestão de offshores em todo o mundo.

Manter negócios e contas bancárias fora do país não é crime, desde que sejam declaradas anualmente à Receita Federal — a não ser em caso de saldos de contas correntes e aplicações financeiras inferiores a R$ 140, bens móveis abaixo de R$ 5 mil e ações e quotas de uma mesma empresa de valor menor de R$ 1 mil — e ao Banco Central, quando os ativos superam R$ 1 milhão.

Mesmo quando não é ilegal, a prática dificulta o rastreamento dos valores, como explica o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutor em Direito Tributário, Gustavo Fossati. “Todo dinheiro ou patrimônio relacionado à offshore é muito pouco ou quase nada monitorado, ao passo que se estivesse no Brasil seria altamente monitorado”, observou, falando em tese — ou seja, sem conhecimento dos pormenores dos casos e da identidade dos empresários. O advogado explica que, como regra geral, os países onde os investidores possuem offshores os protegem em relação aos sigilos bancário e fiscal.

Fakhoury durante depoimento à CPI da Pandemia no Senado em 30 de setembro (LEOPOLDO SILVA/AGÊNCIA SENADO)

Membro da CPI da Pandemia, o senador Humberto Costa (PT-PE) afirmou durante o depoimento de Otávio Fakhoury à comissão, na última quinta-feira (30/09), que parte do dinheiro que financia as fake news no Brasil vem de offshores, conforme apontam as investigações que obtiveram a quebra de sigilo bancário de sites e blogueiros acusados de disseminar notícias falsas.

O empresário Marcos Bellizia não informou à Pública se declarou sua empresa à Receita Federal ou ao Banco Central, conforme determina a lei. Ele se justificou dizendo que está afastado da militância bolsonarista e por isso não concede mais entrevistas, limitando-se a refutar as acusações. “As suas informações estão erradas”, disse primeiro por mensagem, o que repetiu ao telefone. Tentamos contato ainda com Alexandre Bellizia, irmão de Marcos e também apontado como dono da offshore, mas não obtivemos resposta.

Já Otávio Fakhoury afirmou que faz as declarações anualmente e apresentou à reportagem seus comprovantes de Imposto de Renda, referentes ao ano de 2019, que incluem suas duas offshores. O empresário disse que mantém os negócios no exterior como uma estratégia de “planejamento fiscal”, para fugir dos tributos brasileiros. “Você faz investimento dentro dela [da offshore] e ela só é tributada quando você traz o dinheiro de volta do Brasil”, explicou. O imposto cobrado no Brasil pode chegar a até 27% do capital investido no exterior pela pessoa física.

As offshores de Fakhoury

A primeira offshore de Fakhoury, a Violett Investments, foi constituída em maio de 2009 nas Ilhas Virgens Britânicas, com capital inicial de 50 mil dólares. Ela foi aberta com a assessoria do Trident Trust, um dos maiores provedores de serviços de criação e gestão de offshores do mundo.

No momento da abertura da empresa, Faka — como é conhecido pelos amigos —, com 36 anos de idade, havia acabado de perder o emprego no banco de investimentos Lehman Brothers, até então o quarto maior dos EUA, que faliu devido à crise econômica de 2008 no país, conhecida como crise do subprime. À época, ele era o diretor de câmbio do banco norte-americano no Brasil.

O empresário contou que todo o dinheiro que ganhou no período em que morou fora do país, de 2000 a 2005, está nesta offshore, além de recursos enviados daqui. Com esse dinheiro ele diz que investe “no mundo inteiro”. “Lá é só onde está a empresa. De lá você pega e manda o dinheiro para uma corretora nos Estados Unidos, uma corretora na Europa e compra ações”, explicou, acrescentando que também investe em renda fixa, moedas, commodities, ouro e contrato futuro de ouro e petróleo. “Eu faço do meu telefone”, disse, em tom de brincadeira.

Em janeiro de 2017, quando já tocava os negócios imobiliários da família no Brasil, passou a ser acionista também da Amboy Finance SA, criada em 2004 pelo escritório de advocacia panamenho Alemán, Cordero, Galindo & Lee (Alcogal), responsável pela abertura e manutenção de quase metade das empresas de políticos que aparecem nos Pandora Papers. A offshore era de propriedade de seu pai, Oscar Fakhoury, que faleceu em 2016 e a deixou de herança para o filho e a esposa, Dora Carone Fakhoury, mãe de Otávio.

A empresa tinha um capital de 6,6 milhões de dólares (de acordo com avaliação feita em 31 de dezembro de 2016), alocados no UBP Bank, em Genebra, na Suíça. Esse dinheiro, dividido em partes iguais, foi transferido para outras duas empresas, ambas abertas por intermédio do Alcogal: a Resby Finance SA, de Otávio, criada em janeiro de 2017; e a Calmoran Overseas SA, de Dora, que já existia desde julho de 2015. Faka também apresentou à reportagem a declaração de imposto de renda da offshore da mãe referente a 2019. A Amboy foi dissolvida em outubro de 2017.

Otávio Fakhoury recebeu a reportagem da Agência Pública no escritório da sua família na Avenida Faria Lima, em São Paulo (GUILHERME PETERS/AGÊNCIA PÚBLICA)

Irritado ao ser questionado sobre suas empresas offshore, Fakhoury desaconselhou a publicação da reportagem. “Já que você está fazendo jornalismo investigativo, acho que uma boa conclusão é você fazer um julgamento do que achou da minha pessoa”, disse durante entrevista concedida no dia 10 de setembro em seu escritório na Avenida Faria Lima, principal centro financeiro de São Paulo. “Um cara transparente, que não tem nada a esconder. Que tem plena convicção de que sempre agiu dentro da moralidade e da legalidade, das duas coisas, às vezes as coisas são legais, mas se não passa no meu crivo moral, eu não faço”, completou.

Faka alega que foi o responsável por regularizar a offshore herdada do pai junto à Receita Federal, que antes não era declarada, de acordo com ele. “Pagamos uma multa no Banco Central, se eu não me engano”, conta. “O recurso era muito antigo, [existia] desde 1980. Não é lavagem de dinheiro, não é crime, entendeu? É da época que não tinha outra maneira”, justifica.

O despertar político de Faka

Otávio Fakhoury diz ter herdado da família os valores conservadores. Em entrevistas e nas redes sociais, ele se orgulha da atuação que seu pai e tio, Oscar e Roberto Fakhoury, estudantes do Mackenzie, tiveram na chamada “batalha da Maria Antônia” durante a ditadura militar. O episódio marca o confronto, que culminou em uma morte e dezenas de feridos, entre estudantes da faculdade particular como o pai e o tio de Faka, simpáticos ao regime, e os da Universidade de São Paulo, acusados de serem “comunistas”.

Inspirado nos ensinamentos de Olavo de Carvalho, ele despertou para a militância política em 2013, aos 40 anos de idade, ao assistir de “camarote”, da janela de seu escritório às manifestações que marcaram o país naquele ano. Desde então, ele apoia e financia movimentos que estiveram ao lado de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.


Imagem de capa do Twitter de Fakhoury mostra seu pai e tio durante manifestações a favor da ditadura militar (REPRODUÇÃO/TWITTER)

Fiel aliado do presidente, o empresário foi apontado pela CPMI das fake news na Câmara dos Deputados, instaurada em setembro de 2019, como suspeito de financiar páginas e perfis associados com a disseminação de informações falsas durante a campanha de 2018 e a orquestração de ataques em massa contra opositores políticos. Em 2020, ele virou alvo dos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos — este último também aberto pelo STF e arquivado em julho de 2021, após pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras.

O ministro Alexandre de Moraes, no entanto, abriu nova linha de apuração para verificar a existência de uma organização criminosa digital voltada a atacar as instituições, que incluiria investigações sobre a participação de Fakhoury.

Dados obtidos junto à CPI da Pandemia e revelados pela Pública mostram que o empresário financiou também outras organizações conservadoras, como o Instituto Força Brasil, do qual é vice-presidente. De acordo com as documentos, ele transferiu R$ 310 mil para a entidade, investigada por ter participado das negociações paralelas de vacinas junto ao Ministério da Saúde e por ter disseminado notícias falsas sobre vacinação, uso de máscaras e “tratamento precoce” contra a covid-19.

Ainda segundo informações levantadas pela CPI, Fakhoury repassou R$ 50 mil para o Centro de Estudos da Liberdade, ou Farol da Liberdade, idealizado pelos irmãos Abraham e Arthur Weintraub — ex-ministro da Educação e ex-assessor da Presidência, respectivamente —, e doou R$ 65 mil para o Instituto Conservador Liberal, fundado pelo deputado federal e filho 03 do presidente da República, Eduardo Bolsonaro (PSC-SP). Em seu depoimento à comissão, Fakhoury se descreveu como “filantropo” e disse que apoia entidades nas quais acredita. Dentre as organizações às quais doou recursos ao longo da sua história de militância, também está o Nas Ruas, movimento ao qual Marcos Bellizia fez parte.

No Nas Ruas, Bellizia foi responsável por organizar manifestações a favor de Jair Bolsonaro na Av. Paulista em São Paulo (REPRODUÇÃO/FACEBOOK)

As empresas de Bellizia

Formado no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de São Paulo (CPOR) em 1989, Bellizia se aproximou da militância bolsonarista durante a pré-candidatura de Jair Bolsonaro para a presidência da República, entre 2017 e 2018. O empresário fundou o Brasil Acima de Tudo, grupo responsável por convocar manifestações a favor da candidatura de Jair Bolsonaro na cidade de São Paulo durante a campanha eleitoral, e que depois se fundiu com o Nas Ruas, movimento criado em 2011 pela hoje deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP).

Bellizia atuou como porta-voz do Nas Ruas, ao lado do também empresário Tomé Abduch, até maio de 2020, quando se tornou alvo do inquérito das fake news no STF. Fora da militância política, ele trabalha como consultor de empresas, tendo atuado em multinacionais como AmBev e Nestlé em seus primeiros anos de carreira.

De acordo com os documentos do Pandora Papers, Marcos Bellizia e seu irmão Alexandre são beneficiários finais da empresa Duncan Investors Ltd, constituída em 2012 nas Ilhas Virgens Britânicas — ou seja, são eles quem recebem os rendimentos da empresa no exterior. “Você pode ter uma cadeia societária com várias camadas, mas ao final de qualquer cadeia societária, por mais complexa que seja, por mais jurisdições que envolva, você tem sempre uma pessoa de carne e osso. Esse é o UBO — ultimate beneficial owner, ou beneficiário final”, aponta um segundo especialista em direito tributário ouvido pela reportagem, que preferiu não se identificar por não conhecer os detalhes do caso.

A Ducan Investors também foi criada pelo escritório de advocacia Trident Trust e atua na área de investimentos financeiros. De acordo com os documentos obtidos pelo ICIJ e analisados pela Pública, o capital da empresa é composto por ações e fundos de investimento não identificados, operando através de uma conta no banco suíço UBP.

Além dos irmãos Bellizia, consta como acionista da Ducan Investors Ltd a SG Consultoria, firma brasileira sediada em São Paulo, que tem os irmãos como sócios. Ela é a principal acionista da offshore, com 8,9 mil participações. Marcos e Alexandre têm 5 mil participações cada um. Não foi possível identificar o montante em dinheiro equivalente ao seu capital.

A SG possui um capital social de R$ 3 milhões, segundo a Receita Federal no Brasil. Fundada em dezembro de 2010, seu objeto social é: outras sociedades de participação, exceto holdings; consultoria em tecnologia da informação; tratamento de dados; provedores de serviços de aplicação e serviços de hospedagem na internet.

A direção da Duncan Investors está a cargo de outra offshore, a Darthmouth Securities Ltd, também sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. A empresa, por sua vez, é diretora de mais de 50 offshores em países como o Panamá e o Reino Unido, conforme registro da OpenCorporates.

O advogado explica que ter outras empresas estrangeiras na diretoria de offshores é comum, por facilidades burocráticas e de idioma, mas que a estratégia também pode ser usada como uma “camada de privacidade” para os verdadeiros donos. “Não é sigilo, não vai ocultar quem é o sócio da empresa, mas vai deixar menos exposto. Se você amanhã olhar essa empresa fazendo um investimento e pegar o contrato social dela, não vai necessariamente saber quem é o beneficiário final. Ou seja, fica menos escancarado, fica menos na vitrine”, diz.

Caminhos cruzados

Desde que passou a ser investigado no inquérito das fake news, Bellizia tem se mantido longe dos holofotes. Em 26 de maio de 2020, afastou-se do movimento Nas Ruas. “Acredito que eu não me encaixo mais no projeto do NR”, escreveu em suas redes sociais, anunciando sua associação ao movimento Avança Brasil, que se apresenta como o “maior movimento conservador do Brasil”. Seu nome aparece como parte do Conselho Administrativo da organização, ao lado do autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, mas o empresário não participa de manifestações ou eventos relacionados.

No dia seguinte ao anúncio, sua casa foi alvo de busca e apreensão no âmbito do inquérito das fake news, do STF. Bellizia teve seu celular, computadores e documentos apreendidos pela Polícia Federal e suas redes sociais foram bloqueadas por ordem judicial. “Eu sofro censura. Tive minha rede no Facebook cancelada, eu tive meu Twitter cancelado”, disse, em entrevista ao programa “Café Vip — Nos Bastidores da Política”, produzido pelo PTB e exibido no YouTube em fevereiro de 2021.

Era a primeira vez que o empresário visitava a sede do partido em São Paulo. Alguns meses depois, ele seria nomeado Secretário de Finanças do diretório estadual da legenda. Na ocasião, Bellizia anunciou que está escrevendo um livro sobre a sua experiência como investigado pela Polícia Federal. “Um diário sobre o que acontece com a vida de uma pessoa depois que ela começa a ser perseguida”, definiu, ventilando como possível título para a obra “Castigo sem crime”, um trocadilho com o clássico “Crime e Castigo”, do escritor russo Fiódor Dostoiévski.

Para Bellizia, as investigações do STF fazem parte de uma grande conspiração. “Por que foi feito esse inquérito? As mortes da covid-19 iriam aumentar, o desemprego iria aumentar. E as pessoas — que eu não posso falar quem — imaginavam que a popularidade do presidente da República Jair Bolsonaro iria cair e ia ter a cassação do presidente da república pelo TSE”, conjecturou durante a entrevista ao programa do PTB, levantando suspeitas sobre seus ex-colegas de ativismo. “Curiosamente nenhuma outra pessoa do Nas Ruas foi envolvida no inquérito. Realmente é muito estranho porque uma pessoa vai parar no inquérito e as outras não”, disse.

Se o inquérito fez Bellizia se afastar do Nas Ruas, por outro lado, ele o aproximou de outras pessoas investigadas por fake news, como Otávio Fakhoury.

Faka foi apoiador de dois dos movimentos dos quais Bellizia fez parte — Nas Ruas e Avança Brasil — tendo financiado caminhões para manifestações de rua organizadas por eles.

Ao lado de Roberto Jefferson, Otávio Fakhoury tomou posse como presidente do diretório paulista do PTB em julho de 2021 (PTB SÃO PAULO)

Foi também Fakhoury que o apresentou ao ex-deputado Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB. “Um dia, o Otávio me ligou e disse ‘vem aqui no meu escritório que o Roberto Jefferson vem aqui.’ E eu fiz questão de conhecê-lo, porque eu acho ele o máximo. Eu acho que o Brasil deve a ele a democracia”, contou na mesma entrevista ao PTB.

Jefferson, que hoje se encontra preso no âmbito do inquérito das milícias digitais — uma continuidade do inquérito dos atos antidemocráticos —, é amigo familiar dos Fakhoury desde 2002. “O meu pai teve uma experiência política com Jefferson onde ele honrou a palavra. Então ele falou ‘filho, política em Brasília é assim, político tem todas, mas esse cara aí, ele honra a palavra’”, contou o empresário.

Otávio continuou mantendo contato com Jefferson, com quem compartilha ideários considerados antidemocráticos. Em conversa no Whatsapp com o ex-deputado, em 12 de maio de 2020, Fakhoury compartilhou uma “proposta de plebiscito para dissolver a alta instância do judiciário” ao que o petebista respondeu com ideia ainda mais radical de demitir os 11 ministros do STF, além de cassar todas as concessões de rádio e TV ligadas à rede Globo. “Isso quer dizer o seguinte, amigo: ato institucional. Só que eu não posso dizer isso dessa forma, porque isso me leva pra cadeia”, disse em áudio.

A partir de 2020, sob a presidência de Roberto Jefferson, o PTB deu uma guinada à extrema direita. O ex-deputado, conhecido por seu envolvimento no escândalo do Mensalão, reformulou o estatuto do partido, incluindo pautas conservadoras como a “criminalização da cristofobia”, a “proibição da legalização da maconha” e a “defesa da vida desde a concepção”. Para Fakhoury, “o PSL era para ser esse partido, não deu certo, depois o Aliança [do Brasil] não saiu”.

Apesar de estar no meio político há anos, tendo ocupado cargo na executiva do PSL, o PTB é o primeiro partido ao qual Fakhoury se filiou. “É o único partido que eu vi com o estatuto virado mais para direita. O estatuto mesmo, como regra”, explica. Após a prisão do ex-deputado Roberto Jefferson, Fakhoury, como presidente do diretório em São Paulo, se tornou um dos principais porta-vozes da legenda.

Bellizia também fez parte da nova diretoria executiva do PTB em São Paulo, ao lado de Fakhoury. Seu nome ainda consta no site do partido como Secretário de Finanças do diretório paulista, mas uma pessoa ligada à legenda disse que ele foi substituído no cargo pelo também empresário Patrick Folena, líder do movimento Avança Brasil. À reportagem, Bellizia afirmou não atuar mais na sigla, mas não explicou os motivos do seu afastamento.

Marcos Bellizia, Luciano Hang e Otávio Fakhoury se aproximaram após virarem alvos de inquéritos no STF (REPRODUÇÃO/TELEGRAM)

Outro investigado que se aproximou de Marcos Bellizia desde o início do inquérito das fake news foi Luciano Hang, dono das lojas Havan. “Ele me falou: ‘Bellizia, o melhor certificado de patriota é estar no inquérito. Porque quem não está no inquérito é que você tem que desconfiar’”, relatou Bellizia também em entrevista ao programa do PTB.

Os dois também já se conheciam da militância bolsonarista. Hang é apoiador declarado de Jair Bolsonaro e foi parceiro do Nas Ruas enquanto Bellizia fazia parte do movimento. Os dois participaram de lives e manifestações a favor de pautas governistas.

Já Fakhoury conta que só passou a conhecer Hang depois que ambos foram incluídos nos inquéritos do STF, apesar de estarem juntos em grupos de Whatsapp de apoio ao presidente. Acompanhado de Bellizia, ele fez uma visita à sede da Havan, na cidade de Brusque, em Santa Catarina, em abril deste ano. A reunião marcou o primeiro encontro entre Hang e Faka.

Além de serem alvos de investigações no STF, os três empresários têm em comum o fato de serem donos de offshores em paraísos fiscais. Reportagem da Revista Crusoé mostrou que Hang se associou a uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, às vésperas das eleições presidenciais de 2018.

Em depoimento à CPI da Pandemia, Luciano Hang admitiu ser dono de empresas no exterior. “Temos contas no exterior, offshore no exterior, devem ser duas ou três, todas declaradas na Receita Federal”, afirmou. A comissão no Senado Federal investiga se o empresário usou suas offshores para financiar blogueiros bolsonaristas fora do país.

Colaboraram Laura Scofield e Raphaela Ribeiro.

Esta é uma reportagem da Agência Pública e foi publicada originalmente no EL PAÍS.

Na investigação do Brasil participaram: Anna Beatriz Anjos, Alice Maciel, Yolanda Pires, Raphaela Ribeiro, Ethel Rudnitzki e Natalia Viana (Agência Pública); Guilherme Amado e Lucas Marchesini (Metrópoles), José Roberto Toledo, Ana Clara Costa, Fernanda da Escóssia, Allan de Abreu (Piauí); Fernando Rodrigues, Mario Cesar Carvalho, Guilherme Waltenberg, Tiago Mali, Nicolas Iory, Marcelo Damato e Brunno Kono (Poder360) e Marina Rossi, Regiane Oliveira (EL PAÍS)

ALICE MACIEL / ANNA BEATRIZ ANJOS / ETHEL RUDNITZKI (AGÊNCIA PÚBLICA) para o EL PAÍS, 03 OCT 2021 - 19:15 BRT

Brasileiros com ‘offshores’ nos ‘Pandora Papers’ devem à União 16 bilhões de reais em impostos

66 dos maiores devedores brasileiros de impostos, muitos investigados por esquemas de corrupção, mantêm milhões depositados fora do Brasil, em paraísos fiscais.

O empresário Eike Batista e o 'influencer' Jonathan Couto aparecem no Pandora Papers.

Os documentos dos Pandora Papers mostram que 66 dos maiores devedores brasileiros de impostos, cujas dívidas somam 16,6 bilhões de reais, mantêm offshores com milhões depositados em paraísos fiscais. Dentre eles, estão desde o empresário Eike Batista e o inventário do ex-deputado José Janene, estrela do Mensalão e morto em 2010, até desconhecidos do público em geral, mas que figuraram em esquemas de corrupção sob investigação da Polícia Federal.

Offshores são empresas em paraísos fiscais, muito populares entre as pessoas mais ricas do mundo. Elas são criadas por motivos que vão desde economizar no pagamento de impostos —um drible fiscal suavemente chamado de eficiência tributária — até a proteção de ativos contra o risco político ou confiscos, como o que ocorreu no Brasil em 1990. Por estarem localizadas em países com pouca transparência e fiscalização, as offshores também são usadas por quem quer ocultar patrimônio ou por corruptos ou integrantes de organizações criminosas que desejam esconder dinheiro sujo. No Brasil, é permitido ter offshores, desde que declaradas à Receita Federal e, quando seus ativos ultrapassam 1 milhão de dólares, ao Banco Central.

Quando uma pessoa tem seu nome inscrito na Dívida Ativa, o Governo Federal pode pedir ao Judiciário a penhora de bens e a retenção de valores para tentar forçar o pagamento da dívida. Isso é mais difícil em caso de bens no exterior, mesmo quando os bens são declarados.

Para chegar à lista, a reportagem selecionou os nomes de todos os devedores com débitos somados superiores a 20 milhões de reais inscritos na Dívida Ativa da União. Depois disso, esses nomes foram buscados no banco de dados do Pandora Papers. Os resultados foram analisados para excluir casos de homônimos. Ao fazer o cruzamento, o Metrópoles considerou apenas as dívidas em nome da pessoa física e não as relacionadas a eventuais empresas detidas por essas pessoas. Isso porque muitas vezes as dívidas de pessoas jurídicas também são inscritas para as físicas.

Os nomes identificados foram contatados, seja por meio da assessoria de imprensa, seja por outros canais, para que informassem se declararam à Receita Federal e ao Banco Central a abertura da offshore e explicassem a razão de terem criado as empresas.

Leia a seguir alguns dos principais casos de devedores com offshores citados em documentos do Pandora Papers. E, abaixo, a lista completa dos 65 devedores.

Eike Batista

O empresário que chegou a ser a pessoa mais rica do Brasil tem hoje um débito de 3,8 bilhões de reais inscrito na Dívida Ativa. O nome dele está ligado a duas offshores diferentes, a Farcrest Investment e Green Caritas Trust.

A Farcrest foi criada em abril de 2006. Na época, ele ainda estava longe do pico na sua carreira, em 2012, quando foi listado como o sexto homem mais rico do mundo.

A Green Caritas Trust, criada em dezembro de 2011, tinha como objetivo declarado repassar 2,5 milhões de euros para a filantropia. Os recursos viriam de um outro trust no Panamá, o Blue Diamond Trust, que detinha participações em mais de oito empresas. Trusts são estruturas patrimoniais utilizadas na proteção de ativos. Na prática, ele funciona como um contrato entre um trustee, que administra o patrimônio, e o beneficiário, que é o dono dos bens. O documento de criação da offshore aponta a intenção de fazer repasses para a Unicef e outras caridades.

A declaração da finalidade do Green Caritas fez com que fosse mais suave a diligência de risco feita sobre Eike pela Asiaciti Trust, empresa que conduziu os trâmites burocráticos para criar a offshore. “Dado o baixo valor dessa estrutura e o fato de que é puramente para caridade não há necessidade de diligências adicionais”, diz o documento.

Procurado por meio de seu advogado, Eike Batista não respondeu até o fechamento desta reportagem. As transferências para caridade, portanto, não foram confirmadas.

Claudio Rossi Zampini

O empresário Cláudio Rossi Zampini possui negócios de ramos diversos em São Paulo, como a CRZ Telecomunicações e a Flamingo Táxi Aéreo. Zampini aparece diretamente ou indiretamente no quadro social de nove companhias. Ele também possui débitos somados de 1,3 bilhão de reais inscritos na Dívida Ativa da União, referentes a inscrições entre 2014 e 2019.

Zampini aparece como o dono de três offshores criadas entre 2008 e 2011 nas Ilhas Virgens Britânicas. Não há muitas informações sobre a mais antiga, a Lizza Properties, estabelecida em março de 2008, nem sobre a mais recente, Encinita Holdings, criada em 2011.

A segunda é a Flamingo Jet Air, que aparece nos documentos do Pandora Papers como propriedade da Flamingo Táxi Aéreo, uma das empresas de Zampini em São Paulo. O empresário aparece como diretor da offshore. Essa companhia foi estabelecida em 2010. Em 2017 ele informou que a ela detinha 650.000 dólares em um portfólio de investimentos mantido no banco Merril Lynch Miami, nos Estados Unidos.

No mesmo formulário em que ele informa os valores, Zampini afirma ser o dono do Hotel Braston, em São Paulo. Entretanto, no quadro social da empresa não aparece o nome de Claudio e sim o de Andrea Regina de Souza Freiberg e a Blue Cloud Participações. A Blue Cloud por sua vez é de propriedade de uma offshore, a Blue Cloud Enterprises Inc., com sede nas Ilhas Virgens Britânicas.

As relações entre a Blue Cloud e Zampini são abordadas em um processo de 2011 do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Nele, é apontada que a criação da Blue Cloud seria um “subterfúgio para para dissimular a gerência de fato exercida por Claudio Rossi Zampini”. Por conta desse entendimento, o hotel foi incluído no polo passivo de ação sobre a dívida de Claudio. O documento agora revelado, em que o próprio afirma ser o dono do hotel, corrobora o entendimento da Justiça.

Questionado sobre a razão para manter as offshores e por que as ocultou, Claudio não respondeu até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.

Jonathan Couto de Souza

Jonathan Couto de Souza é mais conhecido por sua carreira como cantor e influenciador digital do que por sua atividade empresarial na Clean Indústria e Comércio de Cigarros, na qual possui 21% do capital. Ele ficou conhecido por conta de seu casamento, encerrado neste ano, com a influenciadora Sarah Pôncio, casal que é figura frequente nos sites de sobre celebridades.

Souza tem uma dívida de 1,2 bilhão de reais inscrita na Dívida Ativa da União e o acervo possui uma offshore, a Ranfed Investments. Criada em 2016, a empresa não consta na declaração de bens feita por Jonathan em 2020, quando se candidatou para o cargo de vereador no Rio de Janeiro. Procurado por meio de sua produtora, ele não respondeu. O espaço segue aberto para manifestações.

Gustavo Amaral Rossi

Gustavo Amaral Rossi é empresário do setor de postos e tem 543 milhões de reais inscritos na Dívida Ativa da União. Ele foi investigado na operação Rosa dos Ventos, da Polícia Federal, cujo inquérito foi instaurado no início de 2016. A investigação apurava um suposto esquema do pai dele, Miceno Rossi Neto, para sonegar impostos e lavar dinheiro em vendas de combustível, além de crimes contra a organização do trabalho, evasão de divisas, e fraudes envolvendo pedras preciosas e títulos da dívida pública. O esquema envolveria o uso de empresas laranjas para evitar o pagamento de impostos e, assim, aumentar os lucros.

Segundo documentos do Pandora Papers, sua offshore, a Infinity Inc, com sede nas Ilhas Seychelles, foi aberta em dezembro de 2018, quando ele já era investigado pela PF. No processo de diligência conduzido antes da abertura da offshore, a SFM, empresa de Dubais especializada em criar offshores, descobriu que ele tinha sido alvo de uma investigação de corrupção da Polícia Federal, o que não foi um impedimento para que ele conseguisse abrir a empresa.

Procurado por meio da sua advogada, Amaral Rossi não respondeu ao Metrópoles. O espaço segue aberto para manifestações.

Alberto Davi Matone

Um dos usos comuns para offshores é para a compra de de imóveis. Foi o que fez Alberto Davi Matone, fundador do Banco Matone, vendido para a J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Baptista em 2011 e mais tarde transformado no banco Original. Com dívidas com a União que totalizam 92,8 milhões de reais, Matone criou em janeiro de 2013 a Northbush Associates, cujo único ativo é uma mansão em Coral Gables, cidade na Flórida, comprada por 1,8 milhão de dólares em junho de 2014.

O registro de imóveis do condado de Miami-Dade, onde fica Coral Gables, não aponta nenhuma transação após essa data, o que indica que ela ainda é da propriedade de Matone. Além disso, a Northbush Associates aparece como proprietária da casa.

O lote tem mais de 2.000 metros quadrados, sendo 516 deles de área construída. A casa de dois andares, cinco quartos e cinco banheiros é uma relíquia cuja construção começou há quase 100 anos, em 1926. Matone não respondeu aos questionamentos do Metrópoles. O espaço segue aberto para manifestações.

Inventário de José Janene

O ex-deputado José Janene, morto em 2010, aparece como o representante de duas offshores sediadas no Panamá, a Corliss Enterprises e a Kleman Investments. Ambas foram criadas em junho de 2003 quando ele iniciava o terceiro mandato na Câmara dos Deputados.

Janene ficou conhecido por ser um dos pivôs do escândalo do Mensalão, o que quase levou à cassação do seu mandato. Ele acabou absolvido pelo plenário da Câmara em uma votação secreta no fim de 2006.

Caso estivessem declaradas no Brasil, as offshores precisariam estar declaradas no inventário de Janene. A reportagem tentou contato com o representante legal da viúva de Janene para esclarecer a questão, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto para manifestações.

Mario Kenji Erie

O empresário Mario Kenji Erie, dono das lojas de roupas Makenji —muito forte na Região Sul, com 19 unidades espalhadas por Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina— foi uma das figuras centrais de uma investigação de corrupção da Polícia Federal, a operação Alcatraz, de 2019. A investigação apura suspeitas de corrupção, lavagem de dinheiro e fraude em procedimentos licitatórios na compra de equipamentos eletrônicos pelo governo de Santa Catarina.

Há duas offshores de Mario no banco de dados do Pandora Papers: a Flufnstuf Services e a MRKG Enterprises. A primeira foi criada em 2016 e, segundo declarações prestada, teria ativos de somente 10.000 dólares. O objetivo seria manter investimentos financeiros. Já a MRKG foi criada no ano seguinte, com o mesmo propósito. Não há uma estimativa dos valores transferidos para a companhia, mas o documento aponta que os recursos vieram de rendimentos obtidos com seu trabalho e de aplicações financeiras.

Kenji Erie não respondeu aos questionamentos do Metrópoles. O espaço segue aberto para manifestações.

Corina de Almeida Leite

Dona da Cia Agropecuária Monte Alegre, especializada em confinamento de gado e com diversos prêmios internacionais, e sócia da Adecoagro, empresa de Luxemburgo que é uma das maiores em atuação no agronegócio do Centro-Oeste, a empresária Corina de Almeida Leite tem 27,4 milhões de reais inscritos na Dívida Ativa da União. Corina mantém uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas desde 2006, a Etiel Societé Anonyme, que, segundo um documento do Pandora Papers, detinha 500.000 dólares em ações da Adecoagro em 2016.

De acordo com Corina, a offshore está “devidamente declarada na Receita Federal e no Banco Central do Brasil”. A dívida, por sua vez, “está sendo discutida na Justiça, onde foi julgada pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região e anulada, por ter sido inscrita indevidamente, referente a um financiamento que já tinha sido pago”. Segundo ela, nada se refere à offshore. Em consulta feita em 22 de setembro deste ano, o nome dela continuava na Dívida Ativa.

Na investigação do Brasil participaram: Anna Beatriz Anjos, Alice Maciel, Yolanda Pires, Raphaela Ribeiro, Ethel Rudnitzki e Natalia Viana (Agência Pública); Guilherme Amado e Lucas Marchesini (Metrópoles), José Roberto Toledo, Ana Clara Costa, Fernanda da Escóssia, Allan de Abreu (Piauí); Fernando Rodrigues, Mario Cesar Carvalho, Guilherme Waltenberg, Tiago Mali, Nicolas Iory, Marcelo Damato e Brunno Kono (Poder360) e Marina Rossi, Regiane Oliveira (EL PAÍS). Publicado por EL PAÍS, em 04.10.21

Luciano Hang, o empresário patriota que dribla os impostos no Brasil

Investigação feita pelo EL PAÍS nos arquivos do ‘Pandora Papers’ revelou que o empresário manteve por quase vinte anos uma empresa em um paraíso fiscal no valor de 112,6 milhões de dólares.

O empresário bilionário brasileiro Luciano Hang (Brusque, 58 anos) se define como “patriota que luta pelo Brasil” em sua conta no Instagram. Dono de uma fortuna de 14,3 bilhões de reais, segundo a revista Forbes, Hang orgulha-se do número de empregos que gera no Brasil por meio de sua rede varejista, a Havan. Também é dono de agência de publicidade, postos de gasolina e até usina hidrelétrica. Hang adota um guarda-roupa verde e amarelo espalhafatoso para provar seu amor à pátria. O empresário só não se veste de patriota quando o assunto é o retorno que os impostos podem proporcionar ao país.

Uma investigação feita pelo EL PAÍS e outros veículos brasileiros nos arquivos do Pandora Papers revelou que o empresário manteve por quase vinte anos uma empresa em um paraíso fiscal, no valor de 112,6 milhões de dólares, conforme constava em um extrato de outubro de 2018 (cerca de 416 milhões de reais na época). Por todo esse tempo, Hang não comunicou ao Governo brasileiro sobre a existência de sua empresa, o que configura crime de sonegação fiscal. Os arquivos do Pandora Papers reúnem 11,9 milhões de documentos confidenciais de 14 sociedades de advogados do Caribe, Singapura, Hong Kong, Chipre, dentre outros paraísos fiscais ao redor do mundo.

A empresa de Hang no exterior atende pelo simpático nome de Abigail Worldwide. É por meio dela que o dono da rede de varejo Havan faz seus investimentos no Brasil e em outros países, com uma vantagem que poucos têm: pagar pouco ou quase nada de impostos. Isso porque Abigail está registrada nas Ilhas Virgens Britânicas, um paraíso fiscal. Ao todo, foram quase vinte anos economizando em tributos que ele pagaria se tivesse esse mesmo dinheiro aplicado no Brasil, que poderiam chegar a até 34%, dependendo da renda. A Receita Federal brasileira considera paraísos fiscais os locais que tributam a renda com alíquota inferior a 20% ou cuja legislação protege o sigilo sobre a composição societária das empresas. Na lista de mais de 60 países que respondem a esses critérios estão as Ilhas Virgens Britânicas, onde a Abigail foi aberta.

Os investimentos da Abigail estão principalmente em ações e títulos de dívida (debêntures) de empresas, muitas delas brasileiras, como Vale, Petrobras e Natura.

Mas se Hang é exibicionista em tudo que o diz respeito à Havan, o mesmo não se pode dizer de sua relação com a Abigail. Embora ela esteja com o empresário desde 1999, só foi apresentada ao Brasil em 2020, quando Hang decidiu lançar um ambicioso plano de abertura de capital da Havan, em plena pandemia. Foi nesse momento que os investidores brasileiros souberam que Abigail integrava o patrimônio da varejista Havan desde 31 de outubro de 2016. Com um dote atualizado em 478,5 milhões de reais (conforme a cotação do dólar de junho de 2020), como consta no prospecto de abertura para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Não há nada de errado legalmente com a Abigail. No mundo dos investidores ela é conhecida como empresa de prateleira (shelf company, no termo em inglês), ou seja, uma companhia aberta em paraíso fiscal, que pode ficar até anos sem atividade à espera de alguém que lhe dê um destino. São compradas por pessoas que têm uma certa pressa de ter uma empresa no exterior — para fechar acordos ou receber pagamentos com clientes estrangeiros, por exemplo —, pois são constituídas num prazo mínimo, em até 48 horas. Mas também são alvo de quem precisa dar uma cara de antiguidade ao seu negócio, já que algumas estão abertas há anos. Era o caso da Abigail, que permaneceu por três anos na prateleira. Foi aberta em 07 de outubro de 1996 em outro paraíso fiscal, na ilha de São Cristóvão e Neves, já com esse nome de origem hebraico, que batizou mulheres especialmente nos anos 50 no Brasil.

A Abigail cruzou o caminho de Hang em 1999, quando os negócios da Havan começaram a ter problemas na Receita Federal. A intermediadora da negociação de compra da offshore foi a Trident Trust, companhia que tem braços em diversos paraísos fiscais e oferece soluções discretas para pessoas ou organizações que querem manter suas atividades ocultas, segundo fontes do mercado. É um serviço análogo ao prestado pela Mossack Fonseca, o escritório de advocacia panamenho que ficou famoso após ter seus documentos revelados pela imprensa mundial em 2016, no que ficou conhecido como Panamá Papers.

Na época em que Hang comprou a Abigail, ele era investigado por suspeita de sonegação de impostos na Havan. A rede crescia a olhos vistos no mercado brasileiro. Inaugurada em 1986 numa saleta de 45 metros quadrados, no pequeno município de Brusque, no sul do país, a Havan se transformou na rede que hoje contabiliza 163 lojas físicas, em 18 dos 27 estados brasileiros. Soma mais de 22.000 colaboradores.

Uma importação ilegal chamou a atenção do Ministério Público de Santa Catarina, que passou a monitorar o empresário desde o início dos anos 1990, conforme explica a procuradora da República Ela Wiecko. À época, Wiecko era subprocuradora do MP de Santa Catarina e integrava a equipe que investigava os movimentos de Hang. Havia indícios de que a empresa não emitia notas por todos os produtos que vendia em suas lojas. O lucro dessa operação — ou seja, o dinheiro não declarado ao fisco — poderia estar seguindo para o exterior, o que poderia explicar a origem do caixa da Abigail. No entanto, não é possível saber de onde surgiu o dinheiro investido. A reportagem procurou o empresário, que não respondeu a esses questionamentos.

Cerco da Justiça

Luciano Hang chegou a responder na Justiça pela acusação de ter simulado vendas da Havan, mentido em seus livros contábeis, falsificado notas, fraudado o fisco e criado contratos sociais “que não correspondiam à realidade”, de acordo com os autos. Após uma investigação iniciada em 1999, foi autuado em 117 milhões de reais pela Receita Federal e em 10 milhões de reais pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Porém, escapou por meio de um programa de refinanciamento que permitiu que pagasse a dívida de quase 130 milhões de reais na época, em suaves prestações.

Esse acordo se tornou parte do folclore jurídico, já que seriam necessários 115 anos para que o empresário quitasse sua dívida com o fisco. A ação penal acabou sendo considerada nula após a 1a Vara da Justiça Federal em Itajaí julgar a denúncia inepta em 2008 por falta de provas. Ao EL PAÍS, Wiecko afirma que “é possível afirmar que a Havan estava enviando dinheiro para o exterior” naquela época. Em outros processos também por evasão de impostos, Hang chegou a ser condenado à prisão. Após sucessivos recursos, no entanto, escapou porque o tempo do processo prescreveu na Justiça.

Embora o cerco se fechasse sobre os negócios do empresário, o MP nunca detectou a existência da Abigail no paraíso fiscal. Foi somente ao flertar com o mercado de capitais, quando protocolou a abertura de capital da Havan, que Hang tomou o cuidado de apresentar a Abigail para a Receita Federal. Ele se beneficiou da lei de repatriação de recursos, sancionada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2016. A lei ofereceu as condições mais favoráveis possíveis para quem tinha dinheiro não declarado no exterior e queria legalizá-lo: redução de taxas e multas, que até então poderiam chegar a até 150% do valor não declarado, para apenas 30% sobre o montante total.

Dados do Banco Central mostram que o programa de repatriação fez com que dobrasse o número de pessoas que declararam possuir dinheiro no exterior. Nessa operação, ingressaram no país cerca de 10 bilhões de dólares que viviam à sombra da legalidade. O saldo da Abigail fazia parte desse montante. Seus anos de ostracismo, porém, pesaram na avaliação do mercado diante das ambições de Hang de abrir o capital da rede fundada por ele.

Ainda que no papel a Havan apresente bons resultados — o balanço da empresa anuncia que faturou 10,5 bilhões de reais em 2020, com crescimento de 16,6% do lucro líquido — , isso não convenceu potenciais investidores, que analisaram os números da empresa na sua primeira tentativa de abertura de capital, em outubro do ano passado. Vários problemas foram apontados, a começar pela aparição repentina de Abigail.

A empresa levantou dúvidas. Por qual razão incorporar uma companhia que mantém recursos tão altos em um paraíso fiscal? Por que investir em outros negócios que não sua própria empresa? À reportagem, Hang afirmou que “a Havan realiza investimentos diversificados e os mesmos encontram-se abarcados pela legislação brasileira. Não havendo nenhum tipo de irregularidade nisso”. Por meio de sua assessoria de imprensa, o empresário também disse que “como a empresa promove importações, os investimentos em moeda estrangeira proporcionam uma cobertura natural para a empresa, trazendo proteção para o negócio, tendo em vista a oscilação do câmbio mundial”.

Em um momento em que as instituições buscam cumprir princípios cada vez mais rígidos de boa governança, essas dúvidas acenderam um alerta no mercado. O empresário percebeu o incômodo dos investidores, que não aceitaram avaliar a Havan em 100 bilhões de reais, como ele esperava. E acabou desistindo de levar adiante, ao menos por enquanto, a ideia de ter sua empresa cotada na bolsa. Também pesou contra Hang as ações na Justiça mencionadas no próprio plano de abertura de capital. O Ministério Público do Trabalho acusa o empresário de ter coagido seus funcionários a votarem em Jair Bolsonaro em 2018. Aos investidores, a Havan informou que, caso perca o processo, terá de pagar 25 milhões de reais.

Aos 3,8 milhões de seguidores nas redes sociais, porém, Hang faz marketing do empresário bem-sucedido. “Criar emprego, gerar desenvolvimento e trazer alegria para as pessoas, não tem preço”, diz em uma postagem. “O Brasil que queremos só depende de nós”, estampa a camiseta verde e amarela adotada como uniforme por Hang. “Ser empreendedor no Brasil é ser herói”, ele diz em outra publicação, que leva uma foto dele mesmo vestido de super-herói.

O heroísmo de Hang inclui a intimidade com o poder. O empresário propaga as pautas bolsonaristas, como a defesa da cloroquina, o voto impresso, e a falta de uso de máscara. É também alvo de investigação no Supremo Tribunal no inquérito sobre as fake news, para apurar a existência de uma rede de propagação de notícias falsas com o objetivo de realizar ataques virtuais e desestabilizar a democracia do país. 

Também foi parar na CPI da Pandemia por supostamente fazer do gabinete paralelo da Saúde, que orientou Bolsonaro no combate à pandemia, acusado de financiar o movimento contra as medidas adotadas por governadores e prefeitos para conter o avanço do vírus. Chegou a ser questionado pelo relator Renan Calheiros, sobre contas no exterior, o que ele admitiu, mas negou financiar sites de notícias falsas. “Temos contas no exterior, temos offshore, deve ser umas duas ou três, declaradas na Receita Federal, e auditadas”, disse o empresário durante a audiência.

Ele responde ainda no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a uma ação por ter realizado supostos atos de abuso de poder econômico, fraude e ilicitude em captação e gastos de campanha nas eleições de 2018. Hang é acusado de ter financiado disparos de mensagens de WhatsApp em massa para favorecer Bolsonaro. Também fez o chamado “impulsionamento” no Facebook: investiu usando uma ferramenta da própria rede social para que o alcance de sua mensagem pedindo votos para Bolsonaro fosse turbinado, prática considerada ilegal pelo TSE. Hang confirmou à CPI ter impulsionado conteúdo pró-Bolsonaro nas eleições, como mostrou reportagem do EL PAÍS na época. Disse, porém, que não sabia que aquilo era proibido. “Tiramos do ar e pagamos multa”, afirmou.

Na minuta de abertura de capital da Havan, o empresário é colocado como um dos fatores de risco de seu próprio negócio. Ali, é reconhecido que a empresa “poderá ter sua reputação impactada de forma adversa em caso de eventual condenação do senhor Luciano Hang”.

Na investigação do Brasil participaram: Marina Rossi e Regiane Oliveira (EL PAÍS); Anna Beatriz Anjos, Alice Maciel, Yolanda Pires, Raphaela Ribeiro, Ethel Rudnitzki e Natalia Viana (Agência Pública); Guilherme Amado e Lucas Marchesini (Metrópoles); José Roberto Toledo, Ana Clara Costa, Fernanda da Escóssia, Allan de Abreu (Piauí); Fernando Rodrigues, Mario Cesar Carvalho, Guilherme Waltenberg, Tiago Mali, Nicolas Iory, Marcelo Damato e Brunno Kono (Poder360). Publicado por EL PAÍS, em 04.10.21.

A um ano das eleições, TSE abre código-fonte da urna eletrônica

Em meio a fake news, tribunal antecipa ato em seis meses. Objetivo é "ampliar a transparência, especialmente quanto à auditabilidade do sistema eletrônico de votação", ressaltou Barroso.

Desde que foi instituído, há 25 anos, nunca houve nenhuma comprovação de fraude do sistema eletrônico de votação

Para fazer frente a fake news que colocam em xeque a credibilidade da urna eletrônica brasileira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) antecipou para esta segunda-feira (04/10) a tradicional cerimônia em que o código-fonte do sistema eleitoral é aberto a interessados.

Isso significa que representantes da sociedade civil podem verificar, conferir, checar e testar o funcionamento das linhas de programação que fazem o software das urnas eletrônicas coletar e apurar os votos dos eleitores brasileiros. Por norma, o TSE abre o código 180 dias de cada pleito, e a realização do evento um ano antes das próximas eleições presidenciais é algo inédito.

Outra diferença é que, ao contrário das edições anteriores, em que apenas representantes de partidos políticos, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) puderam acompanhar o processo, desta vez foram convidadas também entidades como as Forças Armadas, a Polícia Federal, universidades, integrantes da Comissão de Transparência das Eleições — órgão criado pelo TSE — e autoridades de entidades internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Idea Internacional e a União Interamericana de Organismos Eleitorais (Uniore), além de ministros do TSE. 

Segundo informou o TSE, todos os interessados em participar precisavam manifestar interesse prévio, para garantir a organização.

"Abrir o código-fonte significa dar acesso aos comandos primários de um software, que são programados por quem faz sua engenharia. Significa dar acesso a esse script que o software executa. É como mostrar a casa de máquinas para as pessoas verem como funciona o programa", contextualiza o jurista Leopoldo Soares, professor de Direito Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

No código-fonte está tudo o que o programa é capaz de fazer. "A partir da análise dele, é possível eliminar qualquer hipótese de malícia, tudo o que não esteja ali descrito", afirma Soares. "Há quem alegue que é possível fraudar a urna eletrônica para que quando se digite o número X, apareça na tela o número X, mas o voto seja computado para o candidato Y. Para que isso aconteça, é preciso haver um comando específico no software. Abrir o código significa possibilitar essa verificação."

"O código-fonte é a linguagem de programação em seu estado bruto", define o jurista Henrique Neves da Silva, ex-ministro do TSE e atual presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral. "Ou seja, [com a abertura aos interessados] a Justiça Eleitoral permite que sejam analisados todos os comandos e linhas do programa."

"A regra previa o acesso ao código seis meses antes da eleição, mas por causa do tumulto que tem sido causado aí nos últimos meses, colocando em dúvida a lisura do processo eleitoral, a honestidade e a transparência da urna eletrônica, a Justiça Eleitoral resolveu antecipar", acrescenta o jurista Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral. 

"Quem quiser criticar, reclamar, desconfiar, tem agora a melhor oportunidade para investigar isso. Vai ter acesso ao código-fonte e vai poder criticar tecnicamente", diz Rollo. "Porque a Justiça Eleitoral não quer fofoca, quer críticas técnicas, construtivas. E se alguma dessas críticas for correta haverá tempo para corrigir eventuais falhas, eventuais problemas."

O sistema de votação eletrônico

O sistema de votação eletrônico brasileiro foi desenvolvido em 1995 por uma comissão que unia pesquisadores e técnicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), de São José dos Campos. No ano seguinte, a votação já ocorreu por meio das urnas em 57 municípios, mas foi apenas no ano 2000 que todo o território nacional usou o sistema. 

Diversos mecanismos de segurança foram desenvolvidos para garantir a lisura do processo e, ao mesmo tempo, auditorias que se fizerem necessárias. Atualmente, são mais de 30 "lacres", entre códigos criptográficos e protocolos de segurança. E a urna funciona completamente off-line, também para ficar protegida de tentativas de invasão — somente após a votação, os resultados de cada uma delas são transmitidos, via rede, para a apuração consolidada. 

"O funcionamento off-line é um dos pontos que garantem a segurança", afirma Soares. "Sem conexão à internet, a urna não pode sofrer nenhum ataque hacker, nada que venha pela rede. Dito isso, qual seria a única vulnerabilidade? Uma malícia no programa que processa os votos. Daí essa possibilidade de verificação do código-fonte é o que fecha a conta da segurança do sistema."

"A análise completa dos programas permite verificar a sua funcionalidade e certificar a ausência de qualquer código malicioso", completa o ex-ministro Neves da Silva. 

Transparência ampliada

O TSE não esconde que está preocupado em enfatizar, justamente para combater fake news e teorias conspiratórias, que o processo é transparente e correto. O evento desta segunda-feira foi chamado de abertura do "Ciclo de Transparência Democrática - Eleições 2022". Oficialmente, o tribunal divulgou que está "reafirmando o compromisso com o fortalecimento da democracia brasileira e com os eleitores e as eleitoras do Brasil".

"A proposta de antecipação do evento de acesso aos sistemas eleitorais desenvolvidos pelo TSE se justifica com o intuito de aperfeiçoamento das boas práticas e da necessidade de se ampliar a transparência do processo eleitoral, especialmente quanto ao processo de desenvolvimento e auditabilidade do sistema eletrônico de votação", ressaltou o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE.

"O fato de o TSE abrir o processo mais cedo significa que a Justiça Eleitoral está preocupada em demonstrar para a sociedade que não há nada secreto na elaboração do programa", pontua Rollo. "Ao permitir o acesso ao código, a Justiça Eleitoral mostra como é feito [o software] e que não existe a mínima possibilidade de fraude. O objetivo é dar total transparência."

Na resolução do tribunal que aprovou essa antecipação do processo, as justificativas são o aumento da transparência e o aprimoramento do processo eleitoral. "Isso me parece bastante pertinente", avalia Soares. “A despeito dos ataques à urna eletrônica e das afirmações de que ela não seria segura, um sistema sempre comporta aprimoramento."

“[A antecipação, contudo] vem como resposta a esse conjunto de ataques generalizados à votação eletrônica. O TSE resolveu responder normativamente e juridicamente a esses ataques ampliando o prazo e dando mais possibilidades de averiguação", completa o jurista.

"Justamente para ter argumento, se lá na frente alguém aventar alguma hipótese de fraude. O tribunal terá como responder que não só houve a possibilidade de verificar o código-fonte como o período para isso foi ampliado."

Desde que foi instituído no Brasil, há 25 anos, nunca houve nenhuma comprovação de fraude do sistema eletrônico de votação. "A urna eletrônica brasileira é 101% segura", comenta Rollo.

Deutsche Welle Brasil, em 04.10.21

Merkel faz apelo à defesa da democracia

No 31º aniversário da reunificação da Alemanha, a chanceler federal Angela Merkel, disse que os alemães precisam continuar trabalhando pela democracia.

 "Às vezes damos a democracia como certa, como se não houvesse mais nada a fazer. [Mas] a democracia não está aí simplesmente. Devemos trabalhar juntos pela democracia, repetidamente, todos os dias." (03/10)

Deutsche Welle Brasil, em 03.10.21

Pandora Papers: como os poderosos escondem sua riqueza

Vazamento de documentos lança luz sobre uso de paraísos fiscais por políticos e empresários para escapar de impostos e ocultar riqueza. Ministro Paulo Guedes e líderes da Jordânia e Azerbaijão são citados.

Milhões de documentos vazados de escritórios administradores de offshores jogaram luz sobre os segredos financeiros de políticos - incluindo líderes mundiais -, ministros, empresários e celebridades que usam paraísos fiscais para movimentar secretamente grandes somas de dinheiro e assim escapar de impostos e do olhar da opinião pública, ou, em alguns casos, ocultar fortunas obtidas ilegalmente.

Uma investigação com base no vazamento, realizada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) em conjunto com 150 veículos de notícias - incluindo a DW - revela que mais de 330 políticos de alto escalão e agentes públicos em todo o mundo têm vínculos com contas e empresas offshore.

Os milhões de documentos vazados e examinados pela parceria jornalística mostram até que ponto as operações offshore secretas estão emaranhadas na política financeira global, algumas vezes beneficiando justamente personagens que denunciam esses mecanismos.

Os ministros das Finanças do Paquistão e Holanda têm laços com empresas offshore, assim como ex-ministros das Finanças de Malta e da França - incluindo o ex-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) Dominique Strauss-Kahn.

No caso do Brasil, o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, aparecem ligados a offshores nas Ilhas Virgens Britânicas e no Panamá. No caso de Guedes, segundo a revista Piauí, trata-se de um offshore que continuou ativo mesmo depois de o economista assumir um cargo-chave no governo.

De acordo com a publicação, Guedes aportou na conta offshore entre 2014 e 2015 US$ 9,55 milhões (valor que no câmbio atual corresponde a R$ 51 milhões). O ministro respondeu de modo vago aos questionamentos da revista, afirmando que "sua atuação sempre respeitou a legislação aplicável e se pautou pela ética e pela responsabilidade".


O ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, movimentou quase 10 milhões de dólares em paraíso fiscal

Hipocrisia

De acordo com o ICIJ, os Pandora Papers mostram que detentores do poder que poderiam ajudar a pôr fim ao sistema offshore estão se beneficiando dele - escondendo ativos e fundos em empresas secretas, enquanto seus governos fazem pouco para desacelerar um fluxo global de dinheiro ilícito que enriquece criminosos e empobrece nações.

O ex-primeiro-ministro do Reino Unido Tony Blair, por exemplo, denunciou a evasão fiscal por décadas, mas os vazamentos revelam que ele e sua esposa adquiriram um prédio de US$ 8,8 milhões por meio de uma empresa imobiliária offshore da família do ministro do Turismo de Bahrein, Zayed bin Rashid al-Zayani.

Ao comprar as ações da empresa offshore detentora do imóvel - e não o prédio diretamente - Blair e sua esposa, Cherie, conseguiram evitar o pagamento de impostos sobre transações imobiliárias que poderiam chegar a US$ 400.000.

Tanto os Blairs quanto os al-Zayanis disseram que inicialmente não sabiam sobre o envolvimento um do outro no negócio. Cherie Blair disse que seu marido não se envolveu diretamente na transação. 

O primeiro-ministro tcheco, Andrej Babis, um bilionário que chegou ao poder em 2017 com a promessa de combater a corrupção, também é citado nos Pandora Papers.

Os registros vazados mostram que, em 2009, Babis injetou US$ 22 milhões em uma série de empresas de fachada para comprar uma mansão com duas piscinas e um cinema na Riviera Francesa, perto de Cannes. O site Investigace.cz apontou que as empresas offshore e a residência não estavam listadas nas declarações de bens que Babis apresentou quando se candidatou. Babis não respondeu aos questionamentos enviados pela imprensa.

O ex-premiê britânico Tony Blair escapou de pagar centenas de milhares de libras em impostos ao usar uma offshore

Ex-repúblicas soviéticas

O presidente da Ucrânia,  Volodimir Zelenski, também possuía uma participação em uma empresa de fachada registrada nas Ilhas Virgens Britânicas. Um mês antes de sua vitória na eleição presidencial de abril de 2019, o ator que virou político vendeu silenciosamente suas ações da Maltex Multicapital Corp. para Serhiy Shefir, um amigo próximo.

Um documento de junho de 2019 mostra que Shefir, um importante assessor presidencial que sobreviveu a uma tentativa de assassinato em setembro, manteve sua participação na Maltex Multicapital Corp depois de ingressar no governo de Zelenski.

Shefir e Zelenski não responderam aos questionamentos dos parceiros do ICIJ.

O presidente russo, Vladimir Putin, que regularmente é acusado de manter uma fortuna secreta, não aparece nos arquivos dos Pandora Papers. Mas os nomes de vários amigos próximos do presidente constam nos vazamentos, incluindo seu melhor amigo de infância - o falecido Petr Kolbin - a quem os críticos apelidavam de "a carteira de Putin".

Membros da família e pessoas próximas do presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, também aparecem envolvidos com empresas offshore que realizaram negócios imobiliários no Reino Unido que movimentaram mais de 400 milhões de libras.

O premiê tcheco Andrej Babis usou uma offshore para comprar - e ocultar - uma propriedade milionária na França

Líderes africanos, realeza árabe

Já o presidente Uhuru Kenyatta, que vem de uma das dinastias políticas mais conhecidas do Quênia, liderou uma campanha em 2013 com discursos anticorrupção e por mais transparência na política. Mas registros vazados mostram que Kenyatta e sua mãe são beneficiários de uma fundação secreta sediada no Panamá.

Outros membros da família, incluindo três irmãos, possuem cinco empresas offshore com ativos no valor de mais de US$ 30 milhões, de acordo com os registros.

Os Pandora Papers revelam os verdadeiros proprietários de mais de 29 mil empresas offshore. Algumas delas são usadas para ocultar contas bancárias secretas, jatos particulares, iates, mansões e obras de arte de artistas como Picasso e Banksy.

O rei Abdullah 2º da Jordânia, por exemplo, comprou em 2011 três mansões à beira-mar por US$ 68 milhões em Malibu, nos EUA, usando empresas offshore justamente quando seu país passava pela Primavera Árabe, quando os jordanianos foram às ruas para protestar contra a corrupção e o desemprego.

Ao todo, o rei  aparece ligado a 30 empresas que adquiriram 14 propriedades de luxo nos EUA e Reino Unido por mais de US$ 106 milhões.

Os documentos secretos também revelaram que a princesa Lalla Hasnaa do Marrocos é proprietária de uma empresa de fachada que adquiriu uma casa de US$ 11 milhões em Londres. Hasnaa fez a compra com fundos da família real marroquina, de acordo com os documentos, que indicaram sua ocupação como "Princesa".

Mohammed bin Rashid Al Maktoum, o primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos e emir de Dubai, era acionista de três empresas registradas em paraísos fiscais.

Já o emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani, continua a usar empresas offshore para fazer investimentos e administrar seu patrimônio. A investigação do Panama Papers já havia revelado que seu iate de US$ 300 milhões era administrado por meio de empresas offshore.

O presidente do Quênia, Uhuru Kenyatta. Sua família possui milhões de dólares em contas offshore

Celebridades

A cantora colombiana Shakira e a ex-estrela indiana do críquete Sachin Tendulkar, também são nomes ligados a ativos offshore. O advogado de Shakira disse que as contas offshore da cantora foram declaradas e que não oferecem nenhuma vantagem fiscal. O advogado de Tendulkar disse que o investimento do jogador de críquete é legítimo e foi declarado às autoridades fiscais. 

O líder populista tcheco Babis não é o único bilionário com negócios em paraísos fiscais: mais de 130 empresários da Turquia, Rússia, Índia, Estados Unidos, México, entre outras nações, têm laços com contas offshore.

O bilionário turco e magnata da construção Erman Ilicak tinha ligações com duas empresas offshore registradas em nome de sua mãe em 2014. Ambas detinham ativos do conglomerado de construção da família.

Uma delas, a Covar Trading Ltd., obteve US$ 105,5 milhões em receitas de dividendos durante seu primeiro ano de operações. O dinheiro ficou guardado em uma conta na Suíça - mas não por muito tempo.

No mesmo ano, mostram documentos, a empresa direcionou quase todo o valor de US$ 105,5 milhões como "doação" listada em "despesas extraordinárias". As declarações não indicam quem recebeu o dinheiro. Ilicak não respondeu aos questionamentos do ICIJ.

A empresa do magnata turco, a Rönesans Holding, foi responsável pela construção do palácio presidencial de 1.150 cômodos para o líder de seu país, Recep Tayyip Erdogan.

A construtora de Erman Ilicak foi responsável por erguer o palácio do autocrata turco Recep Erdogan

Por que os paraísos fiscais são problemáticos

Assim funcionam as empresas offshore: muitas vezes, por apenas algumas centenas de dólares, consultores podem ajudar os clientes a criar uma empresa offshore cujos verdadeiros proprietários permanecem em segredo.

E, por uma taxa de US$ 2.000 a US$ 25.000, eles podem estabelecer um fundo que, em alguns casos, permite que seus beneficiários controlem seu dinheiro, embora não sejam legalmente responsáveis ​​por suas ações. Vários mecanismos também ajudam a proteger os ativos de credores, autoridades policiais, cobradores de impostos e ex-cônjuges.

Possuir contas ou empresas offshore e conduzir transações financeiras por meio de paraísos fiscais é perfeitamente legal em muitos países - mas a prática é encarada cada vez mais como problemática.

Muitas pessoas que usam essas empresas dizem que elas são necessárias para operar seus negócios com eficiência. Os críticos, no entanto, apontam que os paraísos fiscais e as operações offshore devem ser monitorados mais de perto para combater a corrupção, a lavagem de dinheiro e a desigualdade global.

De acordo com Gabriel Zucman, especialista em paraísos fiscais e professor associado de economia da Universidade de Berkeley, na Califórnia, o equivalente a 10% do PIB mundial é mantido em paraísos fiscais em todo o mundo.

Lakshmi Kumar, diretora da Global Financial Integrity, apontou que as táticas dos ricos para esconder dinheiro por meio da evasão fiscal têm um impacto direto na vida das pessoas. "Isso afeta o acesso de seu filho à educação, à saúde e à habitação", disse ela.

Devido à natureza complexa e secreta do sistema offshore, não é possível saber a quantidade exata de riqueza ligada à evasão fiscal e outros crimes. E também saber qual foi o valor efetivamente declarado por detentores de empresas.

O montante total de dinheiro canalizado de países com taxas de impostos mais elevadas para paraísos fiscais com impostos significativamente mais baixos é desconhecido. No entanto, de acordo com um estudo de 2020 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), pelo menos US$ 11,3 trilhões são mantidos "offshore".

Os paraísos fiscais costumam despertar imagens de pequenas nações no Caribe, mas os Pandora Papers mostram que o sistema offshore opera em todo o mundo e em lugares como Cingapura, Holanda, Irlanda, Hong Kong e até mesmo alguns estados dos Estados Unidos.

Como o vazamento ocorreu e foi analisado?

O Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos obteve 11,9 milhões de arquivos confidenciais e liderou uma equipe de mais de 600 jornalistas de 150 veículos de notícias que passaram dois anos examinando os documentos, rastreando fontes e vasculhando registros judiciais e públicos de dezenas de países.

Os dados vazados vêm de 14 firmas de serviços offshore de todo o mundo que abriram empresas de fachada para clientes que muitas vezes procuram manter suas atividades financeiras nas sombras.

Os Pandora Papers estão sendo revelados cinco anos após a investigação histórica do Panama Papers. Em 2016, as revelações deste último caso incentivaram operações policiais e levaram legisladores a aprovarem novas leis em dezenas de países. O caso ainda teve desdobramentos políticos, incluindo a queda dos primeiros-ministros da Islândia e do Paquistão.

Deutsche Welle Brasil, em 04.10.21

Um Poeta

Bonfim Tobias

                                    

                     INSATISFEITO

A insatisfação tão radical,

É uma doença muito curiosa,

Tudo é ruim e tudo é banal,

Até a beleza torna-se danosa!


O amor vira só coisa carnal,

        A mais pura vontade é maliciosa

   E o início bom torna-se final,

Até a freira pura é perigosa!


A insatisfação é uma loucura,

É triste sofrimento p’ra quem tem,

É a verdade caótica e impura


De quem não tem amor e vive sem!

O insatisfeito julga-se perfeito

Co’essa faca cravada no seu peito!

Antecipando o Hidrogênio Verde

 Por Luiz Raimundo Carneiro de Azevedo

Tenho lido e ouvido falar muito bem da futura implantação de Usinas produtoras de Hidrogênio Verde no Nordeste, Maranhão incluso . 

Porque VERDE se existem tantas outras cores? Explicam os doutos 

- “verdes porque produzidos por fontes “ limpas” do tipo eolica, solar e hidráulica .Aceito o argumento. 

Penso então , como antecipar a vinda do tal do Hidrogênio combustível verde? 

A resposta parece óbvia : 

1- Investindo “de com força “nas fontes renováveis ; a Empresa de Planejamento de Energia -EPE sinaliza que até 2035 as fontes eolicas e solar podem responder por 45 % da matriz elétrica brasileira - 

O Nordeste é muito bom de sol e vento e o Maranhão tem tudo para ser bem sucedido nesse mister e também na produção de ETANOL, diz um estudo ( de capa verde) produzido pela ESALQ .                  

2-Os governos , estadual e municipais devem dar o bom exemplo dando prioridade a eficiência energética dentro de padrões internacionais, nos seus novos prédios públicos, principalmente nos itens de Ar condicionado, geladeira e outros que utilizam energia elétrica devem aderir ao padrão PROCEL, evitando-se compras governamentais  fora dos padrões aceitáveis.  

Por outro lado o projeto das instalações elétricas e sanitárias desses próprios deverá obedecer as normas que conduzam a eficiência energética desejada, todos esses expressos com clareza e rigor técnico nos Editais de Licitação A economia nas faturas de energia será relevante.                    

3- De máxima importância o fortalecer do Sistema de gestão integrada dos recursos hídricos, dotando os Comitês de bacias hidrográficas com pessoal técnico e recursos da tecnologia aplicável.  Agora com o 5G e o uso da Inteligência Artificial e da Internet das Coisas ficará mais eficiente e de pronta resposta essa integração racional das bacias hidrográficas, com um bom monitoramento das séries de chuvas, das estatísticas mais confiáveis das vazões dos rios, da poluição dos mananciais e do controle do resfriamento das usinas térmicas. O Agribusiness e a Agricultura familiar serão grandes participes e beneficiários           

4- O Ceará começou muito bem essa trajetória de controle de seus recursos hídricos, lembro das palestras do Engenheiro Ariosto Holanda, no entanto parece agora que vem arrefecendo isto. Soube que as Usinas térmicas PECEM I e II consomem água suficiente para abastecer uma cidade de 600 mil habitantes e é crítica a escassez de água na Bacia do Rio Jaguaribe no Ceará (como o é no Rio São Francisco) fato que gera elevados custos, estes repassados aos consumidores .  

O governo e a indústria do Maranhão devme insistir quanto a : 

1- dotar o Estado de um mapa solar e outro eólico e com essa ferramenta ir a EPE e cooptar empresas do setor a vir até aqui e instalar seus projetos com segurança Jurídica e estabilidade fiscal 

2- Estabelecer uma política de compras amigável com relação a eficiência energética e ao controle das emissões de CO2 , desde o projeto ,no acompanhamento da execução destes e do uso da água nos prédios Públicos  O exemplo vindo de cima   

3- fortalecer os comitês de bacia hidrográfica dotando-os de recursos técnicos e aprimorando seus bancos de dados e monitoramento / controle cada vez mais eficientes   

4- Imitar as experiências exitosas de controle dos usos dos recursos hídricos e aprender com o erro dos outros , por vezes oculta dos e que geraram danos apreciáveis por falta de planejamento e contumaz uso de “soluções emergenciais “  Espero que os próximos dirigentes pensem e ajam nesse senso.

Luiz Raimundo Carneiro de Azevedo é Engenheiro Civl, conselheiro do Brasil Export e consultor da Universidade Ceuma.

Entre a inflação e o marasmo

Baixo dinamismo e inflação elevada deverão marcar 2022, segundo o BC

Juros altos, crédito apertado, economia fraca e inflação elevada durante a maior parte do ano compõem o cenário de 2022 projetado pelo Banco Central (BC). As novas estimativas incluem crescimento econômico de 4,7% neste ano e de 2,1% no próximo. Mas até esse resultado medíocre dependerá, segundo a análise, de condições ainda duvidosas: arrefecimento da crise sanitária, diminuição da incerteza econômica, manutenção do regime fiscal e consumo de eletricidade sem “restrições diretas”. Falta combinar com o presidente Jair Bolsonaro, principal fonte de insegurança econômica e de risco fiscal, isto é, de ameaça à boa gestão das finanças públicas. As projeções aparecem no Relatório de Inflação publicado trimestralmente pelo BC.

Com a retomada econômica neste ano, sobrará em 2022, segundo o relatório, menos espaço para a recuperação cíclica. Além disso, o crescimento será dificultado pelo aperto monetário já em curso – crédito mais curto e mais caro usado como terapia contra a inflação. Ao assinalar esse ponto, os autores do boletim reafirmam, implicitamente, o compromisso de dar prioridade à ação anti-inflacionária, deixando em segundo plano, se necessário, a preocupação com o ritmo dos negócios.

Já iniciado, o aperto deverá continuar nos próximos meses. Os juros básicos, elevados em setembro para 6,25% ao ano, poderão chegar a 8,25% em dezembro e a 8,5% em 2022, segundo projeção do setor privado. Os cenários apresentados no relatório confirmam de forma indireta esse roteiro. Uma previsão de 9% no primeiro trimestre do novo ano circulou no mercado nos últimos dias.

Mesmo com o aperto, a inflação acumulada em 12 meses continuará muito alta durante a maior parte de 2022. Pela projeção central do relatório, a inflação em período anual chegará a 8,5% em dezembro, cairá para 7,3% no primeiro trimestre do próximo ano e ainda estará em 6% no trimestre seguinte. Até o fim do ano a alta dos preços ao consumidor será contida, segundo os cálculos do BC, em 3,7%, pouco acima da meta oficial, fixada em 3,5%.

Também essa trajetória vai depender de algumas condições ainda incertas, como o custo da eletricidade, uma reversão pelo menos parcial dos aumentos de preços internacionais das commodities, uma evolução razoável do dólar, sem novos choques, e menor insegurança quanto à evolução das contas oficiais e, especialmente, da dívida pública.

Se der tudo certo e nenhum choque impedir as condições apontadas no relatório, o Produto Interno Bruto (PIB) terá um crescimento maior que aquele indicado pela mediana das projeções do mercado, de 1,57%, de acordo com o boletim Focus do dia 27, mas ainda muito abaixo dos padrões dos grandes emergentes.

Mas esse crescimento na faixa de 2% a 2,5% corresponde ao potencial brasileiro estimado por instituições internacionais e por muitos analistas brasileiros. Há quem considere mais provável um potencial inferior a 2%, porque há muitos anos o investimento produtivo, no Brasil, tem ficado muito abaixo do necessário para um crescimento sustentável em torno de 4% ao ano.

Pelas estimativas do BC, o investimento em capital fixo – máquinas, equipamentos e construções – diminuiu 0,8% no ano passado, deve crescer 16% neste ano e encolher 0,5% em 2022. Não se espera, portanto, um aumento de capacidade produtiva capaz de permitir uma expansão econômica mais veloz nos anos seguintes.

O baixo potencial produtivo fica ainda mais visível quando se levam em conta as deficiências educacionais, o escasso esforço de formação de mão de obra e o baixo investimento em inovação e em pesquisa científica e tecnológica. Há esforços notáveis de treinamento realizados pelo Sistema S e respeitáveis trabalhos científicos em universidades, mas com reflexos muito limitados no conjunto da produção. O agronegócio permanece como exceção notável, quando se trata de inovação e de ganhos de produtividade.

Não há como esperar mudanças enquanto perdurar um governo desastroso para a educação, para a ciência e para a definição de rumos para o sistema produtivo.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de outubro de 2021 

Representatividade de verdade

As distorções representativas exigirão uma ampla reforma política

O Congresso promulgou uma nova regra para o cálculo de distribuição dos recursos dos Fundos Partidário e Eleitoral. A partir de 2023, os votos a mulheres e negros serão contados em dobro. Segundo parlamentares que apoiaram o projeto, a medida será mais eficaz do que as atuais cotas de candidatos para aumentar a representação de mulheres e negros no Legislativo. O tempo dirá se estão certos. De todo modo, trata-se de uma iniciativa engenhosa que de pronto tem o mérito de focar em uma grave distorção, que exigirá uma ampla reforma política e, mais profundamente, uma transformação cultural para ser definitivamente vencida.

Uma democracia sem a participação de mulheres e negros é uma democracia pela metade. No caso do Brasil, até menos: 53% da população é de mulheres e 55% se declaram pretos ou pardos. Mas no Congresso os pretos e pardos ocupam apenas 17,8% das vagas e as mulheres, 15% – menos da metade da representação feminina média nos países da América Latina (31%), segundo o Programa para o Desenvolvimento da ONU.

Essa democracia mutilada e deformada não pode perdurar. O prêmio para os partidos pelos votos a mulheres e negros é um incentivo à busca de candidaturas entre minorias marginalizadas. O mérito desse propósito é indisputável. Mas, como todo experimento social, este está sujeito à checagem e revisão. Que, possivelmente, será esse o caso é algo que se depreende de certos vícios de origem.

Ações afirmativas forjam instrumentos para corrigir distorções representativas. Pela sua natureza, esses instrumentos deveriam ser provisórios. Quanto mais eficientes forem na correção das sub-representações, mais rápido se tornam obsoletos. Assim, sua própria eficácia deveria levar a reduções graduais e, idealmente, à sua extinção. A nova regra, contudo, foi constitucionalizada a partir de uma emenda, o que torna mais difícil alterá-la ou revogá-la.

Além disso, ela visa a um fim justo a ser atingido com meios impróprios. Os Fundos Eleitoral e Partidário não deveriam existir. Partidos políticos são entidades privadas e devem ser sustentados com recursos captados com seus correligionários. A garantia de que serão abastecidos pelos cofres públicos é uma das razões que distanciam os líderes das bases e os próprios partidos dos cidadãos. Em outras palavras, os fundos estão entre as maiores causas da má qualidade representativa no Legislativo. 

A nova regra de distribuição não legitima esses fundos, mas, ao utilizá-los para remediar um problema do qual eles são causa, ao menos os torna menos nocivos.

Mas a necessidade de uma reforma política que corrija as distorções representativas vai além da inclusão de minorias nos Parlamentos. A rigor, os mecanismos legais para corrigir esse tipo de sub-representação são subsidiários. As raízes dessas disparidades são sociais e culturais e elas só serão definitivamente erradicadas por uma transformação social e cultural. A normatização de ações afirmativas – considerando que não sirvam a propósitos sectários – pode incentivar a renovação da cultura política e do ideário cívico, mas, por si só, não é suficiente para consumá-la. E, se for consumada, a proporcionalidade representativa será, como deve ser, parte natural do processo democrático, sem necessidade de anteparos legais para estimulá-la ou forçá-la.

Mas há distorções diretamente causadas pela lei que só serão sanadas pela lei. A Constituição prevê que o número de deputados de cada Estado seja revisto periodicamente para garantir que sejam proporcionais à população. Mas essa distribuição não é atualizada desde 1994. Hoje, um deputado de Roraima representa 72 mil habitantes, enquanto um de São Paulo representa 650 mil, ou seja, um voto de Roraima vale nove vezes o de São Paulo.

Não surpreende que, segundo recentes pesquisas, o Congresso só perca para os partidos políticos como a instituição menos confiável para a população. A representatividade, por si só, não será suficiente para resgatar sua credibilidade. Mas é uma condição absolutamente necessária.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de outubro de 2021 

Um projeto para o País

Mais do que ser anti-Lula ou anti-Bolsonaro, o que faz falta é ter um projeto para o País. Essa é a melhor resposta contra as forças do atraso

Com recorde de desaprovação popular e sem ter o que apresentar como realização de seu governo, Jair Bolsonaro repete, com frequência crescente, o seu mantra: não fosse ele, o PT teria voltado ao poder. Na lógica bolsonarista, o governo não precisa apresentar nenhum resultado. O dever de Bolsonaro na Presidência da República se resumiria apenas e tão somente a manter Lula longe do Palácio do Planalto.

Essa tática, que parece tão resolutamente antipetista, é uma farsa, já que atende perfeitamente aos interesses do PT. A quase completa ausência de resultados do governo Bolsonaro é o cenário dos sonhos de Lula. Não há como negar. O desgoverno de Bolsonaro é caminho muito favorável para Lula voltar ao poder.

Mas o mantra bolsonarista – não fosse Bolsonaro, o PT teria voltado ao poder – tem ainda outra evidente contradição. Nenhum candidato é eleito apenas para ocupar um espaço vazio. Jair Bolsonaro não foi eleito para impedir que Lula, diretamente ou por meio de algum de seus postes, voltasse ao poder. Bolsonaro foi eleito – eis a verdade que o bolsonarismo tenta esconder – para governar.

É acintoso o desconforto de Bolsonaro e de seus apoiadores com essa realidade tão básica: um presidente da República é eleito para governar. Quando confrontados com a ausência de resultados do governo Bolsonaro, seus apoiadores logo revidam com a subespécie do mantra bolsonarista: apesar de tudo, em 2022, no segundo turno com Lula, voto é em Bolsonaro.

Deve-se ressaltar que a manobra também é comum entre os lulistas. Quando confrontados com o legado de corrupção, incompetência e negacionismo do PT, os lulistas logo revidam: mas, num segundo turno entre Lula e Bolsonaro, em quem você vota? E ficam indignados se o interlocutor mostra que o exercício dos direitos políticos numa democracia é necessariamente mais amplo do que essa asfixiante disjuntiva.

A transformação da política em mero embate de negativos é profundamente perniciosa ao País. A rigor, não se pode nem mesmo dizer que se trata de luta entre forças políticas antagônicas. É mero choque de rejeições: o anti-Lula versus o anti-Bolsonaro.

Nesse cenário – e ainda tendo um longo tempo até as eleições de 2022 –, é muito oportuna a observação feita por Alfredo Setubal, presidente da Itaúsa, ao tratar da relação entre o empresariado e as administrações petistas, em entrevista ao jornal O Globo. “Ele (Lula) gastou muito para eleger a Dilma, o déficit fiscal foi enorme. As consequências foram muito ruins e culminaram na recessão a partir de 2014 e no impeachment da Dilma. Mas, mais que anti-Lula, os empresários querem alguma coisa pró-Brasil. Eu não acho que é um sentimento anti-Lula, eu acho que é um sentimento de mudança. Esse modelo não está dando certo. Por isso se fala da terceira via”, disse Alfredo Setubal.

Lula e Bolsonaro almejam o mero choque de rejeições. Mas tal embate é rigorosamente insuficiente para o País superar a crise econômica, política, social e moral na qual foi mergulhado. A experiência de 2018 é bastante pedagógica. Elegeu-se um presidente da República cuja única proposta consistiu – e ainda consiste – em ser o anti-Lula, e ele vai entregar um Brasil em piores condições do que recebeu.

O bolsonarismo é terreno fértil para o lulopetismo, e vice-versa, porque os dois não vivem de governar, mas de vencer eleições a qualquer custo. É urgente, portanto, que as lideranças políticas, em sintonia com a sociedade civil organizada, apresentem propostas consistentes, aptas a enfrentar com responsabilidade os problemas do País.

Uma campanha nessas bases, protagonizada por candidatos genuinamente interessados em revigorar a democracia e unir os brasileiros em torno de ideias sólidas para tirar o Brasil do atraso, terá o condão de deixar evidente que Lula e Bolsonaro pouco têm a oferecer ao País além de cizânia e impostura. Nunca é demais lembrar que, nas duas disputas pela Presidência da República com Fernando Henrique Cardoso, Lula perdeu no primeiro turno.

Mais do que ser anti-Lula ou anti-Bolsonaro, o que faz falta é ter um projeto para o País. Essa é a melhor resposta contra as forças do atraso.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de outubro de 2021 

'Falar em socialismo e comunismo no Brasil é ignorância e paranoia', diz ex-preso político que resistiu com Brizola

O jornalista, advogado e escritor gaúcho Flávio Tavares sofreu na própria pele a virulência da tortura durante a ditadura militar no Brasil e no Uruguai.

Tavares: 'Ficam ressuscitando a paranoia do comunismo como se os comunistas tivessem governado o país'. (Getty Images)

Em 1969, foram choques elétricos num quartel do Exército do Rio de Janeiro. Mais tarde, naquele ano, ele fez parte do grupo de presos políticos enviados ao México em troca da libertação do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick, que tinha sido sequestrado. Menos de dez anos depois, em 1977, Tavares foi sequestrado pelo Exército uruguaio em Montevidéu. Naquela época, o regime ditatorial dominava em quase todos os países da América do Sul.

Antes de ser preso no Rio de Janeiro e exilado, tendo morado na Cidade do México, em Buenos Aires e em Lisboa, Flávio Tavares já havia participado, no Brasil, de um outro episodio histórico. Em 1961, ele resistiu, armado, a convite do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, contra a ameaça de golpe militar. Aquela resistência, opina, acabou adiando o golpe, que ocorreu em 1964.

Carlos Lamarca: há 50 anos era morto o guerrilheiro que marcou a vida de Bolsonaro

No Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, o jornalista, que era editor e repórter do jornal Última Hora, participou da iniciativa de Brizola de fazer uma campanha armada - conhecida como "Campanha da Legalidade" - em defesa da posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros.

Hoje, Tavares acha que a situação é diferente em relação àquela época. Mas diz estar preocupado.

Com vários livros publicados, entre eles, Memórias do Esquecimento e O dia que Getúlio matou Allende, Flávio Tavares participou da luta armada durante o regime militar brasileiro (1964-1985). Em entrevista à BBC News Brasil, aos 87 anos, ele disse que seu grupo não soube atrair o apoio popular: "Ficamos isolados e militarmente fomos derrotados. Mas não fomos derrotados historicamente. Acho que historicamente nós vencemos. Até porque hoje a ditadura é um cadáver insepulto. Mas é um cadáver."

De Porto Alegre, onde voltou a morar, Flávio Tavares fez críticas ao presidente Jair Bolsonaro mas também ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT.

Tavares chamou de "paranoia" e "ignorância" falar em socialismo e comunismo no Brasil, como setores do governo Bolsonaro e bolsonaristas argumentam ao condenar o possível retorno de Lula à Presidência.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Seu recente relato à Folha de S.Paulo traz detalhes pouco conhecidos, de que você era um dos cinco repórteres que estavam com o então governador Leonel Brizola quando houve resistência em defesa da democracia, em 1961. Você chegou a estar com uma arma e o próprio governador Brizola com uma metralhadora. Pode contar um pouco mais?

Flávio Tavares - Jânio Quadros renunciou numa sexta-feira, o sábado foi de muita expectativa. No domingo, Brizola anunciou pelo rádio que resistiria, (porque) houve o veto dos ministros militares, dizendo que Jango, o vice-presidente, era simpático ao comunismo e estava na China e não poderia assumir o posto.

Brizola se rebelou e disse que o Rio Grande do Sul iria resistir. E no domingo, sendo o segundo dia após a renúncia, nós esperamos o ataque do Exército à sede do palácio para calar o governador Brizola. E resistimos de arma na mão, com revólveres, e com esses revólveres nós iríamos enfrentar os tanques e as metralhadoras. Só o Brizola tinha uma metralhadora lá em cima, na residência dele no palácio. A Brigada militar do Rio Grande do Sul, com arma na mão no terraço do palácio e a própria população que começou a se alistar no recrutamento voluntário, os chamados comitês de resistência democrática que se estenderam por todo o Rio Grande do Sul e receberam a adesão de pelo menos dez mil pessoas.

Foi o grande movimento de mobilizações de massa contra o golpe. Foi a primeira vez que as massas, que o movimento popular derrotou um golpe de Estado armado, armado com armas, não pleonasmo. Houve uma rebelião para garantir a aplicação da Constituição. Algo insólito. As rebeliões são para quebrar o status quo (mas) essa foi uma rebelião para manter aCconstituição.

'Bolsonaro adota medidas do manual de Chávez': entenda semelhanças e diferenças entre Brasil e Venezuela

Tavares: 'A pretendida reforma agrária foi usada como pretexto para o golpe de 1964' (Getty Images)

BBC News Brasil - Quem entregou as armas para vocês, cinco jornalistas?

Tavares - Aí já éramos mais de 50 pessoas, na tarde de domingo, quando esperávamos o ataque do Exército, que ainda obedecia às ordens de Brasília. Quem distribuiu (as armas)...foi a mando do governador Leonel Brizola por (parte dos) oficiais da Policia Militar do Rio Grande do Sul, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul. E a população inteira, homens e mulheres, andava armada nas ruas, o que mostrava a disposição de resistir. Retratava a realidade em si. E os sindicatos faziam treinamento corpo a corpo num campo de futebol aqui perto.

BBC News Brasil - Um Brasil bem diferente.

Tavares - Um Brasil bem diferente, politizado. Todas as forças políticas se uniram e houve um repúdio absoluto, total contra o golpe. O governo continuou insistindo de Brasília, os ministros militares replicaram e mandaram bombardear o palácio de governo que era a sede de todo o movimento. Havia um movimento dos sargentos, que na época era muito forte, que desarmou os aviões, furou os pneus e escondeu as bombas. Os aviões não podiam decolar e só por isso o palácio não foi bombardeado.


BBC News Brasil - No seu relato, você diz que essa atitude coletiva impediu que o golpe ocorresse em 1961 e acabou ocorrendo em 1964. Mas esse período de 1961 e 1964 foi muito turbulento…

Tavares - Sim, porque era um Brasil muito atrasado em termos de compreensão da realidade social. Se formavam cinturões de miséria nos grandes centros urbanos, fruto da concentração da propriedade das zonas rurais do país inteiro e sem que o país percebesse que era necessária uma reforma agrária urgente. A pretendida reforma agrária foi usada como pretexto para o golpe de 1964. (...) Hoje essa situação se repete de outra forma. Hoje há um atraso de certos setores que se incrustaram no governo pelo golpe popular e que ameaçam, diariamente, com a não realização das eleições em 2022. E sob qualquer pretexto e dirigidos pelo próprio presidente da República. Isso é gravíssimo.

BBC News Brasil - No dia Sete de Setembro passado chegou-se a temer a ruptura democrática, incluindo golpe militar. Como você viveu essa data?

Tavares - Vivi com muito pesar. Porque é incompreensível que o presidente da República saia de Brasília, no avião presidencial, e vá a São Paulo para participar de uma concentração, que já tinha começado na própria capital, Brasília. É uma manifestação afrontosa à Constituição e à democracia em si.

Tavares: 'Manifestações de Bolsonaro foram a semente para uma tentativa de golpe' (Getty Images)

BBC News Brasil - No seu livro Memórias do Esquecimento, você conta a experiência de ter sido torturado no Uruguai. Como você vê hoje que nas manifestações de apoio ao presidente há quem peça a volta do regime militar e até o AI5? Por que isso acontece?

Tavares - Antes (do AI5) era uma ditadura envergonhada, de 1964 a 1968. Uma ditadura que tinha vergonha de ser ditadura. E com o Ato 5, de 1968, ela já se instaura em sua plenitude, com torturas, assassinatos, censura à imprensa, o fim do habeas corpus. Só defende (a volta do AI5) quem não conhece a ditadura. A ditadura no Brasil não chegou a assanha da ditadura da Argentina ou do Chile. Mas foi um simulacro de democracia. Havia eleições para vereadores, para os prefeitos das pequenas cidades. Era uma ditadura que fazia eleições e simulava, principalmente para a opinião pública dos Estados Unidos, que tinha sido o grande patrocinador do golpe de 1964. E só quem não conhece aqueles anos terríveis é que defende a volta da ditadura.

BBC News Brasil - Você citou a Argentina, que realizou julgamento das 'juntas militares' no governo do presidente Raúl Alfonsín (1983-1989). Essa diferença (pelo fato de o Brasil não ter tido julgamento semelhante) pode, de certa forma, ter aberto o caminho para a chegada de Bolsonaro à Presidência, já que, por exemplo, quando ele era deputado defendeu torturador, no Congresso, e aquela cena seria difícil na Argentina. Qual é sua visão?

Tavares - A anistia que ocorreu no Brasil abrangeu a todos os setores, incluindo os torturadores, e abriu caminho para que as pessoas esquecessem o que aconteceu. A sua pergunta em si já é uma resposta. Os torturadores jamais foram julgados no Brasil, ao contrário do que ocorreu na Argentina onde até hoje, até um ano atrás, havia comandantes militares condenados à prisão, inclusive perpétua, pelas torturas e assassinatos que cometeram. (...)

O Brasil tem essa mania de tapar as coisas, como se a realidade do passado não existisse. Acho que esse é um hábito bem brasileiro. Até hoje não sabemos o que fizeram os bandeirantes, que são tratados como heróis quando foram também criminosos. Desbravaram os sertões brasileiros, cometeram atrocidades contra as populações indígenas, contra populações locais. Então, isso é uma mania viciosa brasileira, de tapar o sol com a peneira.

Ordem e Progresso: como as ideias de um filósofo francês do século 19 ajudam a entender a formação do Brasil

BBC News Brasil - No relato à Folha você diz que a ditadura nos deixou um legado que perdura até hoje, que nos faz confundir democracia com eleição direta. Como você vê a democracia hoje no Brasil?

Tavares - Acho que por um lado se diz que a democracia está consolidada porque as instituições são fortes. Mas as instituições não são uma rocha, uma pedra. As instituições são as pessoas que as compõem. E as pessoas estão cada vez mais desconectadas da realidade brasileira. Até hoje o governo não fez nenhum plano, nenhum programa, nenhum planejamento para vencer as dificuldades. A fome continua se alastrando no Nordeste e também no Sudeste e no Sul do Brasil… Cada vez mais as cidades brasileiras têm mais pessoas dormindo nas ruas. Nas grandes e até pequenas e médias cidades. E não há planos para educação e para empregos para as pessoas que dormem na rua, comem na rua e 'descomem' na rua.

Tavares: 'Só quem não conhece aqueles anos terríveis é que defende a volta da ditadura' (Getty Images)

BBC News Brasil - Por que você foi da luta armada? Hoje, aos 87 anos, o que você pensa daquela época em que você tinha vinte ou trinta e poucos anos?

Tavares - Bom, naquela época a luta armada nos parecia uma solução para nos opormos às armas que nos tinham calado. Hoje eu tenho uma outra concepção. Acho que nós ficamos isolados. A realidade mostrou que nós não soubemos nos comunicar com a população. Nós ficamos combatendo a ditadura de forma isolada. Por isso, a ditadura, com o suporte tecnológico que tinha... E nós não tínhamos nada.

(...) Mas nos parecia, de uma ótica que eu acho hoje que foi equivocada, que só podíamos nos opor às armas do poder militar pelas armas do poder popular. Mas não soubemos, não tivemos condições de nos fazer entender pelas grandes massas. Ficamos isolados e militarmente fomos derrotados. Mas não fomos derrotados historicamente. Acho que historicamente nós vencemos. Até porque hoje a ditadura é um cadáver insepulto. Mas é um cadáver.

BBC News Brasil - Pode explicar melhor?

Tavares - Hoje sabemos que a ditadura não venceu. Venceu em termos militares, pelo horror das prisões, da tortura e pela censura à imprensa. Nesse sentido, a ditadura venceu (durante o período ditatorial). Mas hoje temos uma grande imprensa livre e em defesa da Constituição.

BBC News Brasil - Como você vê a declaração do presidente que entre o feijão e o fuzil, o fuzil seria mais importante?

Tavares - Isso é um absurdo porque é a negação da própria vida, da própria existência. Mas esses disparates estão muito comuns no presidente da República neste momento. Encaram o país como se fosse uma vassoura no quintal, que se varre e está tudo solucionado. (...) O país está sem saída neste momento, em termos políticos. Os partidos estão desacreditados, as esperanças (oferecidas) se transformaram em um grande embuste. Uma roubalheira enorme durante o governo de Lula, durante o chamado governo do Partido dos Trabalhadores...

Tavares: 'Lula implantou a desfaçatez' (Getty Images)

BBC News Brasil - Naquele episódio de 1961, quando Brizola tomou a iniciativa da 'Campanha da Legalidade', era uma defesa contra um possível avanço do Exército. Qual a diferença, na sua visão, do Exército daquela época e de hoje?

Tavares - Naquela época, o Exército, do meu ponto de vista pessoal, era muito mais aberto do que hoje é. Não tinha sofrido ainda os 21 anos da ditadura militar em que as escolas militares adotaram o sistema norte-americano de educação, na caserna e fora da caserna.

Vou citar um exemplo. No Rio Grande do Sul (em 1961), o chamado Exército pelas forças dos Estados do Sul, cuja sede é em Porto Alegre, ficou a favor da Legalidade. Mas a pressão veio debaixo. Em Porto Alegre, os capitães que comandavam as chamadas companhias, jargão militar, foram ao gabinete do comandante e disseram que estavam a favor do respeito à Constituição e da posse do vice-presidente Joao Goulart. Isso foi um motivo fundamental para que o Exército, que hoje se chama Comando Militar do Sul, ficasse a favor da Legalidade de 1961.

E hoje a educação militar não mudou. Ao contrário do que houve na Argentina, por exemplo, onde as academias militares foram modificadas a partir do governo Alfonsín. Não sei como estará hoje. Mas aqui não, não houve isso. Continuou a educação imposta durante os 21 anos da ditadura militar. Isso é fundamental, mas as pessoas não dão muita importância.

BBC News Brasil - Você entende que aquela união da população em defesa da democracia, que ocorreu em 1961, e que na sua visão contribuiu para adiar o golpe de 1964, não ocorre hoje. No entanto, as manifestações têm sido frequentes no Brasil, ou a favor ou contra o governo Bolsonaro. Qual é a diferença entre os dois períodos - 1961 e agora?

Tavares - A diferença é que as manifestações contra o Bolsonaro, por exemplo, continuam divididas. A chamada esquerda, capitaneada pelo PT, e que eu acho que não tem nada de esquerda, não participou das manifestações agora, semanas atrás em São Paulo, e que foram feitas pelos dissidentes do bolsonarismo.

(...) Para mim, o PT tem características de divisionismos. O que não for uma iniciativa dele, PT, 'não vale'. Então, ficaram setores (de ex-)bolsonaristas reunindo dez mil pessoas nas ruas de São Paulo e contra o Bolsonaro. E o PT desdenhou.

BBC News Brasil - Você é crítico de Bolsonaro e também de Lula?

Tavares - Sou sim, muito crítico. Acho que Lula implantou a desfaçatez. Lula disse, textualmente, 'nunca os bancos lucraram tanto quanto na minha gestão como presidente'. Os bancos representam o setor financeiro. As instituições bancárias são o tem de mais maligno no capitalismo...

BBC News Brasil - Como você fará na eleição de 2022, se a disputa for entre Bolsonaro e Lula?

Tavares - Mas há um movimento muito grande, que começa a crescer no Brasil, pela terceira via. (...) Eu, pessoalmente, acho que o grande candidato seria o (ex-governador e ex-presidenciável) Ciro Gomes. Ele é um homem lúcido que tem plano de governo e uma visão do que seria o país tanto nas áreas econômica como a social.

BBC News Brasil - Você diz que o Brasil busca reinventar uma espécie de nova Guerra Fria (de oposição entre capitalismo e comunismo). No Sete de Setembro, o ministro-chefe do Gabinete Institucional da Presidência, general Augusto Heleno, disse, nas redes sociais, que eles, bolsonaristas, estão tentando evitar a volta da socialismo. Qual é a sua opinião?

Tavares - Pois é. A volta do socialismo, a volta do comunismo.... Mas o Brasil nunca foi socialista. Tentou reformas sociais muito tênues, necessárias para a estabilidade do próprio país e da própria população. As reformas sociais implementadas a partir do governo (José) Sarney... E nunca foi estabelecido o socialismo. Isso é um absurdo. Reflete, inclusive, a ignorância do setor governamental atual do Brasil. O general ressuscitando a paranoia do comunismo, como se os comunistas tivessem governado o país, tivessem implementado o socialismo. Isso nunca ocorreu.

(...) Eu vejo o Brasil muito confuso, sem que as pessoas saibam para onde ir. Os partidos políticos não têm significado nenhum. Ninguém morre por qualquer partido político aí, nem põe o corpo para defender qualquer partido político. Viraram aglomerados de pessoas em busca do poder.

Tavares: 'Eu vejo o Brasil muito confuso, sem que as pessoas saibam para onde ir' (Getty Images)

BBC News Brasil - Essa situação que você descreve hoje é resultado da própria trajetória brasileira? A situação em 1961, o golpe de 1964, os 21 anos de ditadura militar, o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff...

Tavares - Eu acho que é. É uma decepção geral e que criou a confusão. O Brasil hoje não está em guerra, em luta, mas está confuso. E a confusão é o detalhe mais perigoso da história. As pessoas não saberem para onde ir. O povo chegou em uma encruzilhada em que há vários rumos e não sabe para qual seguir porque todos levam ao mesmo desengano. É a situação atual que eu vejo hoje no Brasil, pelo menos em termos muito pessoais.

BBC News Brasil - Você ficou com alguma sequela daqueles anos de tortura?

Tavares - Sequelas aparentes, não. Mas eu fui pendurado, torturado, no Uruguai, onde nunca morei. Estava em Montevidéu numa missão humanitária para libertar um jornalista que tinha sido preso por uma matéria que tinha escrito no meu jornal e fui sequestrado e sofri muita tortura no Uruguai.

A única sequela visível com que fiquei foi da 'penduração'. Tenho meu lado esquerdo permanentemente dolorido. Até já me habituei à dor em si. Consigo suportá-la. Faço pilates e fisioterapia e isso atenua. Agora, a grande sequela com que eu fiquei foi desaparecendo aos poucos. Quando eu ouvia um carro da polícia eu ficava nervoso. Mas eu tenho uma força de vontade bastante grande. No Uruguai, fiquei 26 dias algemado e de olhos vendados. Eu comia de olhos vendados e algemado. Dormia de olhos vendados e algemado. Foram 26 dias. E depois mais cinco meses e meio preso.

BBC News Brasil - O que você diria às pessoas que defendem o AI-5 e a volta da ditadura?

Tavares - Eu diria que só se defende a volta da ditadura quem desconhece a ditadura. Desconhece o horror da ditadura, seja de esquerda, de direita. A ditadura em si é uma afronta à condição humana. O torturador é um psicopata.

Marcia Carmo, de Buenos Aires para a BBC News Brasil, em 2 outubro 2021