quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Brasil volta a registrar inflação de dois dígitos

IPCA é maior para mês de setembro desde 1994 e chega a 10,25% no acumulado de 12 meses, ficando em dois dígitos pela primeira vez em cinco anos. Alta é puxada pela pandemia, habitação e energia, além da crise política.

Vista da favela da Rocinha, Rio de Janeiro. A inflação medida pelo IPCA acelerou de 0,87% em agosto para 1,16% em um mês

Inflação medida pelo IPCA acelerou de 0,87% em agosto para 1,16% em um mês

O Brasil voltou a registrar inflação na casa dos dois dígitos, com o maior índice para o mês de setembro observado desde os primórdios do Plano Real, em 1994.

A inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acelerou de 0,87% em agosto para 1,16% em setembro, segundo dados divulgados nesta sexta-feira (08/10) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No acumulado em 12 meses, a inflação chegou a 10,25%, ficando acima de dois dígitos, algo que não ocorria há mais de cinco anos. Este também é o maior índice anual registrado desde fevereiro de 2016, quando chegou a 10,36%. O IPCA acumula alta de 6,9% no ano.

Mesmo com a alta, os números ainda ficaram aquém das estimativas. Projeções feitas por diversas instituições financeira apontavam avanço de 1,25%. O IPCA aumentou ainda a distância frente ao teto da meta de inflação perseguida pelo Banco Central, de 5,25% em 2021. O centro é de 3,75%.

Habitação e energia puxam alta

Oito dos nove grupos de produtos e serviços pesquisados acusaram alta em setembro. O maior impacto veio da habitação (0,41 ponto percentual), assim como a maior variação (2,56%), que acelerou 0,68% em relação a agosto. O motivo foi o aumento de 6,47% na conta de energia elétrica, que em 12 meses acumula alta de 28,82%.

Os demais grupos que tiveram fortes impactos foram os transportes (1,82%) e alimentação e bebidas (1,02%), com impactos de 0,38% e de 0,21%, respectivamente.

Vários fatores contribuíram para a alta da inflação. Entre os principais estão a pandemia de covid-19, a crise política gerada pelo governo Bolsonaro e a crise hídrica, com o acionamento das usinas termelétricas em razão da falta de chuvas, o que aumenta os custos da geração de energia.

O aumento da taxa básica de juros (Selic), por parte do Comitê de Política Monetária do Banco Central, mantém os preços num patamar elevando, enquanto o país lida com um alto índice de desemprego.

Deutsche Welle Brasil, em 08.10.2021

Acordão geral pela impunidade de casta

Suspeitos, acusados, réus, apenados e disponíveis do Congresso querem é mais corrupção.

A ordem institucional vigente mantém alguns princípios sagrados, que são, de fato, tratados de acordo com a regra generalizada celebrada pela sabedoria popular, segundo a qual “de boas intenções os cemitérios estão cheios”. O primeiro é que “todo o poder emana do povo”, parágrafo único do artigo 1.º da Constituição dita “cidadã” (apud Ulysses Guimarães), a que sempre recorre o senador Marcos Rogério para defender absurdos autoritários do desgoverno a que serve na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado. De fato, o Poder Legislativo, instituído para representar o cidadão comum, tem atuado de forma solerte para, em nome dessa representação, fortalecer as elites partidárias, que concentram cada vez mais nos próprios bolsos recursos e pesos, deixando de lado os contrapesos, que fingem imitar da obra revolucionária dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, no século 18. Nesse mister sinistro, recebe aval de Executivo e Judiciário.

Uma das armas empregadas no cotidiano do conluio implícito entre os três Poderes que atuam de forma harmônica, mas contra o povo, é a transformação da Câmara dos Deputados, cerne da democracia representativa, em estuário do neocoronelismo partidário que torna representantes desse povo um polvo representativo de famílias, paróquias e bandos empenhados no enriquecimento ilícito e no poder absoluto de seus sócios. Avanços inseridos no aperfeiçoamento do sistema de escolha de seus membros, caso da cláusula de barreira, exigida em lei de 2017, são desprezados em nome de um “fortalecimento dos partidos”, que, na prática, funciona como financiamento por partilha. As conquistas do combate à gatunagem no erário, celebradas em acordos internacionais de compliance, estão sendo progressivamente despejadas no lixão da república dos compadritos com cínico discurso de desprezo ao moralismo dito udenista do verdadeiro republicanismo, ou seja, submissão à coisa pública.

O terrorismo legiferante protagoniza momentos de cega negação do espírito da Carta Magna na decomposição do fortalecimento constitucional do Ministério Público como única arma da cidadania contra os desmandos dos dilapidadores de verbas e conceitos de interesse popular. É a desmoralização da Operação Lava Jato, em particular, e das forças-tarefa, em geral, no uso de “provas ilícitas e imprestáveis” (apud Marcelo Knopfelmacher em entrevista no blog do Nêumanne no portal do Estadão) por hackers. Alguns destes, impropriamente tidos como “jornalistas”, são foragidos da lei em suas praças de origem, exemplo de desfaçatez. Com base nisso, o Supremo Tribunal Federal (STF) demonizou sentenças de primeira instância, confirmadas durante cinco anos em decisões, algumas unânimes, abandonadas em obediência a vogas, mas nunca a normas. A tentativa, ora bem-sucedida, de sentenciar crimes dos governos petistas, sob o comando do líder máximo, Lula, com absolvição do réu e punição para promotores e juízes produz efeito ainda pior ao subordinar o “quarto poder” da Constituição vigente em autorização da impunidade de suspeitos, acusados, réus, apenados e disponíveis com assentos na Câmara e no Senado.

Manobras de iniciativa da direita estúpida bolsonarista, executadas pela esquerda investigada, indiciada, autuada, processada e confirmada, obtiveram maiorias espetaculares nas duas Casas do Congresso para, em nome de sua atualização, tornar inócua a Lei da Improbidade Administrativa. O projeto, debatido em audiências públicas, da lavra do deputado Roberto de Lucena, foi reescrito pelo lulista Carlos Zarattini e aprovado às pressas para “passar a boiada”, magnífica metáfora do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, expelido da pasta pela participação em exportação ilícita de madeiras nobres, conforme denúncia da polícia norte-americana. Depois dessa ignomínia, seguiu-se outra com idêntico enfrentamento da vontade manifesta da Constituição, por projeto de autoria do também petista Paulo Teixeira, que torna o Conselho Nacional do Ministério Público mero serviçal de chefões do Parlamento. Ao reduzir a representação dos próprios procuradores e entregar cargos-chave aos politiqueiros dos plenários congressistas, a emenda constitucional entrega cadeado e chaves do galinheiro às mãos felpudas de raposas com mandato.

A ação é oposta a propostas que compõem reforma explicitada no livro Uma Nova Constituição para o Brasil, do jurista Modesto Carvalhosa. Tais como: fim do foro privilegiado; estabilidade nos cargos restrita a juízes, promotores, agentes da polícia judiciária, diplomatas e militares; criação de regime previdenciário unitário; primazia do direito público sobre o privado; e nulidade de leis aprovadas em causa própria em favor de agentes públicos, políticos e servidores, entre outras. Ou seja, tudo o que negue este golpe perpetrado no acordão geral pela impunidade total de malfeitores da política e da gestão da coisa pública, tratadas como propriedade privada de castas impostas pelos malfeitores da politicagem.

José Nêumanne, o autor deste artigo, é Jornalista, Poeta e Escritor. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 13.10.21. 

O eleitoral substitui o social

Diante de um governo que deseja cuidar de si com o Auxílio Brasil, cabe ao Congresso cuidar de quem de fato precisa

Entre as obrigações do Estado previstas na Constituição está a atuação para “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. O poder público realiza essa tarefa, entre outras ações, por meio dos programas sociais. A finalidade desses programas não é conquistar a simpatia dos eleitores, melhorar os índices de aprovação de um governante e, menos ainda, manter parcela da população dependente do Estado.

O governo Bolsonaro está, no entanto, indiferente a tudo isso. Vem tratando os programas sociais como ferramentas eleitorais, em uma inconstitucional apropriação do Estado para fins particulares. Para piorar, parte da esquerda, em especial, o lulopetismo, tem sido conivente com a manobra bolsonarista. Como o PT também atuou assim quando esteve no poder, o partido de Lula parece tolerar a conduta de Bolsonaro, como se fosse normal. Quem está no poder desfrutaria dessa espécie de bônus, usando parte dos recursos públicos em proveito próprio.

Um dos sintomas da submissão das políticas sociais a fins eleitorais no governo Bolsonaro é o abandono de critérios técnicos na formulação dos programas de transferência de renda. Não há estudo, planejamento ou aprendizado com as experiências passadas. Tudo se resume a duas ideias fixas: aumentar o valor mensal e aumentar o número de pessoas atendidas.

No primeiro semestre, Jair Bolsonaro prometeu ampliar no ano que vem o benefício do Bolsa Família para R$ 300. A promessa pegou de surpresa os técnicos do Ministério da Economia, que trabalhavam com uma reformulação do benefício médio dos atuais R$ 190 para R$ 250. Em agosto, o presidente Bolsonaro anunciou aumento ainda maior, que poderia chegar até o dobro do benefício atual.

Jair Bolsonaro não indicou os motivos que justificam o aumento. Não apresentou as fontes de financiamento para os novos gastos. Não explicou se os novos valores estão em conformidade com a legislação fiscal. Nada disso parece preocupar Bolsonaro, interessado tão somente em anunciar que vai aumentar o valor do benefício. A confirmar a completa improvisação, Bolsonaro prometeu depois ainda um novo porcentual: aumento de, no mínimo, 50% no valor médio do Bolsa Família.

Perante tal descalabro, faz-se necessário lembrar o óbvio. Programa de transferência de renda não é dinheiro que o presidente da República dá a uma parcela da população para ganhar votos. A começar pelo fato de que o presidente não dá nada. O que se transfere à população carente são recursos públicos – dinheiro do contribuinte, portanto – para atender a finalidades previstas em lei. Programa social é investimento feito pela sociedade, e não por um governante ou partido.

Por isso, é imprescindível que os programas sociais sejam formulados a partir de estudos e planejamentos sérios, orientados para uma efetiva proteção social. Ninguém deseja que recursos públicos, sempre escassos, sejam gastos de maneira improvisada ou ineficiente, menos ainda para atender a interesses eleitorais.

Nesse sentido, vale mencionar a outra obsessão de Jair Bolsonaro com o novo Bolsa Família, que ele deseja que se chame Auxílio Brasil: o aumento do número de beneficiários. Para Bolsonaro, maior número de pessoas beneficiadas é sinônimo de maior retorno eleitoral. No entanto, mais do que simplesmente expandir, a eficácia de um programa social está em sua focalização. “Se o objetivo aqui (com o Auxílio Brasil) vai ser aumentar o número de beneficiários, eu não acho que a gente está indo na direção correta. Vai pulverizar mais os recursos, e a gente tinha que, para combater a pobreza mais eficazmente, concentrar mais, identificando aqueles que mais precisam”, disse o economista Ricardo Paes de Barros, um dos formuladores do Bolsa Família, ao Estado.

Programa social é coisa séria. Diante de um governo que deseja cuidar de si com o Auxílio Brasil, cabe ao Congresso assegurar a finalidade social do programa: que cuide não de governante aspirante à reeleição, mas de quem de fato mais precisa.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 13 de outubro de 2021

A atualização da lei do impeachment

Depois de sete décadas, a lista dos crimes de responsabilidade pode e deve ser atualizada

Depois de analisar o material probatório levantado pela CPI da Covid, um grupo de juristas, sob a coordenação do professor e advogado Miguel Reale Júnior, concluiu pela “ocorrência de uma gestão governamental deliberadamente irresponsável e que infringe a lei penal. (...) São bastante evidentes as hipóteses reais de justa causa para diversas ações penais”.

Além de vários crimes do Código Penal, o parecer dos juristas constatou elementos probatórios relativos a crimes de responsabilidade. “O comportamento do sr. presidente da República Jair Messias Bolsonaro ao longo da pandemia constitui clara afronta aos direitos à vida e à saúde, configurando-se a infração prevista na Lei 1.079/1950, art. 7, número 9”, afirma o parecer.

Ao tratar dos crimes de responsabilidade, a Constituição diz que “esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento”. Criada em 1950, essa lei continua vigente. Sofreu apenas algumas alterações em 2000, quando o Congresso aprovou uma série de medidas de fortalecimento da responsabilidade fiscal.

No processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o Senado considerou-a culpada em relação a crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária (art. 10, itens 4, 6 e 7) e contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos (art. 11, itens 2 e 3). Dois desses itens haviam sido incluídos pela Lei 10.028/2000.

No caso do presidente Fernando Collor, o Senado condenou-o pelo crime de responsabilidade contra a segurança interna do País (art. 8, item 7: permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública) e contra a probidade na administração (art. 9, item 7: proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo).

Perante esse histórico, deve-se reconhecer que a Lei 1.079/1950 tem, mesmo que imperfeitamente, cumprido o seu papel. Com base na lei, chefes do Executivo que realizaram condutas incompatíveis com o cargo foram afastados. “Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República ou ministros de Estado, contra os ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o procurador-geral da República”, diz o art. 2.º.

Em relação ao atual presidente, não se pode atribuir sua manutenção no cargo, a despeito de mais de uma centena de pedidos de impeachment, a eventuais omissões da Lei 1.079/1950. Como afirmou o parecer dos juristas à CPI da Covid, a conduta de Jair Bolsonaro na pandemia enquadra-se nas hipóteses de crime de responsabilidade. Ou seja, a Lei 1.079/1950 oferece proteção para a situação atual. “Esse desacerto na condução da pandemia não foi fruto de negligência ou imprudência, mas uma política de governo”, diz o parecer dos juristas. Eventual impunidade da conduta de Jair Bolsonaro na pandemia não será, portanto, em razão da inadequação da Lei 1.079/1950, mas por omissão do Congresso.

Deve-se reconhecer, no entanto, que, depois de sete décadas, a lista dos crimes de responsabilidade pode e deve ser atualizada. “É necessário (...) fazer um levantamento sobre quais são os atos que realmente mereceriam essa punição. É necessário reduzir as hipóteses e melhorar a redação sobre as normas que incriminam”, disse Miguel Reale Júnior ao Estado, ao tratar de uma possível revisão da Lei 1.079/1950.

Em 2016, após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, foram apresentados no Senado dois projetos de revisão da Lei dos Crimes de Responsabilidade. Um foi arquivado em 2018 e o outro (PL 251/2016), de autoria do senador Alvaro Dias, aguarda indicação de relator na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Cabe ao Congresso estudar o assunto, em atenta revisão das condutas que configuram crime de responsabilidade. A história recente e o presente do País mostram que essa legislação relativa ao exercício do poder não tem nada de inútil e, por isso, deve ser atualizada. Infelizmente, é item de primeira necessidade.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 13 de outubro de 2021

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Um Poeta

Bonfim Tobias 

 TEREMINE

Essa caixa tão simples

Guarda tanto mistério,

Tem um som derramado

De anjos  do Sidério!


Mãos regem no espaço

Notas em multidão,

Orquestração de estrelas

Com milagrosas mãos!


É música celeste 

Tocada pela alma,

São os gestos de luz

No bailado da Palmas

Como saber se é a pessoa tóxica: “Você é o amargurado quando vai a uma reunião e a contagia com angústia”

Entrevista com Marián Rojas Estapé, psiquiatra e autora do livro ‘Encuentra tu Persona Vitamina’, sobre como nossa felicidade depende em grande medida da capacidade de manter boas relações com outras pessoas. E sobre as feridas emocionais que carregamos e impedem conexões saudáveis

Uma pessoa tóxica é aquela que “gera negatividade” e exacerba o cortisol em outras pessoas em um determinado momento, define Marián Rojas Estapé, psiquiatra e autora de Encuentra tu Persona Vitamina (“encontre sua pessoa vitamina”, ainda não lançado em português), que curiosamente irradia positividade, embora tenha se dedicado bastante a pesquisar a toxicidade das relações humanas. Em seu livro, analisa por que algumas pessoas estão cheias de negatividade e aponta que os tóxicos nem sempre são os outros, podemos ser nós mesmos, sem que tenhamos plena consciência disso. Conversamos com ela sobre como nossa felicidade dependerá em grande medida da capacidade que tenhamos de manter boas relações com os outros e sobre as feridas emocionais que carregamos e impedem que nos conectemos de maneira saudável.

Pergunta. Como uma pessoa pode perceber se é ela que espalha toxicidade em seu grupo de amigos?

Resposta. Ela tem de se conhecer, fazer um autodiagnóstico pessoal. Deve perguntar a si mesma: sou agradecida ou considero tudo garantido? O que mais gosto do meu jeito de ser? O que me irrita em minha personalidade? As pessoas gostam de mim? Torno a vida agradável para elas? Elas têm carinho por mim? Procuram estar comigo? Ou, pelo contrário, noto que me evitam, que me tratam mal, falam mal de mim, contestam-me, estou sempre tensa... se predomina a segunda opção de forma generalizada, talvez essas más vibrações venham dela mesma.

P. Às vezes vemos pessoas de quem todo mundo gosta. Como conseguem?

R. Não existem. Nunca cairemos bem para todo mundo. Nossa forma de ser pode ativar algumas emoções em alguns e não em outros. Por exemplo, você tem uma colega com personalidade arrebatadora e capacidade de liderança. Talvez ela te fascine ou te aflija por te fazer sentir pequeno.

P. Que indícios podem me fazer pensar que sou eu a pessoa tóxica, ou, usando sua linguagem, a que envenena o ambiente com negatividade?

R. Há diferentes características pessoais que podem nos indicar que estamos gerando toxicidade. Pergunte a si mesmo: sou egoísta? Só se faz o que eu quero? Tenho de ser o centro de tudo? Tenho dificuldade para ser empático, não ouço os outros porque não me interessa o que acontece com eles? Se as respostas forem sim, talvez sua atitude esteja afetando de forma tóxica outra pessoa.

P. No livro a senhora fala, entre outros, de dois perfis comuns entre as pessoas que sugam energia: os reclamões e os amargurados. Podem até ser engraçados nas redes sociais, mas na vida real são bastante insuportáveis. Como distinguir a linha tênue que separa o reivindicativo do ofensivo?

R. Você é um reclamão quando nada o agrada totalmente. Quando vê problema em tudo, tipo “não vou lá porque vai ter muita gente”, “está frio aqui”, “isso é chato”... O reclamão é quem passa o dia inteiro se queixando, vê a vida através de um filtro escuro. O amargurado é quem pensa “estou apagado e apago os outros”. Você é amargurado quando chega a uma reunião e a contagia com angústia. O ruim é que a amargura se retroalimenta e há grupos de amargurados que se formam para se amargurar ainda mais. Para saber se é um deles, pergunte-se como as pessoas estão antes de você chegar e como ficam quando você vai embora. Se ficarem pior, você está espalhando toxicidade.

P. Existem reclamões que vão mais longe e se sentem vítimas de uma conspiração do universo. É o famoso meme de Cristiano Ronaldo dizendo “que injustiça”.

R. É o perfil de vítima. Você anda pela vida como vítima sem ser uma quando tem desculpa para tudo, e tudo contado de forma dramática para ser o centro das atenções. É uma atitude perigosa porque gera nos outros um sentimento de culpa que, não sendo verdadeiro, acaba levando-as a se afastar de você. Uma forma semelhante de ter uma atitude tóxica é o que chamo de pessoas put drama in your life [”coloque drama em sua vida”]. Você precisa que existam conflitos ao seu redor? Em uma refeição com outras pessoas, você traz à tona um assunto delicado que acaba provocando uma discussão entre os comensais? Cria dramas sem motivo porque essa tensão te dá energia? Para saber se você é assim, pergunte a si mesmo se você é uma pessoa que foge do conflito ou é aquela que o provoca.

P. Essas pessoas são capazes de armar um Casamento Vermelho de Game of Thrones a qualquer momento.

R. É que ter gente assim por perto é como andar em um campo minado. E pode ser indício de um transtorno de personalidade limítrofe, que é o termo clínico para as pessoas que vivem em constante instabilidade emocional, que sofrem um descontrole de seus impulsos, passam do amor ao ódio em segundos, têm ataques de raiva ou atuações pessoais muito conflitivas. Se você é assim, acaba afastando as pessoas do seu lado, porque não queremos sobressaltos na vida, ela já tem drama suficiente. Em nossas relações pessoais, queremos calma.

P. Digamos que ao seu redor as pessoas começam a se dar bem. Conseguem um trabalho melhor, engravidam ou perdem peso mas fácil que você. Com você não acontece nada assim, e isso vai te corroendo. Isso é ser uma pessoa tóxica ou é natural?

R. Para saber se o seu problema é a inveja, reflita sobre como você recebe os triunfos alheios. Você fica triste quando a pessoa do lado está indo bem? Pensa primeiro em si e depois a parabeniza? Lembre-se de que as pessoas não gostam de gente invejosa, elas gostam de quem se alegra com suas conquistas.

P. Todos temos uma opinião sobre tudo, com ou sem sustentação. Mas há pessoas bastante irritantes que não hesitam em verbalizar seus julgamentos, agradem ou não. A liberdade de opinião vale para tudo ou, na vida cotidiana, é melhor guardarmos certas opiniões para nós mesmos?

R. É inevitável formarmos uma opinião sobre o que nos rodeia. Você se encontra com uma amiga e julga como ela se veste, como fala... O problema surge quando você verbaliza isso sem que ela pergunte. Você opina sobre o parceiro da sua amiga? Intromete-se em como ela educa os filhos? Julga seu cabelo, sua roupa? Diz, sem constrangimento, que ela engordou, que se vê mal ou que está com um penteado terrível? Essas pessoas deixam as outras exaustas e, além disso, essa atitude costuma ser considerada falta de educação.

P. Odiamos as pessoas manipuladoras e fugimos delas sempre que podemos. Mas você pode ser uma delas sem perceber?

R. Sim. Ocorre com muita frequência em pessoas com ascendência sobre alguém próximo, uma amiga, sua mãe ou seu parceiro. Elas desenvolvem uma memória prodigiosa e retêm todo tipo de dados para discutir, criticar ou conseguir que você faça o que elas querem. Se o outro não tem consciência da manipulação, não sofre. O paradoxal é que muitas vezes fazemos isso sem querer, sem perceber. Manipulamos nosso parceiro para que faça o que queremos, quando o recriminamos porque há dois meses ficou com tais pessoas...

P. Outro tipo de manipulação muito tóxica é a da pessoa dependente. Como uma pessoa passa da preocupação normal com as pessoas queridas para a dependência prejudicial?

R. O limite é ultrapassado quando você suga a energia delas. É essa mãe que não pode viver sem você, que te liga três vezes por dia e se você não está, fica angustiada. Ou a amiga que faz um escândalo se você tiver outro plano que não a inclua. É quando você precisa controlar tudo o que a outra pessoa faz, senão não fica tranquila. E o que acontece é que a outra pessoa se sente presa em sua teia de aranha e acaba fugindo.

P. De fora, parece fácil detectar quem é essa pessoa não vitamina, mas quando é você mesma, também é fácil assim?

R. Custa muito descobrir e aceitar isso. Às vezes você percebe quando lê um livro ou um artigo como este e vê que é assim. Ou porque ouve sua família ou seus amigos quando dizem que você está alterando muito seu ambiente, que ficou muito mal-humorado ou que está muito desanimado. Mas, se não for por algo assim, é difícil, porque você está tão preso nesse ciclo de estresse que não consegue se conectar consigo mesmo.

P. Dizer a uma pessoa tóxica que ela destila negatividade por toda parte é uma ação de alto risco. A senhora pode nos dar alguns conselhos?

R. É preciso fazer isso com muito tato. Dizerem na sua cara “você é tóxico” não é o mesmo que “percebo que você anda desanimado, triste, vejo que não aprecia as coisas como antes, o que está acontecendo?”. A forma como você fala com uma pessoa determina a forma como ela vai responder. Se você a ataca dizendo algo negativo, a primeira reação é ficar na defensiva. É preciso dizer as coisas com carinho, pensar antes.

P. Digamos que você percebe que vem sendo uma pessoa negativa há algum tempo. Mas as outras pessoas não dizem nada, para que você não se irrite com elas. Você quer redirecionar sua relação com seu entorno. Por onde começa?

R. Uma boa tática é dizer “noto que ultimamente estou muito negativa, crio um clima ruim, não sei o que está acontecendo comigo”. Você abre a porta e, com isso, permite que os outros digam o que veem.

P. Já detectamos o problema e pedimos ajuda. Mas por que acontece isso conosco?

R. Ninguém nasce tóxico. Nascemos repletos de oxitocina, o hormônio que neutraliza o cortisol. É a vida a que nos transforma em pessoas mais ou menos negativas. Às vezes é por um acontecimento ruim. Um caso comum é quando você sofre assédio moral no trabalho. Ou quando atravessa uma situação estressante, como durante o confinamento. Se for uma situação circunstancial, o normal é que essa negatividade desapareça assim que se diluir essa situação. Isso não significa que não haja pessoas com mais tendência para criar crises.

P. O ruim de ser tóxico é que você acaba sendo prejudicial. É possível consertar o que se quebrou com outras pessoas?

R. Sempre defendo o perdão. Tanto pedi-lo como perdoar. Às vezes, é instantâneo. Outras vezes, leva tempo. Mas é preciso fazer isso porque um coração ressentido não pode ser feliz. O rancor tem um impacto bioquímico enorme no organismo. Ele nos deixa tensos, ativa o sistema simpático, faz com que secretemos cortisol e aumenta a inflamação. Você acaba vivendo em um estado de alerta constante, não aproveita a vida e tem mais possibilidades de adoecer. Quando perdoa, você se liberta.

Entrevista a SALOMÉ GARCÍA  para o EL PAÍS. Publicada em 28 SEPT 2021.

Depender de doações ou “ter sangue escorrendo pelas pernas”, a realidade da pobreza menstrual

Veto de Bolsonaro à distribuição gratuita de absorventes põe em risco a saúde de mulheres em situação de vulnerabilidade, que não têm acesso a itens de higiene básica. Após polêmica, Governo agora diz que estuda como viabilizar a distribuição

Bruna, de 29 anos, vive na praça da República, em São Paulo, e depende de doações para ter acesso a absorventes e outros itens de higiene. (Camila Svenson)

Bruna, de 29 anos, formada em Educação Física, vive há seis anos em situação de rua, no centro de São Paulo. Ela sabe que deve fazer exames de sangue com regularidade, uma revisão ginecológica uma vez por ano e ter outros cuidados de saúde. “Hoje mesmo, agentes do SUS [Sistema Único de Saúde] vieram aqui falar sobre o Outubro Rosa”, conta ela em frente à barraca de camping onde vive com o marido, na praça da República. O que Bruna ainda não sabia na sexta-feira é que, um dia antes, o presidente Jair Bolsonaro havia vetado a distribuição gratuita de absorventes para mulheres como ela, que vivem em situação de vulnerabilidade. “Nossa!”, reagiu, surpresa, cercada pelos quatro cachorros que considera seus filhos. Ela depende das doações de agentes sanitários, assistentes sociais ou organizações civis para poder usar absorventes durante seu período menstrual. “Quando não tem doação, o jeito é usar papel higiênico, ou papel que a gente acha na rua mesmo”, conta. Eventualmente, diz, é possível recorrer à solidariedade de outras mulheres que moram na praça. “Mesmo que a gente não goste uma da outra, nessas horas, a gente só entrega o absorvente, não precisa nem se falar, mas não deixa a outra sem.”

O veto de Bolsonaro a dois artigos do Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual, aprovado pelo Congresso no mês passado, pode deixar 5,6 milhões de mulheres sem acesso a esse item —são estudantes em situação de vulnerabilidade social, mulheres em situação de rua, além de presidiárias, e internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa. Sem contar outras pessoas que também menstruam, como homens trans e pessoas não-binárias. “Desse jeito, as meninas vão ter que voltar a fazer como nos meus dias, que era ficar com o sangue escorrendo pelas pernas ou amarrar sacolas de plástico no quadril”, lamenta Eugênia Souza, de 56 anos, que já não menstrua, mas passou por essa situação nos muitos anos em que vive na rua —ela já não lembra quantos. Antes de falar com a reportagem, ela se lavava superficialmente no lago da praça.

A falta de algo tão básico quanto água é um dos principais aspectos da pobreza menstrual, que vai além da falta de dinheiro para comprar produtos de higiene. No Brasil, 1,5 milhão de mulheres e 413.000 meninas vivem em residências sem banheiros, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde. Com a crise econômica agravada pela pandemia de covid-19, a situação piorou: no dia 14 de setembro, um levantamento realizado pela Johnson & Johnson Consumer Health mostrou que 29% das brasileiras entre 14 e 45 anos tiveram dificuldades financeiras nos últimos 12 meses para comprar produtos para menstruação e 21% têm dificuldade todos os meses. “Quando tenho algum dinheiro, eu já separo para isso e consigo comprar”, diz Bruna. Outras mulheres em situação de rua ouvidas pelo EL PAÍS, que não quiseram se identificar, contam que, quando não há doações, se veem obrigadas a pedir absorventes nas portas de supermercados e farmácias.

A ativista Matuzza Sankofa, coordenadora da Casa Chama, de acolhimento e cultura LGBTQIA+, e membro do Centro de Convivência É de Lei, focado em políticas de redução de danos, lembra, no entanto, que debater pobreza menstrual não significa falar apenas de absorventes. “É preciso falar também do acesso a banheiros públicos com lugar para tomar banho, acesso a lavanderias públicas para que essas pessoas possam higienizar suas roupas... Isso é política de saúde preventiva. O SUS existe também para cuidar da população preventivamente e evitar que a pessoa chegue ao sistema de saúde só quando precisa de tratamento para uma doença”, argumenta. A ativista diz que projetos como o Vidas no Centro, da Prefeitura de São Paulo, que montou estações de banheiros e pias em sete pontos da região central para atender a população durante a pandemia deveriam ser perpetuados e expandidos para todo o país.

O texto do Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual —cujo investimento estimado pelo Senado seria de 84,5 milhões de reais por ano, levando em conta oito absorventes ao mês/mulher—previa que o dinheiro para a distribuição desses itens viria de recursos do SUS. Bolsonaro vetou justamente esse trecho por alegar que o projeto não atende ao princípio de universalidade do sistema de saúde, uma vez que estipula beneficiárias específicas, e que absorventes não constam da lista de medicamentos considerados essenciais.A decisão do presidente ainda pode ser derrubada no Congresso Nacional, que tem 30 dias para vetá-la. Na última sexta, depois da polêmica gerada pelo veto, o Governo afirmou que ainda estuda formas de “viabilizar a aplicação da medida”.

Sem o amparo do Estado, muitas pessoas precisam contar com iniciativas como os projetos sociais de Matuzza, cujo departamento coordenado por ela no Centro de Convivência É de Lei distribui não apenas absorventes, mas calcinhas e cuecas para pessoas que menstruam, além de panfletos informativos sobre como usar esses produtos. “Tem gente que está há tanto tempo vivendo na rua que sequer sabe como colocar um absorvente na roupa íntima, ou como higienizar essas peças corretamente”, lembra.

Depois de anos de atividade voluntária em diversos projetos, Mirela Cavichioli percebeu na pandemia que “as necessidades das pessoas menstruantes não eram atendidas” mesmo pelas iniciativas que tinham as melhores intenções. “Via quase todos os kits de doação com sabonete, papel higiênico, escova de dente, mas era raro ver absorventes sendo incluídos”, conta. Ela se reuniu, então, com quatro amigas para criar o Projeto Absorver, que há sete meses distribui absorventes, preservativos e outros produtos de higiene básica para pessoas em situação de rua e que vivem em ocupações. Sempre que possível, convidam ginecologistas para falar sobre saúde sexual. “A pobreza menstrual inibe as pessoas de olhar para e cuidar do próprio corpo. Viver nessa situação é viver sem dignidade”, resume.

JOANA OLIVEIRA, de São Paulo para o EL PAÍS, em 11.10.21

Bolsonaro é denunciado em Haia por desmatamento da Amazônia

ONG pede que Tribunal Penal Internacional investigue o presidente por crimes contra a humanidade devido à destruição da floresta e ao consequente aumento de emissões de CO2, que poderia causar 180 mil mortes no mundo.    

"Bolsonaro alimenta a destruição da Amazônia com pleno conhecimento das consequências"

O presidente brasileiro é alvo de uma nova denúncia no Tribunal Penal Internacional (TPI). Uma organização não governamental austríaca apresentou nesta terça-feira (12/10) uma queixa contra Jair Bolsonaro, acusando-o de crimes contra a humanidade por causa do desmatamento da Amazônia, com impacto na saúde mundial.

Na denúncia, a que o tribunal, sediado em Haia, na Holanda, não é obrigado a dar prosseguimento, a ONG AllRise afirma que o governo brasileiro é responsável anualmente pela destruição de cerca de 4 mil quilômetros quadrados da Floresta Amazônica e que a taxa de desmatamento aumentou 88% desde que Bolsonaro chegou ao poder.

A entidade ambientalista o acusa ainda de realizar uma ampla campanha que resultou no assassinato de defensores ambientais e de colocar em risco a população mundial através das emissões provocadas pelo desmatamento.

Também afirma que o governo de Bolsonaro buscou "sistematicamente remover, neutralizar e estripar as leis, agências e indivíduos que servem para proteger a Amazônia", ressaltando que tais ações "estão diretamente ligadas aos impactos negativos das alterações climáticas em todo o mundo".

180 mil mortes

A peça contou com a participação de especialistas em direito internacional, como os advogados Maud Sarlieve e Nigel Povoas, assim como da climatologista Friederike Otto, da Universidade de Oxford, uma das autoras do último relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), apresentado em agosto, descrito como um "alerta vermelho" para a humanidade e que traça uma relação direta entre eventos climáticos extremos, o aquecimento global e a degradação ambiental.

Peritos citados no documento consideram que as emissões resultantes do desmatamento ocorrido durante o mandato de Bolsonaro poderão provocar mais de 180 mil mortes adicionais em todo o mundo até o final do século.

O que dizem os juristas que denunciaram Bolsonaro ao TPI

"Crimes contra a natureza são crimes contra a humanidade. Jair Bolsonaro está alimentando a destruição em massa da Amazônia com os olhos amplamente abertos e com pleno conhecimento das consequências", afirma o fundador da AllRise, Johannes Wesemann, em nota. "O TPI tem um claro dever de investigar crimes ambientais de tamanha gravidade global."

A queixa também visa vários funcionários de alto escalão do governo brasileiro, disse à AFP o advogado Nigel Povoas, que liderou processos contra alguns dos mais notórios criminosos internacionais. "Afirmamos que, devido às políticas que prosseguem, eles são cúmplices na ajuda aos que no terreno cometem homicídios, perseguições e outros atos desumanos", afirmou.

Outras denúncias

Bolsonaro já é alvo de várias queixas apresentadas no TPI.

Em janeiro passado, o cacique Raoni Matuktire, defensor emblemático da Floresta Amazônica, já tinha pedido ao TPI para investigar "crimes contra a humanidade" alegadamente cometidos pelo presidente brasileiro, acusado de "perseguir" os povos indígenas, destruir o seu habitat e violar os seus direitos fundamentais.

Em julho de 2020, profissionais do setor da saúde no Brasil também pediram ao TPI que abra um inquérito por "crimes contra a humanidade" alegadamente praticados por Bolsonaro, desta vez pela sua gestão da pandemia de covid-19.

Mais recentemente, em agosto deste ano, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também acusou o governo Bolsonaro de genocídio da população nativa, pedindo ao TPI que abra um inquérito.

Em novembro de 2019, uma denúncia contra Bolsonaro foi apresentada pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, acusando-o de incitação ao genocídio de povos indígenas e crimes contra a humanidade, ao minar a fiscalização de crimes ambientais na Amazônia.

Mais recentemente, em agosto deste ano, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também acusou o governo Bolsonaro de genocídio da população nativa, pedindo ao TPI que abra um inquérito.

O TPI não é obrigado a dar prosseguimento aos milhares de pedidos apresentados à procuradora-geral, que decide de forma independente quais os casos serão submetidos aos juízes.

Para que uma investigação formal seja aberta, a procuradoria do TPI, criado em 2002 para julgar as piores atrocidades cometidas no mundo, tem de concluir que tem mandato para tal e que a denúncia é suficiente sólida para justificar o inquérito.

Deutsche Welle Brasil, em 12.1021

Nossa Senhora Aparecida: Por que mãe de Jesus entrou para a história com mais de mil nomes

São muitos nomes, muitas "nossas senhoras". Mas elas todas se referem a uma mesma pessoa, uma mesma santa católica?

Há mais de mil representações da Virgem Maria (Getty Images)

A resposta é sim. O que significa que Nossa Senhora Aparecida, cuja data se comemora em 12 de outubro é uma representação diferente da mesma santa que também pode ser chamada de Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Lourdes e tantas outras.

Trata-se de Maria, uma jovem judia nascida em Nazaré há pouco mais de 2 mil anos, quando essas terras ao sul de Israel eram parte do Império Romano. Para o cristianismo, ela tem papel fundamental: tornou-se a mãe de Jesus Cristo.

Chamada de virgem por dois dos evangelistas, Mateus e Lucas, acredita-se que ela tinha cerca de 15 anos quando ficou grávida — pela doutrina cristã, por obra do Espírito Santo, ou seja, sem ter tido relações sexuais com homem algum. Na época, Maria já estava prometida em casamento a José, um carpinteiro da mesma cidade, mais velho, já na casa dos 30 anos.

Fato é que desta gravidez nasceria Jesus, o pilar fundador do cristianismo. Mas por que a tradição católica não rende a essa mulher apenas o título de Santa Maria, e são tantas as representações dela pelo mundo?

"Os nomes dedicados a Nossa Senhora dependem muito da forma como ela apareceu. Normalmente são dados pelo nome do lugar onde ela apareceu ou pelas condições em que se deram o aparecimento", esclarece o padre Arnaldo Rodrigues, assessor da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Cerca de 200 mil pessoas acompanharam visita do papa Francisco à cidade de Aparecida em 2013 (Marcelo Camargo / ABR)

Conforme explica a cientista da religião Wilma Steagall De Tommaso, coordenadora do grupo de pesquisa Arte Sacra Contemporânea - Religião e História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do Conselho da Academia Marial de Aparecida, essas nomenclaturas acabam variando a "cada povo, cada região, cada cultura", por conta de "títulos que correspondem aos eventos decorrentes de inúmeras situações".

Ela lembra que muitos desses títulos são os chamados dogmáticos. É de onde vem, por exemplo, a nomenclatura de Nossa Senhora da Imaculada Conceição — bula assinada pelo papa Pio IX "declara Maria imune da mancha do pecado original", ressalta a pesquisadora — ou mesmo a ideia de chamá-la de Virgem Maria, já que "o Concílio de Latrão, em 649, preconiza como verdade a virgindade perpétua", da mãe de Cristo.

"Há ainda as denominações decorrentes dos lugares onde houve uma manifestação que deu origem à devoção local, muitas vezes ampliada a outros povos e locais, como Aparecida, Guadalupe, Lourdes, Fátima, Loreto, Montserrat, etc.", complementa ela.

"Nomes diferentes são atribuídos à Virgem Maria pois estão ligados ao lugar onde ela apareceu", acrescenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. "Não existe algo que determine que ela precise, necessariamente, 'ser batizada' com o nome do território da visão, mas como inicialmente as aparições são uma manifestação de religiosidade popular, antes mesmo de passar por toda a análise canônica de praxe, é o povo que acaba difundindo, num primeiro momento, esses títulos."

"Os tantos títulos que lhe dão todos têm uma razão. É Nossa Senhora de Fátima, porque apareceu lá. É Nossa Senhora do Bom-Parto porque auxilia espiritualmente as parturientes. É Nossa Senhora do Bom-Conselho porque tem sempre uma orientação a dar aos seus filhos", afirma o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará. "E todos esses títulos são de uma só mãe, porque é mãe de toda a humanidade e em todos os lugares, os povos a chamam e representam conforme seus costumes, suas tradições. É claro que para uma veneração pública é necessária a aprovação da Igreja."

A basílica da Anunciação, em Israel, tem imagens de Maria enviadas por diferentes países do mundo; aqui é como ela seria representada na Coreia do Sul (Getty Images)

Pedido de mãe é uma ordem

A devoção a Nossa Senhora, contudo, remonta ao princípio do cristianismo. Por princípio, a ideia é que ela funcione como um canal direto ao próprio Cristo — dentro da premissa que pedido de mãe ninguém nega.

Uma passagem importante do próprio evangelho reforça essa ideia. Trata-se da narração do milagre das bodas de Caná, que aparece exclusivamente no texto de João, no qual Jesus faria aquele que é considerado seu primeiro milagre.

Na festa de casamento, onde ele estava junto a sua mãe como convidado, os anfitriões notam que havia acabado a bebida. Maria chama Jesus de lado e explica o drama. Ele, então, transforma água em vinho e garante a continuação da celebração.

"Seria um escândalo para o casal se acabasse a bebida antes de a festa terminar. Quando Maria pede a Jesus que tome uma providência, fica importante o papel dela como intercessora", analisa padre Rodrigues.

A devoção mariana também se baseia em outro momento dos textos bíblicos. Quando Jesus está agonizando na cruz, segundo o relato, ele teria dito algumas palavras para sua mãe e também para seu apóstolo João. Ali, teria utilizado o seguidor como representante toda a humanidade, considerando Maria a mãe dele — e, por extensão, a mãe de todos.

"Nesta ação, João representa toda a humanidade. Maria se tornou a mãe nossa. A nova Eva, uma Eva livre do pecado, como a Igreja nos ensina. Assim, Maria Santíssima cuida da humanidade como mãe e mãe zelosa", analisa o hagiólogo Lira.

No México, Nossa Senhora é representada com traços indígenas (Getty Images)

Antiguidade

Segundo estudos do padre Valdivino Guimarães, mariologista e ex-prefeito de Igreja do Santuário Nacional de Aparecida, os registros mais antigos dessa crença no poder da mãe de Cristo remontam ao século 2. "Indícios arqueológicos demonstram a veneração dos primeiros cristãos. Nas catacumbas de Priscila, se vê pinturas marianas do segundo século, em local onde os primeiros cristãos se reuniam", afirma ele.

"Nas catacumbas, encontramos o afresco considerado, até agora, a mais antiga imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus", comenta De Tommaso. "Esse afresco deixa evidente que os primeiros cristãos entendiam que a vinda de Jesus fora prenunciada nos livros sagrados do povo hebreu. E Maria, a mulher que disse o sim e que tece em seu ventre o corpo do Salvador. Há um ícone muito antigo conhecido como Maria, a tecelã."

A mais remota das aparições remontam ao ano 40 e seria um episódio de bilocação, na verdade, pois Maria ainda era viva. Segundo a tradição cristã, ela teria aparecido ao apóstolo Tiago na atual cidade de Zaragoza, hoje Espanha, onde ele estava pregando. Fato é que há registros da construção de uma pequena capela ali, desde os primórdios do cristianismo.

A basílica da Anunciação tem imagens de Maria enviadas por diversos países; na Escócia ela é representada como branca (Getty Images)

Outro relato sempre citado por pesquisadores é o de Nossa Senhora das Neves, uma aparição de agosto de 352, em Roma. Foi por conta desse episódio que foi erguida a Basílica de Santa Maria Maior.

"Maria é venerada desde os primórdios do cristianismo. Em muitos escritos, e inclusive na própria iconografia primitiva, ela recebe um lugar de destaque. A mais antiga antífona mariana que se tem notícia é do século 2, que é chamada, em latim, de Sub tuum presidium, ou Sob tua proteção. O Concílio de Éfeso, em 431 d.C, analisa e aprova a tese teológica de que Maria também era mãe de Deus, entre outras atribuições que ocorreram mais à frente", pontua Medeiros.

"O tema de Maria está presente em todos os períodos da história do cristianismo. Há uma tradição que aponta que a primeira aparição de Maria teria acontecido na Espanha, em 40 d.C, cujo vidente teria sido São Tiago, apóstolo de Jesus, considerado o evangelizador do território", prossegue a especialista. "O título adotado foi o de Nossa Senhora do Pilar, já que, segundo o relato, Maria teria mostrado ao apóstolo uma coluna, pedindo que ele construísse um santuário naquele lugar."

Ao longo dos séculos, contudo, esses relatos passariam a ser constantes. De acordo com padre Rodrigues, estima-se que hoje sejam cerca de 1,1 mil nomes pelos quais a santa é conhecida.

"Bom, falando do ponto de vista histórico, as aparições acontecem em períodos muito particulares", diz Medeiros. "Não cabe a nós, enquanto historiadores, julgarmos se elas são verídicas ou não, mas o fato está que muitas acontecem em meio a um determinado contexto político-social. É o caso de Fátima, cuja mensagem é muito interessante, e condiz com a postura da que a Igreja vai adotar, frente ao comunismo, nos anos posteriores. Temos o caso de Aparecida, por exemplo, cuja imagem é achada em meio ao debate em torno da abolição da escravatura. Temos o caso de Guadalupe, onde a virgem Maria, com traços indígenas, é um símbolo da luta contra a desigualdade. E por aí vai."

Mas nem sempre a Igreja aprova essas manifestações. "Nem todas as aparições que ocorrem hoje foram oficialmente reconhecidas pelo catolicismo. Há um protocolo a ser seguido. Sem contar que algumas são reconhecidas totalmente e diante de outras, ainda em fase de análise, foi permitida somente a liberdade de culto", lembra ela. "O que a suposta Virgem Maria diz, no caso, precisa condizer totalmente com os princípios da Igreja Católica e até a idoneidade moral e psicológica dos videntes é analisada."

A devoção à Maria é muito antiga no catolicismo (Getty Images)

A padroeira do Brasil

Autora do livro 21 Nossas Senhoras que inspiram o Brasil, a jornalista Bell Kranz conta que a devoção mariana foi trazida ao Brasil já pelas esquadras de Pedro Álvares Cabral — em um dos barcos foi trazida uma imagem da santa. "[A tradição] chegou essencialmente pelos portugueses, pelos colonizadores", explica. "O Tomé de Sousa [primeiro governador-geral do Brasil] chegou à Bahia já com uma imagem da santa na bagagem… Nossa Senhora da Conceição! E logo erigiu uma capelinha em Salvador, que hoje é a grande catedral Conceição da Praia [Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia]."

"Eu diria que o Brasil foi escolhido por Nossa Senhora, não é fanatismo dizer isso", comenta Lira. Para ele, há uma "predileção especial de Nossa Senhora para com esta terra".

"Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Candeias (a mesma da Candelária e da Purificação), Nossa Senhora Aparecida (que é a mesma Conceição), penso que são as mais importantes para o Brasil pela veneração que o povo lhes atribui", acrescenta o hagiólogo.

"É claro que cada Estado brasileiro tem sua devoção. Por exemplo, na Bahia há uma forte devoção à Nossa Senhora da Boa-Morte. Em Minas Gerais, Nossa Senhora da Piedade que é a mesma Nossa Senhora das Dores e por aí vai. No Pará, em Belém, temos a linda manifestação à Nossa Senhora de Nazaré que anualmente leva milhões ao Círio de Nazaré. Aqui no Ceará é interessantíssima a devoção a Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, por exemplo. E qual a razão? Não dá para explicar concretamente. É algo meio que filial mesmo. Amor de filho à sua mãe e uma mãe que é mãe de todas as mães, pais e filhos."

Kranz atenta para o fato de que, dada a religiosidade católica inerente à própria construção da nação brasileira, "desde a colonização, Nossa Senhora está presente em todos os momentos de nossa história".

E a ligação brasileira com a santa é umbilical. Isto porque, como bem lembra a jornalista, em 1646 o então rei português dom João 4º"consagrou todo o reino, incluindo aí as colônias, a Nossa Senhora". "Aí, 217 anos depois do descobrimento do Brasil, ela apareceu lá para os pescadores [Nossa Senhora Aparecida]", acrescenta Kranz.

Nossa Senhora

Maria se tornou "Nossa Senhora", assim chamada, somente no fim do período medieval. Mas, historicamente, a Igreja já a reconhecia como "Mãe de Deus" muito antes — mais precisamente a partir do século 5, depois do Concílio de Éfeso, em 431. "[É quando] Maria recebe o título de Thotòkos, a Mãe de Deus, dogma que define explicitamente a maternidade divina de Maria. Daí em diante, ela passa a ocupar, por exemplo, o posto principal, o conteúdo da imagem do presépio se amplia e praticamente esse ícone resume a história da salvação", esclarece De Tommaso.

De acordo com o mariologista Guimarães, Maria "ganha destaque sociológico, cultural e religioso" no período medieval. É quando ela adquire "caráter de poder", tornando-se "aquela que destrói o mal". Assume características fortes, "ganha rosto de rainha". Assim, passa a ser invocada como "guerreira", "a mulher que combate o mal e, com poder militar, destrói as heresias".

"Maria passa da dimensão cultural para a política", compara ele. "No período feudal, diante da opressão, Maria se torna a padroeira para os que nela buscam auxílio, e em troca de proteção, o fiel a louva com oração e atos de caridade."

A santa passa a ser invocada "como a mãe que protege diante da ira de Deus, por algum pecado cometido, não só de forma individual mas também comunitária".

"Com o surgimento das ordens mendicantes, Maria se aproxima das pessoas, ela é tirada do trono de realeza, onde fora colocada pela teologia monástica, e se faz irmã, pobre e vizinha das pessoas", diz Guimarães.

Ao fim do período medieval, Maria já era um ícone consolidado dentro do catolicismo, tema constante das pregações e protagonista de tradições como medalhinhas, procissões, novenas e outras manifestações.

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Nalini: Ossos e pés de galinha

Uma das sensações mais desagradáveis que recentemente me acometeram, veio de duas notícias. A primeira, a de que boa parcela da população estava a consumir pés de galináceos em lugar da carne nobre dessas aves. 

O pé sempre foi refugado, até em lares modestos. Quando muito, entrava na canja, mas era deixado de lado.

Agora, é bem de consumo disputado. Talvez o único a que têm acesso os que viram sua renda reduzir-se, drasticamente, em virtude do combo de crises em que estamos imersos.

Nada se comparou, todavia, com a foto e texto de pessoas disputando ossos num caminhão. A que ponto se chegou na terra em que “se plantando tudo dá”! Isso é real, não é invenção da mídia fantasiosa e conspiradora, que atua contra o progresso em que o Brasil se encontra, na fantasiosa narrativa de quem não tem de comer pé de frango, nem correr atrás de carrocerias repletas de ossos.

Parece o coroamento ou a culminância de uma série de fatos que só podem nos entristecer. O desmatamento ignorante e cruel de nossas florestas, a poluição de nossos rios, o desmanche das estruturas tutelares da ecologia, da qual o País tanto se orgulhava e que rendeu encômios a esta Nação que despontava como potência verde.

A pandemia já escancarara os milhões de invisíveis, de informais, desempregados ou subempregados. Pesquisas recentes mostram que 55% dos jovens estão insatisfeitos com o Brasil. 47% deles deixariam o País se pudessem. Até os haitianos desistem desta terra antes acolhedora e se arriscam a serem mortos, porque tentarão entrar de qualquer maneira nos Estados Unidos.

O impressionante é o grupo coeso e fanatizado dos que acreditam que tudo está bem, porque o comunismo foi eliminado do horizonte desta Terra de Santa Cruz. O esfarrapado argumento de que já não existe corrupção é insustentável. É suficiente a leitura da mídia espontânea, aquela que não é alimentada pelo Estado.

Será que além das crises ética, moral, política, econômico-financeira e sanitária, também somos vítima de uma imbecilização total? O que aconteceu com o discernimento, com a lucidez, com o brio, com a sacrossanta capacidade de indignação?

Há um resquício de esperança. Vem da postura do empresariado, que sobreviveu ao desvario governamental, suportou a imprevisibilidade das regras, não tem por si o Erário – que satisfaz a volúpia de gastos de quem nunca teve tanto melado à disposição – e está atuando por si, sem levar o governo a sério.

Empresas que procuram atuar na urgência da descarbonização, fundos que desinvestem na anacrônica exploração de combustíveis fósseis, que fazem reflorestamento, que mostram ao planeta que o Brasil ainda tem nichos de lucidez. Levam entidades da Federação que integram o chamado subgoverno ou governos regionais e locais a prestigiarem a corrente mundial para a conversão da humanidade, fazendo-a assumir posturas condizentes com o maior perigo que já nos ameaçou: o aquecimento global.

É saudável verificar que Governadores dos Estados-membros vão participar da Cop-26, onde faríamos péssima figura, na condição de “Pária ambiental”, para mostrar que a proteção do nosso maior patrimônio, a nossa natureza, entrou na agenda de verdadeiras lideranças. Aquelas que não negam a ciência, que não são terraplanistas, que zelam pela saúde da cidadania e que estão aflitas com o que aí vem. Na verdade, já veio. Ou é por acaso que o Brasil enfrenta a maior crise hídrica do século? Ou é normal que cidades interioranas paulistas ostentem fenômeno típico do deserto saariano?

Um excelente exemplo, que deve servir de inspiração para a Academia, foi o festo de Harvard, cujos Fundos milionários não investirão mais em empresas que explorem combustíveis fósseis. Carvão, gasolina, diesel, devem ser banidos. Se o Brasil tivesse estimulado a pesquisa pura, teríamos talentos voltados à descoberta e produção de energia limpa. Não veríamos a lamentável fuga de cérebros, recrutados pelo Primeiro Mundo, já que aqui não há espaço para eles.

O brasileiro sério, de reta intenção e de boa vontade, não pode pactuar com uma situação que parece ter ultrapassado qualquer limite na decência e na tolerabilidade. Vamos buscar o que restou de ética em nossa consciência e atuar no sentido da restauração do que é exigível numa República: trabalho honesto, observância da ética e prestação de contas – com a maior transparência – ao verdadeiro titular do que resta da relativizada soberania: o povo brasileiro.

José Renato Nalini, o autor deste artigo, é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 06.10.21.

Atrás do próprio rabo

Tanto para Lula quanto para Bolsonaro, centro é uma palavra despida de conceitos

Dois candidatos a presidente e uma ideia fixa: a utopia do centro. Bolsonaro, que se acha predestinado a manter-se no poder, por sua conta e risco; e Lula, que se imagina garfado pela História e quer reaver o lugar.

O primeiro, só pensa em golpe. O segundo, em compensação por um golpe que não houve. Impeachment não é golpe. É processo político constitucional.

Lula acredita ter direitos adquiridos depois de vencer quatro eleições presidenciais, duas para ele mesmo e duas para um poste.

Ambos dedicam-se a reconquistar os votos do centro que, um dia, acidentalmente, foram seus. Imaginem, logo os eleitores do centro! Equidistantes dos extremos que os dois, de fato, representam. Há um impasse a romper. Sozinhos, não vencem. E os votos do centro mantêm-se ainda perplexos. Preferem a alternativa de esperar que surja o seu candidato confiável.

Bolsonaro e Lula, imperturbáveis, vão em frente. Não conseguem despir, em público, a condição de radicais. Ao prometer vestir o figurino da moderação, em particular, parecem andar em círculos, atrás do próprio rabo. Articulam como se montassem uma equação aritmética. Tentam engatar líderes e estruturas, esperando, assim, arrastar a maioria a seu favor. Acham-se capazes de atrair os fiéis da balança para continuar girando a roda da fortuna.

O convite de Bolsonaro ao ex-presidente Temer (MDB) para ajudá-lo a superar sua frustrada tentativa de golpe do 7 de Setembro deixou seus fanáticos à beira de um ataque de nervos. Entre incredulidade e reclamações, os radicais não entenderam o alcance da manobra. Assim como não compreendem que o eleitorado disponível nesta faixa seja indispensável para superar seus limites de 30%.

Bolsonaro os contém, enquanto reforça sua parceria com o Centrão, designação pejorativa de parte do centro eleitoral. Deu a Casa Civil da Presidência a Ciro Nogueira e a presidência da Câmara a Arthur Lira, com o cofre ao alcance da mão. E a ordem, implícita: Façam o que quiserem, sobretudo no Nordeste, mas tragam os seus currais.

Quanto a Lula, resolveu que já era tempo de dar uma satisfação aos enciumados petistas históricos. Menos barulhentos, não precisaram de consolos públicos. Convidados a participar, com ele, dos conchavos e decisões, vieram imediatamente. Esta semana, Lula desembarcou em Brasília, reuniu bancadas, chamou governadores. Até então, o ex-presidente conduzia uma campanha tão fechada que seus amigos o imaginavam desdenhando a disputa. Capaz até de dela desistir.

O ex-presidente estava apenas, e ainda está, integralmente ocupado em buscar o centro. Negocia com o MDB, procura o PSD, o Solidariedade, o PSDB e a quem mais possa corresponder aos seus acenos.

Lula age abertamente. Arranca declarações amigáveis do ex-presidente Fernando Henrique (PSDB) enquanto espera os dissidentes perdedores das prévias para escolha do candidato tucano. Recebe as bênçãos do ex-presidente Sarney (MDB) em encontro reservado antes do jantar, esta semana, que o reunirá com a velha guarda do partido.

Repete seu próprio roteiro de 2002. Quando, declarando-se cansado de perder as disputas anteriores (para Collor e FHC), atribuindo-as ao isolamento do PT, exigiu que se fizessem composições. Só seria candidato com alianças amplas, gerais e irrestritas. Decisão que o levou à vitória, à governabilidade, e à infeliz associação que o integrou ao elenco da Lava Jato.

Tanto para Lula quanto para Bolsonaro, centro é uma palavra despida de conceitos. Sejam geográficos, geométricos, políticos, ideológicos, sociológicos. Para eles, centro não é um ponto de convergência de ideias e programas. É simplesmente um pacote de votos que lhes faltam para vencer.

Jornalista Rosângela Bittar escreve semanalmente sobre o cenário político do País. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 06.10.21

O que importa é o caráter

É descabida a pretensão de limitar a trajetória pública de uma pessoa em razão de sua orientação sexual. Na vida pública, o que se exige é competência e honestidade

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, estabelece a Constituição de 1988, reconhecendo expressamente um dos fundamentos da República: o princípio da igualdade. Onde há discriminação não há verdadeira República, não há Estado Democrático de Direito.

Tudo isso pode parecer óbvio, mas ainda há muito a aprimorar, tanto na atuação do Estado como na própria compreensão da sociedade a respeito do princípio da igualdade. Não cabem discriminações, mas o fato é que ainda existem muitas discriminações, explícitas ou veladas.

Os tempos avançam, antigas batalhas por reconhecimento e igualdade ganham visibilidade, as novas gerações expressam novas percepções e sensibilidades. Mas ainda persistem preconceitos que ferem o princípio da igualdade de todos perante a lei. Circunstâncias pessoais, como cor da pele, religião ou orientação sexual, que não deveriam ter relevância pública – não são critérios aptos a diferenciar pessoas na vida pública e, portanto, são a rigor um “não assunto” –, continuam sendo usadas para diminuir, ridicularizar e estigmatizar determinados grupos e indivíduos.

Na semana passada, ao rebater na CPI da Pandemia um comentário preconceituoso publicado em uma rede social, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) recordou um aspecto fundamental da vida em sociedade. “Eu aprendi que a orientação sexual não define o caráter, que a cor da pele não define o caráter, que o poder aquisitivo não define o caráter”, disse.

Primeiro senador a assumir publicamente a homossexualidade, Fabiano Contarato fez uma vigorosa defesa do princípio da igualdade e da não discriminação. “Eu sonho com o dia em que eu não vou ser julgado por minha orientação sexual. Sonho com o dia em que meus filhos não serão julgados por ser negros. Eu sonho com um dia em que minha irmã não vai ser julgada por ser mulher e que o meu pai não será julgado por ser idoso”, afirmou.

É inteiramente descabida num Estado Democrático de Direito a pretensão de limitar a trajetória pública de uma pessoa em razão de sua orientação sexual. Infelizmente, mesmo que isso não seja dito explicitamente, ainda se constata uma confusão entre a esfera pública e a esfera privada, com a tentativa de desqualificar pessoas para determinados cargos públicos ou privados em razão de sua conduta sexual privada ou mesmo de sua compreensão sobre a própria sexualidade.

São, portanto, especialmente significativas – e corajosas – atitudes como a do senador Fabiano Contarato e a do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB-RS), assumindo sua homossexualidade. “Neste Brasil, com pouca integridade neste momento, a gente precisa debater o que se é, para que fique claro e não se tenha nada a esconder. Eu sou gay, e sou um governador gay. Não sou um ‘gay governador’, tanto quanto (Barack) Obama nos Estados Unidos não foi um ‘negro presidente’. Foi um presidente negro. E tenho orgulho disso”, disse Eduardo Leite, em entrevista à TV Globo no mês de julho.

Na ocasião, apareceram muitas manifestações de apoio ao governador do Rio Grande do Sul, mas também surgiram críticas de diversas posições ideológicas e sob os mais variados motivos. Repetimos: a rigor, num regime republicano, declarações como a de Eduardo Leite não deveriam ter a menor relevância na esfera pública. Todos são iguais perante a lei.

Viver em sociedade significa conviver com a diferença, com a pluralidade de ideias, com a diversidade de concepções morais. Numa República, ninguém deve ser privado de direitos em razão de sua etnia, de sua orientação sexual, de suas escolhas religiosas ou de suas preferências filosóficas. Como também ninguém deve ser privado de almejar determinados cargos, públicos ou privados, em razão de suas circunstâncias pessoais, como se o interesse público exigisse um patamar de invisibilidade a determinadas pessoas ou grupos.

Na vida pública, o que se exige é competência e honestidade. Mais caráter e menos preconceito fariam muito bem ao País.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de outubro de 2021 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Um Poeta

Bonfim Tobias


                                             Entrelaces


Ser poeta ou ser apenas médico,

Esse contraste que a vida tem,

É ser um sonhador ou ser um cético,

Ver só a realidade ou ver além!


Contraste entre a miséria e o estético

Da rosa e do espinho que ela tem,

De quem pensa estrelas e do herético,

De quem vive a alma ou vive sem!


Ser poeta é a ânsia de saber

A vida muito além desta existência,

Ser médico é o desejo de querer


Prolongar está pouca permanência!

Médico e poeta, é a busca e a dor:

Saber a vida é a morte com Amor!


O Brasil precisa olhar para as mulheres vítimas de violência

De modo geral, a violência armada e os homicídios acontecem nas ruas, sobretudo no caso da vitimização masculina. Mas, entre as mulheres, chama atenção que 26% das vítimas de homicídio com emprego de arma de fogo em 2019 sofreram a agressão fatal em casa

Mulheres se emocionam em ato contra a violência em Fortaleza. (Victor Moiyama)

A violência contra a mulher é um fenômeno que afeta a sociedade globalmente, produz impactos do ponto de vista individual e social em diversas esferas, como saúde, educação, trabalho e renda, e cujos danos podem se estender por gerações. No âmbito da violência doméstica, prevalece aquela provocada pelo parceiro íntimo, que passa a se manifestar e a atingir as mulheres desde a juventude, avançando na fase adulta e comprometendo sua vida ao longo das fases reprodutiva e produtiva. Relatório global da Organização Mundial da Saúde estima que na região da América Latina e Caribe a violência provocada por parceiro íntimo atinge 25% das mulheres entre 15 e 49 anos.

No recente estudo elaborado pelo Instituto Sou da Paz, o comportamento dos indicadores criminais do estado de São Paulo durante o primeiro semestre de 2021, chama a atenção, por um lado, a redução geral de ocorrências violentas, como homicídios e roubos, e, por outro, o aumento de ocorrências de violência contra a mulher e de estupros, em comparação com o primeiro semestre de 2020. Se em 2021 os homicídios sofreram redução de 3% no estado, os homicídios de mulheres cresceram 2,6% e as lesões corporais dolosas contra mulheres, 5,4%. As ocorrências de estupro, que atingem majoritariamente as mulheres, também aumentaram, sobretudo as de estupro de vulneráveis, que correspondem a 77% desses casos de violência sexual e tiveram crescimento de 17,5% neste primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano anterior.

É preciso observar esses indicadores no contexto da pandemia da covid-19, visto que o isolamento social afetou a dinâmica de crimes e violências. No primeiro semestre de 2020, quando tivemos o primeiro isolamento amplamente instituído, observou-se uma queda dessas ocorrências em relação a 2019, não só em São Paulo mas também em outros estados. Considerando que as agressões contra as mulheres e a violência sexual contra vulneráveis prevalecem no ambiente doméstico, nota-se que a queda nos registros de lesões corporais e de estupros durante o primeiro momento de isolamento social refletiu antes a subnotificação desses crimes do que sua redução. Com maior exposição e vulnerabilidade a violências que ocorrem dentro de casa e maior dificuldade de acessar canais institucionais para denúncia e atendimento dos casos, os registros sofreram uma redução expressiva no primeiro semestre de 2020.

Instituto Sou da Paz: O acesso às armas é a única resposta de Bolsonaro para melhorar a segurança pública?

Assim, o aumento observado em 2021 sinaliza para uma retomada dos registros que vem resultar em estatísticas mais aproximadas da realidade, ou menos subnotificadas, dando visibilidade para a gravidade e recorrência desse tipo de violência. No Brasil, pesquisas de vitimização —como as realizadas pelo Datasenado, em 2019, e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021— indicam que ao menos 1/4 das mulheres já sofreram algum tipo de agressão, que seu parceiro, companheiro ou ex-companheiro, prevalece entre os agressores, assim como a casa permanece como o principal local onde ocorre o evento violento. E que não chegam a 30% as vítimas que recorrem a instituições como a polícia ou o Disque 180 para fazer a denúncia.). A denúncia é um passo importante para romper o ciclo de violência que caracteriza a violência doméstica e pode se agravar até chegar ao feminicídio, que é o assassinato de mulheres por razões de gênero.

Em relação à morte violenta de mulheres, a partir de dados da saúde, estima-se que no país 1/3 dos assassinatos estão relacionados à violência de gênero, visto que provocados por um parceiro ou ex-parceiro e ocorridos em residências. Os dados da segurança pública, que passaram a ser produzidos a partir da Lei do Feminicídio (2015), se alinham à estimativa ao indicar que os casos de feminicídio corresponderam a 34,5% dos homicídios de mulheres brasileiras em 2020 e, no estado de São Paulo, essa proporção chegou a a 42% (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2021).

Aqui um ponto merece atenção: a arma de fogo é o principal instrumento empregado no assassinato de mulheres, estando presente em cerca de 50% dos casos ocorridos nas últimas duas décadas, conforme indicado em outra análise do Instituto Sou da Paz sobre o Papel da Arma de Fogo na Violência contra a Mulher.

De modo geral a violência armada e os homicídios acontecem nas ruas, sobretudo no caso da vitimização masculina. Mas, entre as mulheres, chama atenção que 26% das vítimas de homicídio com emprego de arma de fogo em 2019 sofreram a agressão fatal em casa. Ainda, 40% das mulheres atendidas no sistema de saúde, vítimas de algum tipo de violência com arma de fogo que não resultou fatal, sofreram a agressão armada em casa —casa que se tornou em 2019 o principal local deste tipo de incidente, à frente da rua. Esses dados evidenciam o risco que a arma de fogo representa no agravamento dos conflitos interpessoais e domésticos ao contribuir para desfechos fatais e/ou danos graves à saúde das vítimas.

Frente à complexidade do problema, já temos grandes desafios para fortalecer e expandir as políticas públicas de enfrentamento da violência contra a mulher, garantindo a implementação de mecanismos de proteção e de acolhimento. No contexto atual, frente aos retrocessos na política de controle de armas, é preciso atentar para o risco que a facilitação do acesso às armas de fogo pode representar em relação ao agravamento dos conflitos interpessoais e da violência doméstica. Defender uma política responsável de controle de armas no país é também um requisito fundamental para avançarmos no enfrentamento da violência contra a mulher.

Cristina Neme é coordenadora de Projetos do Instituto Sou da Paz. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 05.10.21

Consumo de pé de galinha em alta e outros 5 dados que revelam retrato da fome no Brasil

Primeiro, foi a fila quilométrica em um açougue de Cuiabá, no Mato Grosso — maior Estado produtor e exportador de carne bovina do país —, para receber ossos. Depois, cariocas garimpando restos em um caminhão de ossos e pelancas descartadas por supermercados.

São 19 milhões de brasileiros passando fome, uma em cada três crianças anêmicas e um auxílio emergencial médio que só compra 38% da cesta básica. (Ednúbia Ghisi e Regis Luis Cardoso - Fotos Públicas)

E assim, dia após dia, as imagens da fome vão voltando ao noticiário nacional.

Eram 19,1 milhões de brasileiros com fome em 2020, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).

Em relação a 2018 (10,3 milhões), são quase 9 milhões de pessoas a mais nessa condição.

O auxílio emergencial que, no ano passado, em seu valor máximo (R$ 1.200), chegou a comprar duas cestas básicas e sobrar, agora, mesmo em seu maior valor (R$ 375) não compra nem 60% da cesta da região metropolitana de São Paulo.

Em meio a essa realidade, as crianças são as mais afetadas, já que são os lares com pequenos os mais propensos a estarem na pobreza e na extrema pobreza.

Mesmo antes da pandemia, uma em cada três crianças brasileiras sofria de anemia por falta de ferro, segundo estudo da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

Confira esses e outros dados que mostram como a fome voltou a ser um drama cotidiano no Brasil.

1) Aumento de 85% no número de brasileiros com fome em dois anos

A pandemia do coronavírus teve um efeito devastador sobre a segurança alimentar no Brasil, revelaram estudos da Rede Penssan e da Universidade Livre de Berlin publicados este ano.

No país, a fome atingiu 19,1 milhões de pessoas em 2020, parte de um contingente de 116,8 milhões de brasileiros que convivam com algum grau de insegurança alimentar — número que corresponde a 55,2% dos domicílios, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Penssan.

Pessoas em situação de rua recebem marmitas nas ruas de São Paulo. Março de 2021 (Getty Images)

A insegurança alimentar abrange desde a alimentação de má qualidade, passando pela instabilidade no acesso a alimentos, até a fome propriamente dita.

O aumento no número de brasileiros passando fome, de 10,3 milhões em 2018, para 19,1 milhões em 2020, representa um crescimento de 85% em dois anos.

O resultado fez a Oxfam — organização internacional que atua no combate à pobreza, desigualdade e injustiça social — classificar o Brasil como um dos focos emergentes de fome no mundo, ao lado da Índia e da África do Sul.

De acordo com estudo do grupo de pesquisas Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy (Comida por Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares em uma Bioeconomia, em tradução livre), da Universidade Livre de Berlim, a insegurança alimentar é marcadamente desigual.

Os mais altos percentuais de insegurança alimentar são registrados em famílias com apenas um responsável pela geração de renda (66,3%).

Isso se acentua ainda mais quando essa responsável é uma mulher (73,8%) ou uma pessoa parda (67,8%) ou preta (66,8%).

Também é maior nas residências com crianças de até 4 anos (70,6%), nas regiões Nordeste (73,1%) e Norte (67,7%) e nas áreas rurais (75,2%).

Não é só efeito da pandemia: por que 19 milhões de brasileiros passam fome

Em meio à exportação recorde de alimentos, seca e pandemia agravam fome no campo

2) Uma em cada três crianças com anemia

De cada três crianças brasileiras, uma apresenta um quadro chamado anemia ferropriva, revelou um estudo da UFSCar publicado em julho deste ano.

A anemia ferropriva é marcada pela falta de ferro no organismo. Esse nutriente é encontrado no leite materno, na carne vermelha e em alguns vegetais, como as folhas verde-escuras, o feijão e a soja.

Prevalência de anemia por falta de ferro atingia 33% das crianças brasileiras mesmo antes da pandemia. Na foto, bebê é pesada por voluntárias da Pastoral da Criança (Getty Images)

As crianças com deficiência de ferro sofrem alterações no desenvolvimento do cérebro que, mais para frente, se manifestam na forma de dificuldade de aprendizado, sonolência e desânimo. Muitos desses problemas repercutem pela vida toda e são irreversíveis.

Para chegar ao resultado, os especialistas da UFSCar compilaram dados de outros 134 estudos feitos entre 2007 e 2020, que reuniram informações sobre a saúde de 46 mil indivíduos com menos de 7 anos de idade de todas as regiões do Brasil.

Os dados, no entanto, só vão até o início de 2020, o que traz um alerta: a situação pode ter se agravado ao longo da pandemia, diante da acentuada queda no consumo de carne vermelha no país, em meio à forte alta de preços.

Estudo alerta: uma em três crianças sofre de anemia no Brasil

3) Menor consumo de carne bovina em 26 anos

Em 2021, o consumo de carne bovina no Brasil deverá ser de 26,4 quilos por pessoa, uma queda de quase 14% em relação a 2019, ano anterior à pandemia, e de 4% ante 2020.

Esse é o menor nível registrado para consumo de carne bovina no país em 26 anos, segundo a série histórica da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), com início em 1996.

Consumo de carne bovina no Brasil deve cair em 2021 ao menor patamar em pelo menos 26 anos (Amanda Perobelli / Reuters)

Até agosto, as carnes acumulavam aumento de preço de 30,8% em 12 meses, bem acima da alta de 9,68% da inflação geral, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A alta de preços da carne começou antes da pandemia, puxada pela demanda da China, cujo rebanho suíno foi fortemente afetado pela peste suína africana.

A tendência foi acentuada no ano passado pela alta do dólar, que estimula as exportações, reduzindo a oferta do produto no mercado interno.

Pesaram ainda a seca, que piora a qualidade do pasto e aumenta a necessidade de uso de ração, elevando o custo de produção; e o menor abate de fêmeas, que são retidas pelos pecuaristas para produzir novos animais, aproveitando a alta de preços.

Então foi assim que a carne vermelha sumiu do prato dos brasileiros mais pobres.

Por que o consumo de carne bovina no Brasil deve voltar em 2021 ao patamar de décadas atrás

4) Auxílio emergencial não compra mais uma cesta básica

Um dos fatores que explica a crescente dificuldade dos brasileiros em se alimentarem adequadamente é a perda do poder de compra do auxílio emergencial, em meio à redução do valor do benefício e à alta da inflação.

Em abril de 2020, quando o auxílio começou a ser pago, ele tinha valores que variavam de R$ 600 a R$ 1.200. Naquele mês, a cesta básica custava R$ 556,36 em São Paulo, segundo dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

Ou seja: mesmo com o valor mais baixo, era possível comprar todos os produtos da cesta e ainda sobrava algum dinheiro.

Protesto pela manutenção do auxílio emergencial em R$ 600. Brasília, maio de 2021 (MST / Foto Pública)

De abril de 2020 a agosto deste ano, o valor da cesta básica paulistana subiu 16,9%, segundo o Dieese, para R$ 650,50.

Já o auxílio emergencial foi na direção oposta, tendo seus valores reduzidos em 2021 para R$ 150, R$ 250 ou R$ 375.

Assim, quem recebe o valor mais baixo só consegue comprar atualmente 23% da cesta básica. Quem recebe o valor médio, 38%. E mesmo quem recebe o valor mais alto — pago às mães solteiras chefes de família — só consegue comprar 58% da cesta.

Considerando que as pessoas também têm aluguel e contas básicas para pagar, a perda do poder de compra do auxílio emergencial dá uma dimensão da precariedade em que têm vivido os brasileiros mais pobres.

5) Consumo de pés de galinha e miojo

Outros indicadores da piora das condições de alimentação do brasileiro estão nos próprios alimentos consumidos.

Segundo dados da Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães e Bolos Industrializados), o consumo de macarrão instantâneo movimentou R$ 3,2 bilhões em 2020, ante R$ 2,7 bilhões em 2019.

Em toneladas, o consumo cresceu de 167 mil para 189 mil entre os dois anos, refletindo o aumento da prática de cozinhar em casa durante a pandemia, mas também a perda de renda da população, que recorre ao miojo como um alimento barato.

Nos açougues, em meio aos preços proibitivos da carne, consumidores recorrem a cortes antes desprezados pela maioria, como pés e miúdos de galinha.

"Antes da pandemia se vendia cerca de 100 quilos de pé de frango no mês, agora estamos vendendo em torno de 250 quilos", disse José Carlos Viale, dono de um açougue em São José do Rio Preto, ao Diário da Região.

"Sempre teve saída, mas as pessoas compravam em menor quantidade e para tratar animal. Agora, temos famílias que chegam a comprar dois quilos de pé e pescoço por semana", relatou o empresário ao jornal.

Geisa Stefanini, de 32 anos, morreu após ter parte do corpo queimado ao tentar cozinhar com álcool (Reprodução Redes Sociais).

6) Aumento das queimaduras provocadas por cozinhar com álcool

Diante da alta do preço dos alimentos e do botijão de gás, muitas famílias têm tido que escolher entre a compra de comida ou do combustível.

Em agosto, o preço médio do botijão de gás de 13 kg estava em R$ 93, segundo a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), mas já superava os R$ 100 em diversos Estados brasileiros, como Mato Grosso (R$ 114), Rondônia (R$ 111), Amapá (R$ 109), Roraima (R$ 109) e Pará (R$ 102).

Em meio aos preços proibitivos, as notícias de queimados por cozinhar com álcool se multiplicam. Isso num momento em que o acesso ao álcool etílico mais inflamável, com concentração de 70%, foi popularizado pela pandemia.

Em Goiás, segundo o portal Metrópoles, em menos de dois meses, pessoas de três famílias diferentes sofreram queimaduras e foram internadas depois de usarem álcool para cozinhar.

Na mesma situação, um homem morreu, em julho, em Goiânia, com 50% do corpo queimado.

Em 27 de setembro, morreu Geisa Stefanini, de 32 anos, que teve parte do corpo queimado após usar álcool combustível para cozinhar em sua casa em Osasco, na Grande São Paulo, segundo o G1. O bebê dela de 8 meses teve 18% do corpo queimado, mas sobreviveu.

BBC News Brasil, em 05.10.21