domingo, 18 de julho de 2021

Como a devastação no Cerrado afeta a quantidade de água que corre na sua torneira

Bioma, que concentra 5% da biodiversidade do planeta e funciona como uma enorme caixa d’água que irriga quase metade do Brasil, agora sofre com um ritmo de desmatamento avassalador

Pôr do sol no Parque Chapada dos Veadeiros, em Alto Paraíso, no Goiás.( FREDERICO VIANA)

Pouca gente sabe, mas a soja, em termos de área ocupada, responde por 80% da agricultura do Cerrado. Aproximadamente 50% da produção desse grão está concentrada no bioma. Ou seja: são mais de 18 milhões de hectares ocupados com uma única espécie nessa savana, que é a mais biodiversa do mundo.

Aproximadamente 5% da biodiversidade do planeta estão concentrados no bioma, com uma alta taxa de endemismo, de cerca de 40%. Não precisa ser especialista em conservação para perceber que a expansão de uma única cultura sobre o Cerrado coloca essa riqueza natural em risco. O que talvez nem todos tenham percebido é que uma riqueza subterrânea também está ameaçada pelo avanço do agronegócio desordenado.

O Cerrado, que se estende por 2 milhões de quilômetros quadrados no Brasil, Paraguai e Bolívia, é uma região com alta concentração de águas, com nascentes, rios e reservas subterrâneas. Por isso, funciona como uma enorme caixa d’água, que irriga 40% do território nacional através de importantes bacias hidrográficas que, por sua vez, abastecem rios nas demais regiões do país. Sua topografia elevada facilita o escoamento dessas águas.

Para se ter uma ideia, essa região é o berço de nada menos do que oito das 12 principais bacias hidrográficas do país. São elas: Amazônica, Tocantins-Araguaia, Atlântico Nordeste Oriental, Bacia do Parnaíba, São Francisco, Atlântico Leste, Paraná e Paraguai.

Apostar apenas no agronegócio de escala industrial como única opção econômica para a região transforma o perfil da paisagem, reduzindo nascentes, assoreando rios e comprometendo o meio ambiente. Resultado: perspectiva de crises hídricas cada vez mais sérias e intensas no nosso país. E o sinal amarelo já foi dado: hoje restam apenas 50% da vegetação nativa do bioma.

Vejamos o exemplo da pequena Cristalina, em Goiás, um dos berços do sistema que leva água para 60 milhões de brasileiros, pois é cortada por mais de 200 rios e riachos que desembocam no Rio Paranaíba que, por sua vez, ajuda a formar o Rio Paraná.

O Rio Paraná com seus afluentes forma uma enorme bacia de drenagem que abrange cinco estados do país (São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e o Distrito Federal), parte da região central da América do Sul, norte da Argentina e sudeste da Bolívia. Além disso, é o que possui maior capacidade de produção e demanda de energia do país.

O que se observa nos últimos anos é a redução da vazão de água nessa importante bacia ―parte por causa do período de estiagem, mas também por algo que pode ser evitado: o desmatamento. Cristalina e os municípios vizinhos, perto de Brasília, perderam, entre 1985 e 2019, 33% de sua extensão na microbacia Paranaíba 3, segundo o MapBiomas (que faz o mapeamento dos biomas). Em toda a bacia do Paraná foram dizimados 4,2 milhões de hectares de mata nativa no mesmo período.

Diante da grave crise hídrica que afeta o Brasil e pode comprometer o abastecimento tanto de energia elétrica, como de água potável, é urgente que o país olhe com mais atenção para o Cerrado. Afinal, à medida que a interferência de grandes empreendimentos de maneira desordenada avança sobre esse bioma, além do inestimável prejuízo com a perda de animais e plantas, vamos comprometendo toda bacia hidrográfica do Brasil e de regiões vizinhas do Paraguai e da Bolívia.

Como se não bastasse o prejuízo claro às nascentes e aos rios, o Cerrado sofre com os incêndios ―e sofre mais até do que a Amazônia, pois metade de sua vegetação nativa já foi destruída. Dados do WWF-Brasil revelam que, apenas em maio, o número de queimadas sem planejamento e de desmatamento na região ultrapassou todos os recordes dos últimos anos.

O ritmo de desmatamento é avassalador e cresceu 16,9% em junho deste ano e 6,3% no acumulado do primeiro semestre, em comparação com 2020. A área natural perdida em junho foi de 511 km2. Nos primeiros seis meses do ano, foram devastados 2.638 km2 de mata nativa―um aumento de mais de 20% com relação ao mesmo período do ano passado.

Se olharmos detidamente para a importância desse bioma, considerando seu valor além das bacias hidrográficas, percebemos que essa é a savana mais biodiversa do mundo. Além disso, a destruição da paisagem do Cerrado pode favorecer os focos de incêndio em reservas naturais como o Pantanal, por exemplo ―a maior planície alagada do mundo. Com o impacto no Cerrado, os níveis de água no Pantanal são afetados e deixam essa área mais vulnerável a pegar fogo. E o desmatamento avançando sobre uma área tipicamente seca traz ainda mais insegurança hídrica. Tudo porque as raízes profundas da vegetação desse bioma funcionam como captadoras da água da chuva e abastecem os reservatórios subterrâneos. Com o desmatamento, interrompemos esse ciclo.

No meio desse cenário tão desafiador de incêndios e exploração intensiva, iniciativas como o Projeto Ceres (iniciais de Cerrado Resiliente) surgem como um sopro de esperança. Ao unir recursos robustos da União Europeia (serão 5,5 milhões de euros) e de organizações não governamentais do Brasil e Paraguai, como ISPN, WWF-Brasil e WWF-Paraguai, com coordenação do WWF-Holanda, a iniciativa pretende atuar com os diversos atores, como pequenos e médios produtores, entre outros, para buscar soluções mais sustentáveis de produção e uso dos recursos naturais, além de valorizar sua sociobiodiversidade.

O projeto vai concentrar recursos humanos e financeiros para encontrar, testar e alavancar soluções entre modelos e escalas que possam ser replicados em outros territórios pelo mundo. Na prática, vai unir as populações locais, guardiãs de segredos da terra e do cultivo de riquezas naturais como o buriti, o mel do Cerrado, o babaçu e o baru, entre outras, para fortalecer a conservação desse bioma.

Como o Cerrado sul-americano tem extrema importância para o equilíbrio hídrico do continente e, consequentemente, do planeta, os investimentos da União Europeia nessa região estão em consonância com as três áreas que foram eleitas como prioridade para receber recursos nos próximos anos: alimentação, biodiversidade e clima.

Ao mesmo tempo que é tão importante, esse bioma também apresenta vários desafios do ponto de vista da conservação porque exige diferentes soluções para que seu desenvolvimento seja inclusivo, de baixo carbono e sustentável. O projeto vai interagir com as comunidades locais e pequenos proprietários rurais para incluir modelos de produção para itens que hoje têm pouca visibilidade, mas são riquezas de alto poder comercial e de preservação do bioma.

Segundo o Censo Agropecuário Brasileiro de 2006, pequenos proprietários rurais detêm 69% das propriedades no Cerrado brasileiro. Oficialmente, existem ainda 83 comunidades indígenas na região e 667 comunidades tradicionais. Mas levantamento feito por organizações da sociedade civil, como a Tô no Mapa, mostram que há 3,5 vezes mais povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares (PCTAFs) na região do que mostram os dados oficiais. A Tô no Mapa mapeou mais 1711 comunidades através de dados bibliográficos (65), parcerias (198) e oficinas (1448). Esses pequenos grupos são fundamentais para a segurança alimentar, pois respondem pela produção dos principais produtos alimentícios da dieta básica das pessoas, que vai além da proteína animal produzida pelas grandes monoculturas e pecuária.

O projeto não deixará de atuar nem mesmo com os produtores rurais da região que detém 70% da produção agrícola nacional e que respondem por 44% das exportações. Eles têm um papel estratégico como promotores da recuperação de áreas degradadas, para onde podem direcionar sua produção, assegurando que a expansão agropecuária se dê sem a conversão de novas áreas naturais do bioma.

Na prática, será um grande laboratório socioambiental, identificando e testando soluções com potencial de serem disseminadas para outras localidades. A proposta é deixar um legado permanente de valorização e respeito ao bioma e a seus produtos, fazendo com que o Brasil e o mundo conheçam e valorizem essa região que fornece água superficial, subterrânea e atmosférica para grande parte da América do Sul. É um projeto ambicioso, sem dúvida, e desafiador. Mas quando o tema é conservação, toda ação importa e faz a diferença.

Ana Carolina Crisostomo , a autora deste artigo, é analista de Conservação do WWF-Brasil e facilitadora regional do projeto Ceres, é especialista em conservação e desenvolvimento socioambiental. Publicado originalmente no EL PAIS, em 16.07.21

O novo fascismo eterno

George Orwell fez a pergunta de por que existia uma incapacidade para definir o uso desse termo

Benito Mussolini saúda as massas em 9 de maio de 1936, no Palácio Veneza de Roma. (GEORGE RINHART / CORBIS VIA GETTY IMAGES)

Em um artigo de 1944, George Orwell formulou “talvez a mais importante” de “todas as perguntas sem resposta de nosso tempo: o que é o fascismo?”. Orwell não se preocupava em especificar as notas características dos regimes chamados fascistas já que, sobre isso, afirma, “sabemos em termos gerais o que queremos dizer”. O que interessa a ele é chamar a atenção sobre o fato, civil em razão de linguístico, de que “na política interna esta palavra [fascismo] perdeu o último vestígio de significado”.

Orwell registra com fina ironia as famílias políticas de toda espécie que em manifestações escritas se tornaram dignas da alcunha de fascistas (e criptofascistas, de mentalidade e tendência fascista), não importa se conservadores e socialistas, comunistas e —sobre estes— trotskistas, católicos e nacionalistas, pacifistas e belicistas. O que não será, acrescenta com bom humor, o panorama da fala cotidiana, em que, à voz de fascistas, se misturam fazendeiros e comerciantes, a caça da raposa e as touradas, Kipling e Gandhi, a homossexualidade e as locuções radiofônicas de J. B. Priestley, além dos albergues juvenis, a astrologia, as mulheres, os cachorros…

Orwell, muito socraticamente, deixa sem resposta a pergunta do que é o fascismo para suscitar esta outra: por que essa incapacidade de definir o uso do termo? Talvez, diz de forma enigmática, porque seria preciso admitir coisas que “nem os próprios fascistas, os conservadores e os socialistas não importa de que cor estão dispostos a reconhecer”. E se limita a recomendar, como moral provisória, “certa dose de circunspecção” no trato com a palavra... até revelar o “significado enterrado” nela.

Meio século depois, em 1995, recordando a libertação e a resistência contra o fascismo, Umberto Eco tentará retomar esse significado: “Estamos aqui para lembrar o que aconteceu e dizer solenemente que ‘Eles’ não devem fazê-lo outra vez. Mas quem são Eles?”. Eco reconhece que a palavra fascismo tem caráter de tomar a parte pelo todo; e mais, que é um termo desvanecido (fuzzy), um enxame de contradições, e isso desde sua primeiríssima figura histórica, o fascismo italiano. Em referência implícita aos jogos de linguagem wittgensteinianos, Eco constata que “o jogo fascista pode ser jogado de maneiras diferentes”. O desvanecimento do significado é o elemento propício de uma versatilidade eminentemente pragmática. É exatamente sua fragilidade conceitual que dá ao nome eficácia política.

Eco se apoia nessa tessitura da palavra para propor a noção de “ur-fascismo”, de fascismo originário e “eterno”. Sua estratégia consiste em identificar um conjunto não consistente de 14 aspectos, de modo que a simples presença de um deles é suficiente para coagular a noção inteira ao seu redor. Alguns desses traços são conhecidos (culto da tradição, exploração do medo à diferença, apelação a uma classe média frustrada, nacionalismo e nativismo...); outros, como o “elitismo popular” e o “populismo seletivo”, não são tão intuitivos. Last but not least, Eco menciona a “novilíngua” (Newspeak) de 1984, “um vocabulário empobrecido e uma sintaxe elementar, para limitar os instrumentos do raciocínio complexo e crítico”. Em sua proteica instabilidade, esses atributos dão corpo a “uma maneira de pensar e sentir”, se formam e nutrem de “hábitos culturais”.

A noção de ur-fascismo contribui à compreensão ou à mitificação? Os estudiosos do fascismo insistem na obrigação de contrapor a historiografia à “ahistoriologia” (Emilio Gentile), a uma reconstrução da história em função dos interesses do momento político. Fazendo da necessidade virtude (pois, como reconhece Stanley G. Payne, “é provável que o termo fascismo seja o mais vago dos termos políticos contemporâneos”), se esforçaram por construir a tipologia de um “fascismo genérico”. Roger Griffin propôs, nesse sentido, o que chama de “tipo ideal empático do fascismo”, que procura compreendê-lo “a partir do modo em que os próprios fascistas entendiam sua missão política”. Mas essa perspectiva por acaso não enfatiza a caracterização do fascismo, antes como cultura do que como doutrina? Uma cultura política da “ultra-nação” (Griffin), ou seja, da renovação de um passado nacional mitificado e transfigurado em destino coletivo. É isso que não deixa de retornar (fantasmagoricamente?) como “novo fascismo”.

What’s in a name, o que há em um nome? Não o flatus vocis, a emissão sonora, seja o feixe de varas (fasces) dos lictores, os servidores públicos romanos, sejam as ligas (fasci) de combate mussolinianas o que designa sua etimologia. E sim o nome, inquietantemente familiar, que convocamos a cada vez que travamos seus jogos de linguagem e nos enredamos em suas semelhanças de família, até mesmo, e principalmente, quando dizemos “antifascismo”. Nomen omen: o nome será o destino? Que trato, portanto, não só com a coisa, e sim com o nome “fascismo”, requer uma cultura política que se diz democrática?

Alejandro del Río Herrmann, o autor deste artigo, é editor e doutor em Filosofia. Publicado originalmente por El PAÍS, e,17.07.2021

sexta-feira, 16 de julho de 2021

É hora de a cúpula militar concordar com Aziz: os bons das FA devem estar envergonhados

A grande dúvida é como o Ministério da Saúde abriu sua portaria para esse tipo de gente. Só não mais inacreditável do que o número de coronéis e tenentes-coronéis envolvidos, de alguma forma, na lambança

Senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Covid. (Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Durou menos de 24 horas a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de usar um fato verdadeiro, seu quadro de saúde e suas dores, para criar um efeito eleitoral a seu favor, via internet, fotos e vitimização. Ontem mesmo, o foco, as atenções e o noticiário já estavam de volta à CPI da Covid e às suas revelações sobre não mais a já grave inação do governo, mas sobre a sua ação duvidosa, ou escandalosa, na negociação de vacinas.

Aquela foto de Bolsonaro sem camisa, cheio de fios, num leito hospitalar, não foi divulgada com outra intenção senão política e ilustrou um texto em que ele dá um jeito de dizer que o esfaqueador era do PSOL, “braço esquerdo do PT”, e cometeu um crime não só contra ele, mas “contra a democracia”. Quem é mesmo que ameaça a democracia?! E falou em sua pretensa proposta de “prosperidade”, terminando com o slogan de campanha. Bota campanha nisso!

Representante da Davati confirma pedido de propina

Ontem, porém, a principal pauta política foi o depoimento de Cristiano Carvalho à CPI da Covid. Vem a ser aquele que se dizia representante da empresa americana Davati, agora admite que apenas “ajudava” e não consegue nem mesmo explicar por que cargas d’água recebeu auxílio emergencial na pandemia. Pelo visto, R$ 600 por mês era pouco. Ele queria um “auxílio” de milhões – em dólares.

Que Carvalho é um picareta, seu parceiro Luiz Paulo Dominghetti também e o tal pastor Amilton Gomes não fica atrás, ninguém tem dúvida. A grande dúvida é como o Ministério da Saúde abriu sua portaria, seus gabinetes, seus ouvidos e e-mails para esse tipo de gente. Inacreditável. Só não mais inacreditável do que o número de coronéis e tenentes-coronéis envolvidos, de alguma forma, na lambança.

Carvalho confirmou que sabia do pedido de propina feito por gente graúda da Saúde, como confirmou a sofreguidão do governo em negociar com a Davati e reuniões no ministério com até oito autoridades – a maioria delas militares. Militares falam tanto em “inteligência”, em “informação”, mas na Saúde não consultavam nem o básico: o Google. Bastavam alguns cliques para abortar qualquer contato com Davati, reverendo, cabo PM, o tal Cristiano do auxílio emergencial. A não ser que a intenção fosse outra...

Ao todo, Cristiano citou pelo nome oito militares, mas acrescentou uma boa pitada de pimenta: a guerra na Saúde não era entre militares e Centrão e, sim, entre os grupos de Roberto Dias, diretor de Logística, e do coronel da reserva Elcio Franco, número dois do ministério, com os militares do general da ativa Eduardo Pazuello se dividindo entre os dois. Pode uma coisa dessas?

No centro de tudo está Elcio Franco, conhecido pelos ex-colegas de caserna por ser íntegro e estudioso, mas estourado, um “galinho de briga”. Até por isso, não chegou ao generalato, apesar de ser o terceiro da sua turma na Infantaria. Não é pouco. Agora, ele precisa usar sua disciplina e seu temperamento estourado, não para atacar, mas para detalhar para a CPI e o povo brasileiro como funcionavam e como podem ser eliminados os “pixulés” citados por Pazuello ao sair da pasta.

Em qualquer hipótese, os militares da Saúde não ficam bem nessa foto das vacinas. Ou eram uns bobos, que não entendiam nada de SUS, pandemia, vírus, curva epidemiológica, vacinas e negociações internacionais, ou... Bem, a outra hipótese é ainda pior. E as duas confirmam: Bolsonaro jogou Pazuello na fria, Pazuello atraiu duas dezenas de militares e o que era uma fria ficou gelada.

É hora de o ministro da Defesa e os comandantes da Aeronáutica, da Marinha e do Exército jogarem fora a nota desaforada contra o senador Omar Aziz, presidente da CPI, para concordar plenamente com ele: “Os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados”. Se não estão, deveriam...

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal (PE) e do Tele Jornal Globo News / Em Pauta. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.07.21

Os personagens na investigação sobre suposto pedido de propina por vacinas no Ministério da Saúde

Na CPI da Pandemia, Cristiano Carvalho, representante da Davati no Brasil, cita novos personagens, vários ex-militares, na tentativa de sua empresa, que não tinha aval das farmacêuticas, para vender imunizantes à pasta

O coronel da reserva Elcio Franco, que foi número 2 no Ministério da Saúde e agora está lotado na Casa Civil. (EDILSON RODRIGUES/AGÊNCIA SENADO)

A CPI da Pandemia ouviu nesta quinta-feira Cristiano Carvalho, representante da Davati no Brasil. A empresa negociou a venda de vacinas AstraZeneca, sem aval da farmacêutica, com o Ministério da Saúde no começo do ano. Carvalho disse que tinha conhecimento de que um dos vendedores da Davati, Luiz Paulo Dominguetti, dizia ter ouvido um pedido de propina de nomes da Saúde enquanto negociava imunizantes. Dominguetti trouxe o caso à tona em entrevista à Folha de S. Paulo. Em seu depoimento, Carvalho ampliou a lista de personagens envolvidos na trama: nomeados de origem militar no ministério e intermediadores aparecem no relato.

Reverendo Amilton: Amilton Gomes de Paula é presidente da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), que se diz uma ONG humanitária. Ele é apontado por Cristiano Carvalho, representante da Davati no Brasil, como intermediador do Ministério da Saúde na compra de vacinas. De acordo com Carvalho, foi por meio do reverendo Amilton que muitas prefeituras começaram a procurar a Davati atrás de vacina. Carvalho diz também que Amilton o convidou para participar de um café da manhã com líderes evangélicos e o presidente Jair Bolsonaro, mas o evento não chegou a acontecer. Reportagem da Agência Pública revelou que a Senah fez ofertas paralelas de vacinas ao Ministério da Saúde a preços mais altos que os valores contratos posteriormente.

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Coronel Hélcio Bruno: Coronel da reserva, teria se reunido com integrantes do Ministério da Saúde em nome do Instituto Força Brasil para negociar a compra de vacinas. Segundo Cristiano Carvalho, o Instituto Força Brasil era o braço utilizado pela Senah para chegar ao alto escalão do Ministério da Saúde. Carvalho afirma também que foi coronel Bruno quem o levou pela primeira vez ao Ministério da Saúde em 12 de fevereiro deste ano. Naquele dia, se reuniram reverendo Amilton Gomes, o policial militar Luiz Paulo Dominghetti, representante da Davati, o ex-secretário-executivo da pasta, Elcio Franco, e os coronéis Boechat, Marcelo Pires e Helcio Bruno. Helcio Bruno também teria marcado um segundo encontro com Élcio Franco para 15 de março.

Instituto Força Brasil: De acordo com o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o Instituto Força Brasil, grupo de conservadores cristãos que se apresentam como armamentistas em defesa da vida e da família, patrocina um conjunto de contas em redes sociais que são investigadas no inquérito das fake news, que tramita no Supremo Tribunal Federal, e na CPMI das Fake News. Uma dessas contas é a Crítica Nacional, que propagou notícias falsas sobre o uso de máscaras e a vacinação. Há uma postagem contra a Pfizer, dizendo que americanos morreram após receber dose da vacina. O instituto é presidido pelo coronel da reserva Hélcio Bruno Almeida, e tem como vice o empresário Otávio Fakhoury.

Coronel Élcio Franco: Foi levado ao Ministério da Saúde pelo ex-ministro Eduardo Pazuello ainda na gestão de Nelson Teich. Foi “promovido” a número 2 da pasta desde que Pazuello assumiu interinamente como ministro. Mas ele deixou a pasta em abril e hoje ocupa o cargo de assessor especial na Casa Civil. Cristiano Carvalho menciona uma reunião no Ministério da Saúde, no dia 12 de março, para tratar da compra de vacinas. Na data, ele e Élcio Franco se reuniram juntamente com o outro representante da Davati, Luiz Paulo Dominguetti, reverendo Amilton, coronel Helcio Bruno, do Instituto Força Brasil, coronel Boechat, e coronel Pires.

Coronel Boechat: Cleverson Boechat Tinoco Ponciano é coordenador-geral de planejamento do Ministério da Saúde. O coronel da reserva foi apontado por Cristiano como o responsável pelos pagamentos dos insumos e participou da reunião do dia 12 de março.

Coronel Pires: Marcelo Bento Pires, coronel da reserva, chefiava desde janeiro a Diretoria de Programas do ministério, mas foi exonerado em meados de abril após a chegada de Marcelo Queiroga. Foi apontado por Carvalho como ajudante de ordens de Élcio Franco. Fez várias perguntas sobre a entrega e a vacina ao coronel Hélcio Bruno. Coronel Pires também foi apontado, pelo deputado Luís Miranda (DEM-DF), com dos membros da alta cúpula que pressionaram o servidor Luís Miranda para a compra da Covaxin, segundo reportagem do Metrópoles.

Coronel Blanco: Marcelo Blanco da Costa, coronel reformado, foi nomeado ao Ministério da Saúde em maio de 2020 como assessor do Departamento de Logística em Saúde da Secretaria Executiva em portaria assinada por Nelson Teich. Em outubro, foi designado ao encargo de substituto eventual do Diretor do Departamento de Logística pelo coronel Élcio Franco. Ocupou o posto após a exoneração de Roberto Dias, mas foi também dispensado do cargo, em 30 de junho. Cristiano Carvalho diz que o “grupo do coronel Blanco” foi quem pediu propina a Luiz Paulo Dominghetti Pereira para a compra da vacina.

Coronel Guerra: Glaucio Octaviano Guerra, militar da reserva da Força Aérea. Vive nos Estados Unidos, exercendo a função de assessor do adido militar da embaixada do Brasil naquele país. É apontado por Carvalho como quem teria apresentado a Davati a ele. Atuou, segundo Carvalho, como porta-voz do Herman Cardenas, dono da Davati, nos Estados Unidos, não tendo influência alguma nas tratativas.

Herman Cardenas: Empresário, é dono e presidente da Davati Medical Supply, empresa com sede no Texas (EUA). À Folha de S. Paulo, Cardenas afirmou que não tinha à mão nenhuma das 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca que estariam sendo negociadas pelos representantes da empresa no Brasil.

Roberto Ferreira Dias: ex-sargento da Aeronáutica, é servidor público de carreira há quase 20 anos. Ex-diretor de logística do Ministério da Saúde, foi acusado de ter pedido propina de um dólar por dose na negociação da compra das vacinas da AstraZeneca. À CPI da Pandemia, Cristiano Carvalho afirmou que Ferreira Dias ligou para ele insistentemente e mandou várias mensagens para negociar as vacinas. Foi demitido no último dia 29. No dia 7 de julho, prestou depoimento à CPI e foi preso a mando do Senado por ter mentido para a comissão. Pagou fiança e foi liberado depois de algumas horas. Dias apontou um “núcleo militar” na pasta como interessada no negócio da Davati.

Laurício Monteiro Cruz: Ex-diretor de imunização do Ministério da Saúde, apontado por Carvalho como quem marcou uma reunião no dia 22 de fevereiro deste ano com várias pessoas, dentre elas o reverendo Amilton, para tratar da compra de vacinas. Segundo Carvalho, Laurício teria enviado uma carta pedindo que a Senah fosse a intermediadora das negociações da vacina. Foi exonerado no último dia 8.

Rafael Alves: representante de vendas autônomo teria apresentado Cristiano Carvalho, da Davati, a Luiz Paulo Dominguetti.

Julio Adriano Caron: Também seria representante da Davati e teria dado andamento a um processo de venda de vacinas ao Ministério da Saúde. Segundo Cristiano Carvalho, o processo teria sido iniciado ao mesmo tempo em que ele também negociava vacina.

Odilon: Intermediador da negociação. Dominguetti já havia mencionado o nome dele em seu depoimento, mas ninguém sabe o sobrenome.

MARINA ROSSI e BEATRIZ JUCÁ, de São Paulo para o EL PAÍS, em 15 JUL 2021 - 19:00

Coleção de coronéis e reverendo protagonizaram negociação de vacina que não existia com Ministério da Saúde

Representante da Davati no Brasil, Cristiano Carvalho diz na CPI da Pandemia que foi procurado insistentemente pela pasta para negociar imunizantes e desvela uma rede de mediadores em um negócio bilionário de fármacos que ninguém tinha para entregar

Cristiano Carvalho, representante da Davati Medical Supply no Brasil, durante depoimento à CPI da Pandemia. (ADRIANO MACHADO / REUTERS)

Vários coronéis, um reverendo e uma entidade com forte presença militar acusada são citados na teia de negociação de vacinas contra a covid-19 supostamente superfaturadas e que sequer existiam. Este é o roteiro inusitado que desponta do depoimento do representante da empresa americana Davati Medical Supply no Brasil, Cristiano Carvalho, à CPI da Pandemia nesta quinta-feira (15). 

Ele contou aos senadores que não procurou o Ministério da Saúde para negociar imunizantes, mas foi inusualmente procurado pelo órgão, quando passou a dar atenção ao assunto. Revelou ainda que grande parte da cadeia de comando da pasta ―incluindo vários militares de dois grupos distintos― participou das conversas que visavam a aquisição de 400 milhões de doses da AstraZeneca e que depois foram levadas ao centro de denúncias de corrupção. 

O depoimento do Carvalho empurra ainda mais os holofotes para a participação de militares nas negociações de vacinas com suspeitas de irregularidades.

Carvalho desvelou no seu depoimento uma rede de mediadores em um negócio bilionário de venda de imunizantes que ninguém tinha para entregar. A AstraZeneca sustenta não ter intermediários no país e, nesta semana, a Davati admitiu que não tinha doses à mão, conforme disse o dono e presidente da empresa, Herman Cardenas, à Folha de S. Paulo. Segundo ele, o que havia era uma promessa de alocação das vacinas feita pela companhia de um médico americano junto à AstraZeneca. Cardenas, porém, não deu nomes alegando sigilo contratual.

No depoimento, Carvalho disse não ter participado do jantar em um shopping de Brasília no qual supostamente o ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias, teria pedido propina de um dólar por dose ao policial militar e vendedor da Davati, Luiz Paulo Dominguetti. Mas confirmou ter sido avisado sobre um pedido de “comissionamento extra” ―ou seja, propina― pelo grupo do ex-servidor e militar reformado, coronel Marcelo Blanco, que assessorava Roberto Dias no Ministério da Saúde. 

O ex-diretor do departamento de Logística nega as acusações. Aos senadores, Carvalho disse que não foi informado sobre valores e que não foram feitos pedidos de propina diretamente a ele. Afirmou ainda que Blanco, ex-servidor da Saúde, que abriu uma empresa de insumos hospitalares e que teria lhe dito que agora estava negociando vacinas com a pasta, parecia atuar ainda como auxiliar de Roberto Dias mesmo já tendo sido exonerado.

Novos militares e entidade na negociação

Carvalho adicionou novos personagens na trama e deu força à tese da existência de dois grupos em disputa dentro do Ministério da Saúde que atuavam na negociação de vacinas: um ligado ao coronel Marcelo Blanco e a Roberto Dias, e outro ligado ao coronel Élcio Franco, na época secretário-executivo do Ministério da Saúde, cargo abaixo apenas do de ministro. Ambos os grupos teriam uma forte presença de militares. 

O representante da Davati contou que foi pela primeira vez ao ministério em 12 de março deste ano, levado pelo coronel Helcio Bruno Almeida, presidente do Instituto Força Brasil (IFB). A entidade, segundo ele, era o braço utilizado pela ONG Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), do reverendo Amilton Gomes, para chegar ao alto escalão da Saúde. A Senah teria tido o aval do Governo para negociar as 400 milhões de doses com a Davati e Carvalho apontou que caberia a ela também dar a segurança jurídica ao processo de venda dos imunizantes, já que a empresa americana Davati sequer tem CNPJ no Brasil.

Carvalho ainda diz que foi o Instituto Força Brasil que fez a ponte entre o representante da Davati e o coronel Elcio Franco, então número 2 do Ministério da Saúde. O IFB se apresenta como um instituto sem fins lucrativos, que trabalha dentro dos valores conservadores e cristãos, tanto pela bandeira pró-armas como pela defesa da vida e da família. 

O vice-presidente da instituição é o empresário Otávio Fakhoury. Mas, segundo o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a instituição patrocina um conjunto de contas em redes sociais investigadas no inquérito das fake news. Uma delas seria a página Crítica Nacional, que de acordo com Randolfe, propagou notícias falsas sobre o uso de máscaras e a vacinação, especialmente contra a Pfizer.

O IFB, por sua vez, diz que tem civis e militares em seus quadros e que atua de forma transparente e em defesa à vida, inclusive com ações de Saúde. Também nega ter parceria com a Davati. De acordo com Igor Vasconcelos, diretor jurídico do Instituto Força Brasil, eles foram procurados pelo reverendo Amilton para ver os caminhos que ajudassem a chegar ao Ministério da Saúde com a proposta da vacinas da Davati. “Tudo que for a respeito da defesa da vida a gente tenta ajudar”, disse Vasconcelos à reportagem. Segundo ele, o presidente do IFB, o coronel Hélcio Bruno, jamais havia tido contato com o coronel Élcio Franco antes. “Fizemos a reunião, que foi rápida. Esperamos bastante para sermos atendidos. Existe ata da reunião, inclusive”, diz ele, lembrando que o IFB não debate preços.

O foco do grupo, contudo, era a possibilidade “de que o mercado brasileiro fosse atendido por uma expressiva quantidade de vacinas, em curto prazo, e que este número seria suficiente para alcançar, inclusive o setor privado (objeto da audiência), aliviando a forte demanda do produto”, disse a empresa em nota distribuída à imprensa. “Tratamos assuntos relacionados à vacinação com a secretaria-executiva, principalmente no sentido de aperfeiçoar a legislação que facilitava a vacinação por empresas privadas, com vistas a acelerar a imunização da classe trabalhadora e liberá-las à produção”, segue a nota, assinada pelo coronel Helcio Bruno. Embora o IFB se diga apolítico, em seus vídeos há várias referências positivas ao presidente Jair Bolsonaro e críticas a movimentos ligados à esquerda.

Coleção de coronéis

Na reunião de 12 de março no Ministério da Saúde, Carvalho disse que estiveram reunidos o reverendo Amilton Gomes, o policial militar Luiz Paulo Domingetti, o ex-secretário-executivo da pasta, Elcio Franco, e os coronéis Boechat, Marcelo Pires e Helcio Bruno. Ele conta que se surpreendeu ao perceber que o coronel Elcio Franco não tinha conhecimento de que as negociações das vacinas já estavam em curso com Roberto Dias antes daquele encontro, mas negou que tenha sido feito qualquer pedido de propina naquele momento. 

“Dentro dessas tratativas e conversas dentro do Ministério da Saúde, não houve nada que desabonasse nenhum desses coronéis servidores públicos que estavam na reunião”, declarou. Em outro momento da sessão, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) ironizou o surgimento de tantos nomes de militares na CPI: “Boechat, coronel Guerra, coronel Blanco, Élcio Franco, agora Helcio Bruno… há uma associação de vários coronéis em torno dessa operação tabajara”.

Cristiano Carvalho fez questão de minimizar seu papel dentro da Davati. Disse que não é um CEO como afirmou Dominghetti em seu depoimento à CPI e que não tem vínculo contratual com a empresa. Segundo ele, o que há é uma carta de representação no país que o colocaria na condição de um vendedor. Também afirmou nunca ter ofertado quantidades ou preços de vacinas ao Ministério da Saúde e defendeu que sua atuação visava a aproximação da americana Davati com o ministério. Caberia à empresa americana tratar com a pasta. 

O presidente da Davati nos Estados Unidos, Herman Cardenas, disse em entrevista à Folha de S. Paulo que a intenção da empresa nunca foi vender vacina, mas de facilitar o negócio. Ao Estadão, Cardenas havia dito que Domingueti não é representante ou funcionário da companhia e que teria sido incluído nas negociações “a pedido” em comunicações com o Governo brasileiro.

Carvalho diz que não procurou o ministério para negociar vacinas

No depoimento aos senadores, Carvalho afirma que foi Dominguetti que levou a ele a demanda por vacinas contra a covid-19 do Ministério da Saúde. Ele diz que sequer acreditava que a negociação prosperaria até começar a receber uma série de ligações e mensagens de altos cargos da pasta, quando passou a dar atenção ao assunto. Carvalho diz que Dominguetti se apresentou a ele em fevereiro deste ano, quando afirmou que já tinha uma parceria com a Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), presidida pelo reverendo Amilton Gomes de Paula. Ambos procuravam um fornecedor no exterior para atender a demanda. “Ele [Dominguetti] se empenhou muito na venda das vacinas, fez um trabalho grande com o Senah”, afirma Carvalho, que diz ter sido apresentado a ele por um representante de vendas autônomo da Davati chamado Rafael Alves,.

O reverendo Amilton tem sido apontado como intermediário na negociação de vacinas com prefeituras e também como responsável por levar Dominguetti ao alto escalão da pasta. Cristiano Carvalho disse que a Davati entrou em negociação ao menos com o Governo de Minas Gerais (além do Ministério da Saúde) e que teria sido por meio do reverendo Amilton que muitas prefeituras começaram a procurar a empresa americana em busca de vacinas. Carvalho afirmou ainda que Lauricio Monteiro Cruz, ex-diretor de imunização do Ministério da Saúde, teria enviado uma carta pedindo que a Senah, do reverendo Amilton, fosse a intermediadora das negociações da vacina. Cruz foi exonerado da Saúde no último dia 8 de julho.

Municiado de um habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para resguardar seu direito de não se autoincriminar, Carvalho respondeu à maioria das perguntas feitas pelos senadores. O representante da Davati protagonizou a última sessão da CPI antes do recesso parlamentar, que vai até 3 de agosto. Na volta aos trabalho, o reverendo Amilton deve prestar o depoimento.

BEATRIZ JUCÁ, MARINA ROSSI e CARLA JIMÉNEZ, de Fortaleza e S. Paulo para o EL PAÍS, em 15 JUL 2021 - 20:28 BRT

quinta-feira, 15 de julho de 2021

As relações civis-militares

Vem em boa hora a PEC para proibir a presença de militares da ativa em cargos da administração pública no País

A passagem de Eduardo Pazuello pelo Ministério da Saúde trouxe enormes problemas para o País. Muitos deles ainda estão sendo descobertos pela CPI da Covid. De toda forma, dois fatos já são de conhecimento público. A sua submissão ao presidente Jair Bolsonaro provocou atraso na vacinação contra a covid e, durante o período em que chefiou a pasta, vacinas negociadas por intermediários tiveram prioridade em relação às ofertadas pelas próprias empresas fabricantes.

A agravar o quadro, Eduardo Pazuello ocupou o cargo de ministro da Saúde sendo militar da ativa. Não é papel de militar exercer cargo civil. Entre outros problemas, sua atuação na Saúde provocou desgaste na imagem das Forças Armadas perante a opinião pública. Se já não era positivo que os militares fossem associados a uma gestão ineficiente, agora integrantes das Forças Armadas veem-se enredados em nebulosas compras de vacinas.

Segundo narrou o presidente Jair Bolsonaro, Eduardo Pazuello foi informado sobre as suspeitas envolvendo a compra da vacina Covaxin, mas o intendente não viu nada de errado no contrato. Nos termos assinados pelo Ministério da Saúde, o preço por dose de Covaxin foi 11 vezes mais caro do que a oferta da própria fabricante, feita seis meses antes.

Tudo isso, que é extremamente embaraçoso para Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello, mostrou a necessidade de um aprimoramento do marco jurídico da administração pública. São muitos os perigos que envolvem a administração pública e o presidente da República quando se usa, sem grandes critérios, a possibilidade de atribuir a militares, principalmente aqueles no exercício ativo de suas funções castrenses, cargos civis.

Vem em boa hora, portanto, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), de autoria da deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC), para proibir a presença de militares da ativa em cargos da administração pública. Tendo ganhado a alcunha de PEC Pazuello, a proposta já ultrapassou o mínimo necessário de assinaturas para sua apresentação.

A PEC Pazuello acrescenta um inciso ao artigo 37 da Constituição. “O militar da ativa somente poderá exercer cargos de natureza civil na administração pública, nos três níveis da Federação, desde que atendidos os seguintes requisitos: (a) se contar menos de dez anos de serviço, deverá afastar-se da atividade; (b) se contar mais de dez anos de serviço passará automaticamente, no ato da posse, para a inatividade”, diz a proposta.

Na exposição de motivos, a deputada Perpétua Almeida explica que a PEC busca “resguardar as Forças Armadas dos conflitos normais e inerentes à política, e fortalecer o caráter da Marinha, do Exército e da Aeronáutica como instituições permanentes do Estado, e não de governos”.

Num Estado Democrático de Direito, o poder governamental é exercido por civis. Essa separação de funções, que já estava prevista na Constituição de 1988, tornou-se ainda mais explícita em 1999 com a criação do Ministério da Defesa.

Foi um importante e significativo marco. Substituindo os anteriores Ministérios do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, a criação do Ministério da Defesa mostrou que até mesmo a condução política dos assuntos militares e da defesa deveria ser feita por um civil e de forma integrada à administração geral do Estado. Até 2018, todos os ministros da Defesa foram civis.

Com o governo Bolsonaro, essa importante faceta do poder civil ficou esfumaçada em razão das muitas nomeações de militares da ativa para a administração pública. Por um tempo, até a chefia da Casa Civil foi ocupada por um general da ativa. Depois, o general Luiz Eduardo Ramos passou à reserva, ao contrário de Eduardo Pazuello, que está no exercício ativo até hoje.

É preciso preservar e respeitar os âmbitos de atuação civil e militar. Além de reforçar no cidadão a saudável tranquilidade de que os militares estão cumprindo suas tarefas – e não outras –, essa separação de funções contribui para despertar a responsabilidade da população para as questões políticas. São os civis, e não os militares, que devem dar solução aos problemas políticos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 15 de julho de 2021

Para evitar vitória de Lula, parte da elite quer tirar Bolsonaro

 Ninguém errou tanto

O desastroso enfrentamento da pandemia trouxe o derretimento político de Bolsonaro. Leia aqui a análise de William Waack, publicada no Estadão hoje.

 A CPI da Pandemia deve estar enchendo os olhos dos modernos historiadores, segundo os quais depende sobretudo da ação humana a gravidade das consequências de qualquer desastre de causas naturais (terremoto, erupção vulcânica, pandemia). Catástrofes como a da covid-19 apenas acentuam o que já existia. No caso do governo brasileiro, tal como a CPI vem expondo, a pandemia agravou uma extraordinária inépcia governamental.

“Extraordinária” pois outros governos em outros países também erraram, mas só o brasileiro conseguiu falhar nas cinco categorias de más práticas políticas enumeradas por Niall Ferguson em Doom (Ruína), que acaba de publicar sobre a maneira equivocada como sociedades e países enfrentaram catástrofes, especialmente a atual pandemia. As cinco categorias são: a) incapacidade de aprender da História; b) falta de imaginação; c) tendência de se orientar pela crise mais recente; d) subestimação da ameaça; e) procrastinação à espera de uma “certeza” que nunca se materializa.

Nesse contexto, prevaricação nem é o maior dos crimes, se a palavra “crime” for entendida no significado mais amplo, do mal causado a um país, seus habitantes e seu futuro. Não é consolo algum para quem perdeu entes queridos na tragédia da pandemia no Brasil, mas essa psicologia da incompetência ao lidar com um desastre cobra um preço fatal também do político que dela padece. Outro errático no enfrentamento da doença, Donald Trump tinha economia forte, emprego alto e adversários confusos, e perdeu a eleição.

O vírus derrotou Jair Bolsonaro politicamente. É impossível entender seu assombroso (dado o tamanho da onda disruptiva que o elegeu em 2018) derretimento sem levar em conta o profundo impacto psicológico do fracasso no combate à pandemia. O presidente não tem capacidade intelectual nem o instinto político para entender exatamente o que está acontecendo, o que o impede também de enxergar como suas reações desequilibradas (política e psicologicamente) pioram em vez de atenuar um quadro político-eleitoral que lhe é hoje francamente desfavorável e, com alta probabilidade, também irreversível.

Forma-se em elites dirigentes empresariais envolvidas no jogo político uma curiosa noção segundo a qual Bolsonaro é o único fator que explica o sucesso de Lula nas pesquisas de intenção de voto. Portanto, para evitar uma vitória de Lula, o caminho evidente seria tirar Bolsonaro do páreo eleitoral, eventualmente através de impeachment. Por enquanto esse caminho parece distante por uma série de motivos, entre os quais predomina a ausência de uma “massa crítica política” no Legislativo.

Mas esses dois fatos – o derretimento político-eleitoral de Bolsonaro e a imprevisibilidade associada a seu desequilíbrio – estão forçando os vários atores políticos a calcular talvez antes do que julgassem necessário o pós-Bolsonaro, seja por um impeachment, seja por uma derrota eleitoral que se antevê acachapante. No atual contexto (admita-se, bastante volátil) parece que só Bolsonaro leva ele mesmo à guilhotina, especialmente se partir para um tudo ou nada golpista. 

A antecipação da candidatura de Rodrigo Pacheco é um sintoma dessa mudança de calendário de tomada de decisões. Os operadores políticos cheiraram uma atmosfera que parecia pouco provável dois meses atrás, quando muitos trabalhavam com uma espécie de inevitabilidade do confronto Lula-Bolsonaro – inclusive os próceres do Centrão, para os quais a diminuição de chances eleitorais de Bolsonaro amplia sua força de chantagem, mas é perigosa nas eleições que também terão de enfrentar.

Provavelmente também Lula terá de alterar seus cálculos políticos, até aqui bastante simples: como formar uma aliança de “centro” para derrotar o presidente, algo que surgia tão “natural” quanto “inevitável”. Não existe nem um nem outro em História, ensina Niall Ferguson.

William Waack, Jornalista, é Apresentador do Jornal da CNN. Este artig o foi publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 15 de julho de 2021.

Obstrução intestinal: entenda o quadro de saúde de Jair Bolsonaro

Presidente da República foi diagnosticado com obstrução após exames em Brasília. Problema ocorre quando há o bloqueio parcial ou completo da passagem das fezes pelo intestino.

Médicos diagnosticaram que o presidente Jair Bolsonaro enfrenta um quadro de obstrução intestinal após ser atendido no Hospital das Forças Armadas, em Brasília, com dores abdominais na madrugada. Ele foi transferido nesta quarta (14) para o Hospital Vila Nova Star, em São Paulo, e será submetido inicialmente a tratamento clínico, sem necessidade de cirurgia.

Em 8 tópicos, veja os principais pontos sobre obstrução intestinal:

1 - O que é obstrução intestinal?

A obstrução intestinal ocorre quando há o bloqueio parcial ou total da passagem das fezes pelo intestino. O motivo do bloqueio pode estar associado a diferentes condições médicas.

"Obstrução intestinal é qualquer impedimento relacionado a passagem do bolo fecal pelo intestino, seja no intestino fino, que é o intestino delgado, seja no intestino grosso", explica a gastroenterologista Maíra Marzinotto.

2 - Aderências intestinais podem ter relação?

Maíra Marzinotto, que atua no Centro Especializado em Aparelho Digestivo do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, lembra que o presidente precisou fazer cirurgias abdominais no passado e elas podem estar relacionadas ao quadro atual por causa das chamadas "aderências".

"Podem existir aderências em seu abdômen e elas podem causar, eventualmente, essa dificuldade na passagem do conteúdo pelo intestino”, explicou a especialista.

Alexandre Sakano, gastroenterologista e cirurgião na Beneficência Portuguesa, explica que o "intestino é todo soltinho dentro da barriga". Segundo ele, quando o médico precisa abrir a barriga para cirurgia, se formam as aderências: "gruda um pedacinho no outro", de forma simplificada.

"E isso faz com que a mobilidade do intestino fique limitada, igual uma mangueira de jardim que você guarda mal enrolada”, disse. Sakano, assim como a médica Maíra Marzinotto, também avalia que o quadro de Bolsonaro provavelmente é consequência de outras operações cirúrgicas.

"Na cirurgia de urgência que ele fez depois da facada, passou por colostomia, depois teve hérnia. Ele teve várias cirurgias que mexeram bastante (no intestino) e sempre vai formando cada vez mais aderências. E isso predispõe a formação de aderências e, por fim, da obstrução”, completou.

3 - Sintomas da obstrução intestinal

Os sintomas da obstrução podem envolver cólica, vômitos, prisão de ventre (obstipação ou constipação intestinal) e distensão abdominal, que é o estufamento do abdômen.

"A obstrução intestinal - por ser uma causa de distensão de alças intestinais - pode, eventualmente, irritar o diafragma, causando soluços", afirma a gastroenterologista Maíra Marzinotto.

Bolsonaro reclama de soluços que persistem há dias; entenda possíveis causas

4 - Origem da obstrução intestinal

Pode estar associadas a aderências, tumores, hérnias, diverticulites, cálculo biliar e outros. A síndrome do intestino irritável também pode ser uma das causas.

Especialistas também apontam que o problemas intestinais no geral (prisão de ventre ou diarreia) podem estar associadas em algum grau a estresse, já que o o intestino tem seu próprio sistema nervoso, que está ligado ao cérebro através de ramificações.

5 - Procedimentos

Na maioria dos casos, não há necessidade de intervenção cirúrgica.

De acordo com Alexandre Sakano, apesar de as causas serem diferentes, a cirurgia recente do Papa Francisco e a de Bolsonaro são similares.

"O que aconteceu é que o Papa teve uma inflamação do intestino, e ele teve que tirar uma parte do intestino. (...) A cirurgia é muito similar das duas, porque sempre que tira um pedaço do intestino é mais ou menos igual”, afirma o gastroenterologista Alexandre Sakano.

O médico Marcelo Borba, coordenador Núcleo de Doenças Inflamatórias Intestinais do Hospital Sírio-Libanês explica que, na foto divulgada pelo presidente, é possível ver o uso de uma sonda nasogástrica.

"É uma sonda que entra pelo nariz e vai até o abdômen. Isso é para descomprimir o líquido, é para tirar o líquido, é o primeiro tratamento que se faz. É jejum e essa sonda. E hidratação para aguardar a evolução. Uma cirurgia de emergência em princípio só se faz rapidamente se tiver algum comprometimento de circulação do intestino por causa das aderências.”, diz Marcelo Borba.

6 - O que deve ser motivo de alerta?

A evacuação é considerada normal quando ocorre de uma a três vezes por dia ou uma evacuação a cada três dias. Passado esse período de três dias, as fezes vão se solidificando, por conta da absorção de água no intestino grosso, e cada vez fica mais difícil para que elas saiam. Supositórios ajudam em fases iniciais, mas, em alguns casos, é necessário cirurgia.

“Não há como a pessoa ficar obstruída porque a partir do momento que você não tem passagem pelo intestino, você começa a acumular conteúdo de fezes, gases, líquidos e, consequentemente, para tudo que vem antes”, explica a especialista.

7 - Obstrução pode ter relação com estresse

Embora não possa ser associado diretamente ao quadro do paciente Jair Bolsonaro, a medicina reconhece que quando a pessoa se estressa há uma diminuição do fluxo sanguíneo em órgãos vitais do corpo, inclusive o intestino. No caso das mulheres, é muito comum o intestino travar durante viagens, por exemplo, ou quando há um pico de estresse.

8 - Alimentação e exercício são importantes

Os hábitos de vida e alimentares provocam até 95% dos casos de prisão de ventre. É importante incluir fibras na alimentação, ingerir água, praticar exercícios físicos e respeitar a vontade de evacuar.

Carolina Dantas e Bruna de Alencar, para o G1, em 15.07.21

Bolsonaro ficará internado para tratamento clínico

Após exames, equipe médica não prevê cirurgia por enquanto. Presidente foi transferido para hospital de São Paulo depois de diagnóstico de obstrução intestinal.

Bolsonaro foi hospitalizado após sentir dores abdominais

Após ser diagnosticado com um quadro de obstrução intestinal, o presidente Jair Bolsonaro foi transferido para o Hospital Vila Nova Star, em São Paulo, onde permanecerá internado para tratamento clínico. Por ora, não está prevista cirurgia, informou a equipe médica na noite desta quarta-feira (14/07).

De acordo com boletim médico, depois do diagnóstico de "suboclusão intestinal", o presidente passou por avaliações clínica, laboratoriais e de imagem e inicialmente receberá "tratamento clínico conservador", ou seja, com medicamentos e procedimentos não invasivos.

Não foram detalhados os procedimentos aos quais o presidente será submetido e não foi informado por quanto tempo Bolsonaro deverá permanecer internado.

O boletim foi assinado por quatro médicos, incluindo Antonio Luiz Macedo, que também foi quem decidiu pela transferência de Bolsonaro para São Paulo. O presidente chegou ao hospital paulista por volta das 19h, depois de ter passado o dia internado no Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, onde foi submetido a exames e alguns procedimentos após sentir dores abdominais.

Macedo acompanha a evolução da saúde de Bolsonaro desde o atentado a faca contra o presidente durante a campanha eleitoral de 2018 e foi responsável pelas cirurgias no abdômen decorrentes. Após o ataque, Bolsonaro passou por quatro cirurgias. Nos últimos dias, o presidente vinha enfrentando uma crise de soluços.

A redes sociais do presidente reproduziram uma foto de Bolsonaro internado, acompanhada de uma mensagem em que o presidente agradece orações de seus apoiadores e aproveita para alimentar teorias conspiratórias sobre o atentado de 2018 e explorar politicamente o episódio.

"Mais um desafio, consequência da tentativa de assassinato promovida por antigo filiado ao PSOL, braço esquerdo do PT, para impedir a vitória de milhões de brasileiros que queriam mudanças para o Brasil. Um atentado cruel não só contra mim, mas contra a nossa democracia", diz a publicação na conta do presidente.

"Agradeço a todos pelo apoio e pelas orações. É isso que nos motiva a seguir em frente e enfrentar tudo que for preciso para tirar o país de vez das garras da corrupção, da inversão de valores, do crime organizado, e para garantir e proteger a liberdade do nosso povo."

Com a internação, foram cancelados os compromissos que Bolsonaro teria na manhã desta quarta-feira, incluindo um encontro com os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux.

A reunião era uma tentativa de acalmar os ânimos entre os três Poderes, depois de novos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral e às urnas eletrônicas terem gerado desgaste e reações no Legislativo e no Judiciário. Em nota, o STF informou que "o encontro será oportunamente reagendado".

Também na manhã desta quarta, o presidente participaria de uma reunião do Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento da Pandemia de Covid-19.

Deutsche Welle Brasil, em 15.07.21

Entenda por que, segundo Biden, a democracia americana está sob ataque

Ofensiva em vários estados controlados por republicanos ameaça restringir acesso ao voto, sobretudo entre minorias. Presidente americano denuncia maior ataque ao sistema desde a Guerra Civil.

Para o presidente americano, Joe Biden, republicanos mentem ao denunciar fraudes

Nas palavras do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a democracia americana enfrenta atualmente sua maior ameaça desde a Guerra de Secessão, conflito civil que dividiu o país no século 19.

Essa ameaça, afirmou Biden em discurso na terça-feira (13/07), é baseada em mentiras. Especificamente num temor infundado propagado por republicanos de que haveria risco de fraudes no sistema eleitoral.

Em estados sob controle republicano, avançam cada vez leis eleitorais que, com o pretexto de combater a fraude, têm como finalidade complicar o acesso das minorias às urnas, em particular dos afro-americanos.

"A América assiste hoje a uma tentativa de minar e suprimir o direito ao voto", disse Biden, em discurso na Filadélfia, cidade onde foi assinada a Declaração de Independência dos Estados Unidos.

A questão do acesso ao voto por parte de minorias é um dos temas que mais divide os dois principais partidos nos EUA. Os democratas acusam os republicanos de usarem subterfúgios legais para dificultar a votação por parte de eleitores que tradicionalmente votam maioritariamente no Partido Democrata.

Ofensiva republicana para dificultar o voto

Muitos estados americanos permitem que os cidadãos, mesmo sem estarem registrados para votar, o façam no dia da eleição com simples comprovação de que moram no estado.

Mas novas leis promovidas em alguns estados exigem que eles se registrem com antecedência e o façam com um documento de identificação oficial, como uma carteira de motorista. O problema é que muitos – de acordo com ONGs, 21 milhões de pessoas – não possuem carteira de motorista ou qualquer outra forma de identificação oficial.

Grupos de defesa de liberdades civis dizem que os requisitos de identificação atingem sobretudo os pobres, e podem resultar em uma queda de 2% a 3% na participação dos eleitores.

Algumas legislações republicanas estão, de outras formas, tornando o voto mais difícil. Os partidos políticos tradicionalmente vão de porta em porta para ajudar as pessoas a se registrarem. Novas regras na Flórida, por exemplo, restringem isso.

Em Dakota do Norte, uma regra proposta pelos republicanos, que acabou rejeitada, defendia a exigência de endereço com rua para eleitores. A medida era direcionado aos nativo-americanos, que vivem em reservas sem nome de rua.

Muitos estados ampliaram a votação por correio em 2020 devido à pandemia. Eles se basearam na experiência de estados como o Colorado, que tiveram votação universal por correio durante anos. Nas eleições de 2020, o número de pessoas que votaram por correio mais que dobrou em relação ao pleito anterior, resultando em muitas cédulas entregues com atraso e só contadas dias após o fim da votação.

Os republicanos em vários estados propuseram ou aprovaram nova legislação limitando quem pode votar pelo correio. A Geórgia reduziu pela metade o tempo permitido para a obtenção de uma cédula postal.

O Arizona propôs exigir que todas as cédulas enviadas pelo correio recebessem carimbo postal cinco dias antes de uma eleição – ignorando as evidências de 2020 de que muitas cédulas enviadas pelo correio não receberam carimbo postal.

O Colorado e outros estados enviam cédulas por correio a todos os eleitores registrados. Em junho, os republicanos do Wisconsin votaram para exigir que qualquer pessoa que desejasse uma cédula de correio a solicitasse formalmente por escrito, com uma cópia de sua identidade.  

A Geórgia e outros estados avançam, além disso, para limitar a disponibilidade de caixas de coleta para cédulas enviadas pelo correio, tornando também mais difícil o envio de uma cédula.

Batalha jurídica

Em seu discurso na Filadélfia, Biden criticou também o seu antecessor, Donald Trump, que continua, sem evidências, a defender que as eleições presidenciais de 2020 foram fraudulentas.

Biden instou o Congresso a restaurar "o poder inicial" de uma legislação nascida do combate pelos direitos cívicos, o Voting Rights Act (Lei do Direito ao Voto), de 1965, que pouco a pouco vem sendo corroída, em particular pela jurisprudência da Suprema Corte.

A Suprema Corte validou na terça-feira duas regras eleitorais do estado do Arizona que, segundo o Partido Democrata, restringem o acesso ao voto por parte das minorias. 

A primeira decisão judicial, com seis votos a favor e três contra, refere-se a uma regra que estipula que os votos antecipados emitidos num distrito errado sejam rejeitados.

A segunda regra torna ilegal a entrega de votos por terceiros – uma prática que os republicanos chamam de "colheita de votos".

Qualquer uma dessas regras prejudica os partidos mais fortes entre as minorias, cujos eleitores revelam muitas vezes mais vulnerabilidades na forma como depositam os seus votos nas eleições.

No ano passado, um tribunal federal de segunda instância em São Francisco, no estado da Califórnia, decidiu que essas regras do Arizona violavam a Lei de Direitos ao Voto de 1965, já que afetam desproporcionalmente grupos minoritários.

Na semana passada, o Departamento de Justiça apresentou um processo judicial contra o estado da Geórgia, onde as regras eleitorais se tornaram igualmente restritivas para as minorias.

Deutsche Welle Brasil, em 15.07.21

Bolsonaro está com soluço

Com reprovação recorde e cada vez mais atacado em meio a supostos escândalos de corrupção no combate à pandemia, o presidente engasgou. Ao invés da prometida nova política, vê-se um governo sem rumo.

"Ainda não está claro até que ponto Bolsonaro está envolvido em supostos escândalos, mas aparentemente as manchetes negativas vindas da CPI influenciaram espectadores"

Como se não bastassem todas as crises, o presidente Jair Messias Bolsonaro ainda tem que lidar com mais uma: de soluço. Há mais de dez dias seu diafragma está fora de controle. Uma dica, neste caso, seria levar um susto para tentar se livrar do soluço. Mas o presidente garantiu, numa recente entrevista, que, por enquanto, não está "assustado com nada que acontece no governo". Será que nem as revelações vindas diariamente da CPI da Covid no Senado deixam o presidente preocupado?

Confesso que não esperava muito da CPI. Comissões parlamentares de inquérito sempre me lembram do meu programa predileto de humor britânico, o excelente Yes, Minister e sua continuação Yes, Prime Minister. Uma produção da BBC dos anos 80, que conta a história de um político ingênuo e incompetente galgando a ladeira do sucesso governamental até se tornar primeiro-ministro.

No seriado, quando aparecem erros do governo, abre-se rapidamente um inquérito, uma Royal Commission, com a justificativa falsa de investigar a fundo. Mas, na verdade, os inquéritos servem para encobrir os erros. Pois espera-se que quando o relatório final estiver pronto, quatro longos anos depois, ninguém se lembre mais do problema. Ou que até lá, apareça um bode expiatório.

No caso da CPI da Covid no Senado brasileiro, eu esperava apenas muitas manchetes negativas para o governo, mas nada de essencialmente novo. Pois já estava tudo na mesa, achava eu: o governo negacionista sabotou as medidas de combate ao coronavirus, oferecendo medicamentos sem eficácia para tranquilizar a população, e ignorou a crise de oxigênio no Amazonas. Além disso, só quis comprar vacinas em quantidade suficiente depois de João Doria ter largado na frente com a vacina chinesa. Tudo documentado e filmado pelo próprio Bolsonaro e cia.

Mas, mesmo depois de 20 anos vivendo aqui e cobrindo o Brasil, ainda me surpreendo. No começo da pandemia, participei de uma oficina da Fundação Getúlio Vargas sobre Direito para jornalistas. Nela, falava-se muito sobre mecanismos para evitar e combater corrupção ligada à pandemia. Eu achava que não seria preciso, pois: quem iria se atrever a desviar dinheiro público destinado ao combate à pandemia, com toda a mídia em cima?

Bom, aparentemente muita gente. Há várias suspeitas de corrupção nos diversos níveis da administração pública. Mas os casos da vacina indiana Covaxin e o da negociação mais que estranha sobre a compra de milhões de doses da AstraZeneca me surpreenderam. Principalmente o cara-de-pau-ismo dos supostamente envolvidos, sendo eles políticos influentes ligados ao Centrão ou vendedores picaretas.

Ainda não está claro até que ponto o presidente está envolvido, se ele sabia, se acobertou os erros de aliados ou se ele se aproveitou da situação emergencial do país em meio à pandemia. Mesmo assim, uma recente pesquisa Datafolha revelou que a reprovação ao governo Bolsonaro atingiu a marca recorde de 51% e que, para 70% dos brasileiros, existe corrupção no governo. Aparentemente, as manchetes negativas vindas da CPI influenciaram espectadores.

Enquanto isso, o governo segue sem rumo. O presidente, pelo menos, anda de motocicleta rumo ao horizonte. Dizem que quando uma criança pega vento demais, fica com soluço. Será que o presidente, nas suas aventuras motociclísticas sem máscara ou capacete com viseira engoliu vento demais? 

Thomas Milz, o autor deste artigo, saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos. Publicado por Deutsche Welle Brasil, em 14.07.21

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Eduardo Leite se perfila para 2022 com privatizações e antipetismo como passe para uma terceira via

Governador do Rio Grande do Sul se esforça para deixar no passado o apoio a Bolsonaro, mas sem negar sua base conservadora, e busca alianças para prévias dentro do PSDB após tornar homossexualidade pública. Para opositores, tem ”ambição insaciável”. Para aliados, é “sério e íntegro”

O governador do RS, Eduardo Leite (PSDB), em seu gabinete em Porto Alegre, durante um evento virtual em 30 de junho. (FELIPE DALLA VALLE / PALÁCIO PIRATINI)

Político com quase duas décadas de carreira, apesar de ter apenas 36 anos, Eduardo Leite (PSDB) nunca havia mencionado sua orientação sexual até ser alvo de ataques homofóbicos durante a campanha de 2018. Na ocasião, teve de desmentir uma fake news que apresentava um de seus irmãos como um suposto namorado, numa foto grosseiramente manipulada. Mas somente três anos depois, no início de julho de 2021, tornou pública sua homossexualidade, em uma entrevista em rede nacional de televisão. O anúncio ocorreu em paralelo com a decisão de assumir a pré-candidatura a presidente da República pelo PSDB, que será disputada nas prévias do partido marcada para 21 de novembro.

A escolha para a revelação foi o programa do jornalista Pedro Bial. A senha veio aos dez minutos de entrevista, gravada na tarde do dia 1° de junho num hotel de São Paulo, quando o apresentador perguntou ao tucano qual era seu trunfo em relação ao governador paulista, João Doria ―também pré-candidato nas prévias tucanas. “A integridade”, respondeu. E emendou: “Eu nunca falei sobre um assunto que eu quero trazer pra ti no programa, que tem a ver com a minha vida privada e que não era um assunto até aqui porque se deveria debater mais o que a gente pode fazer na política, e não exatamente o que a gente é ou deixa de ser. Eu sou gay. E tenho orgulho disso.”

O anúncio passou longe de ser uma surpresa para Bial, que já tinha separado uma reprodução daquela fake news da campanha de 2018 para ilustrar a entrevista. Mas foi uma decisão conhecida por poucos, em harmonia com o estilo discreto ―e centralizador― do governador: além da secretária de Comunicação, Tânia Moreira, que o acompanhou na agenda em São Paulo e discutiu a pauta com o jornalista, somente a família fora avisada uma semana antes sobre a revelação. Nem o presidente do PSDB gaúcho, Lucas Redecker, foi informado.

“Sei que ele estava há tempos pensando nisso, mas desconheço quem o possa ter orientado a revelar neste momento”, garante Redecker. “Foi uma forma dele enterrar esse assunto de uma vez por todas”, analisa o dirigente partidário. Amigo de Leite desde 2008, quando o atual governador foi eleito vereador em Pelotas, no extremo sul gaúcho, o líder tucano classifica-o como “muito sério e íntegro”, além de fiel a seus princípios. “Isso ele não abandona, independentemente de vencer ou perder uma disputa”, explica.

A jogada ensaiada incluiu também um distanciamento crescente em relação ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), para quem Leite declarou voto em 2018. Alvo da ira do presidente, que o acusa de se beneficiar de repasses do Governo federal durante a pandemia, o governador interpelou Bolsonaro junto ao STF, em abril, para que explicasse as insinuações de que havia desviado recursos destinados ao combate à covid-19 no Estado. As declarações envolveram também insinuações homofóbicas.

Aos críticos que insistem em associá-lo a Bolsonaro, o governador tem dito insistentemente que a opção pelo presidente era a única possível no cenário eleitoral de 2018, como forma de evitar a volta do PT ao poder. “Em 2018 o que fiz foi declarar voto nele, com muitas ressalvas. E, mesmo assim, reconheço que errei”, publicou Leite na sexta-feira em uma rede social. O mea-culpa, entretanto, é recente: em julho do ano passado, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o governador declarou que o ultradireitista estimulava a divisão do país, mas que não se arrependia de ter votado nele. Mesmo agora, o governador gaúcho está longe de buscar o confronto total com o presidente para evitar se indispor com sua base conservadora. No sábado, quando Bolsonaro fez uma motociata em Porto Alegre, Leite respaldou a polícia que deteve uma mulher que batia panelas contra o presidente. “Eu votei em Bolsonaro em 18 e admito que errei. A manifestante detida hoje admite que se excedeu.”

Disputa no ninho tucano

A guinada tem como foco convencer o colégio eleitoral tucano de que Leite pode protagonizar a candidatura de terceira via ansiada pelos caciques do PSDB e por outras lideranças do chamado centro democrático. O primeiro passo foi, ao lado do senador Tasso Jereissati e do ex-senador Arthur Virgílio Neto (também pré-candidatos nas prévias de 21 de novembro), alterar na Executiva partidária as regras da primária, para neutralizar o poder de Doria sobre a massa de filiados, avaliada em cerca de 1,3 milhão de eleitores. Foram incluídos na lista os prefeitos e vice-prefeitos do partido em todo o país (cerca de 600 políticos), os mais de 4.000 vereadores tucanos e uma centena de deputados estaduais, além dos senadores e governadores. Os filiados passaram a ter apenas 25% de peso no colégio eleitoral tucano. A manobra foi considerada uma derrota pesada para o governador paulista.

O segundo passo foi a apresentação de Leite como um gestor corajoso e moderno, além de jovem ―um millennial, disposto a se declarar gay e buscar um eleitor de direita. A vitrine é o Governo gaúcho, conquistado de forma surpreendente para um político que tinha, até então, sido apenas vereador e prefeito de uma cidade do interior do Estado. “A grande vantagem dele é a capacidade de dialogar com todo mundo, de aglutinar, de convergir. O Leite não apostou num Governo disruptivo no Rio Grande do Sul, pelo contrário. Mas também não ficou reclamando das dificuldades, principalmente da falta de dinheiro. De todos os governadores do Brasil, foi ele que fez mais reformas estruturais”, defende Redecker.

A tarefa de enfrentar Doria, entretanto, não é tão simples. Leite não tem influência política no partido, é pouco conhecido em nível nacional e, mesmo entre os líderes tucanos, ainda tem poucos aliados: além do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, contabiliza o senador Rodrigo Cunha (AL) e os deputados federais Adolfo Viana (BA), Paulo Abi-Ackel (MG) e Rodrigo de Castro (MG). Também é amigo de Aécio Neves, que foi a Pelotas quatro vezes durante a campanha de Leite para a prefeitura em 2012. Uma cartada que parece querer apresentar é sua baixa rejeição: pouco conhecido, Leite teria espaço para construir uma candidatura, ser uma espécie de efeito-surpresa na disputa.

Um dos seus lemas mais arraigado é a defesa do antipetismo. Foi este o mote que o levou a apoiar Bolsonaro no segundo turno contra Fernando Haddad (PT), em 2018. Foi um apoio constrangido, dada a contumaz homofobia do presidente. Mas necessária para vencer a disputa pelo Estado, já que seu adversário, José Ivo Sartori (MDB), se apresentou como o representante oficial de Bolsonaro no Rio Grande do Sul, atraindo o apoio de eleitores da ala mais conservadora gaúcha. A vitória veio com pouco mais de 400.000 votos de diferença, num segundo turno acirrado.

Ambição

A formação política do governador vem do pai, José Luis Marasco Cavalheiro Leite, advogado e professor de Pelotas que tem suas origens no antigo MDB vinculado ao socialismo e à luta contra a ditadura. Mas que acabou seguindo o rumo de seu amigo, o então sociólogo e professor Fernando Henrique Cardoso. Fundador do PSDB na cidade no final dos anos 1980, Marasco foi candidato a prefeito em 1988 coligado à esquerda representada pelo PCdoB e pelo PCB. Teve menos de 2% dos votos. Desde então, desistiu da política partidária.

Eduardo Leite com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em uma imagem publicada na rede social do governador, em celebração dos 90 anos de FHC.

Leite, nessa época, era pouco mais que um bebê de colo, mas bastou completar 16 anos, em 2001, para fazer seu título de eleitor e se filiar ao mesmo partido do pai. Em 2004 disputou a primeira eleição para a Câmara de Vereadores, com 19 anos; acabou na suplência. A obsessão pela política o levou a cargos no Executivo: foi secretário de Cidadania do prefeito Bernardo de Souza em 2005 ―Souza era a principal liderança do MDB na cidade e amigo pessoal do pai de Leite― e também chefe de gabinete de seu sucessor, Fetter Júnior, um dos principais expoentes da extrema direita de Pelotas.

“Com certeza é um democrata, mas as alianças que fez revelam uma ambição política insaciável. É um fenômeno eleitoral, sem dúvida, mas um político medíocre, um jovem com ideias velhas”, dispara o deputado estadual Fernando Marroni (PT), que perdeu a disputa para o atual governador gaúcho à prefeitura de Pelotas em 2012. Antes de soar como uma declaração revanchista, é bom que se diga: Marroni acompanhou toda a infância de Leite, que foi colega da filha do deputado desde a primeira série até o ensino médio. “Levei ele em casa de madrugada muitas vezes depois das festas da turma. Sempre me chamou de tio Marroni”, relembra.

O governador, já nessa época, dizia que seria político. Mais, dizia que tinha um sonho: ser presidente da República. “Ele foi diretor do grêmio estudantil do Colégio São José ainda adolescente. Sempre deixou clara a pretensão de seguir a carreira que o pai não conseguiu”, avança o parlamentar.

O petista também diz que o tucano descumpriu compromissos eleitorais. Ele cita que os recursos destinados ao sistema de saúde de Pelotas, uma das prioridades da campanha, minguaram nos quatro anos de gestão, passando de 21% da receita municipal, em 2013, para 15%, em 2016.

Como governador, Leite se comprometeu a manter a exigência constitucional de plebiscito para autorizar a privatização de estatais importantes, como a Companhia de Saneamento (Corsan), a empresa de processamento de dados (Procergs) e o banco do Estado (Banrisul). Mas, em 2020, enviou à Assembleia Legislativa do RS uma proposta de emenda constitucional (PEC) derrubando a consulta popular. A proposta foi aprovada em junho deste ano pelo Parlamento gaúcho.

Em 2019, a Assembleia já havia derrubado, também a pedido do governador, uma norma constitucional que previa consulta popular para a privatização das companhias de eletricidade (CEEE), mineração (CRM) e gás (Sulgás). A CEEE-D, que cuida distribuição de energia para mais de 300 municípios gaúchos, foi vendida em março pelo valor simbólico de 100.000 reais ―a compradora assumiu um passivo de 4,4 bilhões de reais em ICMS, dos quais pagará 1,7 bilhão de reais no prazo de 15 anos. O restante deverá ser equacionado pelo Governo. “Comprar uma empresa de energia que opera sob regime de concessão é um casamento, e significa que vocês acreditam na nossa economia”, discursou Leite na cerimônia que oficializou a concessão.

Eduardo Leite posa em frente a um grafite em homenagem ao orgulho LGBTQIA produzido pelo CJ Cruzeiro. (GUSTAVO MANSUR/ PALÁCIO PIRATINI)

Outro compromisso de campanha que Leite ainda não conseguiu cumprir integralmente foi quitar o pagamento dos salários dos servidores públicos do Estado, prometida para o primeiro ano de gestão. A medida foi posta em prática em novembro de 2020, quase dois anos depois de Leite tomar posse. Foram 57 meses de parcelamento, 23 dos quais na gestão do atual governador. “Pagar em dia é uma obrigação do Estado, não é um favor. As nossas reformas estruturais estão na base do ajuste fiscal que proporcionou o retorno do pagamento em dia, lá em novembro de 2020”, afirmou, em abril, o tucano.

“O governador posa de democrata, é uma pessoa cortês, de fino trato, mas na prática política é bem diferente. Estamos há dois anos tentando uma audiência e nada”, reclama o presidente do Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Rio Grande do Sul (Sintergs), Antonio Augusto Medeiros. Um dos pontos de discórdia é a reposição salarial pedida pela categoria, que chega a 42%. Outra é a negociação em relação à greve de 26 dias em 2019, que tentou barrar a reforma administrativa proposta pelo governador.

A reforma administrativa e previdenciária, aprovada em 2020, é um dos trunfos do portfólio de Leite para se credenciar à indicação do PSDB ao Palácio do Planalto. Ao prever uma economia de 18,7 bilhões de reais em 10 anos, das quais 13,9 bilhões de reais com Previdência, o Governo aumentou as alíquotas de aposentadoria para um teto de 22%, pôs fim às licenças-prêmio, excluiu as gratificações por função das futuras aposentadorias e limitou a participação de servidores em mandatos sindicais, numa economia na folha de vencimentos, segundo o Governo, de 600 milhões de reais mensais.

A presidente do sindicato dos professores estaduais (Cpers-Sindicato), Helenir Schürer, diz que Leite é mais performático do que democrata. “Ele gosta de dialogar, mas apenas pela imprensa. É bom de propaganda. Na reforma administrativa, porém, aprovou o que bem quis, embora tenha dito que ouviu e ponderou todos os lados. Com os professores não teve conversa nenhuma”, critica. Na ocasião da aprovação da reforma administrativa, o tucano rebateu as reclamações ao afirmar que ouviu “a maioria silenciosa que quer pagar menos impostos e receber mais serviços.”

A mentora da reforma foi a ex-secretária de Planejamento e Gestão, Leany Lemos. Primeira mulher a assumir um dos cargos mais importantes do Governo gaúcho, Lemos foi importada de Brasília com credenciais de ser filiada ao PSB, pós-doutora em Ciência Política, especialista em orçamento e suplente da senadora Leila do Vôlei. Também comandou a reforma fiscal de Rodrigo Rollemberg no Distrito Federal entre 2014 e 2018. Foi dela também, enquanto esteve à frente na pasta do Planejamento, a ideia de estabelecer um plano de distanciamento controlado no Estado durante a pandemia ―um complexo jogo de cores e decisões políticas que não impediu as mais de 32.000 mortes por covid-19 no Rio Grande do Sul. No final do ano passado, Lemos foi indicada para a presidência rotativa do Banco Regional de Desenvolvimento do Estremo Sul (BRDE) ―um dos cargos mais cobiçados do sistema financeiro do Estado.

A capacidade conciliatória de Leite, destacada pelo líder do PSDB gaúcho, também garantiu ampla maioria na Assembleia Legislativa para a aprovação de projetos de reforma constitucional, incluindo o MDB e o PP ―que não o apoiaram no segundo turno das eleições de 2018. Junto com o PTB, partido do vice-governador Ranolfo Vieira Júnior, o leque de alianças, dependendo do tema, pode chegar a 40 deputado num universo de 55 parlamentares.

Celebrado por políticos da direita à esquerda por ter tornado pública sua homossexualidade, e por ter se posicionado contra a homofobia e a intolerância, Eduardo Leite tem se dedicado a demonstrar sua disposição em dialogar com opositores e críticos mais famosos, como o youtuber Felipe Neto, que descartou apoiá-lo numa disputa nacional por sua antiga aliança com o presidente. “Nó vamos superar esse erro [o apoio de 2018] com diálogo, inclusive com quem pensa diferente. Não se combate ódio com intolerância”, escreveu. Recentemente, também publicou um trecho da mais nova canção do músico uruguaio Jorge Drexler, La guerrilla de la concordia, com a hashtag #oamorvaivenceroodio. A canção afirma que amar é coisa de valentes. E que o ódio é o guia dos covardes.

FLÁVIO ILHA, de Porto Alegre para o EL PAÍS, em 11 JUL 2021 

terça-feira, 13 de julho de 2021

Exército assegura que produziu cloroquina a mando da Defesa e da Saúde, mas ministérios não admitem que ordem partiu deles

Medicamento está no centro de um jogo de empurra e de contradições entre Defesa, Saúde e o Laboratório do Exército. Órgão técnico, Conitec informa à CPI que não recebeu nenhum pedido para análise da incorporação desse medicamento para tratamento da covid-19

Medicamentos no Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx).LABORATÓRIO QUÍMICO E FARMACÊUTICO DO EXÉRCITO (LQFEX)

Quem deu a ordem para que o laboratório do Exército brasileiro aumentasse a produção de cloroquina no ano passado? A cada dia que aumenta a certeza de que a gestão da pandemia foi caótica no Brasil, o jogo de empurra entre os ministérios da Saúde e Defesa e o Exército sobre quem mandou produzir os milhares de comprimidos do medicamento fica mais evidente. À reportagem, o Exército reafirmou que produziu o medicamento a partir da demanda externa dos dois ministérios. “O Centro de Comunicação Social do Exército informa que o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu cloroquina em atendimento às demandas do Ministério da Defesa e do Ministério da Saúde”, diz nota enviada ao EL PAÍS no último final de semana.

Porém, reportagem do EL PAÍS de 6 de julho mostrou que, ao menos oficialmente, ninguém pediu para o Laboratório do Exército produzir o medicamento. Em documentos enviados à CPI da Pandemia, o Ministério da Saúde afirma que a ordem para a produção do medicamento não partiu de lá. “Informamos que não houve envio, por parte do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos (DAF), de nenhum ofício ao Ministério da Defesa solicitando a produção de cloroquina e hidroxicloroquina”, diz o documento.

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ―responsável por assessorar o Ministério da Saúde quanto à incorporação de tecnologias pelo Sistema Único de Saúde (SUS)― informou à CPI que não foi feito nenhum pedido de “incorporação da cloroquina ou hidroxicloroquina para tratamento da covid-19″. À comissão foram solicitadas análises das vacinas Fiocruz-AstraZeneca e Pfizer-Wyeth, bem como à utilização do ECMO ―uma espécie de bomba para fazer circular o sangue por um pulmão artificial fora do corpo― em pacientes com síndrome respiratória aguda grave decorrente de infecções virais. O Ministério da Saúde também pediu à Conitec a incorporação de medicamentos específicos, como casirivimabe e imdevimabe, que tiveram o uso emergencial aprovado pela Anvisa. Também foi solicitado a elaboração de diretrizes para tratamento da covid-19.

“Alguns medicamentos foram testados e não mostraram benefícios clínicos na população de pacientes hospitalizados, não devendo ser utilizados, sendo eles: hidroxicloroquina ou cloroquina, azitromicina, lopinavir/ritonavir, colchicina e plasma convalescente. A ivermectina e a associação de casirivimabe + imdevimabe não possuem evidência que justifiquem seu uso em pacientes hospitalizados, não devendo ser utilizados nessa população”, informou a Conitec em nota. Hidroxicloroquina ou cloroquina são usadas para combater a malária.

A Conitec analisa neste momento a incorporação do medicamento remdesivir, da empresa Gilead Sciences Farmacêutica. Trata-se de um processo complexo que passa por reuniões, consulta pública, análise técnica antes de uma decisão final. A cloroquina, por outro lado, não passou por nenhum crivo para ter sua produção ampliada e sua distribuição realizada pelo SUS. O Ministério da Defesa, também nos documentos enviados à CPI, diz que atendeu “à orientação e à demanda do Ministério da Saúde para a produção de cloroquina” no Laboratório Químico Farmacêutico do Exército. O EL PAÍS procurou então o Exército, que só respondeu aos questionamentos depois de já publicada a reportagem. A pergunta sobre quem mandou produzir e distribuir os milhares de comprimidos de cloroquina ainda segue com respostas desencontradas.

Esse jogo de empurra levanta mais suspeitas sobre o medicamento. Defendido sistematicamente pelo presidente Bolsonaro e seus aliados no tratamento da covid-19, a eficácia da cloroquina para a doença até hoje não foi comprovada cientificamente, pelo contrário. Estudos descartam recomendar seu uso. Em outubro do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou a ineficácia da droga no tratamento da covid-19, embora desde maio estudos já apontassem que o medicamento não funcionava contra a doença. Mesmo assim, o laboratório do Exército, que desde 2000 tem licença junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para produzir o medicamento justamente para auxiliar no combate da malária no país, sintetizou 3,2 milhões de comprimidos da droga em 2020, segundo reportagem da Agência Pública. A média de produção até 2019 era de 250.000 comprimidos a cada dois anos.

Desde o ano passado, o Exército já afirmava que apenas responde às demandas externas. Em maio de 2020, a corporação afirmou a este jornal que “recebe demandas do Ministério da Saúde, por meio de Termos de Execução Descentralizada”. E que “nestes casos, após produzido o medicamento, o mesmo é distribuído às Secretarias Estaduais de Saúde e ao Estoque Regulador, conforme pauta definida pelo próprio demandante (Ministério da Saúde)”. Por fim, informou também que a destinação do material produzido caberia ao Ministério da Defesa, “conforme orientação do Ministério da Saúde”.

O desencontro de informações vai fechando o cerco ao redor de um medicamento que, a despeito de não ter a sua eficácia comprovada no tratamento da covid-19, teve sua produção multiplicada no Laboratório do Exército e, no setor privado, movimentou milhões de reais. Reportagem da Folha de S. Paulo com base nos documentos enviados à CPI mostra que as farmacêuticas faturaram mais de 480 milhões de reais com a venda de medicamentos que formam o kit covid, dentre eles a cloroquina. Em 2019, a comercialização dessas drogas rendeu pouco acima dos 180 milhões de reais.

Fazem parte do kit covid, além da cloroquina, medicamentos como ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e vitamina D. Rechaçado por não ter embasamento científico, o kit covid foi uma das bandeiras defendidas pelo presidente Bolsonaro ao longo da pandemia. Ele mesmo afirmou ter se tratado com cloroquina ao contrair a covid-19 em julho do ano passado.

À medida que os documentos da CPI da Pandemia vão sendo revelados, vai ficando mais evidente o esforço do Governo brasileiro pela produção e distribuição da cloroquina, embora ainda não se tenha descoberto a razão real desses esforços. Reportagem de O Globo mostra que o Planalto atuou no exterior pela aquisição de insumos para a produção da droga ao menos 84 vezes. Telegramas do Itamaraty mostram as comunicações feitas, em sua maior parte com o Governo indiano, com o intuito de garantir matéria-prima para sintetizar o medicamento. Bolsonaro chegou a falar pessoalmente com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, em abril do ano passado. Por telefone, o presidente intercedeu em nome de empresas brasileiras pedindo que a Índia liberasse a exportação dos insumos.

De acordo com a reportagem, o esforço ficou concentrado até junho do ano passado, quando o Brasil recebeu uma doação de 3 milhões de comprimidos de hirdoxicloroquina, medicamento similar, dos Estados Unidos. “Habemus hidroxicloroquina!”, comemorou o embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, em email ao então secretário de Comércio Exterior do Itamaraty, Norberto Moretti, ao confirmar a doação dos Estados Unidos.

MARINA ROSSI e REGIANE OLIVEIRA, de São Paulo para o EL PAÍS, em13.07.21 

Brasil registra mais 1.605 mortes por covid-19

Número acumulado de mortes passa de 535 mil. Total de casos notificados da doença passa de 19,1 milhões.

    
O Brasil registrou oficialmente nesta terça-feira (13/07) 1.605 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 45.022 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções reportadas no país chega a 19.151.993, e os óbitos oficialmente identificados somam 535.838.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga o número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 17.666.654 pacientes haviam se recuperado da doença até esta segunda-feira, mas o número não aponta quantos ficaram com sequelas.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 607 mil óbitos, mas tem uma população bem maior. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,9 milhões) e Índia (30,9 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 255,0 no Brasil, a 8ª mais alta do mundo, atrás apenas de alguns pequenos países europeus e do Peru.

Ao todo, mais de 187,6 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 4 milhões de mortes associadas à doença.

Deutsche Welle Brasil, em 13.07.21