sexta-feira, 28 de novembro de 2025

'Se pensar só em proteína e carboidrato, o pão vira inimigo'

Há 25 anos, a chef de cozinha Rita Lobo lançava o site Panelinha com um intuito simples: ensinar qualquer pessoa a cozinhar em casa para ter uma alimentação mais saudável baseada em comida de verdade.

Rita Lobo durante entrevista

A ideia era ajudar o público, de forma simples e democrática, a evitar os chamados ultraprocessados, alimentos feitos majoritariamente com ingredientes industriais, aditivos químicos e poucos itens in natura.

A missão se provou cada vez mais relevante: os alimentos ultraprocessados já respondem por cerca de 20% das calorias diárias ingeridas pela população brasileira, segundo um estudo pesquisa da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

No mundo, os dados são ainda mais alarmantes: em alguns países de alta renda, como o Reino Unido, os alimentos ultraprocessados já respondem por mais de 50% das calorias consumidas, segundo estudo da revista Lancet.

Neste mês de novembro, a mesma publicação científica lançou uma série especial focada nos efeitos dos alimentos ultraprocessados sobre a saúde humana.

O conjunto reúne três artigos assinados por 43 pesquisadores de diferentes países e pede adoção de políticas públicas que combatam o avanço dos ultraprocessados.

A chef brasileira foi uma das convidadas para o lançamento presencial, em Londres, e conversou com a BBC News Brasil sobre a responsabilidade da indústria, o papel das políticas públicas e o desafio de tornar a comida de verdade acessível em um mundo cada vez mais dominado por produtos ultraprocessados.

Confira a entrevista abaixo.

Rita Lobo: 'Se pensar só em proteína e carboidrato, o pão vira inimigo'

BBC News Brasil  - Se precisasse traduzir o que essa série traz para um público leigo, como faria?

Rita Lobo - Eu diria assim: "Leia a lista de ingredientes do rótulo. Se tiver nomes de coisas que você não tem na sua cozinha, deixe no supermercado".

O que a revista está dizendo é que esses produtos que parecem comida, têm cheiro de comida, têm sabor de comida, na verdade, são formulações industriais que o corpo não entende mais como comida.

E, em função disso, o consumo desses produtos, que tira da mesa a comida de verdade, está adoecendo as populações.

Os índices de obesidade no mundo só crescem, e com eles crescem as doenças crônicas não transmissíveis, como doenças coronárias, diabetes, alguns tipos de câncer e até problemas ligados à saúde mental.

O que a Lancet está dizendo é que não basta só os indivíduos fazerem escolhas melhores. São necessárias políticas públicas que levem comida de verdade às pessoas e que dificultem o acesso e o consumo dos ultraprocessados.

BBC News Brasil - Como reconhecer um ultraprocessado?

Rita Lobo - O principal é a lista de ingredientes. Mas também existe uma lógica: é um produto pronto para comer, que você não precisa cozinhar?

E é importante saber o que é comida de verdade, que é aquela feita a partir de alimentos in natura ou minimamente processados. Não é só o que você compra na feira. Quando você compra um pacote de feijão, ali dentro tem feijão. Não é "feijão sabor feijão".

Um iogurte natural, por exemplo, não é ultraprocessado, porque só tem leite e fermento. Não tem adição de açúcar, adoçante, corante, saborizante ou emulsificante. É basicamente leite e fermento.

A comida de verdade é feita por mãos humanas, não é feita na fábrica, e ela leva em conta um padrão alimentar tradicional.

No Brasil, é o arroz com feijão, os legumes, as verduras, a farofinha. O problema não é a batata frita — o problema é a batata frita ultraprocessada, aquelas congeladas, cheias de amidos modificados e aditivos.

BBC News Brasil - E o que mantém as pessoas mais longe hoje de cozinhar?

Rita Lobo - Essa é uma pergunta complexa. Durante muito tempo, até os anos 90 no Brasil, as pessoas comiam mais comida de verdade. Em países como Estados Unidos e Inglaterra, isso foi até as décadas de 60 ou 70.

As mulheres não trabalhavam fora. Quando elas foram para o mercado de trabalho — o que foi essencial — os homens não ocuparam esse lugar na cozinha. E a cozinha virou uma espécie de terra de ninguém.

A indústria que antes ajudava a conservar alimentos passou a perceber que era muito mais lucrativo oferecer comida pronta, com uma validade enorme e com ingredientes cada vez mais baratos, cheios de aditivos que fazem o produto parecer comida.

Hoje, são bilhões de dólares em marketing dizendo, desde que a criança nasce, que aquelas misturinhas industriais são melhores que a comida de verdade.

E trago outro ponto: você disse que comeu ovos mexidos hoje no café da manhã. Muita gente escolhe essa refeição por ser uma fonte de proteína.

E a maioria das pessoas não diz "eu comi ovos", diz "eu comi minha proteína". "Estou evitando carboidrato simples."

Esse jeito de falar muda tudo. Quando o que você "precisa" é proteína, tanto faz se vem do ovo ou do whey. Tanto faz se você vai comer frango ou um iogurte proteico. Até o jeito de falar sobre comida é moldado por essa indústria.

A gente passa a chamar os alimentos pelo nutriente que eles entregam. E, a partir daí, tanto faz estar escolhendo comida de verdade ou um produto. Porque o foco vira o nutriente — e você começa a perder a capacidade de diferenciar o que é comida e o que não é.

BBC News Brasil - Essa onda desumaniza o jeito que a gente vê a comida?

Rita Lobo - Totalmente. Isso tem nome na nutrição: reducionismo nutricional. Quando você passa a escolher a comida só pelo nutriente que ela vai te entregar, você perde a referência do que é comida de verdade.

Até o jeito de falar muda. Em vez de "vou beber água", a pessoa diz "preciso me hidratar". E aí alguém aparece dizendo que tem algo "melhor que água", como um isotônico. E você cai nessa armadilha.

'Quanto menos a gente comer comida de verdade, mais baratos vão ficar os ultraprocessados e mais caras vão ficar as opções realmente saudáveis', diz Rita Lobo à BBC News Brasil (Crédito,Getty Images)

BBC News Brasil - Algum ultraprocessado entra na sua casa?

Rita Lobo - Quando você vira a chave, você percebe que não precisa de ultraprocessados. Pelo contrário: hoje, se alguém me oferece um "chocolate" que já nem é mais chocolate — esses confeitos com sabor de chocolate dos produtos comerciais —, para o meu paladar é doce demais, artificial demais. Não é algo que eu ache gostoso, nem algo que eu queira comer.

E eu sei, por experiência própria, que é possível ter uma alimentação baseada em comida de verdade. Mas tem duas coisas essenciais.

A primeira: não existe querer ter uma alimentação saudável e não saber cozinhar.

A segunda coisa é o planejamento. Se você decide o que vai comer só na hora da fome, você vai fazer piores escolhas.

As nossas avós já faziam isso: cardápio semanal, lista de compras, para não comprar demais nem de menos. Se você compra mais, joga comida fora — e joga dinheiro fora. Se compra menos, falta ingrediente o tempo todo: "Esqueci de comprar cebola, não dá para fazer o arroz".

Planejar é essencial, inclusive para o orçamento. E pensar em comida três vezes por dia cansa. Se você pensa nisso uma vez por semana, planejando, fica muito mais fácil manter uma alimentação saudável. Você compra melhor, cozinha mais, divide porções, congela.

Planejamento é fundamental. Aprender a cozinhar é fundamental.

E isso não é "assunto de dona de casa". É assunto da casa. É o motivo de eu ter me aproximado tanto do mundo da saúde pública, porque hoje a ciência e a medicina entendem que transformar alimentos in natura e minimamente processados em comidas gostosas é uma ferramenta poderosa para ter uma vida melhor, mais saudável — e mais saborosa também.

BBC News Brasil - E eu queria perguntar o que acha da inteligência artificial na cozinha, que é sempre um espaço tão humano.

Rita Lobo - Eu vejo de forma muito positiva, porque a inteligência artificial ajuda em coisas que as pessoas já não têm tanta habilidade.

Por exemplo: planejar. Se eu te disser agora "faz um planejamento básico de quatro dias do que você vai comer e uma lista de compras", você vai demorar muito tempo. E talvez nem faça tão bem quanto as nossas avós faziam, porque elas tinham essa habilidade.

A inteligência artificial sabe fazer isso. Você precisa saber perguntar, mas eu acho uma coisa muito boa.

Para criar receita, eu ainda não estou totalmente satisfeita. Eu adoraria que fosse melhor.

No Panelinha a gente tem uma equipe testando receitas todos os dias, das 9h às 18h.

A gente testa receita para quem mora sozinho, por exemplo. Porque quando você mora sozinho, você tem praticamente um relacionamento com o repolho. Ele dura. Mas você faz uma vez e, no dia seguinte, pensa: "de novo repolho?". Então a gente testa inúmeras formas de preparar o mesmo ingrediente.

Uma hora grelhado, outra hora assado com bacon, outra hora refogado com cominho, que muda completamente o sabor, outra hora em salada com maçã... A gente fica testando possibilidades.

A inteligência artificial ainda não está totalmente pronta para criar receitas assim, mas para planejamento eu acho que ela é muito boa.

BBC News Brasil - E falando de política pública, para quem quer cozinhar mais em casa, tem um cenário ideal que poderia ajudar e fazer alguma diferença contra esse lobby milionário dos ultraprocessados?

Rita Lobo - Quanto mais a gente cozinha e compra alimentos in natura e minimamente processados, mais a gente estimula esse mercado.

E quanto menos a gente consome ultraprocessados, mais a gente desestimula esse outro mercado. Claro que essa comparação não é simples, nem totalmente justa. Tem gente que realmente não consegue ter outro tipo de alimentação.

Aqui na Inglaterra, por exemplo, cerca de 52% das calorias vêm de ultraprocessados. Então é mais complexo.

A sensação de que cozinhar é um peso muda quando você entende que cozinhar é a melhor ferramenta que você tem para ter uma vida melhor. Quanto mais você cozinha, mais fácil fica.

Tem uma coisa que me incomoda muito — mas eu sou educada, não saio brigando com ninguém. Quando as pessoas dizem: "Ai, o que você faz é um dom. Cozinhar é uma arte. Eu acho lindo, mas não é para mim, eu não tenho mão."

Quando você diz isso, você está dizendo que ou a pessoa nasce com isso, ou nunca vai cozinhar. E não é verdade. Cozinhar é como ler e escrever: você não nasce sabendo, você aprende.

Todo mundo aprende a ler e escrever. Uns viram grandes escritores, outros não conseguem escrever uma mensagem direito, mas aprenderam. Cozinhar é a mesma coisa.

Não estou dizendo para ninguém virar chef, mas aquele básico para garantir uma alimentação saudável, saborosa e dentro do orçamento, todo mundo pode aprender.

BBC News Brasil - Você viaja bastante. Está em Londres essa semana. O que vê nos supermercados em comparação com o Brasil, com os Estados Unidos, outros países?

Rita Lobo - Caro. Esse é o primeiro ponto. Muito caro. No Brasil, hoje, comer comida de verdade custa mais ou menos o mesmo que basear a alimentação em ultraprocessados. Aqui, comer comida de verdade é mais caro, e isso você sente no supermercado. Os ultraprocessados são muito mais baratos.

Parte disso é porque no Brasil ainda se come muita comida de verdade, ainda existe mercado para isso.

Quanto menos a gente comer comida de verdade, mais baratos vão ficar os ultraprocessados e mais caras vão ficar as opções realmente saudáveis.

Outra coisa que me chama atenção em qualquer lugar que eu vou é que, quando estamos no Brasil, o melhor jeito de se alimentar é seguindo a dieta brasileira. Quando estamos na Itália, o melhor jeito é comer como os italianos.

Isso acontece porque essas culinárias foram sendo construídas a partir dos alimentos abundantes daquela região. Aqui na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, não existe um padrão alimentar tradicional tão claro, tão equilibrado.

Quando eu chego nesses lugares, eu tento buscar coisas mais frescas, que viajaram menos. Eu adoro cozinhar onde eu vou. Vou ao mercado, compro comida e tento entender os ingredientes locais.

No Brasil, por exemplo, a gente nem imagina que cheddar pode ser um queijo maravilhoso, porque a nossa referência é aquele "plástico" amarelo. Aqui você encontra queijos cheddar incríveis, com diferentes tempos de maturação. Então é isso: buscar comida local, comer o que é da região.

BBC News Brasil - Falando em comida local, o nosso PF brasileiro… Ele é tudo isso mesmo? O que os outros países podem aprender com ele?

Rita Lobo - Ele é tudo isso e muito mais. Pensa o seguinte: há cinco grupos de alimentos que a gente precisa comer.

Um grupo é o dos cereais, raízes ou tubérculos. Esses três alimentos — um cereal como o arroz, como a aveia, raiz ou tubérculo como a mandioca, como a batata — formam um grupo, porque eles têm um papel nutricional parecido.

Aí a gente precisa comer uma leguminosa, que são os feijões, o grão-de-bico, a lentilha.

Aí a gente precisa comer hortaliças, que é tudo que vem da horta: os legumes e as verduras.

A gente precisa — quer dizer, não precisa obrigatoriamente, mas pode — comer carnes e ovos.

E a gente precisa comer frutas.

Então, o PF já tem quatro desses grupos, porque ele tem o arroz, que é o cereal; o feijão, que é uma leguminosa; o bife, o frango, o ovo ou o peixe, que entram como a carne.

E aí, nas hortaliças, ora é um chuchu refogadinho, uma saladinha com tomate, a cenoura ralada… e assim por diante.

Então, o PF é uma fórmula de alimentação saudável. Ele já traz tudo isso.

E um outro ponto: o feijão tem 19 aminoácidos. Para virar uma proteína, precisava de mais um. E o arroz tem esse essa proteína essa esse aminoácido que faltava. Então, é por isso que juntos o arroz com feijão formam uma potência nutricional.

Só fica faltando a fruta, que a gente pode — e deve — comer como sobremesa, mesmo que vá comer um doce.

Giulia Granchi, da BBC News Brasil em Londres. Publicado em 28.11.25

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Irresponsabilidade institucional

A Constituição é clara ao fixar que cabe ao presidente da República indicar ministros ao STF, prerrogativa que o presidente do Senado tentou usurpar à luz do dia, na base da chantagem

Lula e Messias

Aindicação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) é prerrogativa exclusiva do presidente da República, conforme se lê em nada menos que três artigos da Constituição (52, 84 e 101). Ao Senado, segundo esses mesmos artigos, cabe aprovar ou rejeitar a indicação, depois de sabatinar o candidato. Nada mais.

Contudo, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), parece entender que tem o poder de nomear ministros do STF. Sem que nada o autorize a fazê-lo – nem a Constituição, nem os códigos morais, nem os valores republicanos –, Alcolumbre quis forçar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a indicar um protegido seu, o também senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). E o fez sem qualquer sutileza, tentando usurpar à luz do dia a competência presidencial.

Como Lula não cedeu e indicou para a vaga no STF o advogado-geral da União, Jorge Messias, Alcolumbre partiu para a vendeta e passou a ameaçar o Palácio do Planalto com a ingovernabilidade. Como apurou o Estadão, Alcolumbre disse a amigos que, a partir de agora, será “um novo Davi” e mostrará a Lula “o que é não ter o presidente do Senado como aliado”.

Como aperitivo, Alcolumbre pautou – e conseguiu aprovar – o projeto que concede aposentadoria especial a agentes comunitários, um despautério político e fiscal que já reprovamos no editorial Demagogia previdenciária (12/10/2025) e que vai impor custos bilionários ao governo. É uma tremenda irresponsabilidade por parte do presidente do Senado.

A atitude de Alcolumbre, contudo, deve ser lida para além dos interesses particulares do senador. Trata-se de mais um movimento de expansão dos poderes do Congresso sobre o Executivo. Os parlamentares hoje dispõem de substancial parcela da dotação discricionária do Orçamento, da qual fazem uso sem qualquer compromisso com políticas públicas coordenadas pelo governo federal. Ou seja, desfrutam do bônus do dinheiro do contribuinte sem o ônus político da gastança, que recai quase todo sobre o Executivo.

Agora, a julgar pelo comportamento do presidente do Senado, a intenção é dobrar o presidente à vontade dos parlamentares também em relação ao Judiciário. Isso não acontece por acaso.

Consolidou-se no Brasil a percepção de que o STF é um poderoso ator no jogo político, frequentemente chamado a mediar disputas que deveriam se limitar ao Congresso. Daí que as indicações ao Supremo têm respeitado essa característica: já não importa muito se o nomeado tem “notável saber jurídico”, e sim que possa atuar em favor do grupo político do presidente da República. Jair Bolsonaro e Lula, cada qual à sua maneira, contribuíram para essa degeneração ao escolherem nomes que, em vez de uma trajetória jurídica incontestável, demonstraram lealdade pessoal ao governante de turno.

É nessa conjuntura que o Senado, na figura de seu presidente, pretende deixar de ser apenas a instituição que chancela as escolhas ao Supremo para ter o poder de definir a composição da Corte. Por essa razão, somos obrigados a dizer que Lula fez bem em bater o pé e bancar Messias como seu nomeado, mesmo sob risco de provocar a ira de Davi Alcolumbre. Ao fazê-lo, Lula não permitiu que o Senado avançasse sobre as atribuições exclusivas do presidente da República.

Se está descontente com a indicação de Messias, o Senado e seu presidente, em particular, têm todos os meios republicanos para fazer valer a insatisfação. Basta sabatinar e avaliar o indicado, podendo rejeitá-lo caso considere que Messias não preenche os requisitos constitucionais. Mas o que se viu nos últimos dias ultrapassa o campo legítimo da divergência institucional e descamba para a extorsão.

As ressalvas ao nome de Messias, insista-se, permanecem válidas. Porém, o que está em questão é algo maior do que seu perfil: é a integridade do arranjo institucional estabelecido pela Constituição, que fixa claramente a quem cabe indicar e a quem cabe sabatinar futuros ministros do STF. 

Editorial \ Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.11.25

Morre aos 100 anos o jurista José Afonso da Silva, marco do direito constitucional

Autor de mais de 30 livros, já foi apontado como doutrinador mais citado em decisões do Supremo. Professor emérito da USP, especialista foi descrito como um dos arquitetos da Constituição de 1988


 O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, mostra livro ao jurista José Afonso da Silva, 100, durante homenagem na Faculdade de Direito da USP - Eduardo Knapp/Folhapress

Considerado uma das principais referências no direito constitucional brasileiro, o jurista e professor emérito da USP (Universidade de São Paulo) José Afonso da Silva morreu nesta terça-feira (25), aos 100 anos.

Autor de mais de 30 obras, José Afonso foi apontado em levantamento de 2013 como o doutrinador mais citado em decisões do STF (Supremo Tribunal Federal).

Ao completar 100 anos, em abril, foi homenageado por grandes nomes do direito brasileiro, como pelo então presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, durante sessão da corte e também pela ministra Cármen Lúcia, em sessão no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) sob sua presidência.

Natural do interior de Minas Gerais, José Afonso chegou a São Paulo em 1947, aos 22 anos, sem ter concluído o ensino primário. Na capital paulista, trabalhou como alfaiate enquanto completava os estudos.

Ingressou na Faculdade de Direito da USP aos 27 anos, depois de ter sido aprovado no vestibular. Mais tarde se tornou professor titular da instituição, onde lecionou até 1995. Em 2025, uma semana antes de celebrar seu centenário, recebeu o título de professor emérito.

Lançado em 1976, seu livro "Curso de Direito Constitucional Positivo" chegou à 46ª edição em 2025. "Esse é um livro que me agrada", disse em entrevista à Folha por ocasião de seus 100 anos, depois de contar que teve bastante trabalho para atualizar a obra com a Constituição de 1988. Sua obra favorita, por outro lado, conforme contou na data, era o livro "Aplicabilidade das Normas Constitucionais", publicado em 1968.

Na Assembleia Constituinte, foi assessor do senador Mário Covas, então líder do PMDB. O jurista é descrito por seus pares como um dos grandes arquitetos da Constituição aprovada em 1988.

José Afonso atuou ainda como procurador do Estado de São Paulo e ocupou cargos públicos, como o de secretário de Segurança Pública, no governo Mário Covas (PSDB).

Em celebração por seus 100 anos, ele foi homenageado em evento na Faculdade de Direito da USP marcado por discursos emocionados. Entre os presentes estiveram Luís Roberto Barroso, então presidente do STF, e José Carlos Dias, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Ao discursar, Barroso descreveu José Afonso como um dos principais cérebros por trás da Constituição de 1988 e afirmou que seu trabalho representou uma "virada de chave" no direito constitucional, trazendo uma lógica que seria de "fazer a Constituição funcionar".

A imagem mostra dois homens sentados em uma mesa. O homem à esquerda, mais velho, está usando um terno escuro e parece estar ouvindo atentamente. O homem à direita, mais jovem, está vestido com um terno claro e está segurando um livro, mostrando-o para o homem mais velho. Ambos estão em um ambiente com paredes de madeira e uma mesa com copos de água.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, mostra livro ao jurista José Afonso da Silva, 100, durante homenagem na Faculdade de Direito da USP - Eduardo Knapp/Folhapress

Barroso, que chegou a mostrar a José Afonso um de seus livros escritos pelo professor cheio de marcações e se emocionou em determinado momento, citou ainda a ditadura militar, dizendo que o jurista "manteve a chama do direito constitucional acesa quando se via no Brasil um momento de muita escuridão".

Oscar Vilhena, que é colunista da Folha e professor da FGV Direito, descreveu José Afonso no evento como "arquiteto jurídico" da Constituição de 88. "Sem risco de errar, o livro é um divisor de águas e um marco no direito constitucional."

"José Afonso nos deu régua e compasso para entender o direito constitucional", diz Vilhena. Para ele, trata-se do "constitucionalista mais importante das últimas cinco décadas, além de um jurista comprometido na defesa das instituições democráticas".

Em 2022, José Afonso se emocionou ao ser homenageado durante ato em defesa da democracia inspirado na célebre "Carta aos Brasileiros", lida em 1977 e da qual ele também foi signatário.

José Afonso teve três filhos e seis netos. Um deles, Virgílio Afonso da Silva, seguiu os passos do pai e é professor de direito na USP. Também é pai de Helena Augusta Afonso e Nereu Afonso da Silva.

Em comunicado, os filhos agradeceram as homenagens e o apoio recebido. "Guardamos o orgulho de seu legado e o privilégio imenso de tê-lo tido como pai", diz a nota assinada conjuntamente pelos três.

Manteve escritório por décadas no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, que abrigava sua biblioteca pessoal, da qual parte foi doada ao acervo da faculdade da USP. Ao chegar aos 100 anos, ele seguia visitando o local, onde antes trabalhava diariamente, para consulta quando necessário.

Em nota, o presidente do STF, Edson Fachin, lamentou a morte do jurista. "Que o luto por seu passamento seja dignamente iluminado pela memória de um mestre cuja obra e atuação se pautaram pela ética democrática, pela reafirmação do Estado de Direito e pela defesa inabalável dos princípios constitucionais da justiça, da liberdade e da solidariedade", disse no comunicado.

O ministro do STF Gilmar Mendes prestou homenagens a José Afonso em postagem nas redes sociais. "Com sua visão humanista, mostrou que a Constituição deve orientar a vida democrática e proteger a dignidade das pessoas. Seu 'Curso de Direito Constitucional Positivo' tornou-se um marco do pensamento jurídico brasileiro [...]", afirmou.

O advogado-geral da União e indicado de Lula à vaga deixada por Barroso no STF, Jorge Messias, também se manifestou nas redes. Ele celebrou o legado deixado pelo jurista, "que transcende as salas de aula e os tribunais, sendo exemplo de compromisso ético, rigor acadêmico e respeito à cidadania".

Em nota, a Faculdade de Direito da USP anunciou com "extremo pesar" o falecimento, ressaltando também o impacto da obra do jurista nas decisões do Supremo. "Sua interpretação constitucional, que valoriza a justiça social e os direitos fundamentais, tem grande influência na forma como a corte interpreta a Constituição e aplica seus princípios", diz o comunicado.

À Folha o atual diretor da instituição, o professor Celso Campilongo, relembrou a homenagem que José Afonso recebeu na cerimônia de leitura da carta em defesa da democracia, em 2022. Segundo Campilongo, ele foi aplaudido de pé e fico "muito emocionado".

"Foi um marco no constitucionalismo brasileiro e foi muito importante na formação de gerações de juristas empenhados com o Estado de Direito", disse o diretor.

A professora de direito da USP e diretora eleita, Ana Elisa Bechara, lembrou a trajetória de José Afonso, afirmando que o brilhantismo do jurista era "proporcional à sua determinação e resiliência".

"[Ele] precisou 'empurrar o portão' —usando suas palavras —, já que, sem tradição acadêmica e vindo de família pobre, teve que vencer inúmeros obstáculos para conquistar uma cadeira na congregação da tradicional Faculdade de Direito da USP", disse.

O advogado e professor de direito da USP, Marcos Perez, disse que o jurista foi um "dos grandes nomes do direito público em todos os tempos" e ressaltou sua atuação à frente da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

"Um jurista reconhecido mundialmente e o melhor secretário [de Segurança Pública] que o estado teve, ao menos entre aqueles que minha geração presenciou trabalhar. Soube unir a teoria à vida prática da política pública. Um ser humano maiúsculo que fará falta", disse.

Durante a entrevista à Folha em 2025, sua filha Helena Augusta que também estava presente, contou que o pai seguia revisando as próprias obras. "A gente liga na casa dele, às vezes nove e meia, dez horas, e pergunta ‘tá tudo bem, pai’? [E ele diz:] ‘Tô trabalhando’", conta. "É que o chefe dele é realmente muito bravo, né, pai? Seu chefe é muito exigente", brincou ela à época.

"O pior é que ele não paga bem", arrematou o pai, na ocasião, ao que todos riram. Questionado então sobre a frequência com que ainda trabalhava, ele deu uma breve risada, antes de responder: "Eu trabalho todo dia". Contou também que pelas manhãs e à noite reservava cerca de 20 minutos para meditar, prática que já levava consigo há algumas décadas.

O velório será na quarta-feira (26), das 10h às 15h, e o enterro, às 16h do mesmo dia. As cerimônias serão restritas a amigos e familiares.

Renata Galf e João Pedro Abdo, de S. Paulo -  SP para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 25.11.25


A direita dispensa Bolsonaro

O ex-presidente virou um encosto. Será árdua a tarefa de livrar-se dele sem ofendê-lo

O presidente Jair Bolsonaro em sua casa, em Brasília, enquanto cumpria prisão domiciliar - Gabriela Biló - 27.set.2025/Folhapress

A direita não precisa mais de Bolsonaro. Ela lhe deve o mérito de tê-la tirado do armário, mas seus surtos transformaram-no num encosto. O patrono da cloroquina, que dizia ter "o meu Exército", tornou-se um mau espírito encostado no velho conservadorismo nacional.

Afinal, uma direita que teve Roberto Campos, Eugênio Gudin e Castello Branco terá perdido muito em qualidade, mas com Bolsonaro ganhou em quantidade, elegendo um presidente e grandes bancadas parlamentares. Quem tem Tarcísio de Freitas e Ronaldo Caiado governando São Paulo e Goiás produziu quadros qualificados para novos voos. Esse é o caminho da lógica, mas a direita brasileira padece de um oportunismo suicida.

A imagem mostra uma pessoa de costas, vestindo uma camisa azul e calças escuras, caminhando em direção a uma casa. A cena é vista através de uma grade, que cria linhas verticais na imagem. Ao fundo, há uma área verde com plantas e uma estrutura de casa com paredes claras.

Em 1959, na União Democrática Nacional, berço do conservadorismo, havia um candidato à Presidência. Era Juracy Magalhães, tenente de 1930, ex-governador da Bahia e primeiro presidente da Petrobras. O partido resolveu atrelar-se à candidatura de Jânio Quadros. Um demagogo de carreira fulgurante, sem qualquer vínculo partidário capaz de levá-lo ao poder.

Segundo a piada, Jânio era "a UDN de porre". Deu no que deu.

Anos depois, já na ditadura, o conservadorismo emplacou o marechal Castello Branco, um reformador austero. O oportunismo suicida levou a base conservadora do regime a aninhar-se na anarquia militar e na candidatura do ministro da Guerra, general Costa e Silva. Deu no que deu, o Ato Institucional nº 5 e a crise decorrente da isquemia cerebral que o incapacitou em agosto de 1969.

Essa direita que come com garfo e faca achou em Jair Bolsonaro sua oportunidade. A eleição de 2018 foi um arrastão conservador e o ex-capitão acabou do Palácio do Planalto muito mais pelos erros do PT do que pelas suas qualidades.

O último surto de Bolsonaro, contra uma tornozeleira, espantou até mesmo seus aliados. Espanto tardio diante de um personagem que duvidava das vacinas durante uma epidemia que matou 700 mil pessoas e acreditava nas pesquisas de uma empresa americana que tentava transmitir eletricidade sem o uso de fios. (Na cena em que um finório vendeu a Bolsonaro essa maravilhosa ideia, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, tomou distância.)

O ex-capitão que se lembra do que fez em 1987, desenhando um gráfico pueril de explosão de uma adutora, e conseguiu ver-se exonerado de culpa pelo Superior Tribunal Militar, adquiriu uma incompreensão do que são as instituições em geral e o Poder Judiciário em particular. Chamou um ministro do Supremo de "canalha". Anunciou que não cumpriria decisões de tribunais. Flertou com o golpismo da trama contra a posse de Lula.

Será árdua a tarefa de livrar-se do encosto sem ofendê-lo. Os filhos de Bolsonaro gastam mais tempo condenando Tarcísio do que Lula e seu governo. A UDN conseguiu se livrar do encosto de Jânio, e os comandantes militares da ditadura livraram-se do encosto de Costa e Silva com sua saída da cena, remetendo seu principal conselheiro militar, o general Jaime Portela, para um comando de segunda antes de mandá-lo para a reserva.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada". Publicado origialmente na Folha de S. Paulo, em 26.11.25

O que acontece com salários e patentes de Bolsonaro e outros militares presos?

Mas o fim do processo no STF não marca a perda de patentes destes militares. Eles continuarão com suas patentes e manterão seus salários de até R$ 38 mil, ao menos por enquanto.

Braga Netto, Bolsonaro e outros três militares podem perder patente (Crédito, Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Com o encerramento do processo sobre tentativa de golpe nesta terça-feira (25/11) no Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) começou a cumprir sua pena de 27 anos e 3 meses de prisão, na sede da Polícia Federal em Brasília.

Ainda de forma cautelar, Bolsonaro já estava em prisão domiciliar desde agosto e, no sábado (22/11), ele foi encarcerado em uma sala da PF, porque o ministro relator Alexandre de Moraes entendeu que havia risco de fuga - o ex-presidente chegou a usar solda na sua tornozeleira eletrônica.

Além de Bolsonaro, que é um capitão reformado, outros cinco militares também foram condenados no julgamento em setembro e passarão a cumprir suas penas: o general Paulo Sergio Nogueira (ex-ministro da Defesa), o general Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional), o general Walter Braga Netto (candidato a vice na chapa com Bolsonaro), o ex-comandante da Marinha almirante Almir Garnier e o tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens).

O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, comentou em Brasília a conclusão do processo. Falando à imprensa, Múcio disse que "está se encerrando um ciclo". "CPFs estão sendo responsabilizados e punidos e, para felicidade do país, as instituições estão sendo todas preservadas", comentou.

Mas o fim do processo no STF não marca a perda de patentes destes militares. Eles continuarão com suas patentes e manterão seus salários de até R$ 38 mil, ao menos por enquanto.

Na decisão desta terça, Moraes aponta aquilo que indica a Constituição: é o Superior Tribunal Militar (STM) quem decidirá sobre a perda de patente dos militares, num processo sobre "indignidade" à função militar.

Questionada pela BBC News Brasil, a assessoria do STM informou que o desfecho dos casos só deve acontecer ano que vem, citando recesso do Judiciário que começ em 20 de dezembro.

O único que fica de fora desse processo imediato é Mauro Cid, já que teve uma pena abaixo de dois anos, por ter sido o delator no processo.

Além dos seis militares, dois civis foram condenados à prisão: o ex-ministro da Justiça Anderson Torres e o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem, que está foragido após fugir aos EUA.

Tribunal de honra

Num evento em São Paulo no último dia 29 de agosto, a presidente do STM, ministra Maria Elizabeth Rocha, disse que caberá à Corte que comanda exercer papel de "tribunal de honra" em casos de perda do posto de oficiais das Forças Armadas condenados pelo STF.

Caso o STM entenda que os militares não são "dignos" de fazer parte do quadro das Forças, eles perdem suas patentes — e consequentemente seus salários, se não houver mais possibilidade de recurso, esclarece Erika Kubik, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Justiça Militar.

"A perda de salário vem junto à perda de patente. É uma coisa única, colada, porque ele deixa de ser militar", diz.

Mas esse salário pode se tornar uma pensão ao cônjuge ou filho menor do militar.

"É a tal morte ficta, caso peculiar previsto na legislação de pensões militares, que possui muitas críticas", explica à BBC News Brasil a juíza federal da 12ª Circunscrição Judiciária Militar Patrícia Gadelha.

O entendimento da morte ficta considera a expulsão de um militar como se fosse o seu falecimento, garantindo assim pensão a seus dependentes.

Se houver decisão do STM para perda de patente, haveria então um processo administrativo dentro da respectiva Força, explica o advogado Agnaldo Bastos, especialista em direito público e direito militar.

"O entendimento majoritário é que perda de patente implica perda do soldo e status militar, mas não extingue a pensão de dependente já constituído. Vai ser analisado caso a caso", diz.

"Cada força vai abrir um processo interno para verificar direitos envolvidos sobre reserva, reforma, dependentes e direito à pensão", completa Bastos.

De acordo com a Lei de Pensões Militares, com a morte ficta do militar os dependentes passam a receber pensão proporcional ao tempo de serviço.

Esse assunto, inclusive, tem sido alvo de discussão nos últimos meses em Brasília.

Em um projeto de lei proposto pelo governo Lula em 2024 para alterar a aposentadoria dos militares, um dos itens pede justamente o fim do recebimento de pensão pela família de um militar expulso.

Pela proposta, a família passaria a receber auxílio-reclusão, no valor da metade da última remuneração do ex-militar, durante o período em que ele estiver cumprindo pena de reclusão por sentença transitada em julgado.

Parlamentares de direita e ligados às Forças Armadas já têm se articulado para retirar esse trecho do projeto de lei.

Em análise recente, o Tribunal de Contas da União (TCU) julgou que o direito à pensão militar "por morte" só ocorre após a morte real e não após a expulsão ou a demissão do militar.

Essa situação dos militares é diferente de outros funcionários públicos, que podem perder sua função — e salário — caso sejam condenados à prisão, já na decisão do juiz que o condena.

No caso de Bolsonaro, o ex-presidente recebe cerca de R$ 12,8 mil do Exército. Ele é um capitão reformado, uma espécie de aposentadoria no mundo militar.

Além dos vencimentos do Exército, Bolsonaro recebe ainda cerca de R$ 41 mil da aposentadoria de deputado pela Câmara.

Como é presidente de honra do Partido Liberal (PL), o ex-presidente ganha outros R$ 41 mil, segundo divulgado pelo partido à imprensa.

Entre todos os militares condenados pelo STF, quem recebe o maior salário é o general Augusto Heleno, no valor de R$ 38,1 mil.

Ele recebe proventos equivalentes ao posto de marechal — benefício comum a militares que passam à reserva com remuneração de um cargo acima do que ocupavam na ativa.

Como é o processo militar para perda de patente

Augusto Heleno pode perder o titulo de 'general' (Crédito, Antonio Cruz/Ag. Brasil)

Segundo o Código Penal Militar, um militar só pode perder a patente por uma decisão do Superior Tribunal Militar (STM) — seja ele da ativa, da reserva ou reformado.

Há distintos caminhos a depender da pena estabelecida na Justiça comum sem possibilidade de recurso, explica a professora Erika Kubik, da UFF.

Caso a pena seja menor do que dois anos de prisão, é acionado o chamado Conselho de Justificação dentro das Forças Armadas — espécie de processo administrativo.

A depender da decisão do conselho e consequente avaliação do comandante da Força, o caso sobe ao STM.

O único que se enquadra nessa situação é Mauro Cid, que teve a menor pena.

Mesmo que o réu seja totalmente absolvido no STF, o Ministério Público Militar (MPM) também pode entrar com ação "por entender, ainda assim, que há ali uma desonra militar", diz Kubik.

Mas "no caso de condenação acima de dois anos, não há a participação da Força Armada. É o MPM que promoverá, ao seu exclusivo critério, a ação", explica à BBC News Brasil o procurador-geral de Justiça Militar Clauro Roberto de Bortolli.

Segundo Bortolli, seu posicionamento atual "é no sentido de oferecer, sempre, a ação de representação, após ter a ciência da condenação de um oficial a pena acima de dois anos".

No STM, o julgamento será para avaliar a "indignidade ou incompatibilidade" — ou seja, não é um julgamento criminal, mas perante um "tribunal de honra".

Não há um prazo fixo para que o STM termine esse julgamento, que deve ser individual para cada militar.

"O prazo não é específico, mas como a situação tem repercussão institucional, envolve militares alta patente, é possível haver uma celeridade", avalia o advogado especialista Agnaldo Bastos

Uma vez que haja a decisão do STM, os réus só poderiam apelar para algum recurso caso a defesa entenda que a decisão violou algum dispositivo da Constituição, avalia a juíza Patrícia Gadelha.

Ou seja: não cabe apelação dentro da Justiça Militar, mas é possível provocar o STF.

"Uma vez declarada a indignidade, a perda do posto e da patente é definitiva, salvo reforma posterior da decisão em instância constitucional, o STF", diz.

Desde 2018, 47 militares das Forças Armadas foram condenados com a perda da patente, segundo o MPM.

Quanto ganham os militares condenados

Paulo Sergio Nogueira e Bolsonaro (Crédito,Governo Federal)

Encerrado o processo no STM e caso os militares condenados sejam excluídos das Forças Armadas, eles não recebem mais o "salário" propriamente dito.

De acordo com dados do Portal da Transparência em junho de 2025, eles recebem os seguintes salários brutos (sem descontos) enquanto militares:

Augusto Heleno: R$ 38.144,69

Almir Garnier: R$ 37.585,59

Walter Braga Netto: R$ 36.881,74

Paulo Sérgio Nogueira R$ 36.881,74

Mauro Cid: R$ 28.242,64

Jair Bolsonaro: R$ 12.861,61

Durante o julgamento no STF, o advogado do almirante Almir Garnier, o ex-senador Demóstenes Torres, chegou a dizer que o militar "não tem recurso para pagar advogado".

"Um dia bateu nas minhas portas o almirante Garnier. Eu fiquei com pena dele. Porque é uma pessoa que vai inteirar agora 65 anos de idade [...] Ele não teve dinheiro para pagar", disse Torres.

Também durante o julgamento, o advogado de Mauro Cid, o relator que confessou os planos golpistas, disse que seu cliente pediu para ir para a reserva do Exército por não ter mais "condições psicológicas" de seguir na ativa.

Caso o Exército aceite o pedido, Cid passa a receber como militar da reserva — e, caso condenado pelo STM, é possível que o vencimento passe para seus dependentes.

Isso porque a lei que dispõe sobre as pensões militares aponta que o oficial que perder posto e patente deixa aos seus beneficiários a "pensão militar correspondente ao posto que possuía, com valor proporcional ao tempo de serviço".

"A pensão militar tem legislação própria e ela não se confunde com salário do militar ativo", explica o advogado Agnaldo Bastos.

"O valor não passa automaticamente à família. O que pode existir é o direito a pensão, isso vai depender se aquele militar já tinha alcançado tempo de serviço, se cumpriu requisitos. Cada caso é avaliado", completa o especialista.

A BBC News Brasil entrou em contato com o Exército e Marinha para mais esclarecimentos sobre o processo administrativo, mas não obteve resposta.

Bastos explica ainda que para servidores públicos não militares, a própria Constituição diz que uma sentença condenando a pessoa no âmbito criminal já pode gerar perda de cargo. Não há um processo interno como o dos militares.

"Na decisão judicial que condena servidor, automaticamente vai trazer de forma expressa que, em decorrência de condenação, o servidor vai perder cargo e salário."

O projeto de lei do governo Lula que muda a regra para aposentadoria e pensão de militares está nas mãos do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB).

Ao anunciar o projeto, que inclui ainda idade mínima para militares irem para reserva, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que seriam "mudanças justas e necessárias" para combater "privilégios incompatíveis com o princípio da igualdade".

Segundo Haddad, foi feito um acordo com as Forças Armadas para acabar com morte ficta.

A proposta foi apresentada em novembro, quando o governo anunciou medidas para economizar R$ 70 bilhões em dois anos aos cofres públicos, visando o ajuste fiscal.

Vitor Tavares, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 25.11.25 (atualização da matéria pubicada em 10.09.25)

Generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira são presos e cumprirão pena no Comando do Exército

A decisão que determinou o fim do processo para Bolsonaro vale também para três militares da alta patente: o almirante Almir Garnier Santos e os generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira.

O general Augusto Heleno cumprirá pena no Comando Militar do Planalto (Crédito, EVARISTO SA/AFP via Getty Images)

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou o encerramento do processo que condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro a pena de 27 anos e 3 meses por golpe de Estado.

A decisão mantém Bolsonaro na Superintendência da Polícia Federal de Brasília, onde ele está desde sábado (22/11) quando foi preso preventivamente.

A decisão que determinou o fim do processo para Bolsonaro vale também para três militares da alta patente: o almirante Almir Garnier Santos e os generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira.

Heleno e Nogueira cumprirão pena no Comando Militar do Planalto, em Brasília, para onde já foram levados.

O ex-ministro da Justiça Anderson Torres e o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), que está nos Estados Unidos, também tiveram o início de suas penas determinado.

Outro condenado, o general Walter Braga Netto, está preso preventivamente desde dezembro de 2024 no Comando da 1ª Divisão de Exército, no Rio de Janeiro, e lá deve ficar.

A reação do ministro da Defesa e das Forças Armadas

Na decisão, Moraes indica que o Superior Tribunal Militar (STM), como determina a Constituição, é que decidirá sobre a perda de patente dos generais Augusto Heleno, Paulo Sergio e Braga Netto, assim como Almir Garnier, e a de Bolsonaro, capitão reformado do Exército.

Questionado pela BBC News Brasil, a assessoria do STM disse que os casos dos réus militares, assim como o de Bolsonaro, só devem ser julgados no ano que vem.

O ministro da Defesa, José Múcio, celebrou o fim de um ciclo "doloroso" e diz que não comentaria a decisão de Moraes nem os procedimentos da Justiça Militar. "Decisão da Justiça a gente pode gostar, pode não gostar, mas tem que aprender a acatar", afirmou.

"Vocês não viram durante esse períod ter saído uma nota de indignação. Não saiu nem das instituições, nem das pessoas físicas. Então eu só tenho que agradecer. Estou feliz porque o ciclo está se encerrando. A gente precisa virar essa página, olhar para frente", disse a jornalistas durante visita à Câmara nesta terça.

Múcio disse, no entanto, que alguns integrantes receberam "alguns constrangidos, indignados" a notícia das punições.

"Está se encerrando um ciclo onde os CPFs estão sendo responsabilizados e punidos e, para felicidade do país, as instituições estão todas preservadas. Foi doloroso o processo, mas é o ciclo da vida. Estamos agora administrando o fim do processo."

O general Paulo Nogueira, assim como Augusto Heleno, Almir Garnier, Braga Netto e Bolsonaro, serão julgados no Superior Tribunal Militar (Crédito, EVARISTO SA/AFP via Getty Images)

Como é o processo militar para perda de patente

Enquanto os condenados não forem julgados no STM, continuarão com suas patentes e manterão seus salários de até R$ 38 mil.

Caso o STM entenda que os militares não são "dignos" de fazer parte do quadro das Forças, eles perdem suas patentes — e consequentemente seus salários, se não houver mais possibilidade de recurso, esclarece Erika Kubik, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Justiça Militar.

"A perda de salário vem junto à perda de patente. É uma coisa única, colada, porque ele deixa de ser militar", diz.

Mas esse salário pode se tornar uma pensão ao cônjuge ou filho menor do militar.

"É a tal morte ficta, caso peculiar previsto na legislação de pensões militares, que possui muitas críticas", explica à BBC News Brasil a juíza federal da 12ª Circunscrição Judiciária Militar Patrícia Gadelha.

O entendimento da morte ficta considera a expulsão de um militar como se fosse o seu falecimento, garantindo assim pensão a seus dependentes.

Se houver decisão do STM para perda de patente, haveria então um processo administrativo dentro da respectiva Força, explica o advogado Agnaldo Bastos, especialista em direito público e direito militar.

"O entendimento majoritário é que perda de patente implica perda do soldo e status militar, mas não extingue a pensão de dependente já constituído. Vai ser analisado caso a caso", diz.

"Cada força vai abrir um processo interno para verificar direitos envolvidos sobre reserva, reforma, dependentes e direito à pensão", completa Bastos.

De acordo com a Lei de Pensões Militares, com a morte ficta do militar os dependentes passam a receber pensão proporcional ao tempo de serviço.

Segundo o Código Penal Militar, um militar só pode perder a patente por uma decisão do Superior Tribunal Militar (STM) — seja ele da ativa, da reserva ou reformado.

Há distintos caminhos a depender da pena estabelecida na Justiça comum sem possibilidade de recurso, explica a professora Erika Kubik, da UFF.

Caso a pena seja menor do que dois anos de prisão, é acionado o chamado Conselho de Justificação dentro das Forças Armadas — espécie de processo administrativo.

A depender da decisão do conselho e consequente avaliação do comandante da Força, o caso sobe ao STM.

O único que se enquadra nessa situação é Mauro Cid, que teve a menor pena.

Mesmo que o réu seja totalmente absolvido no STF, o Ministério Público Militar (MPM) também pode entrar com ação "por entender, ainda assim, que há ali uma desonra militar", diz Kubik.

"No caso de condenação acima de dois anos, não há a participação da Força Armada. É o MPM que promoverá, ao seu exclusivo critério, a ação", explica à BBC News Brasil o procurador-geral de Justiça Militar Clauro Roberto de Bortolli.

Segundo Bortolli, seu posicionamento atual "é no sentido de oferecer, sempre, a ação de representação, após ter a ciência da condenação de um oficial a pena acima de dois anos".

No STM, o julgamento será para avaliar a "indignidade ou incompatibilidade" — ou seja, não é um julgamento criminal, mas perante um "tribunal de honra".

Não há um prazo fixo para que o STM termine esse julgamento, que deve ser individual para cada militar.

"O prazo não é específico, mas como a situação tem repercussão institucional, envolve militares alta patente, é possível haver uma celeridade", avalia o advogado especialista Agnaldo Bastos

Uma vez que haja a decisão do STM, os réus só poderiam apelar para algum recurso caso a defesa entenda que a decisão violou algum dispositivo da Constituição, avalia a juíza Patrícia Gadelha.

Ou seja: não cabe apelação dentro da Justiça Militar, mas é possível provocar o STF.

"Uma vez declarada a indignidade, a perda do posto e da patente é definitiva, salvo reforma posterior da decisão em instância constitucional, o STF", diz.

Desde 2018, 47 militares das Forças Armadas foram condenados com a perda da patente, segundo o MPM.

Marina Rossi e Vitor Tavares, de S. Paulo para a BBC News Brasil em São Paulo, em 25.11.25


O que Bolsonaro pode e não pode fazer na prisão — e como isso se compara ao caso de Lula

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), declarou nesta terça-feira (25/11) a conclusão do processo que condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por tentativa de golpe de Estado. A decisão inicia a execução da pena do ex-presidente a mais de 27 anos de prisão.

Jair Bolsonaro deixa o hospital onde foi submetido a um procedimento cirúrgico na pele, autorizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, no cumprimento da prisão domiciliar ( Crédito,REUTERS/Adriano Machado).

Bolsonaro deve permanecer na sala especial onde já está detido desde sábado (22/11), na Superintendência da Polícia Federal (PF) em Brasília.

O local, uma sala de Estado, foi adaptado e inclui banheiro privativo, cama, televisão, frigobar, ar-condicionado e mesa de trabalho.

É um espaço semelhante ao que ficou Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em Curitiba entre 2018 e 2019, quando o petista cumpriu pena após condenação no âmbito da Operação Lava Jato — uma ação que posteriormente foi anulada pelo STF.

Na decisão desta terça, Moraes determinou "a manutenção de disponibilização de atendimento médico em tempo integral" a Bolsonaro, "em regime de plantão".

O ministro também permitiu "o acesso da equipe médica que acompanha o tratamento de saúde do réu, independentemente de prévia autorização judicial".

A defesa de Bolsonaro afirma que ele corre risco de morte em razão de sequelas da facada sofrida em 2018, argumento que deve ser usado para tentar restabelecer a prisão domiciliar.

O advogado João Pedro Pádua, professor de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que a legislação garante assistência de saúde às pessoas presas, um direito previsto tanto na Lei de Execução Penal quanto na Constituição.

Mas, na prática, o atendimento costuma ser muito mais limitado. "Não existe, de modo geral, atendimento médico personalizado para presos", afirma.

Segundo ele, cada Estado organiza sua própria rede de saúde prisional, assim como a União faz com os presídios federais.

A regra, explica Pádua, é que o atendimento seja prestado por equipes internas, geralmente uma enfermaria e médicos que comparecem em dias específicos.

"Presos que precisam de algo mais complexo são levados sob escolta a hospitais externos em casos de emergência."

Para Pádua, o padrão atual imposto a Bolsonaro, com atendimento médico permanente e acesso irrestrito à própria equipe, destoa da realidade do sistema prisional brasileiro.

"Esse modelo de atendimento integral, 24 horas por dia, com um médico dedicado, é completamente excepcional. Nunca tinha ouvido falar disso, nem em casos de presos com doenças crônicas relevantes", afirma.

Ele cita o exemplo do ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, que, mesmo com idade avançada e problemas de saúde, não teve acesso a um esquema similar antes de obter prisão domiciliar.

Pádua destaca que, juridicamente, não há nenhum privilégio previsto em lei para ex-presidentes no cumprimento de pena. "O que está acontecendo decorre de decisões do Supremo Tribunal Federal e do precedente do presidente Lula", afirma.

Bolsonaro poderá dar entrevistas?

A Lei de Execução Penal é a legislação que garante direitos básicos de presos, como alimentação, tratamento médico, apoio jurídico e religioso, visitas controladas, trabalho interno e acesso à defesa, mesmo durante o cumprimento definitivo da pena.

"Em tese, esses direitos devem ser assegurados a todos", afirma Pádua, que diz que a realidade do sistema carcerário brasileiro impõe limites práticos a muitos desses direitos.

Entrevistas, saídas externas e visitas fora dessas hipóteses dependem de autorização judicial.

No período de um ano e sete meses em que Lula esteve preso, o petista só foi autorizado a sair da Superintendência da PF duas vezes: a primeira, para um depoimento à juíza Gabriela Hardt (substituta de Sergio Moro na Vara Federal da capital paranaense), em novembro de 2018.

A segunda, em 1º de março deste ano, para comparecer ao velório e à cremação de seu neto Arthur, de sete anos, morto em decorrência de uma infecção.

Pádua explica que a Lei de Execução Penal não garante ao preso o direito de falar com a imprensa, apenas o direito de enviar e receber correspondências.

Em prisões comuns, onde celulares são proibidos e outros meios de comunicação são restritos, a troca de cartas ainda é a forma oficial de contato com o exterior.

Mas o STF criou um precedente no caso do ex-presidente Lula, quando o ministro Ricardo Lewandowski autorizou entrevistas a partir de uma interpretação constitucional sobre liberdade de imprensa e de informação.

Lula em entrevista a BBC News Brasil em agosto de 2019, na prisão em Curitiba (Crédito, Ricardo Stuckert/Divulgação)

A primeira vez em que o petista foi autorizado pela Justiça a falar com jornalistas durante seu período na prisão ocorreu mais de um ano depois de ele chegar à carceragem da PF em Curitiba.

Em setembro de 2018, uma liminar concedida por Lewandowski autorizou o pedido da Folha de S.Paulo para entrevistar o ex-presidente. A liminar foi cassada pelo ministro Luiz Fux, em decisão que seria revertida em abril do ano seguinte pelo presidente da Corte, Dias Toffoli.

Depois, Lula foi autorizado a conceder outras entrevistas, inclusive à BBC News Brasil, a quem ele falou em agosto de 2019 sobre os processos contra ele, as esperanças que tinha de deixar a prisão e os vazamentos da Lava Jato.

"Não vejo por que esse entendimento não possa ser aplicado agora", afirma Pádua. Segundo ele, se procurado por jornalistas, Bolsonaro poderia conceder entrevistas, desde que haja autorização judicial.

O que permanece vedado é produzir conteúdo, acessar redes sociais ou utilizar meios de telecomunicação, com exceção das cartas previstas em lei.

Quem pode visitar Bolsonaro na prisão?

Flávio Bolsonaro (PL-RJ) é advogado e pode ter acesso facilitado a visitas se for oficialmente incluído na equipe de defesa do pai (Crédito,Isaac Fontana/EPA)

Com relação às visitas, Moraes determinou que "todas as visitas deverão ser previamente autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal, salvo os advogados regularmente constituídos nos autos e equipe médica".

Pádua lembra que a Lei de Execução Penal prevê o direito a visitas, mas não define quem exatamente pode entrar nos estabelecimentos.

"A lei não estabelece um rol de pessoas autorizadas. A regulamentação dos detalhes da execução da pena é competência dos Estados", explica.

"De modo geral, os Estados permitem visitas de parentes imediatos — pai, mãe, filhos e cônjuge, desde que haja casamento formal — e um número limitado de amigos próximos."

Antes da decretação do trânsito em julgado, a defesa do ex-presidente Bolsonaro havia solicitado nesta terça uma nova visita de sua esposa, Michelle Bolsonaro, na superintendência da PF em Brasília.

Na prisão preventiva, Moraes também permitiu que os filhos do ex-presidente o visitassem.

"Mas não sabemos se serão autorizadas visitas de outras pessoas, como políticos", diz.

Ele ressalta que parlamentares costumam conseguir acesso a unidades prisionais alegando estar cumprindo deveres do mandato, não como amigos ou apoiadores.

Quando Lula esteve preso, o petista recebeu visitas diárias dos advogados e, às quintas-feiras, de parentes e amigos.

Na época, integrantes do PT, entre eles Fernando Haddad e Gleisi Hoffmann, se registraram como advogados para ter acesso ampliado ao ex-presidente.

A força-tarefa da Lava Jato chegou a afirmar que a quantidade de visitas transformava a cela em um "comitê de campanha".

No caso de Bolsonaro, a situação pode ser semelhante. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente, é advogado e pode ter acesso facilitado se for oficialmente incluído na equipe de defesa do pai.

A advogada Carolina Cyrillo, professora de Direito Constitucional na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que o direito de visita de advogados está previsto no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

"É um direito do advogado, não do preso", diz. Por isso, não haveria limites com relação ao número de advogados constituídos na defesa.

A professora da UFRJ considera, no entanto, que ainda há elementos pendentes do processo de Bolsonaro antes que o regime de cumprimento da pena seja considerado definitivo.

"Ao que tudo indica, está se usando o precedente do Lula, e Bolsonaro deve permanecer na Polícia Federal. Mas há questões abertas. A primeira é a discussão sobre a patente militar: em razão do tempo da condenação, ele pode perder a patente. Caso não perdesse, poderia argumentar pelo cumprimento em unidade militar. Isso ainda vai ao Superior Tribunal Militar."

Outro ponto é a discussão sobre o trânsito em julgado. A defesa alega que o prazo para embargos infringentes previsto no regimento do STF é de 15 dias — e argumenta que Moraes teria certificado o trânsito antes desse prazo.

"Tem um justo motivo para recurso da defesa. Porque o precedente que eles usam, do caso do Maluf, de que não cabem embargos infringentes quando tem apenas um voto e não dois na turma, não é bem um precedente. É uma orientação jurisprudencial vigente até agora, mas que pode mudar de questão. Então, tudo muito incipiente", disse.

Para a professora, é cedo para afirmar como será a fase definitiva do cumprimento de pena. "Provavelmente seguirá o precedente do Lula, como Moraes determinou agora. Mas a discussão sobre a patente militar e sobre o trânsito em julgado ainda pode alterar o quadro."

Carlos Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro e vereador no Rio de Janeiro, visitou o pai no prédio da Polícia Federal nesta terça (Crédito,REUTERS/Jorge Silva)

Celso Vilardi, advogado de Bolsonaro, afirmou que vai apresentar embargos infringentes ao STF mesmo depois do encerramento da ação.

Ele afirma considerar que o processo ainda não transitou em julgado já que o prazo para que a defesa apresentasse o recurso ainda não havia se esgotado.

Publicado pela BBC News Brasil, em 26.11.25

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Reeducando Bolsonaro

Sistema permite abater quatro dias de pena para cada livro lido. Sugiro que ex-presidente comece seu programa de leitura por Hegel

Jair Bolsonaro na sede da PF, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

Dentro de mais alguns dias, Jair Bolsonaro se tornará oficialmente um reeducando, que é como chamamos os presos com sentença condenatória que cumprem a pena que lhes foi imposta. O radical "educ" entra aí porque um dos objetivos do Estado ao punir um criminoso é reintegrá-lo à sociedade, um processo no qual a educação é variável-chave.

Não é por outra razão que o sistema prevê a remição de pena por leitura, o que significa que reeducandos podem abater quatro dias de prisão para cada livro lido, até o limite de 12 livros anuais ou 48 dias. O ano do preso bibliófilo fica um mês e meio menor.

Otimista que sou, acho até que Bolsonaro já foi mordido pelo bichinho da busca do saber. Ele, afinal, disse que violou a tornozeleira eletrônica por curiosidade, e a curiosidade, como todos sabemos, é o sentimento que move o homem em direção à ciência e ao conhecimento.

Para fazer as pazes consigo mesmo (e com Alexandre de Moraes), sugiro a Bolsonaro que comece seu programa de leituras por "Princípios da Filosofia do Direito", de GWF Hegel. Ali o filósofo alemão argumenta que criminosos deveriam querer ser condenados.

A pena, afinal, é a negação do crime, que é, por sua vez, a negação do direito. A condenação, ao restaurar o direito, corresponde à vontade do próprio criminoso que, enquanto ser racional, deve querer ver a justiça restabelecida e a vontade universal triunfar sobre a particular. Na visão de Hegel, anistiar Bolsonaro e livrá-lo de sua pena seria desconsiderá-lo como ser racional e livre. Equivaleria a excluí-lo da própria humanidade, compreendida como uma comunidade moral.

Hegel não é um autor fácil. Bolsonaro poderá não se deixar encantar pelas sutilezas da dialética. Nesse caso, o reeducando poderá, desde que o juiz concorde, é claro, recorrer a livros mais pé no chão, quiçá os de colorir.

Seja como for, se Bolsonaro, ainda que por autointeresse e não por adesão sincera à Razão Universal, se transformar num rato de biblioteca, a condenação já terá operado um milagre.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Pauo. É autor de "Pensando Bem…" Publicado originalmente na Foha de S. Paulo, em 24.11.25 (edição impressa).

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Redes mostram Lula e Bolsonaro em queda e desânimo entre moderados após prisão de ex-presidente

Levantamento de menções revela um país sem clima para mobilização das massas

Lula e Jair Bolsonaro têm dificuldades para emplacar candidaturas para 2026 Foto: Wilton Júnior/Estadão e Tiago Queiroz/Estadão

A prisão de Jair Bolsonaro pouco alterou o quadro político brasileiro. Lula e o ex-presidente continuam aparecendo nas redes como opostos idênticos, conforme mostram os dados da AP Exata. Cada um registra 66% de menções negativas e abarca cerca de 35% do volume total de citações. A confiança nos dois também registra percentual igual, estando presente em apenas 13% dos posts.

Essa formatação faz com que as crises que envolvem um acabem reforçando o desgaste do outro, pois cada ato desperta as torcidas e o debate entre elas. O retrato lembra 2022, embora exista agora um elemento novo. O centro cresceu. Os moderados se tornaram um grupo mais volumoso e mais atento ao comportamento das lideranças políticas. Essa parcela do eleitorado observa a cena com cuidado e revela um medo de ter que repetir a lógica da escolha do menos pior.

Os números mostram essa mudança de humor de forma clara. Quando se compara o antes e o depois da prisão, fica evidente como se comportam os quatro nomes mais mencionados nas redes. As menções negativas a Lula e a Bolsonaro subiram cinco pontos. No caso de Tarcísio, o aumento da negatividade foi de seis pontos, alimentado pela cobrança de apoiadores por gestos mais enfáticos em defesa do ex-presidente. A única melhora foi a de Ciro Gomes, que ganhou três pontos positivos, por conta da disseminação de vídeos em que critica os dois polos. Mesmo assim, a rejeição acumulada impede que ele avance como terceira via.

Nesse cenário, crises não reorganizam o tabuleiro. Apenas reforçam o ambiente que já está posto. A forma como o episódio da tornozeleira eletrônica foi absorvido ilustra esse processo. A tentativa de Bolsonaro de abrir o equipamento tinha potencial para produzir um choque político mais profundo. No entanto, a narrativa médica ocupou o espaço da controvérsia e diluiu o impacto, atenuando a ideia de que planejava uma fuga. A discussão migrou rapidamente para o segundo plano, convertida em ruído episódico.

Os movimentos políticos que surgiram após a prisão seguiram padrões já conhecidos. A direita tentou impulsionar discursos pró-anistia, mas a mobilização ficou restrita ao núcleo mais engajado do bolsonarismo. A esquerda, por sua vez, retomou a estratégia de ironizar manifestações pró-Bolsonaro, associando-as a episódios caricatos ocorridos durante os atos em frente aos quartéis, numa tentativa de minar a credibilidade dos apoiadores. São reações previsíveis, que mantêm vivas identidades já consolidadas e não ampliam o debate.

Entre os moderados, o sentimento dominante é de desânimo. A impressão geral nesse núcleo é que o país permanece preso ao passado, sem oferecer renovação. Há, portanto, espaço para o surgimento de um outsider, mas esse nome ainda não apareceu. Mesmo que surja, precisará atravessar o bloqueio partidário e enfrentar estruturas que se protegem de mudanças profundas. O momento não oferece esperanças e, sem esse incentivo, se torna um ponto de lamentação, mas não de mobilização das massas.


Sergio Denicoli, o autor deste comentário, é pós-doutor pela Universidade do Minho e pela Universidade Federal Fluminense. Foi repórter da Rádio CBN Vitória, da TV Gazeta (Globo-ES), e colunista do jornal A Gazeta. Atualmente, é CEO da AP Exata e cientista de dados. Publicadooriginalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.11.25

Direita não precisa mais de Bolsonaro

Pá de cal foi jogada pelo próprio Jair, que derreteu sua tornozeleira e seu capital político. Candidaturas alternativas de direita ainda têm longo caminho e grande pedra chamada PF

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em casa, em novembro, onde cumpria prisão domiciliar - Sérgio Lima - 21.nov.25/AFP

Jair Bolsonaro derreteu sua tornozeleira e seu capital político. Se antes era a direita que precisava do bolsonarismo, agora o cenário mudou.

Há meses o bolsonarismo estava em crise. O número de apoiadores em protestos de rua declinou, assim como seu impacto nas redes sociais. Para piorar, o fim do tarifaço para produtos agrícolas enterrou de vez a estratégia de Eduardo Bolsonaro para salvar o pai.

O fracasso retumbante de Eduardo fez com que passasse o bastão para o irmão mais velho, Flávio Bolsonaro. Porém, após o fiasco de uma caminhada promovida em outubro, na qual compareceram 2.000 pessoas, Flávio tentou reacender o ânimo dos apoiadores, mas apenas acelerou o enterro político de sua família.

A pá de cal foi jogada pelo próprio Jair. O vídeo que mostra o ex-presidente admitindo ter usado um ferro de solda para danificar sua tornozeleira eletrônica foi recebido com incredulidade por vários apoiadores que se manifestaram no YouTube.

A dificuldade em confrontar a realidade humilhante foi tamanha que houve quem afirmasse que o vídeo teria sido produzido por inteligência artificial. Outros apontaram que o vídeo seria falso porque o rosto de Jair não aparece, apenas sua voz. E, finalmente, houve quem preferisse, assim como a ex-primeira-dama, se resignar e apelar a Deus.

Bolsonaro não conseguiu se livrar da tornozeleira, mas o episódio certamente livrou a direita da dependência em relação ao ex-presidente e sua família.

Uma pesquisa da Quaest divulgada no dia 15 de novembro já indicava que a direita não-bolsonarista (22%) reúne quase o dobro dos eleitores bolsonaristas (13%). Além disso, 31% dos eleitores, chamados de independentes por não se alinharem nem à esquerda nem à direita, rejeitam intensamente candidatos da família Bolsonaro: 70% não votariam em Michelle, 73% não votariam em Jair e 80% não votariam em Eduardo.

Segundo Felipe Nunes, diretor da Quaest, este segmento será decisivo para as eleições presidenciais de 2026. Considerando o nível de perplexidade e negação frente à tornozeleira queimada entre os próprios apoiadores de Jair, é de se imaginar o impacto negativo do episódio entre a direita não-bolsonarista e os eleitores independentes.

No entanto, ainda que tenham se livrado de Bolsonaro, candidaturas alternativas de direita ainda têm um longo caminho a percorrer. E, no caminho, há uma grande pedra chamada Polícia Federal.

Camila Rocha, a autora deste artigo, é doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Publicado  originalmente na Folha de S. Paulo, em 24.11.25

Decisão de Moraes foi 'prudente', e Bolsonaro fica mais perto de cumprir pena na cadeia, analisam especialistas

 Os juristas afirmam ainda que os pedidos da defesa de Bolsonaro para que o ex-presidente cumpra sua pena em prisão domiciliar dificilmente serão aceitos agora.

Jair Bolsonaro foi preso preventivamente por risco de fuga, segundo a PF (AFP via Getty Images)

Após Jair Bolsonaro (PL) ser preso preventivamente pela Polícia Federal (PF) em Brasília no sábado (22/11), especialistas em Direito Penal e Criminal avaliam que a ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi uma decisão "prudente" diante dos fatos expostos.

"Nesse momento, uma prisão domiciliar me parece muito improvável", avalia Thiago Bottino, professor da FGV Direito Rio.

Moraes decidiu revogar a prisão preventiva em regime domiciliar, na qual Bolsonaro estava desde o início de agosto, a pedido da Polícia Federal (PF), após ser identificado um risco concreto e iminente de fuga.

Segundo a decisão, esse risco foi identificado após o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), seu filho, convocar uma "vigília" em apoio ao pai nas proximidades da residência do ex-presidente e ser detectada uma tentativa de violação da tornozeleira que ele usava, o que Bolsonaro admitiu posteriormente ter ocorrido.

Bolsonaro foi transferido para a Superintendência da Polícia Federal no Distrito Federal, onde deve permanecer em uma Sala de Estado, local de detenção especial reservado para autoridades.

Em nota, a defesa do ex-presidente disse que a decisão de Moraes causou "profunda perplexidade, principalmente porque, conforme demonstra a cronologia dos fatos está calcada em uma vigília de orações".

"A Constituição de 1988, com acerto, garante o direito de reunião a todos, em especial para garantir a liberdade religiosa. Apesar de afirmar a 'existência de gravíssimos indícios da eventual fuga', o fato é que o ex-presidente foi preso em sua casa, com tornozeleira eletrônica e sendo vigiado pelas autoridades policiais", disseram ser advogados.

"Além disso, o estado de saúde de Jair Bolsonaro é delicado e sua prisão pode colocar sua vida em risco. A defesa vai apresentar o recurso cabível."

Ainda no sábado, Paulo Cunha Bueno, advogado do ex-presidente, falou a jornalistas que "a tornozeleira é uma narrativa que tenta justificar o injustificável", mas não respondeu sobre a violação causada por Bolsonaro no equipamento.

A BBC News Brasil questionou a defesa de Bolsonaro sobre a tentativa do ex-presidente de violar a tornozeleira, como ele próprio admitiu à PF, mas não recebeu resposta até o momento.

A decisão de Moraes ainda será submetida ao referendo da Primeira Turma do STF, que deve realizar uma sessão virtual extraordinária na segunda-feira, das 8h às 20h.

Para o criminalista Maurício Dieter, professor da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), agora que Bolsonaro está na Superintendência da Polícia Federal, será possível modular a possibilidade concreta do ex-presidente cumprir sua pena fora da prisão domiciliar.

"O arranjo feito na Superintendência da Polícia Federal para recebê-lo com auxílio médico vai ser uma afirmação de que é possível ele começar a cumprir pena em um estabelecimento prisional ordinário", afirma Dieter.

'Prisão domiciliar não era suficiente para impedir fuga'

Para Thiago Bottino, os três argumentos principais que embasam a decisão do ministro Alexandre de Moraes são os indicativos de tentativa de rompimento da tornozeleira eletrônica, a convocação de uma vigília nas proximidades da residência onde o ex-presidente cumpria a prisão domiciliar e as fugas de aliados para o exterior.

Na sexta-feira (21/11), Moraes havia decretado a prisão preventiva do deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), condenado a 16 anos de prisão por golpe de Estado na mesma ação penal que condenou Bolsonaro. O parlamentar deixou o Brasil em setembro, no mês em que a ação foi julgada pela Primeira Turma do STF, e não voltou desde então.

Em sua decisão, Moraes também cita a ida do filho de Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) para os Estados Unidos. O parlamentar viajou com a família para os Estados Unidos durante o Carnaval, no fim de fevereiro, e não retornou ao Brasil.

Ele se tornou réu em uma ação no STF após ser denunciado por articular sanções contra o Brasil e autoridades brasileiras, na tentativa de influenciar o julgamento de seu pai. O deputado nega que esta fosse sua intenção e afirma que buscava denunciar supostos abusos de Alexandre de Moraes.

Bolsonaro foi transferido para a Superintendência da Polícia Federal no Distrito Federal

A fuga da deputada licenciada Carla Zambelli (PL-SP) para a Itália, após ser condenada pelo STF a 10 anos de prisão por envolvimento na invasão do sistema do Conselho Nacional de Justiça também foi usada como exemplo.

Para Bottino, os argumentos fazem sentido especialmente porque Bolsonaro já havia tido a prisão preventiva domiciliar decretada por descumprimento das medidas cautelares.

"Diante desses fatos novos, e também da iminência do trânsito em julgado, criou-se um cenário em que a prisão domiciliar talvez não fosse suficiente para impedir uma fuga", diz o especialista, que vê "prudência" na decisão de Moraes.

"A prisão preventiva serve justamente, entre outras situações, para impedir que a pessoa fuja."

O criminalista Maurício Dieter concorda com a avaliação. "Ramagem mostrou que precauções ordinárias para evitar risco de fuga não foram suficientes", afirma.

"Considerando esse precedente e a violação da tornozeleira, o ministro achou prudente decretar a prisão preventiva, que é uma espécie de preâmbulo do início da execução da pena privativa de liberdade em regime fechado, à qual ele já foi condenado."

'Repetidos descumprimentos'

Em sua decisão, Alexandre de Moraes também lista todas as medidas decretadas durante o processo de Bolsonaro, assim como os repetidos descumprimentos.

Para Bottino, esse fator também deve ser levado em consideração. "Diante da notícia enviada pela Polícia Federal de que teria havido um novo descumprimento com a tentativa de rompimento da tornozeleira, o ministro ficou em uma situação em que não tinha outra decisão a tomar", opina.

O Código de Processo Penal autoriza a decretação da prisão preventiva para garantir a ordem pública ou econômica, o andamento do processo ou a aplicação da lei. A preventiva também pode ser decretada em caso de descumprimento de medidas cautelares.

Em 17 de julho, antes do julgamento no STF, Moraes impôs uma série de medidas cautelares a Bolsonaro, entre elas o uso de tornozeleira eletrônica, recolhimento domiciliar noturno e proibição de usar redes sociais, direta ou indiretamente.

Posteriormente, em agosto, o ministro determinou a prisão domiciliar do ex-presidente, alegando descumprimento das medidas.

Entre outras coisas, Bolsonaro apareceu por meio de uma ligação de vídeo no celular do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) em manifestações de apoiadores em São Paulo, e depois em um vídeo na rede social de Flávio Bolsonaro.

Bolsonaro foi detido após decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). (Crédito,Europa Press via Getty Images)

A vigília e a tornozeleira

Alexandre de Moraes pontua na nova ordem de prisão de Bolsonaro que a convocação de vigília por seu filho Flávio poderia gerar aglomerações capazes de dificultar a fiscalização policial e a aplicação de decisões judiciais.

A convocação da vigília foi interpretada como parte de uma estratégia para "prejudicar o cumprimento de eventuais medidas judiciais" e "dificultar a aplicação da lei penal" nas horas que antecedem o possível trânsito em julgado da condenação.

A decisão descreve em detalhes o vídeo publicado por Flávio Bolsonaro na rede social X, no qual ele convoca apoiadores a se deslocarem para as proximidades da residência do ex-presidente.

Conforme aponta o documento, Flávio afirmou: "Você vai lutar pelo seu país ou assistir tudo do celular aí do sofá da sua casa? Eu te convido para lutar com a gente".

"Com a sua força, a força do povo, a gente vai reagir e resgatar o Brasil desse cativeiro que ele se encontra hoje", prosseguiu.

Para Maurício Dieter, a Justiça brasileira entendeu que a vigília poderia criar "uma distração que viabilizaria a fuga". E somada à tentativa de violação da tornozeleira, essa hipótese ficaria ainda mais forte.

De acordo com documento da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Distrito Federal (SEAPE), o Sistema de Monitoração gerou um alerta às 00h07 deste sábado, indicando violação no dispositivo.

O relatório indica que o equipamento apresentava "sinais claros e importantes de avaria", com marcas de queimaduras em toda sua circunferência, no local de encaixe/fechamento do case.

Questionado por policiais que foram até a residência do ex-presidente verificar o ocorrido, Bolsonaro confirmou que fez uso de ferro de solda para tentar abrir o equipamento. Em seguida, a tornozeleira foi trocada.

'Sala de Estado' onde Bolsonaro ficará preso é composta por banheiro reservado, cama, televisão, frigobar, ar-condicionado e uma mesa de trabalho

Aliados de Bolsonaro questionaram o uso da organização de uma vigília como argumento da decisão de Moraes. Segundo ele, haveria um suposto precedente aberto pela prisão do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Entre 2018 e 2019, militares acamparam por vários dias em frente à sede da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, onde Lula ficou preso por 580 dias.

Mas para os juristas, os dois casos não são comparáveis.

Para Dieter, uma das diferenças principais é a natureza dos crimes pelos quais ambos foram acusados.

"Os casos se diferenciam principalmente porque a acusação contra o presidente Lula na época era de corrupção e lavagem de dinheiro, enquanto com Bolsonaro, parte das acusações dizem respeito propriamente ao desafio à ordem constitucional", diz.

Segundo o criminalista, o fato de Bolsonaro ter sido condenado por um crime que tem relação com a mobilização de força política para destituir o Estado de Direito torna a convocação de uma vigília mais grave.

Bottino afirma ainda que o caso de Bolsonaro é distinto porque, além dos seguidos descumprimentos das medidas cautelares, a convocação da vigília foi seguida pela tentativa de rompimento da tornozeleira, gerando suspeitas de que poderia ocorrer uma fuga.

A saúde do ex-presidente e sua prisão domiciliar

Na sexta-feira (21/11), Alexandre de Moraes rejeitou o pedido apresentado pela defesa de Bolsonaro para que ele fique em prisão domiciliar por motivo humanitário.

Posteriormente, Moraes disse que a solicitação estava prejudicada, ou seja, inválida, após a determinação da prisão preventiva neste sábado (22/11).

Apoiadores e familiares do ex-presidente afirmam, porém, que a saúde de Bolsonaro está frágil e que, por isso, a prisão domiciliar seria a melhor escolha.

O deputado Gustavo Gayer (PL-GO) chegou a classificar a prisão preventiva como "crueldade" e acusar o STF de querer "matar" o ex-presidente.

Mas para Thiago Bottino, a decisão de Alexandre de Moraes dá conta das preocupações com a saúde de Bolsonaro ao determinar um atendimento médico em plantão 24 horas.

Além disso, afirma o advogado, o ex-presidente não está hospitalizado ou com a saúde fragilizada a ponto de sua transferência para um outro local apresentar riscos.

Maurício Dieter diz ainda que a preocupação com a saúde de Bolsonaro demostrada na decisão é "incomum", algo "que não acontece com presos ordinários".

"Essa crítica desconhece como a maior parte das pessoas são presas cotidianamente, porque ninguém que é preso tem o privilégio de receber esse atendimento médico integral, com acompanhamento durante o cumprimento da prisão", avalia.

Julia Braun, da BBC News Brasil em Londres (UK), em 24.11.25