terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Cartas inéditas revelam influência do pai sobre Hitler

Um homem presunçoso, que não respeitava autoridade e se superestimava grosseiramente: livro traça retrato raro de Alois Hitler e mostra como ele ajudou a moldar a personalidade do ditador nazista.

Alois Hitler, pai de Adolf Hitler, morreu em 1903 

Uma série de cartas até então desconhecidas escritas por Alois Hitler, pai de Adolf Hitler, lança um olhar mais profundo sobre as origens familiares do ditador nazista. A correspondência serviu como base para um livro lançado nesta segunda-feira (22/02) na Áustria.

O livro, lançado apenas em alemão, tem o título de Hitlers Vater – Wie der Sohn zum Diktaror wurde (O pai de Hitler - como o filho virou ditador, em tradução literal). Nele, o historiador austríaco Roman Sandgruber argumenta que Alois desempenhou um papel-chave na formação psicológica do filho.

Alois Hitler, que morreu em 1903, era um agente da alfândega austríaca, e seu trabalho exigia mudanças constantes de residência - a família Hitler teve 18 endereços diferentes.

O livro se baseia em 31 cartas que Alois Hitler escreveu ao construtor de estradas Josef Radlegger após comprar sua fazenda em Hafeld, no norte da Áustria.

Embora Alois Hitler não tivesse nenhuma experiência prática na agricultura, afirma o livro, ele "sempre quis ser um agricultor profissional (…) melhor do que os outros".

O autor descreve Alois Hitler como um misto de autodidata, presunçoso e uma pessoa que se superestimava grosseiramente.

A mesma letra de Adolf Hitler

O trabalho de Sandgruber usa como base correspondências inéditas entregues a ele há cinco anos pela neta de Radlegger. As cartas ficaram por décadas perdidas num sótão, até que fossem encontradas por ela.

As cartas revelam que Alois usava a mesma caligrafia que o filho: a chamada Kurrentschrift, antiga forma manuscrita da língua alemã, com ângulos afiados e mudanças de direção.

O livro revela que o antissemita e genocida Adolf Hitler - nascido em Braunau am Inn, na Áustria, em 1889 - provavelmente mais tarde buscou esconder o fato de que a família já havia vivido em uma propriedade judaica em Urfahr, perto da cidade de Linz, às margens do rio Danúbio.

As cartas também mostram que a mãe de Hitler, Klara, perto da morte em 1907, foi tratada por um médico judeu que mais tarde fugiu para os Estados Unidos.

Hitler era antissemita desde jovem

Adolf Hitler já era um antissemita na juventude, conclui Sandgruber no livro, numa afirmação que contesta as alegações de que o ódio de Hitler aos judeus surgiu depois que ele se mudou para Viena.

Quando jovem, Hitler se mudou para a cidade por volta de 1908, com o objetivo de se tornar um artista, apesar de ter sido recusado na escola que pretendia frequentar.

As últimas descobertas vão de encontro aos relatos de August Kubizek, amigo de Hitler na adolescência frequentemente citado por outros historiadores.

Como líder do partido nazista, Hitler emergiu como chanceler alemão em 1933, desencadeou a Segunda Guerra Mundial e promoveu o assassinato em massa de judeus e outras minorias.

O mesmo desprezo pela autoridade

A única revolta significativa de Adolf Hitler contra seu pai, observa Sandgruber, foi a de rejeitar o desejo de Alois de que ele também seguisse uma carreira no serviço público.

"Ele queria ser um artista livre e não seguir os passos de seu pai", escreve Sandgruber.

Entretanto, afirma o autor, tanto pai quanto filho também compartilhavam o desprezo pela autoridade e eram anticlericais, ainda que Hitler não tenha abandonado a Igreja Católica.

Alexandra Föderl-Schmid, em crítica para jornal alemão Süddeutsche Zeitung, observa que o livro é importante porque até agora não havia "quase nenhuma fonte" sobre Alois.

Há um "grande número de livros e filmes sobre o motorista de Hitler, médico pessoal, chefe de imprensa, fotógrafo, secretário", afirma ela. Mas nada sobre seu pai. Isso mudou agora com o livro de Sandgruber.

Deutsche Welle Brasil, em 23.02.2021

UE aprova novas sanções contra Venezuela e Rússia

Medida tem como alvo na Venezuela autoridades acusadas de minar a democracia. Já na Rússia, sanções atingem envolvidos na prisão do líder oposicionista Alexei Navalny.


Decisões foram tomadas em reunião dos ministros das Relações Exteriores dos 27 países-membros da UE

A União Europeia (UE) decidiu nesta segunda-feira (22/02) impor novas sanções contra a Venezuela e a Rússia. A decisão atinge autoridades de ambos os países e foi tomada numa reunião dos ministros do Exterior do bloco.

No caso da Venezuela, 19 nomes de autoridades foram adicionados à lista de sancionados "por minarem os direitos eleitorais da oposição e o funcionamento democrático da Assembleia Nacional, e por graves violações dos direitos humanos e restrições às liberdades fundamentais", informou a UE em comunicado.

Já com relação à Rússia, os sancionados estão ligados à prisão e à condenação do líder oposicionista do Kremlin, Alexei Navalny. O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, irá divulgar uma lista de pessoas a serem sancionadas. 

Em ambos os casos, as sanções implicam na proibição de entrada no território da União Europeia e no congelamento de bens dessas autoridades no bloco europeu.

Eleições não democráticas 

A União Europeia não reconhece a Assembleia Nacional venezuelana que tomou posse em 5 de janeiro, de maioria governista, por considerar que as eleições de 6 de dezembro não foram democráticas. A maior parte da oposição, sobretudo a ligada a Juan Guaidó, boicotou o pleito por não considerar as eleições livres e justas.

Entre as autoridades venezuelanas sancionadas estão a vice-presidente Delcy Rodríguez Rodríguez e o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Diosdado Cabello. Também entraram para a lista, que agora conta com 55 nomes, a presidente e o vice-presidente do Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela, magistrados do Supremo Tribunal e do Tribunal Constitucional da Venezuela e deputados da Assembleia Nacional.

Em comunicado, a UE disse que "manterá o seu compromisso com todos os atores políticos e da sociedade civil que lutam pelo retorno da democracia à Venezuela, incluindo em particular Juan Guaidó e outros representantes da Assembleia Nacional cessante, eleita em 2015, que foi a última expressão livre dos venezuelanos".

"Estas medidas direcionadas são desenhadas de maneira a não terem efeitos humanitários adversos ou consequências não desejadas para a população venezuelana, e podem ser revertidas", acrescenta o comunicado.  

Pedidos de liberdade a Navalny

As novas sanções à Rússia vêm após semanas de apelos mal-sucedidos da UE pela libertação de Navalny. Moscou já disse que considera os pedidos do bloco como interferência nos assuntos internos. Apoiadores do opositor consideram as medidas da UE muito brandas e defendem que as sanções deveriam ser em maior escala. 

O envenenamento de Nalvalny e seu posterior tratamento na Alemanha têm sido objetos de atrito entre Moscou e Bruxelas. No fim de 2020, a UE impôs proibições de ingresso e congelou as contas bancárias de diversas autoridades russas, entre as quais o diretor do FSB (órgão de inteligência que sucedeu a KGB), Alexander Bortnikov.

Recentemente, a Rússia expulsou três diplomatas da Alemanha, Polônia e Suécia por, supostamente, terem participado de protestos pró-Navalny. Em represália, os três países expulsaram, cada um, um diplomata russo.

No começo de fevereiro, um tribunal da Rússia sentenciou Navalny a três anos e meio de prisão. A Justiça alegou que o ativista violou as condições de sua liberdade condicional relacionada a uma sentença proferida em 2014, ao não se apresentar regularmente para as autoridades penitenciárias. A sentença original envolve um suposto caso de fraude, num processo que foi considerado politicamente motivado e declarado ilícito pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

O ativista foi preso novamente em 17 de janeiro, ao desembarcar em Moscou. Ele retornava a seu país natal pela primeira vez após ter passado cinco meses na Alemanha, onde se recuperava de um ataque com um agente neurotóxico. Navalny acusa o governo russo pelo envenenamento. O Kremlin, por sua vez, nega as acusações. 

Apesar de ter sido advertido pelas autoridades russas de que seria detido ao desembarcar, Navalny decidiu voltar.

A nova prisão de Navalny foi o estopim para novos protestos contra o Kremlin. Milhares de pessoas saíram às ruas em dezenas de cidades para exigir a libertação do ativista e demonstrar insatisfação com o governo autoritário do presidente Vladimir Putin. A reação das autoridades foi feroz, e mais de 10 mil pessoas foram detidas.

Deutsche Welle Brasil, em 23.02.2021

Avaliação positiva do governo Bolsonaro cai de 41% em outubro para 33% em fevereiro

Queda de oito pontos levou o índice ao mesmo patamar de maio de 2020, mostra pesquisa da CNT

A popularidade do presidente Jair Bolsonaro caiu nos primeiros meses de 2021 e voltou ao patamar de maio do ano passado, aponta pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) em parceria com o Instituto MDA.

A avaliação positiva do governo (ótimo e bom) caiu de 41% em outubro de 2020 para 33% em fevereiro deste ano. A queda de oito pontos levou o índice ao mesmo patamar de maio de 2020, quando 32% avaliavam positivamente a gestão.

Os indicadores foram medidos em meio à pandemia de covid-19. Com o pagamento do auxílio emergencial a trabalhadores informais e desempregados, a avaliação positiva do governo subiu, situação revertida no começo deste ano, após o fim do benefício.

A avaliação negativa (ruim e péssimo) subiu de 27% para 35% de outubro para fevereiro. Outros 30% consideram a administração regular. Nesse quesito, os entrevistados são questionados de que maneira avaliam o governo do presidente Jair Bolsonaro: ótimo, bom, regular ou péssimo.

A aprovação pessoal de Bolsonaro também caiu oito pontos em quatro meses, indo de 52% para 44%. Nessa pergunta, o instituto questiona as pessoas consultadas se elas aprovam ou desaprovam o desempenho pessoal do presidente da República. A rejeição subiu de 43% para 51% no mesmo período. Ou seja, a quantidade de reprovação superou a de aprovação.

A pesquisa foi feita com 2.002 entrevistados em 137 municípios do Brasil de 18 a 20 de fevereiro. A margem de erro é de dois pontos porcentuais com 95% de nível de confiança. 

Daniel Weterman, O Estado de São Paulo, em 22 de fevereiro de 2021 

Rubens Barbosa: Prévias partidárias

Essa ideia foi levantada pelo presidente do PSDB para escolha do candidato a presidente

A expectativa era de que somente a partir do segundo semestre deste ano as articulações sobre as eleições presidenciais de 2022 estivessem a dominar a cena política. Na realidade, essas discussões cada vez mais deverão ocupar as atenções do meio político e da mídia, distraídos em meio aos rompantes populistas bolsonaristas. A crise da saúde causada pela pandemia e o atraso do governo na compra das vacinas ocupam o noticiário, junto com as repercussões da aprovação do auxílio emergencial, da intervenção na Petrobrás e da venda de armas.

Os partidos políticos e personalidades com perspectiva de se apresentarem como candidatos começam a se movimentar e a buscar os holofotes a fim de influir, de alguma maneira, no processo inicial das discussões.

É lugar-comum ressaltar a fragmentação do sistema partidário brasileiro, a falta de programas que sejam defendidos coerentemente por todas as legendas e o controle da máquina partidária por lideranças personalistas e, em muitos casos, autoritárias. Ninguém ignora que uma reforma política, necessária para pôr um mínimo de ordem no quadro partidário, dificilmente será levada adiante, sobretudo, por falta de interesse da classe política.

No marco atual da cena brasileira surgem nomes que certamente poderão estar presentes na eleição de 2022, por sua influência pessoal, e não por força de seus partidos. Essa situação provoca enormes distorções e faz a indicação de candidaturas depender mais dos chefes dos partidos que de um processo democrático que envolva militantes e afiliados. Não há unidade partidária porque os interesses pessoais e políticos determinam o comportamento dos seus membros, o que, na prática, torna os partidos verdadeiras frentes com diversas alas e grupos. Essa é uma das razões do grande número de partidos políticos no Brasil, mais de 30 com representação no Congresso Nacional.

Essa situação não existe só no Brasil. O mesmo se verifica no sistema partidário nos Estados Unidos, embora, por paradoxal que pareça, haja apenas dois partidos que realmente importam no cenário político norte-americano. O Partido Democrata e o Republicano são frentes, com múltiplas alas e interesses divergentes, tanto locais quanto nacionais, como ficou demonstrado nas últimas eleições presidenciais.

À diferença do que existe no Brasil, nos Estados Unidos há um processo democrático decisório efetivo dentro dos partidos. A escolha de candidatos em todos os níveis, locais e nacionais, até para os governos estaduais, para o Congresso e para presidente, é feita mediante prévias partidárias que permitem que cada grupo se manifeste e busque conquistar espaços políticos. O vencedor das prévias se torna candidato e todos os que participaram da disputa cerram fileiras e o apoiam.

Caso viessem a prosperar no Brasil, as prévias poderiam ser o início de uma minirreforma política, pois poderiam abrir caminho para a fusão de partidos com afinidades ideológicas e políticas, de forma que os interesses de todos possam ser respeitados e decididos democraticamente. Seria ingênuo pensar que essa medida pudesse, no momento, ser aceita por todos, visto que as fortes lideranças partidárias, “donas” de alguns partidos, dificilmente aceitariam essa mudança transformacional.

A ideia, contudo, acaba de ser mencionada pelo presidente do PSDB, ao comentar o processo de escolha do partido para a eleição presidencial de 2022. Diz Bruno Araújo que o futuro candidato do partido deverá ser escolhido por prévia em outubro. Caso essa decisão se confirme, o PSDB estaria reforçando o processo democrático que prevaleceu em São Paulo em várias eleições para a Prefeitura e para o governo do Estado. O partido estaria fortalecendo o debate democrático e o respeito aos seus princípios programáticos. A unidade seria mantida, visto que aqueles que se dispusessem a concorrer estariam implicitamente manifestando sua disposição de apoiar quem ganhasse a maioria.

Do ponto de vista do partido, o melhor talvez fosse antecipar o processo e realizar a prévia em agosto ou setembro, para criar um fato político diferenciado e dar mais tempo ao candidato escolhido para viajar pelo País e tornar conhecidas suas propostas para um futuro governo. Essa decisão poderia igualmente facilitar as articulações regionais para a escolha de candidatos próprios ou para eventuais apoios a outros candidatos. O partido estaria voltando às suas origens, daria exemplo de democracia, sairia fortalecido não só pela união interna, mas também pela vantagem de sair na frente, enquanto outros partidos iniciarão o processo de escolha apenas em 2022.

A eleição presidencial terá como pano de fundo os desdobramentos da pandemia, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos. Pesarão na hora do voto o custo social e humano, pela forma como as decisões na área da saúde foram tomadas, pelo número de mortos e pelos efeitos negativos sobre o crescimento da economia e do emprego, além do aumento da desigualdade. Os futuros candidatos terão de ajustar seu discurso às novas circunstâncias políticas. Quanto mais cedo os candidatos começarem a expor suas ideias e a debater suas propostas para o Brasil, mais chances terão de focar nos interesses concretos dos eleitores.

Rubens Barbosa, o autor deste artigo, foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Presidente do IRICE. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, edição de 23.02.2021

23 de fevereiro de 2021 | 03h00

Uma intervenção desastrosa

A intervenção na Petrobrás combina com o fracasso econômico da gestão Bolsonaro, evidente já antes da pandemia

Gente esforçada, os americanos acordaram cedo para se livrar de papéis da Petrobrás ontem de manhã. Títulos da empresa despencaram 16% no pré-mercado, isto é, antes da abertura oficial do pregão. Ao mexer na empresa, como sempre desastrado, o presidente Jair Bolsonaro assustou também os estrangeiros, importantes fontes de capital para a estatal brasileira. Talvez ele ignorasse, ou ainda ignore, também esse detalhe. No Brasil ações da petroleira estavam em queda de 19% por volta do meio-dia, arrastando para baixo papéis de estatais, como o Banco do Brasil (BB) e Eletrobrás, e o Ibovespa. Esse índice, o principal da bolsa brasileira, recuou 4,84% durante a manhã.

Nessa altura, a Petrobrás acumulava perda de cerca de R$ 100 bilhões de valor de mercado, iniciada no último fim de semana. No fechamento da quinta-feira, a empresa ainda valia R$ 382,99 bilhões. Só na sexta-feira foram perdidos R$ 28,2 bilhões. O presidente prometeu novas intervenções e mencionou o setor de energia elétrica. Mas, no fim de semana, circulou no mercado a hipótese de mudança na direção do Banco do Brasil, ensaiada recentemente, mas ainda irrealizada.

O motivo dessa intervenção seria o programa de fechamento de agências físicas e de redução de pessoal apresentado recentemente pela presidência do banco. O presidente Bolsonaro já havia interferido na gestão do BB ao condenar moralmente uma campanha publicitária. A censura foi aceita e cumprida, embora incompatível com as normas de administração de empresas como o BB. O presidente da instituição acabou renunciando ao posto, bem mais tarde, por outro motivo.

Mas os danos causados pelo presidente Bolsonaro, incapaz de entender as funções presidenciais e, mais amplamente, a própria noção de governo, vão muito além dos males causados diretamente à Petrobrás ou a qualquer outra entidade vinculada ao poder federal. A incompetência presidencial, manifestada com o máximo de truculência e nenhuma percepção das questões econômicas, legais, sociais e empresariais mais importantes em cada caso, afeta largamente o funcionamento da economia brasileira e as expectativas de quase todos os grupos de agentes.

A piora das expectativas foi claramente mostrada, ontem, no último boletim Focus divulgado pelo Banco Central. Em uma semana, a mediana das projeções da inflação oficial passou de 3,62% para 3,82%. O dólar estimado para o fim do ano subiu de R$ 5,01 para R$ 5,05. A taxa básica de juros esperada para dezembro aumentou de 3,75% para 4%, o dobro daquela em vigor neste momento. O déficit primário (sem juros) do setor público voltou a 2,80% do Produto Interno Bruto (PIB), depois de haver recuado para 2,70%. O crescimento do PIB foi revisto de 3,43% para 3,29%. Quatro semanas antes ainda se apostava em 3,49%.

Resumindo: as expectativas são de inflação maior, dólar mais caro, rombo fiscal mais amplo, juros mais altos e menor expansão econômica. Outras pesquisas já indicaram piora das expectativas dos empresários industriais e aceleração dos preços por atacado.

Ao comentar reações do mercado, o vice-presidente Hamilton Mourão falou em “rebanho eletrônico”. É um comentário estranho, quando se vê a mudança de orientação de grandes instituições financeiras. Analistas da XP Investimentos, do Bradesco e do Crédit Suisse passaram a recomendar a venda de papéis da Petrobrás. Seus colegas do BTG Pactual e da Mirae Asset foram mais contidos, mas deixaram de recomendar a compra. Nada, no currículo do vice-presidente, parece credenciá-lo para menosprezar dessa maneira a resposta de tantos analistas.

Afinal, trata-se mesmo de uma intervenção grosseira, confirmada pela demissão do presidente da empresa antes do fim de seu mandato. Esse episódio combina com o fracasso econômico da gestão Bolsonaro, evidente já antes da pandemia, com a grotesca propaganda da cloroquina, com a imprevidência no caso da vacinação, com sua política armamentista e com a fixação nos assuntos familiares e na reeleição. Nenhum vice-presidente contemporizador poderá disfarçar essas barbaridades.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 23 de fevereiro de 2021 


Daniel Silveira gravou conversas com Bolsonaro e Maia, diz deputado do PSL

Deputado Felício Laterça, do PSL-RJ, diz que deputado preso por ordem do STF o teria procurado para 'ganhar dinheiro' em atos de corrupção

O deputado Felício Laterça (PSL-RJ) afirmou que seu colega Daniel Silveira (PSL-RJ) gravou clandestinamente conversas reservadas com autoridades, como o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ). “Ele era um gravador ambulante”, disse Laterça ao Estadão nesta segunda-feira, 22. Segundo o parlamentar, Silveira também o procurou para “facilitar a vida de empresas” e “ganhar dinheiro na boa”, em atos de corrupção.

Na madrugada deste domingo, dia 21, Laterça divulgou um vídeo em suas redes sociais em que faz acusações contra Silveira. Ele afirma que o próprio colega de partido revelou, numa conversa a sós, que tinha o costume de gravar pessoas secretamente, inclusive o presidente, num ato considerado “intolerável” no meio político de Brasília.

“Ele me revelou que tinha feito algumas gravações, ele tinha esse mau hábito. Ele acabou gravando conversa de parlamentares dentro do ambiente da Câmara, se valendo disso para se autopromover. Ele disse para mim que também havia gravado o presidente da República”, relatou Laterça, que é delegado licenciado da Polícia Federal (PF). 

Laterça disse que as gravações secretas e a “proposta” de Silveira ocorreram em 2019. O deputado disse não saber detalhes como em que local Silveira gravou Bolsonaro. Afirmou, ainda,que não chegou a ouvir os áudios. Segundo Laterça, Silveira justificou que era uma forma de manter registro das conversas.

“Pelo jeito de ele agir, ele gravava os deputados. Disse que gravou conversa com o deputado Rodrigo Maia e outros deputados da base. Ele gravava as pessoas com as quais tinha divergência, começava a puxar assunto para ter algo em troca, acredito eu”, observou.

Laterça disse que Silveira sugeriu que procurassem empresas em busca de vantagens e que usassem emendas parlamentares para “devolver grana”.

“Quando ele me fez a oferta, de repente estava me gravando para saber qual era a minha posição. Ele veio (dizendo) ‘Rapaz, isso aqui tem como a gente ganhar dinheiro, mas ganhar dinheiro na boa’. Eu falei ‘Como ganhar dinheiro na boa?’. (Ele disse) ‘Não, procurar umas empresas…’”, contou o  parlamentar. “Eu apelidei isso de troco na troca. Deputados que colocam emenda em determinados lugares para que o gestor por meio da corrupção devolve parte do recurso público e ele também se enriquece indevidamente. Ele fez esse tipo de proposta. Não sei se estava me gravando para ter algo contra mim.”

Laterça afirmou ter rechaçado as abordagens de Daniel Silveira. De acordo com ele, o colega estava procurando facilidades para empresas, mas não chegou a citar quais. “A minha resposta foi contundente: ‘Eu não vou sujar minha história de vida, minha carreira’. Ele travou e não falou mais”, disse.

O deputado diz que não tinha mais convivência com Silveira desde o fim daquele ano, quando a bancada eleita na onda Bolsonaro rachou.  Os deputados fazem parte de alas divergentes no PSL desde então. Silveira é da bancada mais bolsonarista, enquanto Laterça possui trânsito na cúpula da legenda, com o presidente Luciano Bivar (PSL-PE). Ele é integrante da Executiva Nacional.

Em outubro de 2019, Silveira gravou e vazou áudios de uma reunião com bate-boca na bancada. Ele admitiu ter divulgado as gravações. Na ocasião, o então líder, Delegado Waldir (PSL-GO), ameaçou “implodir” o presidente Bolsonaro e o chamou de “vagabundo”. Silveira disse ter agido para blindar o governo.

Laterça disse que decidiu vir a público depois que a Câmara manteve Silveira preso para mostrar que ele não é “coitadinho” e para revelar o “caráter” dele. O parlamentar defende que o Conselho de Ética da Câmara, a ser reativado nesta terça-feira, 23, casse o mandato do colega de partido. “Ele não tem nada de coitadinho, muito pelo contrário. Além de tudo é mau caráter”, disse Laterça. “Esse deputado não merece estar entre nós. Estamos tirando um bandido de circulação.” 

Segundo Laterça, Silveira usava celulares para fazer as gravações sigilosamente. Na última quinta-feira, dia 18, agentes apreenderam dois telefones encontrados na cela ocupada por Silveira na Superintendência da PF no Rio. Os aparelhos serão periciados por ordem do Supremo e podem conter os áudios.

De acordo com ele, Silveira já havia ameaçado “explodir” e “revelar” conversas reservadas, como a que teve com Maia. E que também registrava as noitadas dos deputados em boates.

Silveira é alvo de dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF): o dos atos antidemocráticos e o das fake news. Na última terça-feira, dia 16, ele foi preso em flagrante por crime inafiançável, em Petrópolis (RJ), horas depois de veicular um vídeo com ameaças e xingamentos a ministros da Corte, além de apologia à ditadura militar. Os 11 ministros do Supremo concordaram com a ordem cautelar. Na sexta-feira, dia 19, a maioria da Câmara referendou a prisão: num placar de 364 votos favoráveis à prisão a 130 votos pela libertação.

Silveira se disse arrependido, mas não convenceu os parlamentares. Ele segue preso no Batalhão Especial Prisional da Polícia Militar, em Niterói (RJ). Daniel Silveira é ex-cabo da PM.

A assessoria de Silveira disse ao Estadão que a defesa só deve conseguir contato com o deputado nesta terça-feira, dia 23. O advogado de Silveira deve responder às acusações nesta terça-feira por meio de nota. 

Felipe Frazão, O Estado de São Paulo, em 22 de fevereiro de 2021 


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Análise: Bolsonaro serve Petrobras como bufê a seus aliados

Para o presidente, manter controle sobre semiestatal é questão de sobrevivência: com postos e outras regalias, ele mantém satisfeitos militares e aliados no Congresso. Mas queda vertiginosa na bolsa prenuncia catástrofe.

Protestos diante da sede da Petrobras, no Rio de Janeiro, em 18/02/2020

Para surpresa de muitos, o presidente Jair Bolsonaro demitiu na sexta-feira (19/02) o chefe da Petrobras, colocando em seu lugar um general da reserva. O chefe de Estado estava incomodado com o aumento dos preços da gasolina e diesel, anunciado pelo ex-presidente da semiestatal Roberto Castello Branco. Transportadores e caminhoneiros haviam ameaçado com protestos

Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa e general de quatro estrelas na reserva, é quem assumirá agora o comando do maior conglomerado de petróleo e energia da América Latina. O conselho de administração da Petrobras ainda precisa dar seu aval para a medida.

Já se contam com protestos dos acionistas minoritários, pois o anúncio de Bolsonaro fez os ações da empresa despencarem 7% na bolsa de valores de Nova York, na sexta-feira, resultando num prejuízo de 11 bilhões de dólares.

Esperam-se outras quedas de cotação durante a semana. Antes mesmo da abertura do pregão, nesta segunda-feira, a ação da semiestatal já estava em apenas 8 dólares, portanto 15% menos do que antes da mudança de pessoal. Comparando: em 2008, quando a Petrobras era a multinacional latino-americana mais valiosa, suas ações estavam cotadas em mais de 70 dólares em Wallstreet, onde eram o título estrangeiro mais negociado.

Diversos bancos de investimentos aconselham agora a venda das ações, pois a substituição do presidente faz prever que quem voltará a decidir os destinos da empresa são o governo brasileiro e as Forças Armadas ligadas a ele. Embora listada na bolsa, a Petrobras está sob controle estatal.

Assunto tradicionalmente militar

O fato desperta lembranças ruins. Sob os governos de esquerda dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2016), a Petrobras já havia sido instrumentalizada. Com intervenções estatais em sua política de preços, os dirigentes tentaram conter a inflação, instrumentalizando a petroleira para uma política industrial na economia como um todo.

No fim das contas, a Petrobras estava envolvida em todos os setores da economia, e quase todos os projetos de investimento fracassaram. Além disso, mais tarde ela esteve no centro da Operação Lava Jato, o maior escândalo de corrupção da história brasileira.

A partir de 2015, o conglomerado foi gradativamente sendo saneado. Porém há muito esse processo está paralisado: a Petrobras quer, por exemplo, se livrar da metade de suas refinarias, mas não encontra interessados. Diante da atual intervenção e do controle de preços, dificilmente algum conglomerado químico estará disposto a investir nessas refinarias.

Além disso, em meados de fevereiro o diretor de compliance Marcelo Zenkner anunciou que deixaria a Petrobras. Ao jornal Estado de S. Paulo, o principal opositor à corrupção da companhia explicou que o clima político mudara, desde o fim de 2020, e que a base para independência e autonomia estava comprometida.

Para Bolsonaro, o controle sobre a Petrobras é uma questão de sobrevivência política: ele precisa manter satisfeitos seus novos aliados do Centrão no Congresso e os militares, com cargos, orçamentos e outras regalias da Petrobras. Agora o presidente lhes coloca a semiestatal à disposição, como um bufê.

Também tem assim continuidade a militarização crescente da economia sob Bolsonaro. Para as Forças Armadas, a Petrobras é, tradicional e indiscutivelmente, assunto seu. Já antes da ditadura militar (1964-1985), a direção do conglomerado cabia exclusivamente a militares, entre eles o futuro presidente Ernesto Geisel. Apenas nos anos 90 eles perderam sua influência, em decorrência da privatização parcial da petroleira e sua listagem na bolsa de valores.

Deutsche Welle Brasil, em 22.02.2021

EUA superam 500 mil mortos pela covid-19

Pandemia matou mais americanos do que a 1ª Guerra Mundial, a 2ª Guerra e a Guerra do Vietnã juntas. Biden lamenta vítimas e faz um minuto de silêncio na Casa Branca. "Não podemos aceitar um destino tão cruel.'

O presidente dos EUA, Joe Biden, e a primeira-dama Jill Biden fazem minuto de silêncio em homenagem às vítimas da covid-19

"Eu sei como é [perder alguém]", disse Biden, referindo-se ao seu histórico de tragédias familiares

Os Estados Unidos ultrapassaram nesta segunda-feira (22/02) a trágica marca de 500 mil mortes relacionadas à covid-19, apenas pouco mais de um ano depois que o coronavírus Sars-Cov-2 foi confirmado pela primeira vez e causou sua primeira morte no país.

Segundo contagem mantida pela universidade americana Johns Hopkins, ao todo mais de 28 milhões de pessoas foram infectadas pelo vírus nos EUA – que em números absolutos são, de longe, o país mais afetado pela pandemia no mundo.

Os Estados Unidos sozinhos correspondem por 19% do total de mortes em decorrência da covid-19 registradas oficialmente no planeta. O número é desproporcional, uma vez que a nação reúne apenas 4% da população mundial.

"Hoje atingimos um marco verdadeiramente triste e comovente", declarou o presidente Joe Biden em discurso emocionado na Casa Branca. "Mais americanos morreram em um ano nesta pandemia do que na Primeira Guerra Mundial, na Segunda Guerra e na Guerra do Vietnã combinadas."

"Eu sei como é", disse Biden, referindo-se ao seu próprio histórico de tragédias familiares, que lhe fizeram perder sua esposa e dois filhos ao longo da vida. "Peço a todos os americanos que lembrem. Que se lembrem daqueles que perdemos e daqueles que eles deixaram."

Ao mesmo tempo, o presidente pediu que as pessoas permaneçam vigilantes e continuem a seguir as recomendações de saúde para conter a pandemia.

"Como nação, não podemos aceitar um destino tão cruel. Enquanto lutamos contra esta pandemia por tanto tempo, temos que resistir a nos tornarmos entorpecidos pela tristeza", continuou. "Devemos acabar com a política de desinformação que dividiu famílias, comunidades e o país. Isso já causou muitas vidas. Temos que lutar contra isso juntos como um só povo."

Após o pronunciamento, Biden, a primeira-dama Jill Biden, a vice-presidente Kamala Harris e seu marido, Doug Emhoff, fizeram um minuto de silêncio na Casa Branca, em frente a 500 velas dispostas para representar a soma de vidas perdidas no país.

O presidente também ordenou que todas as bandeiras em propriedades federais e em instalações militares sejam hasteadas a meio mastro durante os próximos cinco dias, informou a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki.

"Fizemos pior que quase qualquer país"

O epidemiologista Anthony Fauci, conselheiro de Biden para assuntos de saúde, também lamentou os números "assombrosos" atingidos nesta segunda-feira.

"Se olharmos para trás historicamente, fizemos pior do que quase qualquer outro país, e somos um país rico e altamente desenvolvido", afirmou o especialista, em entrevista à emissora ABC News.

O malsucedido desempenho dos EUA no combate à pandemia reflete a falta de uma resposta nacional unificada no ano passado, quando o governo do ex-presidente Donald Trump, um negacionista da covid-19, deixou os estados à sua própria sorte para enfrentar a maior crise de saúde pública em um século, com Trump muitas vezes entrando em conflito com seus próprios especialistas na área.

Fauci fez também fez um apelo para que os americanos não baixem a guarda e continuem a seguir as medidas de distanciamento, segurança e higiene, enquanto o país corre contra o tempo para vacinar a população. "Precisamos ser muito cuidadosos agora", afirmou o epidemiologista.

Epidemia nos EUA

O primeiro caso de infecção pelo coronavírus nos EUA foi confirmado em 21 de janeiro de 2020, em um homem de cerca de 30 anos que havia retornado de Wuhan, na China. Já a primeira morte foi registrada em 6 de fevereiro de 2020, uma mulher de 57 anos.

O país atingiu a marca de 100 mil vidas perdidas pela covid-19 em maio do ano passado. O número dobrou em setembro, e em dezembro os EUA superaram 300 mil mortes. Já no mês seguinte, em 19 de janeiro, foi alcançada a marca de 400 mil óbitos.

As mortes registradas somente entre dezembro e fevereiro correspondem a 46% de todos os óbitos por covid-19 nos EUA, mesmo depois do início da campanha de vacinação, em dezembro.

Apesar do marco sombrio de 500 mil vítimas, o vírus parece estar dando trégua, com a incidência de infecções caindo pela sexta semana consecutiva. Contudo, especialistas em saúde alertaram que as variantes descobertas no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil podem desencadear outra onda de contaminações que ameaça reverter as tendências positivas recentes.


Minutos de silêncio na Casa Branca - O Presidente Joe Biden e a Primeira Dama Jill / A Vice Presidente  Kamala Harris e seu marido, Kerstin Emhoff.

Deutsche Welle Brasil, em 22.02.2021

Brasil tem 639 mortes por covid-19 em 24 horas

Ao todo, mais de 247 mil pessoas morreram devido ao coronavírus no país. Autoridades de saúde registram ainda 26 mil novos casos, e total de infectados vai a 10,19 milhões.


Funcionários de cemitério no Rio carregam caixão em direção a cova

O Brasil registrou oficialmente 26.986 casos confirmados de covid-19 e 639 mortes ligadas à doença nesta segunda-feira (22/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e pelo Ministério da Saúde.

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 10.195.160, enquanto os óbitos chegaram a 247.143.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números divulgados às segundas-feiras também costumam ser mais baixos, já que equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida no fim de semana.

Segundo o Ministério da Saúde, 9.139.215 pacientes se recuperaram da doença. O Conass não divulga número de recuperados.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 117,6 no Brasil, a 22ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Segundo um consórcio da imprensa brasileira, formado por O Globo, Extra, G1, Folha de S. Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, até domingo 5.853.753 pessoas haviam recebido ao menos a primeira dose da vacina contra a covid-19.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 28,1 milhões de casos, e da Índia, com 11 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 500 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 111,6 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,47 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 22.02.2021

Henrique Meireles: Medidas duras para superar o maior desafio desta geração

A pior situação possível seria sair da crise sanitária e entrar numa crise fiscal

Todos se vão lembrar de 2020 como provavelmente o ano mais difícil de sua vida. Pela primeira vez em um século, a população mundial foi exposta a uma ameaça à sobrevivência. A crise gerada pelos efeitos da covid-19 na economia é inédita.

Nós temos experiência no enfrentamento de crises econômicas. Enfrentei algumas delas como presidente do Banco Central (BC) e ministro da Fazenda. Mas esta é uma crise cuja causa não é econômica, mas sanitária. Superá-la é o desafio desta geração.

A primeira etapa é a vacinação em massa. Todos esperávamos começar o ano com a pandemia, se não superada, ao menos atenuada. Mas começamos em meio a uma nova onda de contaminações, que exige medidas restritivas no mundo. A despeito de discursos negacionistas, temos os fatos: sem vacina não há volta do crescimento econômico.

Graças aos esforços do governo do Estado e à competência dos servidores do Instituto Butantan, São Paulo está em condições de vacinar sua população com a Coronavac. Porém, diante das dificuldades do governo central em adquirir doses suficientes de vacina para todos os brasileiros, as projeções sobre crescimento neste ano são incertas.

A segunda etapa é fazer a economia crescer, sem descuidar dos cidadãos. Essa meta em particular exigirá muito dos gestores públicos em 2021. O governo federal enfrenta o desafio de incentivar a economia, mas cumprindo rigorosamente o teto de gastos. O melhor programa de assistência social que existe é a criação de empregos. Para isso é necessário que a economia cresça, o que demanda controle da dívida pública. Se ela continuar crescendo de forma insustentável, teremos aumento da incerteza, do risco País e da taxa de juros.

A solução virá apenas com um forte programa de reformas estruturais, a administrativa e a tributária, além da PEC emergencial e das privatizações. A pior situação possível seria sair da crise sanitária e entrar numa crise fiscal.

A outra frente é relacionada às finanças estaduais. A arrecadação de impostos é diretamente impactada pela atividade econômica, ainda incerta. Por sua vez, as despesas tendem a ser maiores, pelos gastos com saúde. Essa conjunção negativa pressiona os Estados. Ao contrário do governo federal, Estados não podem emitir títulos para captar recursos. Restam, então, duas alternativas: cortar gastos e buscar mais receitas via corte de benefícios fiscais.

O governo de São Paulo, com apoio da Assembleia Legislativa, aprovou uma reforma da previdência que vai poupar R$ 58 bilhões em 15 anos. Aprovou uma reforma administrativa que prevê a extinção de empresas estatais, realocação de recursos e demissão de servidores não estáveis. É uma reforma dura, para cortar despesas. Aprovou ainda um programa de redução linear de 20% nos benefícios fiscais, para aumentar a receita do ICMS por 24 meses. Alguns dos benefícios estão em vigor há mais de 20 anos. No conjunto, faziam o Estado abrir mão de R$ 43 bilhões anuais, que poderiam ser direcionados à população. Houve o cuidado de preservar os itens da cesta básica, que afetam a população carente. Alterações em impostos provocam desgaste. Aberto ao diálogo, o governo ouviu diversos setores e fez ajustes. Reduzir benefícios e cortar gastos neste momento é questão de responsabilidade.

A defesa de medidas de responsabilidade fiscal é inglória. Uma gestão com as contas em dia proporciona uma normalidade com que os cidadãos se habituam, de modo que nem notam os efeitos positivos. Infelizmente, temos muitos exemplos de falta de responsabilidade fiscal. Entre 2011 e 2015, o governo federal ampliou a concessão de subsídios e renúncias fiscais com a intenção de incentivar o crescimento. A combinação disso com o aumento do gasto público levou a uma recessão brutal. Entre maio de 2015 e maio de 2016, o PIB recuou 5,2%, a maior recessão da história recente até aquele momento para um país que não estava em guerra. Ainda hoje o governo federal deixa de arrecadar cerca de R$ 300 bilhões anuais em subsídios, o equivalente a 4% do PIB.

São Paulo não passa por problemas financeiros porque tem coragem de tomar medidas duras, como as que toma agora, para manter em ordem as contas públicas. Está entre os Estados mais bem avaliados na área e se mantém rigorosamente dentro dos parâmetros de prudência da Lei de Responsabilidade Fiscal. Graças a esse cuidado, tivemos recursos para investir na ciência e colher os frutos com a Coronavac.

Todas as esferas de governo precisam manter-se dentro dos limites fiscais. Tenho defendido a ideia de que, após a justificada expansão do gasto público em 2020, é imprescindível a manutenção rigorosa do teto de gastos em 2021 para preservar o futuro da economia. Se há necessidade de mais gastos sociais, é preciso encontrar espaço dentro do teto. Para isso é preciso fazer reformas, como São Paulo está fazendo. Não podemos fugir da realidade: momentos dramáticos exigem medidas duras e sacrifícios de todos para podermos sobreviver à pandemia e criar empregos e renda com a retomada econômica.

Henrique Meireles, o autor deste artigo, é Secretário da Fazenda e do Planejamento do Estado de São Paulo. Foi Ministro da Fazenda (2016-2018), Presidente do Banco Central (2003-2011) e Presidente Mundial do BankBoston.

Partidos parasitas

Hoje há um círculo vicioso: os partidos aliciam os eleitores nos períodos eleitorais, e depois lhes dão as costas, dedicando-se a administrar seus feudos controlados por poucos caciques
 
As manifestações de 2013 escancararam uma crise de representatividade que só se agravou após as revelações da Operação Lava Jato. Mas o descolamento entre partidos e eleitores não reflete apenas mudanças conjunturais no ideário político, e sim distorções estruturais que só serão sanadas com reformas básicas. 

Um levantamento da ONG Transparência Partidária aponta que apenas 0,1% dos filiados a partidos faz contribuições financeiras frequentes às legendas. O dado expõe a total dependência do dinheiro público por parte dos partidos e a completa desconexão entre suas cúpulas e suas bases. Para praticamente todos os partidos, a proporção de filiados que contribuem frequentemente não chega a 1%, em geral nem a 0,1%. E, dos 18 mil contribuintes frequentes, 8 em 10 se concentram em dois partidos: Novo e PT. Mas mesmo entre os filiados do PT, só 0,43% contribui regularmente.

A única exceção é o Novo, no qual 26% dos filiados contribuem frequentemente. O partido é contrário ao uso de fundos públicos, já devolveu os recursos do fundo eleitoral e pediu autorização para devolver os do fundo partidário – desde que não sejam redistribuídos a outros partidos. A legenda depende das mensalidades cobradas aos filiados, de R$ 30 em média.

Como disse a cientista política Lara Mesquita, da FGV, as regras para distribuição dos recursos possibilitam um “encastelamento” das cúpulas partidárias. “Os partidos adotaram uma estratégia, em certa medida confortável, de garantir sua sobrevivência a partir de recursos públicos.” A estratégia foi consolidada em 2017, quando os partidos no Congresso, não satisfeitos com o fundo partidário, inventaram o fundo para campanhas eleitorais.

Logo que, em 2015, na esteira dos escândalos revelados pela Lava Jato, o STF declarou inconstitucional o financiamento eleitoral por empresas, era compreensível o estabelecimento de um fundo público, a fim de que as campanhas não fossem abruptamente dominadas pelas pessoas físicas ricas. Mas deveria ser um mecanismo de transição, que desse tempo para que os partidos, como entes privados que são, se organizassem para se sustentar com a contribuição de seus simpatizantes.

Mas não foi o que aconteceu. Ao contrário: os recursos públicos para os partidos cresceram a galope. Entre 1995 e 2018, os gastos anuais do fundo partidário saltaram, em valores deflacionados, 9.766%. Em 2000, o Estado respondia por menos de 8% dos custos eleitorais; em 2018, respondeu por quase 70%. Em 2020, o Congresso aprovou um aumento de 18% no fundo eleitoral. Com essa crescente fonte de receita dada a si mesmos pelos partidos com o dinheiro do contribuinte, não surpreende que o número de filiados esteja em queda. Afinal, por qual motivo as legendas se preocupariam em recrutá-los e conservá-los? Não à toa, segundo a Transparência Partidária, nos últimos dez anos o porcentual de mudança da composição das Executivas Nacionais foi de ínfimos 24%.

Se, ao contrário, os partidos fossem progressivamente obrigados a depender dos filiados, seriam forçados a criar “mais espaços de participação, mais prestação de contas e a dividir o poder”, disse Mesquita. A discussão não passa necessariamente pelo valor da contribuição, mas pelo engajamento. Como argumentou Marcelo Issa, da Transparência Partidária, se apenas metade dos 16 milhões de filiados contribuísse com R$ 5 por mês, isso equivaleria a R$ 480 milhões – metade do fundo partidário.

Hoje há um círculo vicioso: os partidos aliciam os eleitores nos períodos eleitorais, e depois lhes dão as costas, dedicando-se a administrar seus feudos controlados por poucos caciques, que, por sua vez, não sofrem pressão nem dos filiados nem do Poder Público para prestar contas. Sem uma reforma que não só elimine o financiamento público aos partidos, mas estabeleça cláusulas de barreira mais estritas e modelos eleitorais mais representativos – como o voto distrital –, a fragmentação partidária em uma pletora de legendas sem conteúdo programático e cada vez mais distantes dos eleitores só aumentará.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de São Paulo, em  22 de fevereiro de 2021 

‘Bolsonarismo radical não se importa com a pauta do País’, diz vice da Câmara

Deputado Marcelo Ramos nega ser o ‘Mourão’ de Lira e diz que a Casa tem coisas mais urgentes para tratar do que a pauta de costumes

Entrevista com

Marcelo Ramos, vice-presidente da Câmara dos Deputados

O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), avalia que o bolsonarismo radical atrapalha a agenda econômica do próprio governo de Jair Bolsonaro ao ocupar o tempo do Legislativo com polêmicas como a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). No segundo mandato federal, Ramos, de 47 anos, começou sua vida política na esquerda, como filiado ao PC do B. Foi eleito outras duas vezes deputado estadual. Agora, no segundo principal cargo na Mesa Diretora comandada por Arthur Lira (PP-AL), um político aliado ao Palácio do Planalto, o parlamentar se considera “independente” em relação ao governo. 

Ele criticou medidas recentes, como os decretos que ampliaram a posse e o porte de armas para caçadores, atiradores e colecionadores. Mesmo diante das divergências, Marcelo Ramos diz que não é o “Hamilton Mourão” de Lira – o vice-presidente da República se notabilizou nos últimos dois anos por discordar em público de Bolsonaro. 

O sr. expressa com frequência opiniões críticas ao governo de Jair Bolsonaro, do qual o presidente da Câmara, Arthur Lira, é aliado. O sr. é uma espécie de Hamilton Mourão de Lira?

Claro que não. Eu sou absolutamente alinhado com o deputado Arthur Lira. Reconheço que o papel de liderança e representação da Câmara é dele, porque ele foi legitimamente eleito para isso. Agora, eu fui para a composição da chapa com o deputado com meu histórico parlamentar e de vida. O meu histórico é o de um político moderado, independente em relação ao governo Bolsonaro. 

O vice-presidente Mourão também é "independente" em relação ao presidente Bolsonaro

É absolutamente diferente. O vice-presidente Mourão foi eleito na chapa; na Câmara são votações individuais. Mas assim, eu sou absolutamente alinhado ao deputado Arthur Lira. Acontece que nas pautas de costumes do governo Bolsonaro, eu não tenho alinhamento com isso. Ele já sabia disso antes de nós compormos. Não acho que um país que tem 14 milhões de desempregados, mais de 220 mil mortos pela pandemia (na sexta-feira, o total era de 244.765 mortos), quase 800 mil micro e pequenas empresas fechadas por conta da pandemia, tem que estar discutindo questão de gênero em escola ou arma. Nós temos coisas mais importantes para resolver. Eu acho que o problema é a hostilidade desse debate de costumes. 

Na quinta-feira, o presidente Arthur Lira foi se encontrar com o Bolsonaro para falar sobre o caso Daniel Silveira (preso por gravar um vídeo com ameaças ao STF). O sr. acha que é adequado consultar o presidente da República sobre como agir quando se trata de um aliado dele?

O caso Daniel Silveira tomou proporções de quase um conflito institucional entre os poderes. É absolutamente natural que os poderes conversem. O presidente Arthur Lira foi ao presidente Bolsonaro como foi ao ministro (Luiz) Fux. Na verdade, em um momento de tensão institucional como essa, não só é cabível como é importante que os presidentes dos poderes conversem. Nós precisamos reafirmar nossa independência, mas não podemos perder nossa capacidade de diálogo entre os poderes.

O tumulto provocado pela prisão Daniel Silveira não seria mais uma vez a ala ideológica do bolsonarismo atrapalhando a agenda legislativa do país?

Certamente. E é importante a gente entender a conjuntura em que isso se deu. O general (Eduardo) Villas Bôas dá uma declaração extemporânea, três anos depois do fato; o ministro (do STF Edson) Fachin reage também de forma extemporânea, três anos depois do fato, e o deputado (Daniel Silveira) se apega nisso para criar um factoide que toma as proporções que tomou e paralisa o País. Nós deixamos de votar, hoje (sexta), uma MP (medida provisória) para comprar vacina porque vamos ter que votar a prisão do deputado Daniel. Veja que absurdo para o País. Então, infelizmente, esses setores do bolsonarismo não têm responsabilidade nem com a pauta econômica do próprio governo Bolsonaro. 

O sr. tem posições moderadas, e o deputado Arthur Lira tem posições um pouco mais próximas às do governo. Isso funciona como uma espécie de ‘dobradinha’? Um fala mais com o Palácio do Planalto, e o outro com os oposicionistas?

Nós nem combinamos isso, mas acaba que, na prática, isso acontece. Eu falo pouco com o governo, nunca fui ao presidente Bolsonaro. Por outro lado, nunca o confrontei de forma desrespeitosa. Respeito a autoridade dele. E (falo com) a oposição, até por uma trajetória minha por um período de militância na esquerda. Pela minha condução com bom diálogo com eles na reforma da Previdência, vez ou outra me fazem de intermediário. 

O ‘Estadão’ noticiou uma proposta em discussão na Câmara para retirar ferramentas do chamado ‘kit obstrução’, que são instrumentos da oposição para travar o andamento de uma pauta. O sr. não acha que isso é uma forma de diminuir a democracia interna da Casa? 

Nós poderíamos produzir muito mais no País, se tivéssemos alguma racionalidade no funcionamento do nosso plenário. Nós vamos apresentá-la (uma proposta sobre o tema) no colegiado de líderes, em uma das próximas reuniões, para debater no colegiado, sentir se tem maturidade pra ela. E só registrá-la após isso. Não tem definido um prazo, a gente tem outras prioridades. 

Bolsonaro decidiu recentemente reduzir os impostos de importação para bicicletas, o que atinge as empresas da Zona Franca de Manaus. O que o sr. achou?

Isso foi um pedido pessoal do presidente. O presidente Bolsonaro, às vezes, toma algumas decisões por impulso. Ele está andando de bicicleta e alguém encontra ele e diz: ‘Presidente, tem que abaixar o imposto da bicicleta, bicicleta é muito caro’. Aí ele vai e toma a medida. 

Como os srs. pensam em atuar nessa questão? 

Nós abrimos um diálogo com o ministro Paulo Guedes, e a bancada (do Amazonas) vai apresentar projeto para sustar a medida. O problema da bicicleta é que as pessoas querem olhar só sob a lógica do ciclista. E elas precisam olhar sob a lógica do operário que trabalha na indústria. Se você abaixa demais o imposto, inviabiliza a indústria local. 

Temos projetos avançando na Casa que afrouxam a punição no caso de improbidade e lavagem de dinheiro. Essa agenda visa minar mecanismos de controle? 

Discordo. A improbidade administrativa, para ter efeitos de cassação, de perda de direitos políticos, é preciso que tenha dolo. Não dá para considerar que um prefeito que entregou um balanço fora do prazo deve ter a mesma punição de um prefeito que desviou dinheiro. E lavagem de dinheiro não pode ser um tipo penal aberto, que cabe tudo. Isso favorece o ativismo judicial. 

André Shalders, O Estado de São Paulo, em 22 de fevereiro de 2021 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Brasil registra 527 mortes por covid-19 em 24 horas

País identificou mais 29 mil casos da doença. Total passa de 10 milhões. Número de mortes supera 246 mil  

O Brasil registrou oficialmente 29.026 casos confirmados de covid-19 e 527 mortes ligadas à doença neste domingo (21/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 10.168.174, enquanto os óbitos chegam a 246.504.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 9.067.939 pacientes haviam se recuperado até sábado.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 117,3 no Brasil, a 22ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 28,1 milhões de casos, e da Índia, com 10,9 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 498 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 111 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,46 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 21.02.2021

"Barões evangélicos são parceiros de projeto ultraconservador de Bolsonaro", diz pastor

Ronilso Pacheco, da Comunidade Batista de São Gonçalo, afirma que política e religião sempre se misturam, mas que é "melhor fazer opção que contribua para os direitos humanos".

Bolsonaro e Edir Macedo, fundador da Igreja Universal e aliado do presidente

As igrejas evangélicas poderosas, que dispõem de presença na mídia e influência política , são hoje parceiras de um projeto "ultraconservador" do governo Jair Bolsonaro, que nega direitos e explora a fé dos mais pobres. Os "barões da fé", porém, não representam a totalidade do público evangélico, e parte desses fiéis adota no seu cotidiano práticas de acolhimento e respeito das diferenças, na opinião do teólogo Ronilso Pacheco.

Nascido em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, Pacheco é pastor auxiliar da Comunidade Batista na sua cidade e ativista de direitos humanos. Autor do livro Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e teologia em tempos de racismo, violência e opressão, é hoje  pesquisador da Fundação Ford e está terminando o mestrado em teologia na Universidade Columbia, em Nova York.

Em entrevista à DW Brasil, Pacheco afirma que o vínculo entre igrejas evangélicas e a atuação política conservadora no país data da sua fundação, no século 19, por americanos brancos e racistas que perderam a Guerra da Secessão, migraram ao Brasil em missão evangelizadora e se aproximaram das elites locais. O vínculo com o poder fortaleceu-se na ditadura, consolidou-se na democracia e atingiu maior radicalismo sob Bolsonaro.

"Há um conglomerado dos barões da fé, parceiros de um projeto ultraconservador e fundamentalista, negador de direitos e que se recusa ao diálogo interreligioso. São parceiros de um projeto de poder que exclui os pobres, explorador da fé dos pobres", afirma Pacheco. Segundo ele, a atuação desses setores da igreja só é possível "traindo" a história de Jesus Cristo registrada na Bíblia, como alguém resistente à hierarquia do poder e movido pela missão de "destituir os poderosos, tirar a riqueza dos ricos e dar aos pobres".

Pacheco identifica uma novidade na relação entre o que chama de igreja evangélica hegemônica e o poder sob a gestão Bolsonaro. Além dos tradicionais parlamentares da bancada evangélica, que buscam prestígio e espaço para as suas igrejas, houve a chegada de líderes religiosos interessados em fazer uma "guerra cultural" para influenciar a construção da identidade da sociedade brasileira.

São representantes desse movimento no governo o ministro da Educação, Milton Ribeiro, pastor presbiteriano calvinista, o ministro da Justiça, André Mendonça, pastor presbiteriano, e a ministra Damares Alves, "uma evangélica pentecostal fundamentalista e ultraconservadora na condução de direitos humanos", diz Pacheco. "Tudo atravessado pela afirmação de uma supremacia cristã conservadora".

Ele afirma, porém, que há na comunidade evangélica muitos exemplos de igrejas e pessoas que, por mais que não se identifiquem com a agenda de partidos de esquerda, adotam práticas progressistas no seu dia a dia. Para Pacheco, um "esforço metodológico e pedagógico" e uma abordagem "afetiva" poderia aproximar mais os evangélicos de agendas como direitos LGBT, liberalização de drogas e legalização do aborto.

"Política e religião, queira ou não, sempre se misturam. Por isso, é melhor reconhecer isso e fazer uma opção que contribua para uma política que respeite os direitos humanos e a liberdade", diz.

DW Brasil: Qual é o papel da religião na esfera pública?

Ronilso Pacheco: No contexto da América Latina e do Brasil, tem um papel fundamental para a formação da identidade da sociedade e da tradição popular. A religião serve como uma espécie de pano de fundo e orientadora de decisões, e pode ser determinante para legitimar ou deslegitimar uma determinada política.

Isso não se choca com a laicidade do Estado?

Não, pois laicidade do Estado não é a neutralização da presença da religião, mas a harmonia e o diálogo entre diferentes expressões religiosas. O que fere a laicidade do Estado é a perspectiva de superioridade de uma determinada religião em detrimento da outra, o que tem sido um pouco a nossa tradição.

Religião e política devem se misturar?

A ideia da separação entre religião e política tem muita influência da perspectiva iluminista, da idade da razão, europeia, onde essas distinções são bem marcadas. Mas não faz sentido, por exemplo, se levarmos em consideração a sociedade indígena, que tem uma forma de viver a política indissociável da perspectiva transcendental. Também é impossível separar o que é a vida política da perspectiva religiosa em algumas sociedades do continente africano.

Mesmo em contextos em que se prega um distanciamento entre a religião e a política, a perspectiva religiosa já se impregnou de maneira decisiva na política. A religião é um pano de fundo da perspectiva constitucional e da organização da sociedade. E também da perspectiva de luta e resistência, de pensar em alternativas. Nos assentamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) ou do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) há uma religiosidade forte, com ênfase na mística.

O movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos é indissociável de grandes lideranças das igrejas, principalmente das igrejas negras. Na América Latina não é diferente, se você pensar nos conflitos no Peru ou na Colômbia, e o papel que as igrejas têm de acolher e organizar a comunidade.

Política e religião, queira ou não, sempre se misturam. Por isso, é melhor reconhecer isso e fazer uma opção que contribua para uma política que respeite os direitos humanos e a liberdade, do que tentar fazer com que isso seja dissociável.

Ronilso Pacheco é pastor auxiliar da Comunidade Batista de São Gonçalo, pesquisador e ativista de direitos humanos

Você mencionou o MST e o MTST, que são movimentos de esquerda. Ao mesmo tempo, há movimentos e partidos de direita e extrema-direita vinculados a igrejas. A Bíblia abrange essas duas perspectivas ou é questão de interpretação?

Não é uma questão de interpretação, é uma questão de escolha das histórias que você quer dar ênfase. A Bíblia contém diversas narrativas sobre como Deus interage com as pessoas, ou como os povos interagem com Deus. Ambas [as perspectivas políticas] se expressam na Bíblia, ali há o contexto do mundo real, marcado por pessoas solidárias mas também por déspotas, marcado por traidores e gente muito violenta, mas também por gente disposta a lutar por justiça.

Se você escolhe dar ênfase às histórias do Novo Testamento, às histórias de Jesus, não há crises de interpretação. Ao contrário, você é confrontado em como as opções de algumas lideranças [religiosas] são traidoras da memória de Jesus que está nos Evangelhos.

Não é passível de interpretação que Jesus foi acolhedor, alimentando a multidão e estimulando a partilha. Não é a questão de interpretação como Jesus foi resistente à ideia de superioridade, de uma hierarquia de poder. No Evangelho de Lucas, Jesus fala que veio para libertar os cativos, para acolher os pobres. Não é passível de interpretação a fala de Maria, quando está grávida de Jesus e diz como que ele seria, de maneira bem expressa: ele virá para destituir os poderosos, tirar a riqueza dos ricos e dar aos pobres. A única maneira de burlar isso não é interpretação, é você trair essa memória.

Agora, você pode voltar ao Antigo Testamento e escolher, por exemplo, quando o povo de Israel invadiu um determinado território e assassinou seus habitantes para tomar conta dele. Você pode escolher usar isso para legitimar uma pretensão de poder. Mas as histórias em que Jesus está envolvido não são passíveis de interpretação, e são diferentes de qualquer perspectiva de superioridade e dominação.

Por que a igreja evangélica é hoje predominantemente identificada com a direita?

Eu diria que é a igreja hegemônica [evangélica]. Eles têm tanto poder comunicacional, um império de mídia, que tomam conta da noção sobre o que é a identidade e a estratégia evangélica. Há um conglomerado dos barões da fé, parceiros de um projeto ultraconservador e fundamentalista, negador de direitos e que se recusa ao diálogo interreligioso. São parceiros de um projeto de poder que exclui os pobres, explorador da fé dos pobres.

Esse grupo acabou se tornando um rosto do que seria a igreja evangélica no Brasil, mas a igreja evangélica é muito maior e mais complexa que isso. Ela está presente de maneira cotidiana nas periferias das cidades. E, sem se olhar no espelho e dizer "sou progressista", sua prática diária está mais direcionada a agendas progressistas, no sentido do acolhimento, da solidariedade social, do respeito à diversidade, porque está numa periferia com uma complexidade de pertencimentos.

Não que não existam igrejas e lideranças ultraconservadoras a fundamentalista nas periferias. Mas não diria que isso é a igreja evangélica no Brasil, pois seria desonesto com muitos esforços no território nacional, desde nas comunidades evangélicas do sertão a igrejas importantes nos grandes centros urbanos, que fazem um caminho completamente diferente, inclusive pagando um alto preço por isso.

Como se deu a aliança entre a igreja evangélica hegemônica e a direita? Há paralelos com o que ocorreu nos Estados Unidos?

Os paralelos são muitos. A presença evangélica no Brasil tem uma herança do universo evangélico conservador dos Estados Unidos. A formação da nossa igreja evangélica se dá com uma imigração significativa de evangélicos cristãos do sul dos Estados Unidos, que perdem a Guerra de Secessão [1861-1865] e vão fazer missões no Brasil. Eles têm um projeto de evangelismo, conquistar territórios, povos, converter almas, abrir novas igrejas. E é um um projeto profundamente conservador, inclinado à escravidão como parte da economia. É uma igreja que cresce associada à perspectiva elitista e de poder. Claro que há fissuras, mas há essa influência.

No início do século 20, sobretudo com a ampliação do campo pentecostal, mais ligado à Assembleia de Deus, eles constroem uma relação com governadores, presidentes, e isso se intensifica durante a ditadura militar. Há um apoio forte à ditadura de algumas igrejas, como as convenções da Assembleia de Deus. Essa parceria atravessa a ditadura e entra na redemocratização. O [deputado] Mateus Iansen, da Assembleia de Deus, foi o autor da emenda que permitia a prorrogação do mandato de José Sarney de quatro para cinco anos. Em seguida, foi beneficiado com uma concessão de rádio. Tudo isso para dizer que estamos falando de uma longa jornada, não é algo do governo Bolsonaro

O que há de novo na aproximação de parte da igreja evangélica com a extrema direita de Trump e Bolsonaro?

Nos Estados Unidos, há uma convicção do nacionalismo cristão de que ele deve pautar a identidade nacional. Há um mito, sobretudo entre os evangélicos brancos do sul dos Estados Unidos, que eles foram um vencedor moral da Guerra de Secessão, pois têm os valores mais nobres, respeitam os valores cristãos, têm amor à Bíblia e à família. A extrema direita nos Estados Unidos foi construída a partir desse nicho.

No Brasil, se for apontar algo novo, é a maneira como o grupo neocalvinista e calvinista conservador conseguiu fazer parte desse governo [Bolsonaro] de uma maneira significativa, dando outro tom para a atuação da extrema direita. Se já tínhamos a forma mais tradicional dessa influência com a bancada evangélica, com políticos que vêm de longas décadas e têm o objetivo de manter seu poder e influência, o grupo neocalvinista e calvinista conservador traz outro elemento, conectado com o que acontece nos Estados Unidos: assumir uma guerra cultural. Mais do que ter poder e recursos para sua igreja, é como influenciar na construção da identidade da sociedade brasileira. Então a disputa está na educação, na cultura.

Por isso, mais do que tomar conta do Legislativo, o importante é fazer as disputas certas nesses lugares e estar na área da educação, na área da cultura, na Suprema Corte, para construir uma identidade cultural que marque a supremacia cristã conservadora. O governo Bolsonaro deu espaço a essa investida, surgiu a oportunidade de não ter vergonha de assumir que a disputa é por uma supremacia cristã. Há a volta do discurso da cristofobia e um presidente que verbaliza isso, inclusive na ONU.

Há postos-chave do governo ocupados por nomes que se orientam por essa lógica. Você tem um pastor presbiteriano calvinista no Ministério da Educação [Milton Ribeiro], um pastor presbiteriano no Ministério da Justiça [André Mendonça], um católico ultraconservador no Ministério das Relações Exteriores [Ernesto Araújo] e uma evangélica pentecostal fundamentalista e ultraconservadora na condução de direitos humanos [Damares Alves], fazendo a disputa do que é direitos humanos e do que não é direitos humanos. Tudo atravessado pela afirmação de uma supremacia cristã conservadora, indiferente ao debate da tolerância e do diálogo interreligioso.



Evangélicos em Brasília oram pela recuperação de Bolsonaro após atentado a faca em 2018

Qual é a representatividade da visão progressista hoje na igreja evangélica?

É um número muito significativo, mas conceituo o evangélico progressista de maneira mais aberta. Se você perguntar se ele é progressista, ele provavelmente vai dizer que não, ou que não sabe o que é isso. Me oriento mais pela prática e pela ética de movimentos e grupos de pessoas do que propriamente um compromisso com uma agenda.

Há muitas comunidades importantes em várias localidades, sobretudo nas periferias. Como por exemplo a Igreja Batista do Pinheiro, que fica em Maceió e foi expulsa da Convenção Batista Brasileira porque passou a aceitar casais homoafetivos na sua congregação e dar a eles o direito de participar da liturgia do culto. Há evangélicos fazendo isso sem alarde, que são acolhedores com o povo LGBTQI+. Há comunidades que têm relação de amizade com lideranças religiosas de outras tradições, como de matriz africana, à revelia dos ataques diários sofridos por muitos terreiros. Essa rede de solidariedade está além dos debates, por exemplo, sobre o aborto. Quando a realidade do aborto chegar, a comunidade vai pensar no que fazer. Ela não está dentro de um debate de legalizar ou não legalizar o aborto.

E como avalia a relação atual entre os partidos políticos de esquerda e centro-esquerda com o público evangélico?

Esse grupo ainda está meio perdido. As derrotas têm sido sucessivas, e há impossibilidade de comunicar e construir alternativas desde o fim da era Lula. No primeiro mandato Lula, houve uma participação mais expressiva de evangélicos progressistas.

Também tem um pouco de uma mentalidade iluminista da esquerda, no sentido de ser dona da razão, de saber propor e apontar os caminhos, de decidir o que é melhor na disputa pelos direitos humanos. Ou de empurrar determinadas agendas que são difíceis de entender, se você não gastar tempo em como tornar aquilo acessível e mostrar que é importante para a sociedade.

O campo progressista de esquerda está com muito receio desse diálogo, há muito pisar em ovos, mas está aberto a aprender que caminhos podem ser construídos.

O campo progressista tem chance de ampliar seu apoio entre os evangélicos se continuar defendendo pautas como direitos da comunidade LGBT e liberalização das drogas e do aborto, ou teria que reduzir o apoio a esses temas?

Não tem como como reduzir o apoio, porque essa é a identidade progressista, são agendas das quais não se pode abrir mão. É muito mais como pensar em como fazer isso ser compreendido e importante no dia a dia.

Alguns lidam com isso na realidade do dia a dia, como em relação à liberação das drogas. Há pessoas que perderam o filho, vizinhos, parentes, amigos. Mas não é imaginar que você vai fazer uma cartilha sobre a liberação das drogas com uma linguagem voltada para o público evangélico e isso vai resolver o problema de comunicação. Precisa estar vinculada à construção de uma relação afetiva.

O campo fundamentalista conservador tem uma aproximação em uma linguagem mais afetiva, e o campo progressista tem uma linguagem mais estética. E, às vezes, a estética não comunica. Precisa de um esforço metodológico e pedagógico de se aproximar e aderir às diversas camadas da comunidade e de fazer com que uma agenda seja compreendida. A mesma coisa com relação à questão do aborto e à questão LGBT.

Deutsche Welle Brasil, em 21.02.2021

Bernardo Mello Franco: Bolsonaro libera mais armas e projeta sua invasão do Capitólio

No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.

Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.

Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.

No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.

O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.

“Bolsonaro incentiva abertamente a formação de milícias privadas. Esta é a principal ameaça à democracia no Brasil, junto da politização das forças policiais”, afirma a pesquisadora. Neste cenário, milícias que já elegem deputados e vereadores podem ser usadas para subverter a corrida presidencial.

Em entrevista recente à “Folha de S.Paulo”, o ministro Edson Fachin manifestou “preocupação agravada com a corrupção da democracia” no país. Entre os sintomas da doença, listou a “remilitarização do governo civil”, o “incentivo às armas”, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto” e os ataques ao Judiciário e à imprensa.

O ministro desenhou o caminho para uma invasão do Capitólio tupiniquim. Ele assumirá o comando do TSE em fevereiro de 2022, a oito meses da eleição presidencial.

Bernardo Mello Franco é colunista político de O Globo. É autor de "Mil Dias de Tormenta - S crise que derrubou Dilma e deixou Temer por um fio". Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 21/02/2021.

Luiz Sérgio Henriques: Antagonismos em equilíbrio

Um ambiente plural e diversificado é o único antídoto contra aspirantes a ditador

No momento em que somos tentados a fazer o balanço de perdas e danos, lamentando, depois de 30 e poucos anos, as ilusões precocemente perdidas, convém lembrar os bons pressupostos e o início auspicioso deste período mais recente da nossa História política. A impressão generalizada em seguida ao regime militar era de que o País estava finalmente pronto para integrar, de corpo e alma, o grupo de nações que conseguem conjugar, com um grau mínimo de coerência, capitalismo e democracia, economia de mercado e integração social. Um grupo relativamente reduzido, é certo, mas habituado a sinalizar rumos e a atrair a esperança de quem vive sob regimes fechados mundo afora.

Na verdade, essa não era uma ideia surgida aleatoriamente na acidentada trajetória de modernização por que passamos. Na saída de uma dessas ditaduras que conformaram duradouramente as relações entre Estado e sociedade, a ditadura do Estado Novo, um grande conservador como Gilberto Freyre chamava a atenção para a plasticidade da formação social brasileira. Segundo ele, tal plasticidade, própria de um exuberante povo em formação, seria até capaz de irradiar para outras latitudes o amor à diferença, o propósito de conciliar elementos heterogêneos, étnicos ou culturais que fossem.

Freyre, no texto a que aludimos (A Nação e o Exército, de 1948), fechava os olhos para os aspectos novamente repressivos do governo da época, imerso na guerra fria e mecanicamente alinhado a um dos seus polos. Nada desprezível o impacto que teriam em futuros eventos a ilegalização do Partido Comunista e as intervenções arbitrárias no movimento sindical. Não era esse o caminho do Ocidente político que aspirávamos a ser, como o demonstravam, na mesma altura, os casos exemplares de França e Itália. Mesmo assim, o sociólogo nos descrevia como um país cujo destino tinha raízes na capacidade de manter o equilíbrio de antagonismos ou, o que assegurava ser a mesma coisa, a tolerância entre contrários.

Ocidente político não é nenhuma expressão cifrada, ainda que exija rigor conceitual e adesão consciente. Trata-se de uma situação, descrita classicamente por Gramsci, em que entre sociedade política e sociedade civil há um saudável equilíbrio. A primeira não esmaga a segunda nem tolhe arbitrariamente seus movimentos. Partidos, ONGs, imprensa, vida sindical, associativismo popular, tudo isso compõe um ambiente plural e diversificado, que, na verdade, é o único antídoto contra a permanente insídia dos autoritários e aspirantes a ditador. Para falar a verdade, é o anticorpo infalível contra a repetição das experiências totalitárias do século 20, entre as quais, ao lado dos fascismos, cabem muito bem o comunismo stalinista e suas derivações.

Freyre, apesar do tempo transcorrido entre o seu e o nosso tempo, estava bem consciente desse requisito “ocidental”. Um Estado “organizado” – particularmente o Exército, a instituição da força por excelência – e uma sociedade “desorganizada” caracterizam estruturas politicamente subdesenvolvidas, fadadas a sofrer periódicas recaídas autoritárias e recorrentes candidatos a Bonaparte. E foi essa lição decisiva que liberais, progressistas e até ampla parte da esquerda incorporaram como patrimônio na saída da segunda experiência de governo “forte” da modernização, entre 1964 e 1985. Um patrimônio que, como é de conhecimento público, tomou corpo na Carta de 1988, que passou a ser desde então a linha discriminatória entre democratas e não democratas.

Nem sempre os governos de esquerda estiveram à altura da ideia democrática rigorosamente concebida. Não me refiro só ao desvirtuamento do Parlamento ou a práticas de loteamento de estatais poderosas, mas também, e talvez principalmente, a orientações anacrônicas de valor, como concessões ao horizonte da “revolução” que se tentava reatualizar em outros contextos. Mas é forçoso admitir que hoje as democracias de tipo ocidental, entre as quais obstinadamente nos queremos incluir, estão sob evidente ameaça da extrema direita arregimentada sob a bandeira do nacional-populismo. Como em tempos sombrios do século passado, essa direita não democrática mimetiza o gesto revolucionário, produzindo paródias grotescas de assalto aos palácios de poder, como a vista no 6 de janeiro norte-americano. Efeito paródico que também se sente quando, por aqui, setores desgarrados do establishment desenham planos e balbuciam palavras de ordem antiestablishment, como se jacobinos fossem.

A democracia de 1946 durou menos de duas décadas e, no fim, não teve quem a defendesse, dada a variedade de atores que apostavam no confronto. Nada consolador o fato de que o regime nascido desse confronto viria a ser desenvolvimentista, remodelando a sociedade no sentido de “mais capitalismo”. A conta apareceu na forma de incultura cívica, menoridade intelectual e atraso político, que agora voltam a se manifestar como negação da tolerância e do equilíbrio de antagonismos. Um preço alto demais que, estejamos à direita ou à esquerda, devemos rejeitar com convicção.

Luiz Sérgio Henriques, o autor deste artigo, é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 21 de fevereiro de 2021.

Daniel Silveira: o fã de Robocop que quis enfrentar o Supremo

 Antes de ser preso, o deputado divulgou 30 vídeos durante sete meses ameaçando e ofendendo os ministros

“Pega a placa! Pega a placa!”, gritava, para alguém lá embaixo, o então futuro deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), no alto de um trio elétrico, em Petrópolis, na Região Serrana fluminense, em comício no fim de setembro de 2018. Outros dois candidatos que seriam eleitos na onda de direita que varreu o País naquele ano – Rodrigo Amorim, hoje deputado estadual pelo mesmo partido, e Wilson Witzel (PSC), governador do Rio, afastado por suspeita de corrupção – o acompanhavam. A multidão urrava. 

Logo, chegou o retângulo azul escuro e branco, com as palavras “Rua Marielle Franco”. Homenageava a vereadora do PSOL morta a tiros sete meses antes, quando também o motorista Anderson Gomes foi metralhado. Enquanto Silveira exibia o objeto, Amorim discursava. “Acabou PSOL! Acabou PCdoB! Acabou essa porra aqui! Agora é Bolsonaro, porra!”, gritou o futuro deputado estadual, sob aplausos. Silveira, cuja carreira política – como a de Witzel – está em perigo, vibrava com promessas como “sentar o dedo (dar tiros) nesses vagabundos (a esquerda)”. 

Então com quase 36 anos, cabeça raspada, mais de dois metros de altura em um corpo musculoso malhado diariamente em academia, Silveira ganhou muita notoriedade no episódio. Com essa persona, foi eleito em primeiro mandato para a Câmara dos Deputados, com 31.789 votos. Os obteve em campanha que custou R$ 10.291,00, com despesas contratadas e pagas com dinheiro do Fundo Partidário. No Legislativo, exerceu um mandato beligerante. O Supremo Tribunal Federal (STF), que o mandou para a cadeia no carnaval após receber ataques e insultos do parlamentar, era seu alvo frequente. Desde julho de 2020, quando já era investigado pelo STF, ele produziu 30 vídeos contra a Corte, publicados em sua conta no YouTube. Entre as acusações infundadas está a de que ministros defendem a pedofilia, postada em 26 de julho. 

Imagem viralizou nas redes sociais após ser publicada na tarde de quarta-feira Foto: Instagram/Reprodução

Com uma média de 3,8 mil visualizações, seus vídeos raramente atraíam mais de 10 mil pessoas – seu canal foi aberto há quatro anos e tinha 72,9 mil inscritos. Além do Supremo, seus alvos prediletos eram a esquerda, as telenovelas, as vacinas contra a covid-19, o governador João Doria (PSDB), a China, o youtuber Felipe Neto e até a apresentadora Xuxa Meneghel. “A Xuxa vai lançar um livro LBGT para crianças. Ela cantava para os baixinhos ‘não gosto de homem de bilau pequeno’ nos programas dos anos 80.” Acusou-a de ser uma precursora da doutrinação ideológica e revelou que, na infância, gostava de Mara Maravilha. “Lembram dela?” 

No dia 8 de julho começou a sequência de 30 vídeos contra o Supremo. As agressões e ataques escalaram pouco a pouco. “O STF é completamente socialista. Todos, sem exceção.” Em 13 de agosto, afirmou. “Hoje posso afirmar que o STF apoia o narcoterror, as facções criminosas. E quem apoia o narcoterror não passa de vagabundo.” 

No dia 17 de novembro, afirmou: “Quero que o povo entre no STF, pegue o Alexandre de Moraes pelo colarinho, sacuda a cabeça de ovo dele e o jogue em uma lixeira”. Defendeu “a ucranização do Brasil”, referindo-se à rebelião que derrubou o governo da Ucrânia em 2014. 

A última produção, postada no carnaval, provocou a reação de Alexandre de Moraes. O ministro é relator de inquéritos que investigam atividades antidemocráticas – como manifestações que pediam fechamento do Congresso e intervenção militar – e disseminação de fake news. Silveira é um dos alvos nas duas investigações. 

“Daniel sempre foi contundente”, disse Octavio Sampaio, amigo e vereador pelo PSL em Petrópolis. Foi ele que apresentou Silveira ao hoje senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Na época, Flávio presidia o PSL no Rio. Para tentar a carreira política, Daniel afastou-se da Polícia Militar. Sua passagem pela corporação fora marcada por prisões e detenções administrativas e repreensões. Ele mesmo as contabilizou: mais de 80 dias, no período em que esteve na ativa, de 2012 a 2018. 

Era então o cabo Lúcio, do 26.º Batalhão da PM, sangue O Positivo, segundo a identificação no uniforme. Foi no “comício da placa” que começou a virar o deputado hoje preso no Batalhão Especial Prisional. 

Quase três anos após aquele comício, Amorim, amigo de Silveira, disse que eles não se arrependem do que fizeram. Ressaltou que a morte da vereadora foi um crime e afirmou respeitar e se solidarizar com a dor da família de Marielle. Na campanha, a foto dos dois futuros deputados, posando sorridentes com a placa partida, correu sites, jornais, emissoras de televisão. Silveira, de camisa amarela, retesava os músculos e agitava o punho. Amorim segurava os pedaços do objeto. 

Nascido na Região Serrana

Daniel Lúcio da Silveira nasceu em Petrópolis, na Região Serrana fluminense, em novembro de 1982. Era um bebê – segundo a mãe, dona Matildes, tinha cinco quilos ao nascer – quando a ditadura militar se aproximava do fim. O mandato agressivo do político com pinta de marombeiro contrasta com o passado de adolescente que cresceu numa estrada bucólica de Araras, em Petrópolis. 

Lá, ele é lembrado pelos vizinhos como um garoto alegre e tranquilo. Era franzino e atencioso com a mãe. “Ele é uma boa pessoa, não é isso que tentam mostrar. Até ser preso, me ligava todos os dias para saber como eu estava e me pedir a bênção”, disse a mãe, que conta se ajoelhar e orar pelo filho todos os dias. Ela concorreu a vereadora pelo PSL em Petrópolis, em 2020, mas não se elegeu. “Foi um pedido do meu filho.” Era a “Tia Matildes”. Teve 158 votos e ficou em 143.º lugar. 

O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), que teve a prisão confirmada pelo plenário da Câmara Foto: Dida Sampaio/Estadão (7/2/2019)

O deputado morou com a mãe quase toda a vida – a mulher e os dois filhos também viviam ali. Ele se mudou para uma casa maior na mesma estrada há poucos meses. Foi lá que, na chuvosa noite de terça-feira, a PF bateu para prendê-lo. O filho de Matildes foi cobrador de ônibus na juventude e acabou acusado de apresentar atestados médicos falsos para faltar ao trabalho, segundo o jornal O Globo. A apuração, que foi arquivada, quase lhe custou o ingresso na PM – a investigação social o barrou, mas a Justiça garantiu o ingresso. “Ele sempre gostou de armas, sempre. Nunca escondeu isso”, disse a mãe, vendo aí um motivo para o filho querer trabalhar na polícia. 

Em seis anos de PM, Silveira ganhou fama de exibicionista. Em um vídeo, revelou uma preferência dos tempos de menino, que pode ajudar a entendê-lo. “Eu gostava do Robocop.” Por seu tamanho incomum, o deputado parece o personagem do filme de 1987, um policial transformado em cyborg. Do diretor holandês Paul Verhoeven, o filme trata de uma distopia de uma Detroit decadente e tomada pelo crime. O personagem é programado para combater bandidos segundo quatro diretrizes. A quarta delas, secreta, o proíbe de atacar a empresa que o criou – uma alegoria para o sistema dominante. 

Em 2018, o comando da PM do Rio decidiu que devia incentivar candidaturas militares. Nascia na corporação a ideia de que policial votava em polícia e que a corporação e seus familiares seriam capazes de eleger até três deputados. Para o coronel Ubiratan Ângeli, ex-comandante-geral da PM, na véspera da eleição, a escolha recaiu sobre alguns nomes que se haviam destacado durante a campanha sem que “a família azul” verificasse a plataforma ou a ficha dos candidatos. 

Silveira parecia entender o sistema que o gerou. Sempre manteve intensa atividade na internet. “É um cara que sempre defendeu bandeiras de direita, de maneira contundente”, contou Sampaio. “E passava as mensagens de uma forma muito boa, alcançava as pessoas.” Os dois se conheciam no mundo virtual. Aproximaram-se em 2017, por iniciativa de um amigo em comum, oficial da PM. “Daniel veio ao gabinete do Flávio Bolsonaro aqui na Assembleia”, relatou Amorim. “Ele, com o Flávio, definiu que seria candidato a deputado federal.” 

Silveira não teve dificuldade para registrar a candidatura. Declarou à Justiça Eleitoral não ter nenhum bem. Curiosamente, pediu a correção de um dado: informou que não é pardo, mas branco. Na Câmara, integrou a tropa de choque do bolsonarismo, admitiu ter gravado a reunião da bancada do PSL em que o então líder do partido, Delegado Waldir (GO), chamou o presidente Bolsonaro de “vagabundo” e disse que ia “implodir o presidente”. 

Sua lista de projetos incluiu boa parte das convicções e teorias que animam a extrema-direita. Entre as propostas, estão a prorrogação do serviço militar obrigatório até o limite de 180 meses (quinze anos); a instituição de 31 de Março como Dia Nacional em Memória das Vitimas do Comunismo no Brasil e o veto à retirada da internet, pelo provedor, de mensagens do usuário. Afirma que a pandemia de covid-19 “foi criada para acabar com os governos de Bolsonaro e de Trump” e criticava o uso de máscara como uma “focinheira ideológica”. A estratégia beligerante do mandato também ocorreu fora da Câmara. Com Amorim, Silveira participou de “inspeções” no Colégio Pedro II, em outubro de 2019, e na ocupação Aldeia Maracanã, localizada no terreno do antigo Museu do Índio, na zona norte carioca, em setembro de 2020. Houve tumulto e polêmica nas duas ocasiões. A direção do colégio reclamou de não ter sido avisada com antecedência da visita dos parlamentares; os indígenas, de declarações supostamente racistas de Amorim. 

A revolta com o STF se acentuou após o amigo, major Elitusalem Gomes de Freitas (PSC), não se reeleger vereador no Rio. “Como ele teve dois mil votos? Como um cara do PSOL tem 100 mil?” Para ele, o resultado da eleição era “a prova” da fraude. Dizia não estar falando só por si. “Quando bater um cabo e um soldado na porta de vocês não adianta fechar, porque vai ser arrombada. Sabe por quê? Vocês estão abrindo essa precedência (sic). Sim, as Forças Armadas podem intervir. É algo que nós queremos? A maioria absoluta dos brasileiros quer isso. O STF não precisa existir. Ele deveria ser extinto.” E lançou um desafio: “Me prendam, que eu quero ver. Cármen Lúcia, vem me prender! Eu desafio vocês a me prender.”

Na noite do dia 16, o amigo Amorim recebeu um telefonema de Silveira. "Ele me disse: a Federal chegou aqui para me prender'.” Três dias depois, na sessão da Câmara que manteve sua prisão, Silveira pediu desculpas cinco vezes. Não adiantou. A ordem do ministro Moraes foi confirmada em votação esmagadora: 364 a 130. O fã de Robocop vai esperar na cadeia o julgamento pela mesma Corte cujo fechamento defendeu.

Wilson Tosta, Marcio Dolzan e Marcelo Godoy, O Estado de São Paulo, em 21 de fevereiro de 2021