terça-feira, 21 de março de 2023

Por que Lula busca a paz na Ucrânia?

Zelensky quer ouvir a resposta pessoalmente, em Kiev. É de presumir que, tendo-se voluntariado na busca da paz, o líder brasileiro não se omitirá

O estreitamento das relações entre o Brasil e a Suécia entre 2003 e 2016, período em que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve no poder, resultou numa aproximação estratégica de primeira grandeza.

Nesse período, foi firmado um acordo bilateral que viabilizou o programa em curso de reequipamento da Força Aérea Brasileira (FAB), um sonho antigo, com jatos suecos Gripen F-39 de última geração montados no País e exportáveis, no futuro, para outras nações.

Não se sabia nem havia como prever, então, que um ataque não provocado da Rússia à Ucrânia em fevereiro de 2022, em escandalosa violação da Carta das Nações Unidas, desencadearia o maior conflito armado na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

Ainda menos se sabia que a nação agredida reagiria com a surpreendente capacidade e vigor para resistir que vem demonstrando no campo de batalha, para a estupefação de aliados e simpatizantes de Moscou, entre eles os governos diametralmente antagônicos que se sucederiam em Brasília na virada de 2022 a 2023.

Uma das consequências geopolíticas da invasão da Ucrânia foi o reposicionamento da Suécia e da Finlândia nos grandes blocos militares. Sentindo-se vulneráveis a eventuais investidas da Rússia, ambas as nações nórdicas pediram entrada em regime acelerado na Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, o maior arranjo militar do planeta formado após a Segunda Guerra Mundial para garantir a proteção de seus membros, a começar pelos europeus, dos desígnios da Rússia.

Este é o contexto histórico e geográfico no qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vê espaço para o Brasil oferecer uma proposta genérica mas irrecusável de busca de um acordo que restabeleça a paz e, quem sabe, recuperar espaço internacional, que o País perdeu.

Talvez para surpresa de Lula, que criticou os presidentes da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e dos EUA, Joe Biden, por não terem insistido por mais tempo numa solução que evitasse o injustificado ataque de Moscou, a iniciativa brasileira foi bem recebida em Kiev. No final de fevereiro, o líder ucraniano convidou Lula a visitar o país. Presume-se que o convite a Lula foi feito com conhecimento de Washington e de seus aliados europeus, que já deram dezenas de bilhões de dólares em assistência militar e humanitária a Kiev. A resposta de Lula, então, foi de que visitaria o país quando fosse “o melhor momento”. É de presumir que, tendo-se voluntariado na busca da paz, o líder brasileiro não se omitirá.

Seja como for, o gesto de Kiev pede uma resposta. E esta deve refletir a opinião média dos brasileiros. Mas o que pensam eles sobre a guerra da Ucrânia? “Não pensam nada”, disse Mauricio Moura, especialista em opinião pública do Instituto Ideia. Segundo ele, o assunto não está no radar dos brasileiros, não ajudará a popularidade de Lula e “ele sabe disso”.

O presidente sabe, também, que sua mais ambiciosa tentativa de mediar um acordo internacional terminou mal. Aconteceu em maio de 2010, último ano do segundo mandato de seu governo, e envolveu o programa nuclear do Irã, os governos dos cincos membros permanentes do Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas (EUA, França, Reino Unido, China e Rússia) e a Alemanha, aspirante, como o Brasil, a uma cadeira permanente num CS da ONU reformado.

Deu em muito menos do que nada. Depois de uma maratona de negociações em Teerã, que envolveu Lula, o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, o então presidente do país, Mahmoud Ahmadinejad, e o ainda presidente da Turquia, Recep Erdogan, os chanceleres dos três países anunciaram “princípios” de um acordo. O suposto acordo foi fulminado por Hillary Clinton, então secretária de Estado do presidente Barack Obama, que havia estimulado a participação de Lula na busca de um entendimento. O eterno chanceler russo, Sergey Lavrov, que segue na função com o presidente Vladimir Putin, estava em Washington e não escondeu seu espanto e sua contrariedade com a ousadia brasileira. Dias depois, o CS da ONU adotou novas represálias contra o Irã, que Moscou e Pequim não vetaram e o país foi obrigado a adotar, contrariando a aposta feita pelo então chanceler Celso Amorim, que está de volta, agora na função de conselheiro de Lula no Palácio do Planalto.

Nos 13 anos decorridos desde o fiasco de Teerã, o peso econômico relativo do País encolheu, com forte perda de produtividade mal disfarçada pelos ganhos da agricultura, único setor dinâmico e que incorpora conhecimento.

Some-se a isso o aumento da pobreza e da desigualdade, a evidente mediocrização nacional e a perda resultante de densidade política e de coesão nacional, ambas corroídas por dentro por escândalos de corrupção, resultando numa sociedade fragilizada, desmotivada e incapaz de reter e multiplicar talentos com a velocidade e a qualidade que a realidade exige. Mas nem por isso há que perder a esperança. Quem sabe uma viagem de Lula à Ucrânia, se acontecer, o inspire a encontrar na solidariedade com as vítimas da invasão coragem para de fato ousar, junto com os aliados tradicionais do Brasil, em nome da paz.

Paulo Sotero, o autor deste artigo, Jornalista, é Pesquisador Sênior Do Brazil Institute Do Wilson Center, em Washington, DC. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 21.03.23

Com lançamento de foguete coreano, base de Alcântara volta à atividade

Subida de foguete coreano, no domingo, põe base no Maranhão no disputado mercado dos polos lançadores de veículos civis

 (crédito da foto: Sargento Frutuoso/DCTA)

Quatro décadas depois do início de sua implantação, o Centro de Lançamento de Alcântara lançou com sucesso, no domingo, o primeiro foguete de uma operadora estrangeira. O Hanbit-TLV, da empresa sul-coreana Innospace, de 16,3 metros de altura e 8,4 toneladas, levou embarcada uma carga útil do Sistema de Navegação Inercial (Sisnav), tecnologia desenvolvida no Brasil que permitirá ao país dar um salto na navegação autônoma de veículos lançadores de satélites (VLS).

Para o Programa Espacial Brasileiro, o lançamento confirma a Base de Alcântara como polo lançador de foguetes de baixo custo, em um mercado global que cresce rapidamente. O voo do Hanbit-TLV durou 4m33 e marcou, efetivamente, a entrada do Brasil no mercado de transporte espacial.

"O sucesso deste lançamento binacional, envolvendo o Brasil e a Coreia do Sul, ratifica que o centro está totalmente apto, tanto do ponto de vista técnico-operacional, quanto do administrativo, para realizar lançamentos de foguetes nacionais e estrangeiros em praticamente qualquer época do ano, com precisão e segurança", disse o brigadeiro engenheiro Luciano Valentim Rechiut, do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), unidade ligada à Força Aérea Brasileira (FAB).

O sucesso do lançamento foi comemorado pela Aeronáutica e pela Agência Espacial Brasileira (AEB), depois de três adiamentos por questões técnicas. A parceria com a Innospace — uma startup da Coreia do Sul — foi possível depois que o Brasil firmou, em 2019, acordo de salvaguardas tecnológicas, que protege os interessados em usar a base brasileira como polo de lançamento. Todos os custos da operação de domingo foram bancados pela empresa.

Tragédia

O lançamento também representa a virada da página mais trágica do Programa Espacial Brasileiro. Em agosto, completará 20 anos do acidente que provocou a morte de 21 pessoas, em Alcântara. Em 22 de agosto de 2003, o VLS brasileiro levaria ao espaço o primeiro satélite de tecnologia nacional, mas o foguete, de 21 metros de altura, explodiu na partida.

Uma nova torre de lançamento só seria inaugurada em 2012, permitindo a volta da operação da base maranhense. Com o Hanbit-TLV, o CLA soma 500 lançamentos desde a inauguração, mas a pretensão de desenvolver um foguete de tecnologia nacional ficou em segundo plano. A prioridade passou a ser a atração de parceiros para financiar as atividades de Alcântara.

Em maio do ano passado, o ex-presidente Jair Bolsonaro ofereceu a base para o bilionário Elon Musk, dono da SpaceX, que desenvolve projetos privados de foguetes de baixo custo — que não se interessou. Além da startup sul-coreana, o Brasil tem acordos com mais três empresas que pretendem utilizar a infraestrutura de Alcântara — uma delas a Virgin Galactic, do bilionário Richard Branson, que investe no desenvolvimento de foguetes civis tripulados.

A internacionalização das operações em Alcântara é um objetivo antigo do governo brasileiro, que vê na localização o maior diferencial em relação à maioria dos concorrentes estrangeiros. Por ser a base próxima da Linha do Equador, os foguetes percorrem uma distância menor até a órbita desejada, reduzindo os custos com combustível em até 30%.

Vinicius Doria para o Correio Braziliense, em 21.03.23. 

Os herdeiros do Papa

Direitos autorais de livros escritos pelo papa emérito Bento XVI irão para a Fundação Ratzinger, e pertences pessoais serão distribuídos entre assistentes e amigos. Anotações e cartas pessoais foram destruídas.

Cinco primos alemães do papa Bento 16 são os herdeiros do dinheiro que o pontífice economizou em suas contas. Por outro lado, os direitos autorais de seus livros irão para a Fundação Ratzinger, e seus pertences pessoais serão distribuídos entre assistentes e amigos, como ele mesmo deixou por escrito.

Bento 16 morreu no dia 31 de dezembro do ano passado, aos 95 anos. Em 2013, ele se tornou o primeiro pontífice a renunciar em 600 anos e, desde então, era chamado de papa emérito. 

A informação sobre os herdeiros foi revelada pelo monsenhor Georg Gänswein, secretário pessoal de Bento 16 durante todos os anos de pontificado e que continuou servindo o papa emérito após a renúncia.

"Pensei que havia dois parentes, dois primos, mas são cinco", disse o arcebispo alemão a alguns veículos de imprensa após uma missa celebrada no domingo (19/03), em Roma.

Os herdeiros, no entanto, poderiam abrir mão de receber o dinheiro porque - segundo o jornal italiano Corriere della Sera - "correriam o risco de serem envolvidos em uma ação de indenização iniciada na Alemanha contra Bento 16 sob a acusação de não ter interferido no caso de um padre pedófilo quando ele era arcebispo de Munique, entre 1977 e 1982".

A informação sobre os herdeiros foi revelada pelo monsenhor Georg Gänswein (D)Foto: Stefano Spaziani/picture alliance

Bens pessoais doados

Gänswein destacou que a herança não é milionária, apenas o que resta na conta bancária, já que os bens pessoais do papa emérito "serão todos doados”.

"Os demais objetos pessoais, de relógios a canetas, de pinturas a móveis litúrgicos, foram incluídos em uma lista meticulosamente elaborada por Bento 16 antes de morrer. Ninguém foi esquecido: colaboradores, secretários, seminaristas, estudantes, motoristas, párocos e amigos", disse Gänswein, de acordo com a edição desta segunda-feira do Il Messaggero.

"O que tem a ver com livros, o que tem a ver com sua obra intelectual, já está claro", acrescentou.

Os direitos das obras permanecem no Vaticano, e uma parte irá para a Fundação do Vaticano Joseph Ratzinger, criada em 2010, que é o que realmente constitui o importante legado de Bento XVI, com autênticos best-sellers como os volumes dedicados à vida de Jesus.

Gänswein também explicou que, por ordem do próprio Ratzinger, destruiu todas as anotações e cartas pessoais, e algumas foram enviadas para a fundação Ratisbona.

"Uma pena? Sim, eu também disse isso a ele, mas ele me deu essa indicação: não tem como voltar atrás. Não há mais escritos inéditos", revelou.

Gänswein trabalhou com Bento 16 por quase 20 anos - antes, durante e depois do pontificado. Desde 2013, ele é também prefeito da Casa Pontifícia.

Em 2020, o papa Francisco deu licença a Gänswein do cargo para que ele pudesse se dedicar inteiramente a auxiliar Bento 16. Nos círculos do Vaticano, especula-se que o arcebispo possa deixar Roma em breve e tornar-se embaixador.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 21.03.23

segunda-feira, 20 de março de 2023

Maranhão lidera pobreza infantil

Em abril de 2022, escrevi o artigo DE VOLTA AO PASSADO, mostrando que a pobreza do Maranhão havia aumentado, sendo que 1.059.510 era o número de famílias na linha de pobreza; 

que os índices do IDEB permaneciam muito aquém da meta e que o analfabetismo continuava em níveis inaceitáveis; que o desmatamento da pré-amazônia aumentara significativamente e que os produtores e fazedores de cultura viviam às turras com os órgãos públicos que lidavam com o assunto.

Mais adiante publiquei outro artigo mostrando análise da Folha de São Paulo sobre a pobreza do Brasil, em que o Maranhão concentrava 24 dos 25 municípios mais pobres do Brasil. 

Agora, é o UNICEF que publica dados com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD contínua), de 2019, informando que existem 32 milhões de crianças e adolescentes em situação de privação no País, do total de 50,8 milhões.  Esclarece que tal dado é diferente do entendimento tradicional da pobreza monetária. Ele é multidimensional e resultado da inter-relação entre privações, exclusões e diferentes vulnerabilidades a que meninas e meninos estão expostos.

Esclarece mais que em todas as dimensões (alimentação, renda, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e informação), as desigualdades raciais e regionais persistiram de forma preocupante e que, como acontece com outros indicadores, os grupos mais impactados são, em geral, os(as) negros(as) e indígenas e as populações das regiões Norte e Nordeste. A dimensão que mais contribui para a pobreza infantil no Brasil é o saneamento, seguido da renda e falta de água. 

Depois de realizada a análise, propõe que os governos, em seus três níveis, priorizem investimentos em prol da infância e da adolescência em seus planejamentos e execução orçamentária; que seja dada ênfase às estruturas e ofertas do SUS, priorizando políticas voltadas às crianças e adolescentes vulneráveis e às suas famílias; que seja ampliada a oferta de serviços e benefícios a esse público nas áreas de educação (implantando com urgência políticas de busca ativa escolar e retomada da aprendizagem), saúde, nutrição, infraestrutura sanitária básica e proteção e segurança.

De tudo isso, o mais triste e doloroso: é o Maranhão, de novo e sempre, o estado brasileiro que lidera a POBREZA INFANTIL em quase todas as dimensões analisadas. 

Este é um dos cruciais desafios do Governo Brandão. Como amenizar essa crucial realidade? Continuar fazendo o mesmo a nível das políticas públicas de educação, saúde e saneamento?  Manter as políticas de trabalho e renda dos últimos anos? Sabemos que fazendo o mesmo de sempre não teremos resultados diferentes.

Não tenhamos dúvidas: apostar nos grandes projetos que aportaram no Maranhão (Vale, Alumar, Suzano, Eneva, Polo do Agronegócio de Balsas) ou nos que virão aportar por aqui, anunciados à exaustão (Terminal Portuário de Alcântara, Centro de Lançamento de Alcântara, ZPE etc.) não resolverão a questão da pobreza do homem maranhense, que não se alimenta de bauxita, de ferro, ou de soja. São empresas intensivas de capital, cujo objetivo é o lucro. Simplesmente isso. Simples, porém difícil de ser entendido pelos últimos governos do Maranhão.

“Os processos de transformação das matérias-primas em mercadorias de alto valor no mercado internacional, via empresas multinacionais, não reverte em dividendos para a população do estado, mas, muito pelo contrário, resulta em expropriação, aculturação e empobrecimento, como se viu na mesa de debates sobre os “Grandes projetos de desenvolvimento e lutas sociais na amazônia brasileira”, VI Jornada Internacional de Políticas Públicas, UFMA, 2013.

Cedo ou tarde, no nosso caso, ao que parece, bem tarde, há que se voltar os olhos para o Desenvolvimento Local, única saída para o drama da pobreza endêmica da população do Maranhão.

Abdelaziz Aboud Santos, o autor deste artigo, foi Secretário de Estado do Planejamento e Orçamento do Maranhão (Governo Jackson Lago - 2007/2009)

Coisa pública não é coisa minha

O comportamento do agente público deve se pautar pela obediência ao princípio de que não pode dispor como quiser do acervo que administra

Muito recentemente vimos a baderna e a selvageria colocarem em risco as instituições nacionais. A reação dos democratas e dos próprios Poderes constituídos, capitaneados pelo Judiciário, impediu que o caos e a barbárie se instalassem. Seria mais um passo na jornada pró-instalação de um regime ditatorial para quem se considerava com direitos despóticos e ilimitados de governança.

Os bens públicos das Casas do Legislativo e do Supremo Tribunal Federal (STF) foram criminosamente danificados. A República foi atingida em seu conceito fundamental de “coisa pública”. Vandalizaram bens da sociedade, bens do povo.

Dois até agora indecifráveis enigmas são a origem e o porquê do apoio emprestado às tentativas de imposição da desordem, da intolerância e do ódio no seio da sociedade brasileira. Não me refiro apenas à adesão dada aos responsáveis políticos, mas sim à concordância com um pensamento não civilizatório transformado em ações concretas: o armamento distribuído ao povo (quase 1 milhão de armas); a negação da ciência na pandemia; a insensibilidade em face dos 700 mil mortos pela covid-19, e quem despreza a morte não preza a vida, a alheia; o abandono e o menosprezo pela educação, pelo meio ambiente, pela cultura; a tentativa de destruir avanços exemplares para o mundo nos campos das eleições (urnas eletrônicas) e da saúde (sistema de vacinação); os estímulos à destruição das instituições pátrias; a conclamação à ruptura do Estado de Direito; e várias outras condutas atentatórias ao regime, à paz e à harmonia sociais. Ideias e comportamentos que desaguaram no 8 de Janeiro.

Esses apoiadores, muitos esclarecidos e com capacidade de bem discernir o certo do errado na vida pública, se deixaram conduzir por um discurso repleto de mentiras e invencionices, distante da realidade nacional e contrário à lógica e ao bom senso. Sempre em nome de justificativas abstratas, inconsistentes e falaciosas para a opção que faziam. Por exemplo, passaram a afirmar que o seu voto era contra o risco “vermelho”: o comunismo seria implantado. Argumento obtuso, mentiroso, falso, ridículo, próprio dos que carecem de razões para as suas inconcebíveis escolhas e que põe em dúvida a sua inteligência e sua honestidade.

O seu ridículo se acentua na medida em que representa a negação da própria história recente. O mesmo grupo político contra quem investem esteve no poder durante uma década, e seus integrantes não atuaram como perigosos militantes stalinistas nem atentaram contra o regime democrático. Não invadiram nem destruíram órgãos públicos. Não conclamaram as Forças Armadas a intervir no regime. Não se comportaram como trogloditas primatas prontos a destruir e matar com vistas à ruína das instituições e da própria sociedade. Eles não.

Os correligionários do último governo, além da barbárie que apoiaram, ignoram que seus integrantes não tiveram nenhum escrúpulo nem respeito por um princípio basilar do regime republicano: o governante administra bens alheios.

República tem origem no latim res publica, que significa coisa pública. O que é público é de todos e, portanto, não é de ninguém. Aqueles que se propõem a militar na política ou na administração pública têm a obrigação de saber que vão gerir coisa alheia. Trata-se de uma noção básica, primária, essencial. Caso o administrador não tenha consciência precisa desse aspecto, não estará habilitado a assumir as funções.

Mas a questão não se resume apenas a uma noção teórica desta fundamental característica do cargo público. O conceito deve externar uma conduta pessoal que lhe seja consentânea. Vale dizer, o comportamento do agente público deve se pautar pela rigorosa obediência ao princípio de que não pode dispor como quiser do acervo que administra.

Quero destacar apenas uma das formas mais habituais de ataque ao erário. A imprensa vem noticiando com constância a despudorada utilização dos chamados cartões corporativos. Está-se revelando um abuso de gastos jamais visto na história da República. O cartão transformou-se em passaporte para a entrada livre nos cofres da Nação.

De hotéis e restaurantes de luxo, passando por grifes famosas, até a compra de guloseimas, em especial sorvetes, esses gastos representam um exemplo do desavergonhado desrespeito para com a coisa pública.

Alguém dirá que a lei autoriza o uso dos cartões. Sim, mas o uso restrito às despesas relacionadas ao exercício das funções, e não o uso descriterioso, injustificado, ligado a caprichos consumistas, uso que não fariam se os gastos saíssem de seus bolsos.

Esses esbanjadores do dinheiro alheio deveriam se espelhar nos exemplos, entre outros, de dom Pedro II, que várias vezes viajou para fora do País às suas expensas ou auxiliado por amigos. Ou, ainda, da primeira-dama Nair de Teffé, mulher do ex-presidente Hermes da Fonseca, que arcava com os custos das recepções que organizava no Palácio do Catete, sem onerar os cofres públicos.

O desrespeito ao bem público representa o desrespeito ao Brasil e ao seu povo.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo, é advogado. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 20.03.23

sexta-feira, 17 de março de 2023

Presídios, símbolos da falência do Estado

A onda de terror no RN expõe duas metástases interdependentes que se alastram aceleradamente: a expansão do crime organizado e a deterioração do sistema prisional

Há dias a população do Rio Grande do Norte é acossada por mais uma onda de terror orquestrada por uma facção criminosa. A Secretaria da Segurança potiguar acredita que a ordem tenha partido de lideranças do Sindicato do Crime (SDC) – uma dissidência do PCC – que estão em uma penitenciária da Grande Natal, em retaliação ao endurecimento das regras nas prisões locais. Um “salve” – ou convocação – que circula por WhatsApp supostamente lançado pelo SDC “justifica” a selvageria como uma reação às condições “degradantes” dos presídios. Essas causas não se excluem e expõem as raízes de duas metástases que se retroalimentam e se alastram com assombrosa velocidade: a ascensão do crime organizado e a deterioração do sistema prisional.

Na última década, o Brasil passou de consumidor da cocaína produzida na Colômbia, Peru e Bolívia para um dos maiores fornecedores do mundo, respondendo por 7% das apreensões globais, só atrás da Colômbia (37%) e EUA (18%). As disputas das facções pela rota da Amazônia até os portos nordestinos é plausivelmente a principal causa da escalada de violência no Norte e no Nordeste.

A segurança pública é dever dos Estados, mas nenhum deles tem recursos para enfrentar organizações que, em acelerada nacionalização e internacionalização, se ramificam sofisticadamente por âmbitos variados da sociedade civil, dos mercados e do Estado. Em 2018, o Congresso buscou resolver essa “acefalia federativa” criando o Sistema Único de Segurança Pública para coordenar ações de prevenção e inteligência entre os três níveis da Federação. Mas o programa foi praticamente descontinuado pelo último governo, mais interessado em armar os cidadãos do que em sofisticar a segurança pública. Nesse vácuo, as facções multiplicam seus tentáculos como hidras.

Não é por coincidência que, da malha de crimes perpetrados por elas, a sua face mais monstruosa esteja nos presídios. Massacres, decapitações e até canibalismo se tornam uma apavorante rotina, especialmente nas prisões do Norte e do Nordeste.

Em tese, o sistema carcerário deveria atender a três fins: a proteção da sociedade pelo isolamento de seus agressores, a dissuasão dos aspirantes ao crime e a ressocialização dos condenados. Na prática, o sistema prisional inverteu completamente esses fins – e, a começar pelo primeiro e mais importante, promove o seu oposto.

Nas últimas décadas, os presídios se transformaram em verdadeiras incubadoras do crime. É de lá que as facções extraem sua matéria-prima. Na comparação internacional, o Brasil tem altas taxas de encarceramento, de presos sem condenação e de superlotação. Apenas 15% dos presos estudam e 18% trabalham. Cerca de 40% são provisórios. Responsáveis por crimes de menor impacto e que poderiam ser passíveis de penas alternativas, na maioria jovens, são obrigados a se submeter a pactos de vassalagem com condenados por crimes de sangue, hediondos ou de organização criminosa, que, estima-se, representam só 13% da população prisional.

Todos os anos são enviados para essas “masmorras medievais” – na célebre definição de José Eduardo Cardozo, então ministro da Justiça, em 2015 – multidões de pobres-diabos que, após passar pelos rituais da academia do crime armada pelas facções, são bombeados para a sociedade em legiões mais ressentidas, mais violentas e mais organizadas.

Ao invés de reintegrarem os criminosos à sociedade, os presídios estão submetendo a sociedade ao crime. Numa espécie de pesadelo, porções inteiras do Brasil transformam-se num grande presídio. Os abastados se enclausuram em condomínios amuralhados e carros blindados. Os pobres veem bairros inteiros serem sequestrados pelas organizações criminosas, que controlam seus mercados e infraestrutura, cooptam seus votos e recrutam seus filhos, num verdadeiro Estado paralelo. Os que ousam resistir são retaliados com as mais horrendas humilhações e crueldades.

Os presídios que, em tese, deveriam ser o símbolo maior do poder do Estado, na prática são hoje o emblema máximo de sua falência. Enquanto essa subversão infernal não for revertida, a Nação pagará cada vez mais com seu sangue.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 17.03.23

Novo governo vai desfazendo reformas iniciadas em 2016 e nova vítima é o marco do saneamento

Lula 3 parece acreditar de verdade em um Estado que tudo faz e, caso as consequências sejam desastrosas para a economia, deverá culpar mais uma vez um inimigo externo

Desconstrução de reformas no novo governo vai criando insegurança jurídica e regulatória e pode afastar investidores privados (Foto: Eraldo Peres/AP)

Novo governo não só dá uma guinada previsível na política econômica, como vai desfazendo as reformas iniciadas em 2016. Elas funcionaram como uma mola no fundo do poço que Dilma nos jogou.

Lula 3 parece querer se livrar da imagem do social-democrata que adquiriu por ter dado continuidade às políticas de FHC. Veio agora decidido a assumir o papel de líder da esquerda para valer. Acredita de verdade em um Estado que tudo faz. E, se a consequência for inflação ou crescimento medíocre, isso será mais uma vez atribuído a um inimigo externo, que já foi até escolhido – o Banco Central. Mas pode virar o Congresso Nacional e Lira.

Basta ver como o PT analisa o desastroso biênio Dilma. Não foram a política fiscal irresponsável, os recursos desperdiçados no BNDES nem as pedaladas que levaram o País à maior recessão da história, mas um golpe imaginário, a Lava Jato que inventou corrupção onde não havia e destruiu empreiteiras.

A desconstrução das reformas vai criando insegurança jurídica e regulatória e pode afastar investidores privados. E assim, como numa profecia autorrealizada, reforçará o discurso de que, sem governo gastando, a economia não anda.

Desconstrução de reformas no novo governo vai criando insegurança jurídica e regulatória e pode afastar investidores privados

A lista de mudanças é extensa: TLP do BNDES; Lei das Estatais; reforma da Previdência; política de preços de combustíveis; desinvestimentos da Petrobras; privatização da Eletrobras; fim da limitação de despesas do governo e agências reguladoras.

Outra vítima é o novo marco do saneamento, mesmo tendo, em apenas dois anos, comprometido R$ 50 bilhões em investimentos e mais R$ 30 bilhões em outorgas. As estatais, por sua vez, não conseguiram demonstrar capacidade financeira para cumprir as metas de universalização impostas nos novos contratos.

Rui Costa diz que outorgas muito elevadas são ruins (!), pois vão gerar tarifas elevadas. Mas, no Estado que governou por oito anos, a Embasa cobra mais pelo serviço do que a média nacional e acima das privatizadas. E, mesmo assim, só 38% dos baianos têm coleta de esgoto – e, desse total, metade não é tratada. O investimento privado em ligação de água e esgoto é, em média, 70% acima do realizado pela Embasa.

O saneamento é uma política transversal de grande impacto social: reduz a mortalidade infantil, melhora o desempenho de crianças na escola, previne doenças, reduzindo gastos com saúde. É fundamental para criar igualdade de oportunidades e contribuir para a mobilidade social e o aumento da produtividade do trabalho. Dezenas de milhões de brasileiros, concentrados na população mais carente, serão novamente esquecidos com esse retrocesso.

Elena Landau, a autora deste artigo, é economista e advogada. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 17.03.23

Melhor defesa contra crise bancária no Brasil é governo mostrar controle das contas públicas, diz Arminio

Para ex-presidente do BC, sistema financeiro nacional é sólido, mas empresas estão sofrendo com juros altos

O economista Arminio Fraga - Bruno Santos - 9.jun.2022/Folhapress

O economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, não vê risco de que as fragilidades que assombram instituições financeiras nos Estados Unidos e na União Europeia possam ser identificadas no sistema bancário brasileiro.

"Uma contaminação vinda de fora não é o principal fator de risco aqui", diz ele. "Blindado nunca ninguém está. Mas não acredito que esse setor possa sucumbir numa crise bancária. Os bancos aqui no Brasil são mais capitalizados. Tem-se a impressão que grandes bobeiras como a que vimos nos Estados Unidos não ocorrem aqui. Essa é a minha avaliaç

Fraga, no entanto, afirma que o ciclo econômico não é confortável no Brasil. "Várias empresas dependem de financiamento para capital de giro, e elas estão sofrendo muito. Algumas estão até se mostrando inviáveis."

Na sua avaliação, será mais fácil para o Banco Central (BC) atuar nesse ambiente mais adverso, acompanhando uma eventual redução na taxa de juros, se o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) for mais ágil em apresentar definições para o que considera o cerne do problema no Brasil: a fragilidade fiscal.

"Eu diria que aqui, apesar de não estarmos diante de uma corrida bancária —essa é a minha expectativa—, nós temos uma situação macroeconômica muito frágil, com juros já muito altos", afirma Fraga. "É claro que os juros altos são um problema, e não é de hoje. Mas a cura para essa condição é fiscal."

Arminio reforça que apesar de as atenções terem se voltados para a elaboração de novas regras fiscais, a prioridade é a divulgação dos parâmetros de resultado primário e de gasto público para os próximos anos.

"Com ou sem arcabouço, o governo tem que anunciar os principais parâmetros", afirma Fraga.

Já vínhamos sentido risco de crédito, veio perda de confiança e, na última semana, bancos com problemas. Estamos diante de um risco de crises múltiplas? Sim, mas precisamos olhar a geografia da coisa. Lá fora, temos uma situação muito delicada, e os bancos centrais já avisaram que vão entrar com artilharia pesada. Em geral, isso pelo menos dá tempo. É preciso averiguar quanto se tem de alavancagem no sistema. No setor imobiliário, que foi o problema maior em 2008, acredita-se que se tem menos alavancagem.

A novidade do banco da Califórnia [o Silicon Valley Bank, que faliu na semana passada] é que eles tinham uma posição enorme de descasamento de taxa. Ou seja, captavam depósito de curto prazo e aplicavam num prazo longo. Eles quebraram, pelo que se ouve, em função disso. Foi uma barbeiragem tremenda dos gestores do banco e dos reguladores, que também não viram isso. Não era um portfólio de empréstimos que era difícil de avaliar. Era bem fácil.

Lá fora os bancos centrais vinham correndo atrás dos prejuízos com a inflação. Foi uma aposta que fizeram. Estavam com medo e, agora, vem a conta. O aperto no crédito é incluído nos cálculos dos bancos centrais. Sempre há o risco do que a gente pode chamar de dominância financeira, ou seja, o banco central afrouxar um pouco na inflação para não apertar demais no mundo do crédito. Esse é o estado das artes lá fora.

E no Brasil? Aqui é diferente. Também há uma questão inflacionária, e não é apenas um choque de oferta —e mesmo que fosse, o BC tem que, no mínimo, cuidar dos efeitos secundários do choque. No nosso caso, a maioria dos especialistas acha que tem também um elemento de demanda.

O BC vinha trabalhando nessa área e, de repente, aqui surge também a questão do crédito. Não é uma grande surpresa, dado que os juros foram de 2% para 13%, mas é, mesmo assim, um assunto a se acompanhar.

Ao mesmo tempo, aqui também está no ar toda essa questão fiscal e sobre o que governo vai fazer.

Num primeiro momento, ele está muito focado no desenho de um arcabouço para substituir os outros que não aguentaram. Mas eu acho que, neste momento, mais importante do que redesenhar um arcabouço —que claro, é relevante— é anunciar metas bem claras para o saldo primário e, quem sabe, até para gasto, nos próximos três anos.

Esse seria o passo, ao me ver, mais contundente e claro, e não uma discussão de um arcabouço muito sofisticado, em cima de posturas do governo como um todo, inclusive do presidente da República, de que esse tema fiscal ou não é muito relevante, ou é um grande exagero. Mas certamente não se vê grande apreço por esse tema fora do Ministério da Fazenda, por enquanto.

Aqui, o que tenderia a acalmar as coisas seria justamente dar mais espaço ao BC para trabalhar —e a única forma que existe para fazer isso é resolver o fiscal. É isso, ou teria algum impacto também no crédito. O BC mais livre, ou que não tenha de carregar um piano mais pesado do que deveria, pode trabalhar um pouco melhor o tema.

O sr. avalia que o governo está demorando para apresentar as metas? Um pouco. Mas não é anormal um governo que está chegando demorar um pouquinho a engrenar. Isso não preocupa. O que preocupa é essa sensação de que um arcabouço vai resolver o assunto. Não vai. O que vai resolver é o governo apresentar o seu comprometimento. Aí a coisa se acalma.

Já se fala que o Fed, o banco central americano, pode rever os juros. Pelo que o sr. está falando, é mais difícil isso ocorrer aqui enquanto não se resolver o fiscal? Sempre existe —vamos falar assim— uma componente de aversão ao risco. Porém, no nosso caso, estamos diante de um sistema bancário —até onde se percebe, e tendo a concordar— que está sólido, e uma economia razoavelmente fechada.

Temos mais a componente de risco psicológico, geral, alimentado por questões que não são apenas psicológicas. Uma contaminação vinda de fora não é o principal fator de risco aqui.

É importante diferenciar o quadro internacional do nosso. No quadro internacional, temos governos e bancos, em sua grande maioria tidos como sólidos e com espaço de manobra razoável. Eu diria que aqui, apesar de não estarmos diante de uma corrida bancária —essa é a minha expectativa—, nós temos uma situação macroeconômica muito frágil, com juros já muito altos. É claro que os juros altos são um problema, e não é de hoje. Mas a cura para essa condição é fiscal.

O governo, então, precisa anunciar logo o arcabouço com os parâmetros? Esquece o arcabouço. O arcabouço pode até demorar. Com ou sem arcabouço, ele tem que anunciar os principais parâmetros. No fundo, eles vão dar o seguinte sinal: olhe só, nós vamos fazer uma tentativa —porque ninguém acredita muito— de ressuscitar a Lei de Responsabilidade Fiscal, o teto do gasto, de uma maneira crível, dentro de um compromisso, de um governo que agora se inicia, que tem tudo para fazer um investimento no médio e no longo prazo. Aí a situação tende a se acalmar.

Se tiver uma baita crise no mundo —não estou descartando isso, mas não é o cenário mais provável— , aí o Brasil vai sofrer, não tem como evitar. Mas como sempre, nossos maiores problemas est

O sr. mencionou a questão da barberagem. O CEO da BlackRock, Larry Fink, disse que parte do que vemos agora é fruto do excesso de dinheiro dos últimos anos. O sr. concorda que o ambiente fez com que as instituições fossem permissivas e lenientes com as regras financeiras? Com toda certeza. Isso é algo recorrente na história financeira dos povos e parte de um ciclo natural que atraiu vários estudiosos, como Irving Fisher, Hyman Minsky e o próprio Ben Bernanke. O assunto é conhecido, mas as soluções têm se mostrado difíceis, como esta.

Acho que é a hora de rever regras. Muitas coisas entendidas como dogmas podem ser revistas, como a questão do prazo. Banco capta curto e empresta longo, mas isso não pode ser interpretado com toda essa flexibilidade. O sistema precisa repensar isso. Os bancos, eles próprios, já estão sujeitos a várias obrigações em termos da liquidez. Normalmente, não carregam nos balanços créditos muitos longos. Você não vê financiamento a infraestrutura no balanço dos bancos. Isso vai para investidores com passivos adequados, como companhias de seguro e fundos de pensão. Não é que nada foi feito.

Porém, o fato é que vivemos essa crise com sintomas muito parecidos com as de outras. Existe corrida a banco desde que existe banco. Isso não é uma novidade em si. O que é incrível é que não tenha sido bem administrado. As respostas não são fáceis, mas tem muita ideia boa, e está na hora de sentar e discuti-las.

O sr. mencionou que não tem temor de crise bancária no Brasil. Imagino que seja pelo tamanho e solidez das instituições, e até pela concentração. Não há risco também para instituições menores e mais jovens. Os bancos digitais, as fintechs, estão blindados? Blindado nunca ninguém está. Mas não acredito que esse setor possa sucumbir numa crise bancária. Os bancos aqui no Brasil são mais capitalizados. Tem-se a impressão que grandes bobeiras como a que vimos nos Estados Unidos não ocorrem aqui. Essa é a minha avaliação.

E qual é o cenário para as empresas de forma geral? O que se fala é que a restrição de crédito está forte e algumas empresas, no limite. Essa é uma outra história. A economia, além do choque de oferta, aqueceu. O BC apertou. Várias empresas dependem de financiamento para capital de giro, e elas estão sofrendo muito. Algumas estão até se mostrando inviáveis. Essa é uma questão do ciclo econômico típico e não de uma grande crise sistêmica.

Qual a sua perspectiva para a reunião do Copom? Eu fujo dessa pergunta abertamente, até porque sou gestor. Eu acredito que o método de trabalho do BC é bom. Vai acertando. Pode errar aqui e ali, mas o Copom se reúne com frequência e, já já eles corrigem, se for o caso. O sistema é bom. Ele tem dificuldades quando o fiscal não é bom. Aí complica.

RAIO-X - ARMINIO FRAGA, 65

Economista pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e doutor na área pela Universidade de Princeton, é sócio-fundador da gestora Gávea Investimentos. Foi diretor-gerente do Soros Fund Management, empresa de investimentos do empresário George Soros (1993 a 1999), e presidente do Banco Central do Brasil (1999 a 2002). Participou da fundação e preside os conselhos do IEPS (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) e do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social)

Alexa Salomão, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 17.03.23

Analistas apontam desgaste de Bolsonaros entre evangélicos

Estada prolongada nos EUA, atos golpistas do 8 de Janeiro e, mais recentemente, episódio das joias da Arábia Saudita afetaram mobilização pelo ex-presidente e pela ex-primeira-dama em redes sociais.

O desgaste de imagem de Jair e Michelle Bolsonaro tem se mostrado mais perceptível entre o público evangélico, que votou em peso no ex-presidente em 2018, quando eleito, e em 2022, quando perdeu a disputa para Luiz Inácio Lula da Silva, de acordo com especialistas que fazem monitoramento de redes sociais.

Já havia sinais de desgaste gradual da figura de Bolsonaro desde 8 de janeiro de 2023, quando houve a invasão das sedes dos Três Poderes em Brasília, acentuado pela decisão do ex-presidente de permanecer fora do Brasil desde 30 de dezembro de 2022.

Agora, com o episódio das joias que ele e Michelle receberam de presente do governo da Arábia Saudita e não declararam à Receita Federal na entrada ao Brasil, ficou mais perceptível a desaprovação entre os eleitores mais religiosos.

De acordo com Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e editora-geral do Coletivo Bereia, que faz checagem de fatos publicados em mídias religiosas e em mídias sociais brasileiras com conteúdos sobre religiões, foi visível nas redes um certo silenciamento deste público em relação ao caso das joias.

"Pelo nosso monitoramento de mídias cristãs, o silêncio e o apoio reservado [do público evangélico e católico] tem um significado: a imagem está manchada. Não é simples fazer esta defesa [sobre a aquisição das joias] como em outras situações", afirma a especialista, que também é membro da Associação Internacional em Mídia, Religião e Cultura.

O Coletivo Bereia captou que houve "muitas curtidas, mas poucos compartilhamentos" do discurso montado por Michelle e Jair Bolsonaro para se defender no caso das joias. Significa, na visão dos especialistas em monitoramento, pouco engajamento e baixa disposição para defender o casal.

"A avaliação é que há um certo esgotamento da figura de Bolsonaro e da família. O público das igrejas teve um estresse grande com o discurso polarizador e de ódio das lideranças de direita. O 8 de Janeiro foi uma espécie de ápice do esgotamento. O fato de Jair Bolsonaro estar fora do Brasil e a aparente separação do casal tirou o brilho da liderança dos dois, juntamente com os escândalos da destruição do Palácio Alvorada e agora as joias, o que faz cair muito o apoio", diz Cunha.

Michelle reage

Em relação às especulações sobre a separação de Michelle e Bolsonaro, a ex-primeira-dama decidiu retornar aos Estados Unidos e na última semana fez postagens sobre a vida de casada e apareceu ao lado do marido em um evento em Orlando, Flórida, na quarta-feira (15/03), para afastar boatos de separação.

Além de fazer postagens dizendo que estava indo ver seu amor, Michelle afirmou que está "pedindo a Deus" que leve Bolsonaro "logo para a nação que ele tanto ama, para a nação que ele lutou tanto e que continuará lutando". O ex-presidente, que havia dito que retornaria ao Brasil logo após o Carnaval, afirmou que vai avaliar sobre o retorno ao final de março.

O arranhão na imagem de Michelle pelo caso das joias fez o PL adiar um evento com a participação dela, que assumirá a presidência do PL Mulher. O partido tem planos políticos para a ex-primeira-dama, sobretudo contando com a aceitação dela entre o público evangélico.

Na última aparição pública nos EUA, Bolsonaro admitiu que poderá perder os direitos políticos em julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e descartou a possibilidade de Michelle disputar um cargo para o Executivo, ou seja, de presidente. O projeto do PL é que Michelle dispute o Senado.

Arranhão na imagem de Michelle pelo caso das joias fez o PL adiar um evento com sua participação (Foto: Amanda Perobelli/REUTERS)

"A história das joias prejudica o projeto [de se cacifar para 2026], apesar de o peso maior recair sobre Jair Bolsonaro. O anúncio de morar de aluguel para reforçar que não tem bens não se sustenta, e se une a outras questões que estão sendo atreladas [ao episódio das joias], como o caso do cheque [de R$ 89 mil] que recebeu do Fabricio Queiroz", diz Cunha.

Ainda muito pode mudar no cenário político até 2026, e a pesquisadora salienta que há novas lideranças de extrema direita entre o público religioso conquistando espaços importantes. O que mais se destaca, segundo ela, é o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que foi o mais votado do país. O jovem político, diz, "conseguiu trazer de volta a moralidade sexual para o centro da disputa política e segue a estratégia da banalização da política e do deboche", a mesmas que alavancou Jair Bolsonaro.

Silêncio coletivo

Professor de estudos de mídia e antropologia na Universidade da Virgínia, David Nemer monitora redes de extrema direita no Telegram. Ele confirmou à DW que houve uma espécie de silêncio coletivo após o caso das joias.

O silêncio, explica, é uma reação comum nestes grupos radicais quando são surpreendidos por um episódio de desgaste e não sabem como reagir prontamente. Após um período de silenciamento, vem o ataque, que normalmente "não é uma resposta plausível para explicar o que está acontecendo". "Sempre atacam o Lula ou a esquerda."

Nemer enfatiza que a tática usual da extrema direita, visível também agora, é reciclar notícias velhas e argumentar que "Lula teria roubado trilhões". Seria, segundo ele, uma tentativa de estabelecer parâmetros, como se o valor das joias fosse ínfimo perto do que Lula, na visão deste público, "roubou". "Ou seja, não estão muito preocupados em defender a honestidade de Bolsonaro", conclui o professor.

Nemer pontua que a atividade dos grupos está bastante fraca nos últimos meses, sobretudo após os atos terroristas de 8 de janeiro, que estão sob investigação da Polícia Federal e Supremo Tribunal Federal (STF).

Para ele, ações do STF e também do TSE estão inibindo os extremistas. O ataque do Judiciário às fontes de financiamento do extremismo, na opinião do professor, tem surtido resultado e afetou tanto a criação quanto a distribuição de conteúdos de desinformativos ou falsos. No Telegram, por exemplo, a queda do número de usuários nestas redes chegou a 30%, aponta.

Narrativa convence mais radicais

Segundo a cientista política Camila Rocha, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a preocupação tanto de Bolsonaro quanto Michelle de se pronunciarem sobre o episódio mais recente das joias é um claro sinal de que houve prejuízos para o capital político de ambos.

A narrativa dos apoiadores é que se trata de "uma trama da grande mídia para desgastar Bolsonaro", diz ela, que monitora e faz pesquisas qualitativas com grupos de direita. "[Esse episódio das joias] teve uma repercussão muito grande e ficou muito conhecido, inclusive na mídia internacional."

No entanto, ainda que tenha ocorrido desgaste de imagem, Rocha sustenta que, para os apoiadores radicais, a narrativa montada pelo clã Bolsonaro, de que se trata de um alvoroço e de que nem ele nem Michelle tinham a intenção de ficar com as joias, deve prevalecer neste grupo.

Malu Delgado para Deutsche Welle Brasil, em 17.03.23

Juízes em Haia expedem mandado de prisão contra Putin

Tribunal Penal Internacional aponta suspeitas de que o presidente russo seria responsável pelo crime de guerra de deportação ilegal de crianças da Ucrânia.

O Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda, emitiu nesta sexta-feira (17/03) um mandado de prisão contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin, por crimes de guerra, acusando-o de ser responsável pela deportação ilegal de crianças da Ucrânia.

Por meio de um comunicado, o tribunal acusa Putin de ser "alegadamente responsável pelo crime de guerra de deportação ilegal de população (crianças) e transferência ilegal de população (crianças) de áreas ocupadas da Ucrânia para a Federação Russa". 

Por acusações semelhantes, o TPI também emitiu um mandado para a detenção de Maria Alekseyevna Lvova-Belova, comissária para os Direitos da Criança no Gabinete do Presidente da Federação Russa.

O tribunal imputa a Putin crimes de guerra cometidos "em território ucraniano ocupado pelo menos desde 24 de fevereiro de 2022", alegando existirem "motivos razoáveis para acreditar" que o presidente russo falhou "em exercer o controle adequado sobre os subordinados civis ou militares que cometeram esses atos".

Em relação a Lvova-Belova, o TPI diz ter "motivos razoáveis para acreditar" que a comissária tem "responsabilidade criminal individual" pelos crimes de guerra relacionados com a deportação ilegal de população.

O comunicado acrescenta que os mandados são sigilosos, a fim de "proteger vítimas e testemunhas", bem como para resguardar o desenvolvimento das investigações.

Moscou nega acusações

O Kremlin não respondeu imediatamente às acusações. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Maria Zakharova, no entanto, disse que os mandados de prisão do TPI "não têm significado para nosso país, inclusive do ponto de vista jurídico".

Ela acrescentou que a Rússia não integra o Estatuto de Roma, tratado que sustenta o tribunal que julga crimes de guerra de todo o mundo.

Moscou nega as acusações de que suas forças cometeram atrocidades durante a invasão ao país vizinho. Mas não esconde que tem um programa por meio do qual levou milhares de crianças ucranianas à Rússia, apresentando-o como uma campanha humanitária para proteger órfãos e crianças abandonadas nas zonas de conflito.

Rússia e Ucrânia não são Estados-membros do TPI, e Moscou tem repetidamente dito que não reconhece sua jurisdição. Mas uma decisão da Ucrânia de 2015 deu ao tribunal jurisdição sobre crimes de guerra cometidos em seu território, mesmo se protagonizados por cidadãos russos ou de outros países que não são membros.

O mandado expedido pelo TPI obriga seus Estados-membros a prender Putin ou Lvova-Belova se eles pisarem em seus territórios, mas a corte não tem uma força policial própria ou outras maneiras para executar seus mandados.

Investigação começou há um ano

O promotor do TPI, Karim Khan, abriu uma investigação sobre possíveis crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio na Ucrânia há um ano. Após quatro viagens ao país, ele destacou que estava analisando os supostos crimes contra crianças e também os alvos da infraestrutura civil atingidos por bombardeios russos.

No dia 14 de fevereiro, o Departamento de Estado dos EUA divulgou um relatório no qual aponta que a Rússia teria enviado ao menos 6 mil menores ucranianos, com idades que variam de quatro meses a 17 anos, para campos de reeducação política ou os teria inserido no sistema de adoção do país.

Pesquisadores da Universidade de Yale identificaram ao menos 43 campos ou instalações na Crimeia ou na Rússia para onde foram levadas crianças ucranianas como parte de "uma rede ampla sistemática" operada por Moscou desde o início da invasão.

Entre as crianças, estão as consideradas órfãs pela Rússia, as que estavam em instituições ucranianas antes da invasão, algumas que possuem pais ou que estavam sob a tutela de algum parente e também menores cuja tutela é incerta devido à guerra.

O relatório indica ainda que pais ucranianos são pressionados a permitir o envio dos filhos aos campos com a promessa de retorno deles. No entanto, há relatos de famílias que perderam o contato com as crianças e de menores que permanecem nesses locais por um tempo muito maior do que o prometido por agentes russos.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 17.03.23

quinta-feira, 16 de março de 2023

Dificuldades de Lula para governar têm um defeito de saída

Bronca dada em público durante reunião com ministros revela uma séria desarticulação, apesar de o presidente jogar com time experiente

O presidente Lula e o ministro da Casa Civil, Rui Costa, durante evento da Frente Nacional de Prefeitos, em Brasília Foto: Wilton Júnior/Estadão - 14/3/2023

Lula está jogando com um time velho e experiente. É o que torna maior a surpresa com as dificuldades que o presidente exibe até aqui para governar.

A recente bronca dada em público em reunião com 19 de seus 37 ministros revelou uma séria desarticulação. Que aponta um defeito de saída: a falta de conjunto e de um sentido e direção.

A mesma bronca dada nos ministros havia sido aplicada pelo presidente da Câmara no presidente da República. Aparentemente com razão, Arthur Lira se queixa da lentidão de Lula em compor os entendimentos políticos que definem a ocupação de comissões e a distribuição geral de cargos.

O problema, apontou Lira, é que sem essas definições (que ainda estão em curso) não existe a tal “base” para votações. Note-se que essa advertência foi formulada antecipando vulnerabilidades do governo para garantir no Congresso a permanência de mecanismos com impacto na arrecadação (o voto de qualidade no Carf é um entre vários exemplos).

A causa da “lentidão” pode ser vista como prudência. No caso atual de Lula, parece ser hesitação. Por sua vez, compreensível: o presidente tem sido alertado para o fato de que, mesmo distribuindo verbas e cargos, os partidos que compõem a tal “frente ampla” não garantem automaticamente maiorias no Congresso.

Mais de um interlocutor do presidente observou que ele oscila entre, por um lado, dar ouvidos a sua velha-guarda, que pensa que venceu as eleições de 1989. E, por outro, em compor um programa de governo com correntes políticas que, na maçaroca ideológica brasileira, cada vez mais se voltam para suas questões regionais.

Governo Lula usa modelo sem transparência para repasses indicados pelo Congresso

Lula abre ‘porteira’ de cargos a União Brasil e MDB para ganhar aliados e barrar CPI

Sabia-se bem antes de outubro passado que o Lula 3 jamais teria o conforto de uma lua de mel pós-eleições, aspecto agravado pela pequena margem da vitória. A “calcificação” da polarização não recuou. É significativo registrar o grau de desconfiança que perdura em relação ao atual presidente por dirigentes de vários setores da economia, especialmente finanças e agroindústria.

E vice-versa. “Não vou governar para o mercado”, tem dito o presidente. Lula considera que as percepções de agentes econômicos, sobretudo quanto a riscos fiscais, são moldadas por aspectos político-ideológicos – entre eles, um acentuado antipetismo. Que não são passíveis, portanto, de “pacificação”.

Dificuldades para escalar um governo, coordenar vários partidos, assegurar maiorias no Parlamento e atender a demandas sociais e dos agentes de mercado são da natureza da política e valem para qualquer dirigente. O problema para Lula 3 é quando ecoa em cada um desses segmentos, da política e da economia, a mesma pergunta: qual é o plano dele?

William Waack, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16;03.23

Crise populacional está encolhendo a Rússia e tornando Putin mais perigoso; leia a análise

País perdeu 3 milhões de habitantes em 30 anos; taxa de natalidade baixa e de mortalidade alta devem levar russos a declínio populacional

Crianças russas perto de propaganda de guerra em Moscou  Foto: Dmitri Lovetsky/ AP

A Rússia está em uma espiral de morte demográfica. No longo prazo, isso é má notícia para o país. Mas no curto prazo, isso é má notícia para os vizinhos, porque Vladimir Putin pode estar em busca de soluções militares para o problema populacional.

(Thomas Friedman: Putin e Netanyahu provam por que coisas ruins acontecem para líderes ruins()

O número de mortes ultrapassa o de nascimentos quase todo ano na Rússia desde o fim do comunismo. A população russa atingiu seu pico em 1993, em 148,6 milhões. No início de 2022, havia estimados 145,6 milhões de habitantes na Rússia. O declínio é de apenas 2%, mas em comparação a população dos Estados Unidos cresceu 33% de 1990 a 2020.

O Banco Mundial calcula que a expectativa de vida dos russos no instante do nascimento é de apenas 71 anos; nos EUA é de 77. A disparidade é ainda mais dramática entre homens: nos EUA, sua expectativa de vida é de 75 anos; na Rússia, é de 66 — mais baixa do que na Coreia do Norte, na Síria ou em Bangladesh. A Rússia tem a 11.ª maior economia do mundo, mas figura na 96.ª colocação em relação à expectativa de vida.

Nicholas Eberstadt, pesquisador do American Enterprise Institute, explicou essa discrepância letal em um fascinante artigo no ano passado. O principal problema é que a taxa de nascimentos na Rússia é de apenas 1,5 filho a cada mulher — bem abaixo do nível de reposição (dois filhos por mulher).

Atualmente a Rússia é o nono país mais populoso do planeta, mas deve cair para a 22.ª posição até o fim deste século

Alcoolismo, suicídio e pandemia

Esse índice não é especialmente baixo em comparação a outros países industrializados. Mas a Rússia se sobressai por sua taxa extraordinariamente alta de mortes, particularmente de homens, causadas por doenças vasculares (ataques cardíacos, AVCs, etc.) e ferimentos (homicídios, suicídios e acidentes). Dada a renda do país e os seus níveis de escolaridade, as mortes na Rússia por essas duas causas é muito maior do que o esperado. Isso pode se explicar pelo terrível sistema de saúde pública do país, sua poluição ambiental e seus altos níveis de alcoolismo extremo e vício em drogas — o que, por sua vez, são sinais de desespero.

A já elevada taxa de mortalidade na Rússia atingiu um pico recentemente. Durante a pandemia de covid-19, entre 2020 e 2023, a Rússia teve de 1,2 milhão a 1,6 milhão de mortes em excesso, segundo The Economist. Se o número for preciso, significa que a Rússia teve mais mortes por covid do que os EUA, cuja população é mais de duas vezes maior.

Então, no ano passado, a Rússia sofreu de 60 mil a 70 mil baixas em combate na Ucrânia — mais do que em todas as outras guerras que travou desde 1945 combinadas, sem resolução à vista. “O índice-médio de mortes de soldados russos mensalmente é pelo menos 25 vezes maior do que o índice de mortos mensalmente na Chechênia e 35 vezes maior do que o índice de mortos no Afeganistão”, relata o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. E desde o início da guerra, entre 500 mil e 1 milhão de russos — a maioria jovens escolarizados — fugiram do país. Em Moscou, a escassez de homens é visível.

Declínio no horizonte

O declínio populacional tende a continuar na Rússia — que deverá ter 135 milhões de habitantes até 2050 e 126 milhões até 2100. Atualmente o nono país mais populoso do planeta, projeta-se que a Rússia caia para a 22.ª posição até o fim deste século .Demografia, em certo sentido, é destino. Os dias da Rússia enquanto grande potência estão contados.

Putin é bastante consciente do problema e fala disso o tempo todo. Em setembro de 2021, ele se lamentou afirmando que a Rússia poderia ter uma população de 500 milhões não fosse a derrota do Império Russo após a Revolução de 1917 e a dissolução, em 1991, da União Soviética, que ele qualificou como “a maior catástrofe geopolítica do século”.

Putin tem tentado em vão todas as maneiras normais de reverter essa tendência, de oferecer incentivos financeiros para cidadãos terem mais filhos a tentar atrair imigrantes da Ásia Central. Sua invasão à Ucrânia pode ser considerada um estratagema para aumentar a população russa à força.

A Rússia ocupa territórios ucranianos anteriormente habitados por 8 milhões de pessoas — muitas das quais morreram, fugiram ou foram deportadas para a Rússia. O fato de os russos terem sequestrado pelo menos 11 mil crianças ucranianas parece especialmente sinistro sob a luz do déficit nos nascimentos na Rússia.

A única coisa que o “loop demográfico apocalíptico” faz com Putin é deixá-lo ainda mais desesperado e perigoso

Aumentando a população à força?

Stephen Sestanovich, ex-embaixador americano que circulou por repúblicas soviéticas e atualmente é meu colega no Council on Foreign Relations, disse-me que Putin é motivado por “um delírio febril de declínio”. O despovoamento da Rússia, afirmou ele, “alimenta o senso apocalíptico de Putin a respeito de suas responsabilidades grandiosas. Se você está preocupado com uma população em declínio, talvez conquistar 40 milhões de pessoas no país vizinho resolva o seu problema”.

É claro que, ao tentar resolver o déficit russo em recursos humanos, Putin apenas o exacerba. Mas, lamentavelmente, não há evidência de que a Rússia esteja exaurindo seu estoque de homens dispensáveis para mandar lutar na Ucrânia. Estimados 7,2 milhões de russos têm entre 18 e 26 anos. Putin conseguiu mobilizar 300 mil soldados no ano passado com pouca dificuldade, e outra conscrição pode estar prevista para o futuro próximo. Putin poderá ter mais dificuldade em manter sua promessa de expandir o Exército de 1,1 milhão para 1,5 milhão de soldados até 2026, mas não precisa de outros 400 mil combatentes para continuar infligindo grande sofrimento sobre o povo da Ucrânia.

No curto prazo, a perda de tantos emigrantes poderá na verdade ajudar Putin a consolidar seu controle. “As pessoas problemáticas foram embora, e as que ficaram são as pessoas que o regime precisa para sustentar a si mesmo e à guerra”, afirmou Alina Polyakova, presidente do Centro para Análise Política Europeia.

Portanto, há pouca esperança de que os apuros demográficos da Rússia diminuam a ameaça que ela apresenta no futuro próximo. A única coisa que o “loop demográfico apocalíptico” faz com Putin é deixá-lo ainda mais desesperado e perigoso. 

Max Boot para o The Washington Post. Publicado em português/Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 16.03.23. Tradução de Augusto Calil.

Leonor de Borbón: ex officio, rainha; por profissão, militar e emprego, capitão-general

Os três anos nas academias militares farão da princesa das Astúrias mais um membro das Forças Armadas, tal como o pai e o avô

Princesa Leonor após o seu discurso na cerimónia de entrega dos prémios da Fundação Princesa de Girona, em julho do ano passado. (Foto: GIANLUCA BATTISTA)

Ainda não se sabe que grau universitário a princesa das Astúrias irá tirar quando terminar a sua formação militar, em 2026. É certo que fará uma carreira e provavelmente uma pós-graduação. Seu pai, Felipe VI, o primeiro monarca espanhol com diploma universitário, estudou Direito na Universidade Autônoma de Madri e obteve o mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Georgetown (Washington). Mas a primeira profissão de Felipe VI, como a de seu pai, Juan Carlos I, é a de soldado. Será também o da sua filha Leonor.

A princesa das Astúrias poderia ter conhecido a fundo as Forças Armadas sem ter de passar três anos nas academias militares. Várias universidades espanholas oferecem mestrados oficiais em Segurança e Defesa, como o ministrado pelo Instituto Universitário Gutiérrez Mellado em colaboração com a UNED. A Escola Superior das Forças Armadas (Esfas), do Ministério da Defesa, também oferece cursos que incluem visitas a unidades militares.

Mas não é só que a herdeira do trono da Espanha conhece os militares, mas é um deles. Leonor de Borbón y Ortiz vai integrar, com o primeiro escalão, as promoções que saem em 2027 das academias do Exército, da Marinha e do Exército Aeroespacial. E ela subirá no mesmo ritmo que eles, pelo menos até suceder seu pai no trono, gerando laços de afeto e cumplicidade com seus companheiros de armas. Passados ​​35 anos, Felipe VI continua a frequentar o jantar anual de confraternização celebrado pelos membros da sua promoção.

Os juízes administram a justiça em nome do Rei, mas o Rei não é juiz, nem diplomata, embora assine as credenciais dos chefes de missão e se diga dele que é "o melhor embaixador da Espanha". Em vez disso, ele é um militar. A Monarquia sempre andou de mãos dadas com a milícia. O artigo 62.º da Constituição atribui a quem ocupe o cargo de Chefe de Estado o comando supremo das Forças Armadas, sendo que a Lei das Carreiras Militares, de 2007, atribui-lhe exclusivamente o cargo de capitão-general dos três exércitos; capitão-general no caso de ser mulher. A futura rainha devia ser, portanto, uma militar profissional; caso contrário, argumentam especialistas militares, ele não poderia usar o uniforme em atos protocolares

É surpreendente, porém, que o modelo de carreira desenhado para a herdeira seja o mesmo que seu pai seguiu, há mais de três décadas. O decreto publicado nesta quarta-feira no BOE reproduz textualmente o de 17 de setembro de 1999,que regulou a carreira militar de Felipe de Borbón, tanto no que diz respeito ao seu regime de promoção como à guarda da sua ficha militar na Zarzuela. As diferenças entre os dois decretos estão no preâmbulo, já que o atual destaca que a entrada de Leonor de Borbón nas academias militares “reforça o papel cada vez mais relevante das mulheres nas Forças Armadas”. E também no facto de, quando foi aprovado o decreto sobre a carreira militar de Felipe VI, por lei de 1999, já ter concluído o seu ciclo de formação em academias militares, regido por um plano de estudos e sucessivos decretos que o nomeavam tenente-cadete ou cavaleiro aspirante.

Salvando a distância entre os programas educacionais atuais e os de então, o itinerário que a filha mais velha dos Reyes seguirá será o mesmo de seu pai: um ano na Academia Geral Militar de Zaragoza, outro na Escola Naval de Marín e outro na San Javier Air Academy. Com o Exército, você aprenderá os rigores da vida militar, com saídas de campo e manobras; Ele navegará com a Marinha no navio-escola Juan Sebastián de Elcano —embora seja previsível que não faça toda a viagem—; e com a Força Aérea aprenderá a pilotar os aviões de instrução, o T-35 Pillán e o novo PC-21 Pilatus. Seu pai e seu avô também fizeram curso de piloto de helicóptero.

Leonor de Borbón terá uma equipa de apoio ao seu treino militar liderada por um tutor. Segundo diversas fontes, essa função poderia recair sobre a tenente-coronel Margarita Pardo de Santayana, filha do ex-chefe do Estado-Maior do Exército Alfonso Pardo de Santayana, estacionada na Sala Militar do Rei.

Quando em 2027 receber o cargo de tenente dos exércitos da Terra e do Ar e o de alferes de um navio da Marinha, a princesa das Astúrias não obterá, como os seus colegas, a licenciatura em engenharia do centro universitário associado à correspondente academia militar , já que seu plano se concentrará no treinamento estritamente militar. Para ter um grau civil você terá que ir para uma universidade, pública ou privada.

Margarita Robles, Ministra da Defesa: "Leonor vai frequentar treino militar durante três anos"

A Ministra da Defesa, Margarita Robles, depois de participar nos eventos do 212º aniversário da Batalha de La Barrosa, ocorrido em Chiclana de la Frontera (Cádiz).Foto: EFE/ROMÁN RÍOS 

Miguel González, o autor deste artigo, é o responsável pelas informações sobre diplomacia e política de defesa, Casa del Rey e Vox no EL PAÍS. Formou-se em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) em 1982. Trabalhou também no El Noticiero Universal, La Vanguardia e El Periódico de Cataluña. Especialista em aprender.Publicado originalmente no EL PAÍS, em 16.03.23

TCU manda Bolsonaro entregar joias dadas pela Arábia Saudita

Itens de luxo hoje no acervo privado do ex-presidente deverão ficar sob custódia da Presidência da República até decisão final sobre tema. Corte determina ainda auditoria sobre todos os presentes recebidos por Bolsonaro.

Joias dadas de presente pela Arábia Saudita e apreendidas no Aeroporto de GuarulhosFoto: Amanda Perobelli/REUTERS

O ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) decidiram nesta quarta-feira (15/03) que o ex-presidente Jair Bolsonaro deve entregar ao poder público o pacote de joias que recebeu da Arábia Saudita e está em seu acervo privado, composto por um relógio, um par de abotoaduras, uma caneta e um tipo de rosário islâmico, todos da marca de luxo suíça Chopard.

A decisão, tomada por unanimidade, estipula prazo de cinco dias úteis para que os objetos sejam entregues à Secretaria-Geral da Presidência da República. A ordem revisa uma decisão individual tomada na semana passada pelo ministro Augusto Nardes, do TCU, que havia proibido Bolsonaro de vender ou usar os bens, mas os manteve sob sua posse.

Os objetos de luxo deverão ser mantidos sob custódia até que o TCU decida o mérito da matéria. Os ministros também determinaram que seja realizada uma auditoria sobre todos os presentes recebidos por Bolsonaro durante seu período como presidente.

Acervo público da Presidência

Esse pacote de joias foi trazido ao Brasil pela comitiva do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e o próprio Bolsonaro reconheceu que elas estavam em seu acervo privado.

Contudo, uma decisão de 2016 do TCU estabeleceu que objetos de valor, como joias, recebidos pelos presidentes da República como presentes de outros países pertencem ao acervo público da Presidência da República – somente itens de menor valor e de caráter personalíssimo, como roupas ou um perfume, poderiam ser incorporados ao acervo privado do mandatário.

Um outro pacote de joias dado de presente pela Arábia Saudita a Bolsonaro, composto por um colar, um relógio e um par de brincos de diamantes e avaliado em R$ 16,5 milhões, foi apreendido pela Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos em 2021, após ser localizado na bagagem de um integrante de uma comitiva do governo brasileiro que fez uma viagem oficial ao país árabe.

O governo Bolsonaro tentou diversas vezes liberar esse pacote de joias, sem sucesso, que segue sob a custódia da Receita Federal.

O ex-ministro Albuquerque disse inicialmente que essas joias seriam um presente para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Nesta terça-feira, porém, em depoimento à Polícia Federal, ele mudou sua versão e disse que em nenhum momento foi dito a ele que as joias eram destinadas a Jair ou Michele Bolsonaro, mas seriam "presentes de Estado".

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 13.03.23

Os diamantes são os melhores amigos de uma garota

O Estado brasileiro tem que decidir até quando a família Bolsonaro terá um cheque em branco para fazer todo mundo de bobo. Será que são intocáveis?

Família Bolsonaro declarou joias sauditas como bens de caráter "personalíssimo"Foto: EVARISTO SA/AFP

Não me surpreendeu a notícia de que a família Bolsonaro recebeu as joias da Arábia Saudita como bens de caráter "personalíssimo". Nada mais normal do que o presidente e sua esposa receberem joias no valor de quase R$ 17 milhões como um presente pessoal. Ainda mais quando o remetente for o governo de um país com o qual o Brasil estava, na época, negociando acordos.

Bom, falando sério: ainda mais espantoso é ver o vídeo no qual o coronel Mauro Cid, o faz-tudo do presidente, organiza a retomada das joias aprendidas pela Receita Federal em São Paulo, poucas horas antes da fuga presidencial para a Flórida, no fim de dezembro. Havia um avião da FAB, além diárias pagas para que o sargento Jairo Moreira da Silva pudesse ir a São Paulo, onde tentou vários truques para liberar as peças.

De onde a família Bolsonaro tira esses fieis faz-tudos? Antes, era o Fabrício Queiroz, o faz-tudo do Jair e do Flávio, além da família do Adriano da Nóbrega, claro. Agora é uma turma de militares. Ainda tem Frederick Wassef, o advogado do clã, que até emprestou sua casa em Atibaia para o Queiroz se refugiar.

Falando nisso: já sabemos algo sobre os cheques no valor de R$ 89 mil depositados pelo Queiroz na conta da Michelle Bolsonaro? Nunca saberemos, penso, assim como não haverá consequências para a família Bolsonaro – nem pelo caso das rachadinhas, nem por este novo, das joias sauditas. Aparentemente, existem castas aqui no Brasil que são intocáveis.

A Justiça não atuou de forma pesada contra as falas misóginas e racistas de Bolsonaro quando ele era deputado, nem quando "dedicou" seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff a um monstro torturador. Sem falar da multa ambiental emitida pelo Ibama a Jair por pescar em local proibido em Angra dos Reis. Foi logo anulada quando o Jair virou presidente.

E tenho a sensação que nem esse novo caso fará com que Bolsonaro perca seus súditos. A percepção da realidade é subjetiva, os seguidores ferrenhos desculpam qualquer deslize do seu herói. Sabemos que isso também se aplica à esquerda, onde o PT está criando a narrativa de que a Lava Jato foi apenas uma invenção de uns juízes e promotores. E nada mais.

Segundo essa narrativa, devemos ser mais pragmáticos e menos moralistas. Afinal, "corrupção existe em todos os lugares". Conforme esse argumento, o importante é a governabilidade, pois o caos e a anarquia devem ser evitados a qualquer preço, para garantir a sobrevivência da sociedade. O governo Lula manter ministros suspeitos de corrupção e de ligações com milicianos entristece. "Mas, teremos, pelo menos, a salvação da Floresta Amazônica em troca".

P.S.: Aí me pergunto, por que o Lula não simplesmente declarou o triplex no Guarujá ou o sítio de Atibaia como presentes personalíssimos, para acabar com os problemas judiciais? Solução simples.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Thomas Milz, o autor deste artigo, é  Jornalista e fotógrafo. Publicado originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 15.03.23

quarta-feira, 15 de março de 2023

Podres de Bolsonaro dão tempo a Lula

O efeito subjacente dos sucessivos escândalos foi tirar do foco as cobranças para que o governo comece a mostrar a que veio

Bolsonaro e o príncipe Mohammed bin Salman em visita feita a Riade em 2019. Brasil e Arábia Saudita fortaleceram relações nos últimos anos — Foto: José Dias/PR

Não para de aparecer podre do governo de Jair Bolsonaro, à base de mais de um por dia, desde que começaram a cair sigilos de cem anos e outros obstáculos à transparência deixados como legado pela administração anterior.

Nos escândalos mais recentes, da devassa ilegal na Receita Federal contra adversários do ex-presidente à arapongagem da Abin com equipamento israelense, passando pelo mais faiscante, as joias sauditas, fica evidente como traço comum a tentativa de sequestrar as instituições de Estado para fins privativos do candidato a autocrata, ora para perseguir desafetos, ora para proteger parentes e apaniguados, quando não para se locupletar mesmo.

A comprovação de que o projeto de poder bolsonarista incluía o aparelhamento total dos órgãos de Estado para fins políticos permite entender melhor alguns episódios recentes, como o vale-tudo nunca antes visto para tentar a reeleição, com uso de bilhões em recursos públicos, a campanha incessante para desmoralizar a Justiça Eleitoral, a depressão quando nada disso funcionou, a fuga para os Estados Unidos e a tentativa de golpe de 8 de janeiro.

Como tudo malogrou, resta a dúvida quanto à volta de Bolsonaro, a sua capacidade de ainda liderar o que restou da extrema direita, à viabilidade do plano tabajara de fazer da mulher, que nunca foi da política, um chamariz de votos e, principalmente, ao ex-mandatário finalmente prestar contas à Justiça por tantos malfeitos, os anteriores a ocupar incidentalmente a Presidência e, sobretudo, os que cometeu durante esses quatro anos.

Com tanto BO bolsonarista aparecendo, o efeito subjacente foi tirar do foco as cobranças que vinham se avolumando para que o governo Lula efetivamente começasse a mostrar a que veio nas áreas-chave, notadamente na economia e na governabilidade legislativa — que são interdependentes.

Fernando Haddad e a equipe econômica tiveram certo sossego, longe do fogo amigo da ala política e da cobrança do mercado e da imprensa, para montar um marco fiscal que será apresentado a Lula e, se aprovado, enviado ao Congresso. Mas o prazo para que ele seja conhecido a tempo de influenciar positivamente na reunião do Copom da próxima semana e levar o Banco Central a acenar com um início próximo da redução da taxa de juros vai se tornando exíguo, quiçá inviável.

Expor, repudiar e investigar os crimes de Bolsonaro são tarefas republicanas e esperadas de um governo eleito para representar justamente o oposto do anterior. A gravidade e o volume do que era urdido nos porões do Estado mais que justificam que essa seja uma pauta prioritária para nós, jornalistas, para a Justiça e para o Executivo. Mas a economia vive de presente e de expectativa, e a popularidade de um governo se dá, num país polarizado, mais pela geração de bem-estar econômico que pelo contraponto do tipo “nós x eles”.

No Q.G. do PL, partido que está chateado com a água no chope dos seus planos de lucrar com a popularidade minguante do casal Bolsonaro, existe a avaliação de que Lula está gostando de manter o ex-presidente nos holofotes para ficar protegido de cobranças mais duras. Para a cúpula do partido, até a volta de Bolsonaro ao Brasil seria positiva a Lula, porque exacerbaria o desgaste do ex-presidente, que seria prontamente instado a depor na Polícia Federal por episódios como as joias das Arábias e o 8 de Janeiro.

Pode ser, e certamente esse temor é causa das sucessivas esticadas de Bolsonaro em seu exílio com ares de fuga. Mas para Lula o prazo de validade dessa trégua vai se extinguindo. E os fatos de os projetos não ganharem a luz do dia e de o Congresso não dizer que apito tocará, do governo ou da oposição, em breve podem se transformar numa primeira crise que nem o esgoto bolsonaresco mais fétido será capaz de esconder.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista e apresentadora do Roda Viva na TV-Cultura. Publicado originalmente n'O Globo, em 15.03.23

Governo Lula usa modelo sem transparência para repasses indicados pelo Congresso

Gestão Lula adota padrão de negociação que mantém em segredo o nome de parlamentares que definem destino de verbas federais; procuradora aponta ‘continuidade’ do orçamento secreto

Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão. Foto: Wilton Junior/Estadão

No toma lá, dá cá com o Congresso, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai começar a transferir bilhões de reais do caixa federal para aumentar a base de apoio, sem qualquer transparência. O Palácio do Planalto elaborou um modelo de negociação que mantém em segredo o nome dos parlamentares que definirão para onde vão os recursos públicos que ficam sob controle dos ministérios, retomando uma prática amplamente adotada no orçamento secreto pelo orçamento secreto pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

No começo do mês, três ministros do governo assinaram portaria para estabelecer como vai ser o processo de pagamento de emendas parlamentares – verbas indicadas por deputados e senadores para suas bases eleitorais e repassadas pelo Executivo em troca de apoio político no Legislativo.

O documento não estabelece nenhuma medida para tornar público quem serão os congressistas atendidos pelas verbas controladas pelo governo. Além disso, Lula vetou uma proposta que identificava parte dos recursos de maior interesse dos parlamentares e permitia um nível de acompanhamento dos repasses.

Parte do montante é o espólio do orçamento secreto, derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Inclui ainda outras verbas incluídas pelos parlamentares no Orçamento de 2023. No total, Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão, que pressionam Lula a liberar o dinheiro.

Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão.

São verbas para bancar, por exemplo, pavimentação de ruas, construção de rodovias, compra de tratores e manutenção de postos de saúde. Como o Estadão revelou, durante o funcionamento do orçamento secreto, parlamentares escolhidos a dedo pelo governo Bolsonaro promoveram compras com indícios de sobrepreço, contratação direcionada de empresas de amigos e familiares dos políticos e concentração de recursos em redutos do Centrão. Em dezembro, o Supremo declarou o orçamento secreto inconstitucional.

Portaria

Parte da premissa do orçamento secreto foi ressuscitada na portaria assinada pelos ministros Simone Tebet (Planejamento), Esther Dweck (Gestão) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais). O documento entregou a Padilha o poder de centralizar a negociação com o Congresso de verbas controladas diretamente pelo Executivo, sem necessidade de equidade na divisão dos recursos ou transparência na indicação.

A fonte dos recursos é o dinheiro que alimentou o esquema de Bolsonaro, mas que fora transferido para outra rubrica orçamentária, chamada de RP2 – antes era RP9.

Com Bolsonaro, a negociação sobre quem teria acesso ao dinheiro estava exclusivamente nas mãos de um grupo de parlamentares, entre eles o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Agora, a decisão terá de passar pela pasta de Padilha. O que não significa que Lira perdeu força. Como comanda a pauta da Câmara e do Centrão, as negociações passarão obrigatoriamente por ele.

Orçamento de 2023 contempla mais R$ 15 milhões para a segurança de Lula

O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, por exemplo, tem R$ 2 bilhões para obras, que vão desde a compra de tratores até a pavimentação de ruas. Os parlamentares escolhidos pelo governo Lula poderão dizer em que cidade irão aplicar os recursos como “pagamento” por votarem a favor do governo. Também foram reservados R$ 54 milhões para abastecimento de água no sertão de Alagoas, reduto de Lira.

A procuradora Élida Graziane, do Ministério Público de Contas de São Paulo, disse que a portaria do governo Lula restabelece o orçamento secreto.

‘Continuidade’

“Não vejo uma mudança de um modelo para outro, eu vejo uma continuidade, com um regime híbrido para frustrar a decisão do Supremo e manter tudo exatamente igual”, afirmou a procuradora. “Há uma fortíssima tendência de a execução repetir o que foi o orçamento secreto, que é liberar o dinheiro sem aderência ao planejamento, de forma discriminatória, sem transparência em relação aos beneficiários e escolhendo o beneficiário sem nenhum filtro”.

O Supremo declarou o orçamento secreto inconstitucional por se tratar de um esquema sem transparência, sem planejamento, que concentrou recursos em redutos eleitorais sem equilíbrio regional e envolveu desvios. Lula criticou o mecanismo durante a campanha eleitoral, classificando o modelo como uma “excrescência”.

Em resposta ao Estadão, a assessoria de Padilha afirmou que a destinação dos recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso “em conformidade com o padrão da Lei Orçamentária adotada há muitos anos”. O governo prometeu dar transparência aos atos, mas, questionado pela reportagem, não apontou onde o cidadão poderá consultar os nomes dos parlamentares beneficiados pelos recursos.

Assessoria de Padilha afirmou que a destinação dos recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso 'em conformidade com o padrão da Lei Orçamentária adotada há muitos anos'.

Assessoria de Padilha afirmou que a destinação dos recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso 'em conformidade com o padrão da Lei Orçamentária adotada há muitos anos'. Foto: Wilton Junior/Estadão

“Até o momento, ainda não houve empenho de nenhum valor nessa rubrica. No futuro, ao serem empregados, esses recursos cumprirão critérios técnicos e seguirão absolutamente todos os padrões de transparência da administração pública, com relação a proponentes, órgãos federais envolvidos e ritmo de execução e de liberação de recursos”, destacou Padilha.

O Planejamento, comandado por Tebet, disse que os ministérios não são obrigados a seguir a indicação de parlamentares para as verbas do RP2. Questionado como será dada transparência e como garantir que a negociação não repita o orçamento secreto, a pasta respondeu: “As dotações classificadas com RP2, oriundas ou não de emendas, são executadas pelos órgãos sem o requisito de observância de indicações parlamentares, recaindo sobre o órgão a gestão da execução da despesa”.

Outra medida que reduz a transparência foi a decisão de Lula de vetar uma proposta na Lei Orçamentária Anual (LOA) que separava os recursos autorizados pelo Congresso após a aprovação da PEC da Transição em uma fonte específica. Na prática, a medida colocava uma “digital” nas verbas e permitia um mínimo de acompanhamento do caminho do repasse.

Agora, a gestão petista misturou as programações às demais despesas que estão sob controle do Palácio do Planalto, tornando impossível identificar o que é recurso direto do governo e o que é liberação para atender a interesse de aliados. O Executivo argumentou que a “digital” colocada pelo Congresso não cumpria o objetivo de identificar tecnicamente a fonte do recurso para bancar as despesas.

Para entender: a distribuição de verbas para congressistas

Governo Bolsonaro

Recursos do orçamento secreto eram carimbados como emenda de relator-geral (RP9) e liberados pelos ministérios conforme pedido de parlamentares aliados

Quem definia os beneficiados e a divisão interna era cúpula do Congresso, com controle maior do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL)

Os nomes dos parlamentares contemplados foram mantidos em segredo, assim como os critérios para a distribuição dos recursos

Em 3 anos, governo Bolsonaro liberou R$ 45 bi do orçamento secreto para atender aliados em troca de apoio político no Congresso

Governo Lula

O Executivo define o pagamento da maior parte dos recursos para investimentos e manutenção dos órgãos públicos, com o carimbo das despesas discricionárias (RP2)

Foi criado um modelo de repasse da verba concentrando a negociação no gabinete do ministro Alexandre Padilha, que receberá as indicações de parlamentares

Governo não é obrigado a atender os parlamentares na hora de destinar a verba, mas é pressionado a liberar conforme a indicação de deputados e senadores

Não há nenhum instrumento para dar transparência a essas indicações

Lula terá R$ 100 bi para gastar livremente e atender aliados, incluindo espólio do orçamento secreto, recursos negociados na PEC da Transição e verba para novatos

Daniel Weterman e Felipe Frazão, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 15.03.23