quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Eduardo Bolsonaro diz que trabalha por mais sanções de Trump e que pode passar décadas “exilado”

“Ou tenho 100% de vitória, ou 100% de derrota. Ou saio vitorioso e volto a ter uma atividade política no Brasil ou vou viver aqui décadas em exílio”, disse Eduardo Bolsonaro em entrevista a Bela Megale, de O Globo

O deputado federal Eduardo Bolsoaro em entrevista à coluna por videoconferência — Foto: Bela Megale/ O GLOBO

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) disse que continua a atuar nos Estados Unidos pelo aumento das sanções contra o Brasil após seu pai, Jair Bolsonaro, ter a prisão domiciliar decretada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

Em entrevista à coluna, (de Bela Megale n'O Globo) o parlamentar falou que só deixará os EUA se conseguir provocar a saída de Moraes do STF. Disse ainda que não vai renunciar ao seu mandato e que enviará um ofício à Câmara se colocando como alvo de "perseguições".

O deputado também falou do plano de ser candidato à Presidência da República se tiver o apoio do pai e reforçou os elogios a Trump sobre o tarifaço imposto ao Brasil, afirmando que "há um sacrifício a ser feito". Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Hoje começa o tarifaço imposto por Trump. Um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostrou que o PIB brasileiro pode ter um impacto negativo de R$ 19 bilhões e que as exportações brasileiras podem cair US$ 54 bilhões. Vale a pena o Brasil pagar esse preço em nome da anistia do presidente Bolsonaro?

- O presidente Trump colocou que essa era uma questão envolvendo a perseguição a Jair Bolsonaro, seus familiares e apoiadores. Ele apontou para uma crise institucional. Para resolver essa crise, a gente tem que dar uma sinalização aos americanos. A melhor maneira, na minha sugestão, é a anistia ampla, geral e irrestrita. Isso colocaria o Brasil numa boa condição na mesa de negociações junto ao governo dos EUA. Não sou eu que levo a mensagem que sou responsável por essas tarifas, mas sim o conjunto da obra feito no Brasil que é liderado pelo ministro Alexandre de Moraes.

O senhor chegou a fazer alguma gestão junto ao governo dos EUA para tentar reverter ou amenizar esse tarifaço?

- A gente leva um pouco dessa perspectiva econômica, mas não me sinto na posição de desautorizar o Trump. Entendo que ele é muito mais qualificado do que eu para escolher quais armas utilizar nessa briga, até porque tem uma carreira de muito êxito empresarial, é um excelente negociador. Mesmo como político, ele tem tido sucesso em 100% das empreitadas em que exigiu um bom resultado para os Estados Unidos. Dou graças a Deus que ele voltou suas atenções para o Brasil. Acho que tem valido a pena.

O senhor não recebeu queixas do agronegócio, que é um dos mais prejudicados pela medida, ou críticas de outros segmentos por sua atuação nos EUA?

- Até agora nenhum fazendeiro ou produtor agrícola me ligou para dizer que eu deveria parar com as minhas ações. Pelo contrário. Tenho recebido parabéns e tido muito apoio nas redes sociais. As pessoas entendem que há um sacrifício a ser feito e que o pior mal é essa ditadura de toga comandada pelo ministro Alexandre de Moraes. Confesso que antes disso tudo acontecer, eu e (o ex-apresentador de Jovem Pan) Paulo Figueiredo, que tem me acompanhado nessas reuniões, assumimos o risco de talvez até, momentaneamente, aumentar o prestígio do Lula, aumentar a sua popularidade. Mas o que a gente viu, de acordo com as pesquisas, foi uma oscilação do Lula. E a gente tem certeza que, quando o resultado definitivo vier, com a anistia, isso vai ser revertido a nosso favor em termos de popularidade. Mas isso daí é secundário. Nosso cálculo não é eleitoral.

O senhor trabalha para que os EUA aumentem as sanções sobre o Brasil após a prisão domiciliar de Bolsonaro?

- Trabalho sim, neste sentido. Estou levando a prisão ao conhecimento das autoridades americanas e a gente espera que haja uma reação. Não é da tradição do governo Trump receber essa dobrada de aposta do Alexandre de Moraes e nada fazer. O que eles vão fazer, eu não sei. Não sei se isso vai passar pela mesa do Trump ou pelo secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio. Espero que haja uma reação nos próximos momentos.

Vê chances dos presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, serem incluídos em algum tipo de sanção por parte do governo americano?

- Uma vez que não é pautado o impeachment do ministro Alexandre de Moraes no Senado, uma vez que o presidente da Câmara não pauta uma anistia, eles estão entrando no radar das autoridades americanas. As pessoas que estão em posição de poder têm responsabilidades e estão sendo observadas pelas autoridades americanas. Todos eles estão no radar.

Pensa em retornar ao Brasil ou teme ser preso?

- Se eu retornar, sei que vou ser preso. Primeiramente, tenho que tirar o Alexandre de Moraes dessa equação, anular ele, isolá-lo. A gente tem que aprovar uma anistia para que alcance todos os perseguidos por Moraes. Os meus planos aqui são: ou tenho 100% de vitória, ou 100% de derrota. Ou saio vitorioso e volto a ter uma atividade política no Brasil, ou vou viver aqui décadas em exílio. É o que eu estou assumindo, estou aceitando esse risco, porque eu acho que vale a pena.

Qual tipo de visto ou autorização do governo americano o senhor possui que lhe permite ficar por tanto tempo nos EUA?

- Não vou entrar nos detalhes, para me proteger a mim e minha família. O que posso dizer é que eu e minha família temos condição de ficar legalmente aqui nos EUA durante um bom tempo. Meu visto é algo que não me preocupa.

Como pretende manter seu mandato como deputado federal vivendo no exterior?

- Estou rascunhando um ofício para mandar para o presidente da Câmara, Hugo Motta, sobre a impossibilidade de eu retornar ao Brasil, devido a uma clara perseguição. Vou apresentar e, se eles decidirem por não reconhecer os meus argumentos, será mais uma demonstração de que eu sou vítima desse sistema. Posso garantir que eu não vou renunciar. Se for necessário, se alguém for tomar alguma medida para que eu perca o mandato, vai ser aí do Brasil, vai ser do STF ou do Congresso. Acho, inclusive, que existe margem para, por exemplo, ser acatada a sugestão de mudança de regimento para eu possa fazer as votações por meio eletrônico.

Quais os seus planos para 2026? Com Bolsonaro inelegível, gostaria de concorrer à Presidência?

- Essa é uma decisão que passa pelo presidente Bolsonaro. Mas, antes, tenho que ter sucesso nessa questão de resgate da normalidade democrática no Brasil e no isolamento do Alexandre de Moraes, na anistia, em todas essas pautas. Porque isso daria tranquilidade para eu voltar ao Brasil sem ser preso. Se, nesse cenário, Jair Bolsonaro quiser me apoiar, eu sairia candidato a presidente da República.

O senhor chegou a fazer críticas públicas a expoentes da direita como o governador Tarcísio de Freitas e o deputado Nikolas Ferreira. Como está a relação com eles?

- Eu conversei com o Nikolas por uma chamada de telefone intermediada pelo Paulo Figueiredo. Prefiro nem falar muito para não dar mais pano pra manga. Não é o foco. O foco aqui é o Alexandre de Moraes e combater essa crise institucional.

E sobre o Tarcísio?

- Com relação ao Tarcísio, cada um tire suas conclusões. O Tarcísio ainda acredita numa estratégia de diálogo, de colocar panos quentes e ver se consegue extrair alguma benesse disso. Eu não acredito, porque foi infrutífero no passado. O caso mais notório é aquela cartinha do (Michel) Temer, sugerida pelo ex-presidente depois do 7 de setembro (de 2021) onde, teoricamente, dizem, havia um acordo. Não sei, porque eu não participei. Mas, esse acordo não foi respeitado. O Moraes dobrou a aposta e continuou perseguindo. Por que eu vou sentar com um cara desse? Por isso que eu tenho sido muito ácido na minha crítica ao Moraes, colocando ele na prateleira de um psicopata. Não coloco nessa mesma prateleira os outros ministros do STF. Acredito que existe um caminho onde dá para resgatar a normalidade do Brasil, em que pese haver diversas discordâncias em decisões dos ministros, mas que dá para garantir uma normalidade mínima apenas tirando Moraes do tribunal.

O senhor vê alguma chance de diálogo com o STF? Já existiu alguma tentativa de construir pontes?

- Vejo espaço para isso. Nos bastidores, tem gente falando a todo momento. Isso nunca parou. Agora está um pouquinho mais complicado, porque eu estou aqui nos EUA e não posso ir ao Brasil. E várias autoridades brasileiras não podem vir para cá. Mas se deixarem o Congresso votar uma anistia, eu tenho certeza que passa. Mais de 300 deputados federais já colocaram sua assinatura em apoio ao requerimento de urgência do projeto de lei. Se isso ocorrer, eu tenho certeza que o Brasil pode até entrar numa boa mesa de negociação para reduzir as tarifas impostas pelo governo dos EUA. Não quero destruir o STF. Eu não quero queimar a floresta inteira. Eu não quero acabar com tudo. Estou utilizando um passo a passo para pressionar as autoridades a recobrar a consciência.

A pesquisa do Datafolha apontou que 61% dos eleitores dizem que não votariam em um candidato que prometesse livrar de qualquer pena Jair Bolsonaro e seus aliados acusados de planejar um golpe contra a democracia e os condenados pelo 8 de janeiro. Mas, nos EUA, o senhor apresenta essa pauta aos americanos como se fosse uma unanimidade nacional.

- Não confio em nada do Datafolha, tá? Mas, independentemente disso, é uma questão de justiça, não é uma questão de você fazer uma pesquisa popular. Se eu estivesse tão impopular assim, minhas redes não estariam crescendo tanto. Ganho 100 mil seguidores a cada dois, três dias. Há pouco tempo, eu tinha 6,4 milhões de seguidores no Instagram. Agora estou com 6,8 milhões. E isso de um tempinho antes da Lei Magnitsky para cá. Acho que a gente está no caminho certo.

Seu último salário como deputado foi recebido em março. Como se mantém nos EUA com sua família?

- Não dependo só do meu salário. Como não tem dinheiro público vindo para mim, então eu não tenho mais o que publicizar nesse sentido. Aceito discutir publicamente só dinheiro público.

O STF considerou o envio de R$ 2 milhões feito pelo ex-presidente ao senhor como um indício concreto de que haveria uma articulação para interferir na atuação do Supremo. O senhor recebeu esses R$ 2 milhões de Bolsonaro?

- Ele fez uma transferência para mim de R$ 2 milhões e isso não é crime nenhum. Ele desejava ajudar o filho num momento depois de meses aqui em exílio, nos EUA. O último salário que eu recebi pela Câmara foi em março. Falar que isso é um financiamento de uma atividade ilícita? Qual atividade ilícita? Se eu estou fazendo alguma coisa errada aqui é com o respaldo das autoridades americanas. É incoerente Moraes querer me colocar no inquérito e não colocar, por exemplo, Marco Rubio e o presidente Trump.

Quem são seus interlocutores na Casa Branca?

- Falar dessas pessoas não é conveniente, elas podem acabar sendo expostas. Sei que vai ter gente que vai querer queimar a ponte. O que eu posso comentar é aquilo que já é público, como as reuniões com os parlamentares como María Elvira Salazar, Richard McCormick e Chris Smith. Com o (ex-estrategista político de Trump) Steve Bannon, eu posso falar, porque fui ao programa dele algumas vezes de maneira virtual e, uma vez, pelo menos, presencialmente. Bannon não está dentro do governo, mas conhece todo mundo. Já participou do primeiro mandato de Trump, da sua estratégia eleitoral de 2016. Ele vive nesse meio político, conhece as pessoas, sabe dos temperamentos, sabe como falar com cada um e tem ajudado bastante dentro desse nível de soft power.

Com que frequência o senhor vai à Casa Branca?

- Desde que eu estou aqui, quase toda semana. Posso falar isso tranquilamente.

Bela Megale, Jornalista, obteve e editou esta entrevista exclusiva para O Globo, onde atua cobrindo as áreas de investigações criminais, bastidores do poder e a vida política de Brasília. Publicado originalmente em 06.08.25.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Lei Magnitsky contra Moraes é busca por impunidade de 'aliados próximos' de Trump, diz ONG americana

Aprovada durante o governo de Barack Obama, em 2012, a Lei Magnitsky foi criada para punir autoridades russas envolvidas na morte do advogado Sergei Magnitsky, que denunciou um esquema de corrupção estatal e morreu sob custódia em Moscou

O ex-presidente Jair Bolsonaro (R), sentado ao lado de seu advogado Celso Villardi (L), depõe perante o juiz Alexandre de Moraes durante uma sessão de julgamento do Supremo Tribunal Federal que julga a participação dos acusados da tentativa de golpe de Estado em janeiro de 2023, em Brasília, 10 de junho de 2025. (Getty Images).

A sanção ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes pela Lei Global Magnitsky, anunciada nesta quarta-feira (30/07) pelo governo americano serviu "principalmente para destacar a busca do governo de Donald Trump pela impunidade de aliados políticos."

A afirmação é da Humans Rights First, organização sediada nos Estados Unidos de proteção de direitos humanos criada em 1978.

O governo americano justificou a medida afirmando que o ministro seria responsável por "uma campanha opressiva de censura, detenções arbitrárias que violam os direitos humanos e processos politizados, inclusive contra o ex-presidente Jair Bolsonaro".

"As sanções contra Moraes parecem se basear, pelo menos em parte, na visão contestada de que brasileiros investigados ou processados por ações relacionadas ao ataque de janeiro de 2023 às instituições governamentais brasileiras estão, na verdade, sendo detidos arbitrariamente por liberdade de expressão", diz a organização, em nota publicada em seu site.

Bolsonaro é réu no processo que tramita no STF por tentativa de golpe de Estado. Está usando tornozeleira eletrônica e está impedido de usar redes sociais.

Para a ONG, especializada na Lei Magnitsky, a preocupação americana com o processo de Bolsonaro seria mais crível "se fosse evidente em outros contextos, ou acompanhada de ações para lidar com abusos muito mais graves contra repórteres do que os alegados." Destacou, por exemplo, a crescente crise de jornalistas que são mortos por seu trabalho, tanto na América Latina quanto pelo Oriente Médio.

A ONG diz que essa foi a primeira aplicação da lei nesta gestão de Trump. "E esta primeira ação parece ter como objetivo mais acabar com a responsabilização do que em promovê-la", diz Adam Keith, diretor sênior de responsabilização da Human Rights First.

Ele destacou que no primeiro mandato de Trump e no do sucessor, Joe Biden, a lei tinha sido usada para promover responsabilização por corrupção no Congo, por execuções extrajudiciais cometidas por forças de segurança em Bangladesh e pela condenação de ativistas de direitos humanos na Rússia à prisão por décadas.

"O anúncio não continha qualquer indício de apoio à responsabilização pelo ataque de 2023 às instituições democráticas do Brasil — o que não é surpresa, já que o presidente Trump deixou claro que está disposto a iniciar uma guerra comercial e outras medidas extremas para proteger o ex-presidente Jair Bolsonaro do escrutínio a esse respeito", disse ele.

Para a ONG, o governo americano está incorporando à política externa dos EUA a noção de que qualquer esforço de responsabilização que afete aliados políticos de Trump deve ser descreditado e interrompido.

A organização destacou ainda que o Departamento de Estado teria violado a lei ao anunciar nominalmente que negaria a entrada de Moraes nos EUA, já que tradicionalmente as decisões de visto são tidas como sigilosas.

A BBC News Brasil procurou o órgão para que se manifestasse sobre a afirmação. Após a publicação da reportagem, uma fonte do Departamento de Estado afirmou que o órgão não se manifesta publicamente sobre casos individuais de vistos.

Em discurso na sexta-feira (1/8), Moraes comentou a nova sanção contra ele, durante cerimônia de abertura do segundo semestre do Judiciário.

"Esse relator vai ignorar as sanções que foram aplicadas e continuar trabalhando como vem fazendo, tanto no plenário quanto na Primeira Turma, sempre de forma colegiada", afirmou o magistrado.

O ministro comparou a atuação de bolsonaristas para conseguir punições dos EUA ao Brasil e aos presidentes da Câmara e do Senado à prática de "milicianos". E reafirmou que considera que estão sendo cometidos pelo grupo os crimes de coação no curso do processo, obstrução de investigação e atentado à soberania nacional.

O que é a Lei Magnitsky e como ela pode afetar Moraes?

Aprovada durante o governo de Barack Obama, em 2012, a Lei Magnitsky foi criada para punir autoridades russas envolvidas na morte do advogado Sergei Magnitsky, que denunciou um esquema de corrupção estatal e morreu sob custódia em Moscou.

Há três consequências principais para quem é colocado na lista de sancionados pela legislação: proibição de viagem aos EUA, congelamento de bens nos EUA e proibição de qualquer pessoa ou empresa nos EUA de realizar transações econômicas com o indivíduo penalizado. Os efeitos disso no Brasil ainda não são claros.

Moraes já estava impedido de entrar em território americano. O secretário de Estado americano, Marco Rubio, já havia anunciado, em 18 de julho, a revogação do visto do ministro, seus familiares e "aliados" — sem detalhar quem são esses.

O último ponto previsto pela lei, que trata das transações financeiras, é o que costuma causar maiores problemas às pessoas sancionadas pelos EUA, afirmou Natalia Kubesch, advogada da Redress — entidade britânica que ajuda vítimas de tortura e abusos de direitos humanos em diversas partes do mundo — em entrevista à BBC News Brasil.

Para EUA, Moraes é 'juiz ativista' e um 'ator estrangeiro maligno'

O departamento de Estado do governo americano disse na quinta-feira (31/7) que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes é um "juiz ativista" e um "ator estrangeiro maligno" que abusa de sua posição de autoridade para minar a liberdade de expressão de cidadãos americanos.

O governo americano não descartou novas sanções contra brasileiros — mas também não deu nenhum indício concreto sobre novas medidas.

As declarações foram dadas por Tommy Pigott, porta-voz do secretário de Estado Marco Rubio, durante uma entrevista a jornalistas em Washington.

"Em 31 de julho, o secretário Rubio anunciou sanções americanas contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que usou seu cargo para autorizar prisões preventivas arbitrárias e minar a liberdade de expressão", disse Pigott.

"Moraes abusou de sua autoridade ao se engajar em um esforço politicamente motivado para silenciar críticos políticos com a emissão de ordens secretas, obrigando plataformas online — incluindo empresas de mídia social americanas — a banir indivíduos por postarem discursos protegidos [pelo direito à liberdade de expressão]."

Luiz Fernando Toledo, de Londres - UK para a BBC News Brasil, em 01.08.25 (*com informações de Julia Braun e Daniel Gallas).

domingo, 3 de agosto de 2025

Trump, o fora da lei

Seu furor protecionista não ameaça só o livre comércio, mas o Estado de Direito. Judiciário dos EUA tem a chance de restaurar as prerrogativas do Congresso e o respeito à Constituição

A Corte de Apelações do Circuito Federal dos Estados Unidos ouviu na semana passada os argumentos finais sobre a legalidade das tarifas impostas por Donald Trump a pretexto de uma “emergência nacional”. O caso, movido por empresas importadoras e uma coalizão de Estados, é mais que uma disputa tributária: trata-se de um teste decisivo sobre os limites do poder presidencial. E, por extensão, uma batalha sobre o futuro do Estado de Direito no país.

As tarifas fazem parte do infame regime batizado de “Dia da Libertação”, anunciado em abril, que impôs uma alíquota de 10% sobre praticamente todas as importações, com aumentos adicionais para países como Índia (25%) ou Brasil (50%). Para justificar a manobra, o governo recorreu à Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (Ieepa, na sigla em inglês), criada em 1977 para permitir sanções econômicas em casos de ameaças extraordinárias vindas do exterior. O problema: o déficit comercial americano – invocado como emergência – é tudo, menos extraordinário. Como apontaram os próprios juízes, trata-se de um “fenômeno persistente há meio século”.

Em maio, a Corte de Comércio Internacional já havia concluído que o presidente ultrapassou os limites da Ieepa ao usá-la para redesenhar, unilateralmente, a estrutura tarifária do país. A decisão foi suspensa pela instância superior, que agora analisa o caso. Durante as audiências, o ceticismo foi evidente: “É difícil enxergar como o Congresso teria pretendido dar ao presidente autoridade irrestrita para rasgar a tabela tarifária que levou anos para ser construída”, disse o juiz Timothy Dyk. O argumento do governo – de que o termo “regular importações” implicitamente autoriza a criação indiscriminada de tarifas – é um abuso sem precedentes. Nenhum outro presidente, em mais de quatro décadas de vigência da Ieepa, ousou tanto.

A Constituição é cristalina: compete ao Congresso o poder de legislar sobre tarifas. A delegação dessa prerrogativa ao Executivo, quando ocorre, deve ser explícita, limitada e vinculada a procedimentos específicos. A interpretação maximalista de Trump não apenas atropela o Legislativo, como desafia os fundamentos do sistema de freios e contrapesos. Aí reside o verdadeiro perigo. As tarifas são o sintoma. A doença é o projeto de um Executivo hipertrofiado que reivindica poderes imperiais.

Desde seu primeiro mandato, Trump vem sistematicamente testando os limites institucionais: declarou emergências para construir um muro fronteiriço sem aprovação orçamentária; desafiou o Congresso ao se apropriar da Guarda Nacional da Califórnia; ameaçou juízes e promotores; sugeriu que seu adversário político merecia “pena de morte” – isso sem falar na tentativa de obliterar a transferência de poder, instando manifestantes a invadir o Congresso para impedir a ratificação das urnas em 6 de janeiro de 2021. Em seus atos e palavras, Trump vê as instituições democráticas não como garantias, mas como obstáculos.

O caso das tarifas sintetiza esse ethos autoritário: um presidente que usa poderes de guerra para taxar tênis canadenses e brinquedos alemães, que trata o comércio como instrumento de chantagem e que vê em cada desacordo diplomático uma emergência nacional. E tudo com efeitos econômicos devastadores. Empresas alertam para o aumento de preços e para a desorganização das cadeias de suprimentos. Grupos como a U. S. Chamber of Commerce e a Consumer Technology Association ingressaram na ação denunciando o impacto sobre investimentos, empregos e inflação.

Não se trata, portanto, apenas de uma disputa sobre políticas comerciais. Trata-se de impedir que um presidente transforme o livre comércio – e a própria Constituição – em reféns de seu voluntarismo. Mais cedo ou mais tarde a questão precisará ser solucionada pela Suprema Corte. O desfecho do processo poderá definir os limites do Executivo nos anos por vir. Que a Justiça se recorde de que, numa democracia digna desse nome, o presidente não pode fabricar “emergências” para contornar o Congresso e suspender o império da lei.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 03.08.25

Como as Forças Armadas disseram ‘não’, Bolsonaro recorreu aos EUA para o golpe

É assustador que um ex-presidente, um deputado desertor e um imigrante brasileiro estarem por trás desse ataque dos EUA ao Brasil

Jair Bolsonaro com os filhos Flávio, Eduardo e Carlos  Foto: Rafael Carvalho/Gov. de transição

O ex-presidente Jair Bolsonaro e seus filhos não desistem de dar um golpe no Brasil. Como as Forças Armadas não embarcaram na aventura em 2023, eles recorreram a Donald Trump, que é presidente dos Estados Unidos e se acha imperador do mundo, para terminar o serviço. “Cuidado com o andor, porque o santo é de barro”, segundo o ditado. Pois o andor “Deus, Pátria e Família” ruiu e foram todos parar na lama da história.

Eduardo Bolsonaro dizia, sem ruborizar, que “bastava um cabo e um soldado para fechar o Supremo”. Seu pai assumiu a Presidência e escalou, não cabos e soldados, mas sim generais, almirantes e brigadeiros, para lacrar as instituições e a democracia brasileira. As cúpulas militares não caíram na esparrela e, agora, a família põe uma potência estrangeira acima das Forças Armadas. Haja patriotismo!

Fora do Exército, o capitão passou a vida fazendo apologia da ditadura e de mortes de adversários e, como presidente, usou “CPFs” das três forças para o golpe e uma tropa de arruaceiros para acampar nos quartéis e vandalizar os três Poderes. Em vão. E lá se foram os Bolsonaro provocar Trump a jogar seus mísseis contra a soberania, a democracia, indústrias e empregos do Brasil.

A sucessão de absurdos é estarrecedora. Como o presidente de um país...

...Manda uma carta pública ao presidente de outro país exigindo que interrompa “imediatamente” o processo contra um réu por tentativa de golpe? E a soberania? A independência entre Poderes?

...Recorre a uma falsa “emergência” para aplicar uma lei feita para terroristas, organizações criminosas e corruptos contra um ministro do STF?

...Justifica o uso dessa lei com mentiras e ataques à democracia brasileira? A Human Rights Watch e a Transparência Internacional defenderam o Brasil, onde há democracia e o direito à manifestação é livre – desde que não para apologia de crimes e golpes.

...Se mete em questões internas, enquanto atenta contra as leis dos EUA, confronta o Judiciário, nega cidadania a nascidos no país, persegue universidades e estudantes contrários ao genocídio em Gaza, tortura estrangeiros? Quem é Trump para falar de democracia?

...Usa um decreto sem pé nem cabeça para impor o tarifaço ao Brasil, sem argumentos comerciais e citando Bolsonaro e Paulo Figueiredo, neto do último general da ditadura e denunciado na tentativa de golpe?

O mais assustador, porém, é um ex-presidente, um deputado desertor e um imigrante brasileiro estarem por trás desse ataque dos EUA ao Brasil e aos brasileiros. Nada é mais abjeto e detestável do que trair a Pátria. Talvez, só a tortura, que Bolsonaro tanto defende.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é  Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 31.07.25

Por que Trump (e os EUA) podem ter que pagar caro por aumento de tarifas

Em abril, Donald Trump surpreendeu o mundo ao anunciar novas tarifas de importação abrangentes — e suspendeu a maioria delas em meio ao pânico financeiro global resultante.

Donald Trump (Getty Images)

Quatro meses depois, o presidente dos Estados Unidos está promovendo o que ele afirma ser uma série de vitórias, tendo anunciado alguns acordos com parceiros comerciais e imposto tarifas unilateralmente a outros, tudo isso sem a turbulência no mercado financeiro que sua tentativa inicial provocou.

Pelo menos até agora.

Depois de trabalhar para reposicionar os EUA na economia global, Trump agora promete que o país vai colher os frutos das novas receitas, revitalizar a indústria nacional e gerar centenas de bilhões de dólares em investimentos e compras estrangeiras.

Se isso realmente vai acontecer — e se essas ações vão ter consequências negativas —, ainda é uma grande dúvida.

O que está claro até agora, no entanto, é que uma maré que estava virando (suavemente) em relação ao livre comércio, mesmo antes do segundo mandato de Trump, se tornou uma onda que está se espalhando pelo mundo. E embora esteja remodelando o cenário econômico, não deixou o rastro de destruição que alguns poderiam ter previsto — embora, é claro, muitas vezes haja uma defasagem até que o impacto seja totalmente percebido.

Além disso, para muitos países, tudo isso serviu como um alerta — a necessidade de permanecer atento a novas alianças.

Assim, embora o resultado a curto prazo possa ser — na visão de Trump — uma vitória, o impacto sobre seus objetivos gerais é muito menos claro. O mesmo vale para as repercussões a longo prazo, que podem muito bem se revelar bem diferentes para Trump — ou para os EUA que ele vai deixar após seu mandato atual.

O prazo de '90 negócios em 90 dias'

Por todas as razões erradas, o dia 1º de agosto estava marcado na agenda dos formuladores de políticas internacionais. Eles foram avisados de que deveriam chegar a um acordo sobre novos termos comerciais com os EUA até essa data, ou enfrentariam tarifas potencialmente devastadoras.

Embora o assessor comercial da Casa Branca, Peter Navarro, tenha previsto "90 acordos em 90 dias", e Trump tenha oferecido uma perspectiva otimista sobre a conclusão dos acordos, esse prazo sempre pareceu um grande desafio. E foi mesmo.

Quando chegou no fim de julho, Trump havia anunciado apenas cerca de uma dúzia de acordos comerciais — alguns com no máximo uma ou duas páginas, sem as cláusulas detalhadas que eram padrão em negociações anteriores.

O presidente dos EUA, Donald Trump, e o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, celebrando um acordo comercial assinado durante uma reunião na cúpula do G7. (REUTERS/Suzanne Plunkett/Pool)

A tarifa básica de 10% aplicada à maioria dos produtos britânicos causou espanto no início, mas foi um alívio em comparação à taxa de 15% aplicada a outros parceiros comerciais

O Reino Unido foi o primeiro a agir, talvez inevitavelmente. Afinal, o maior pesadelo de Trump é o déficit comercial dos EUA, e o comércio está em equilíbrio quando se trata do Reino Unido.

Embora a tarifa base de 10% aplicada à maioria dos produtos britânicos possa inicialmente ter causado espanto, ela deu uma ideia do que estava por vir — e, no fim das contas, foi um alívio em comparação com a taxa de 15% aplicada a outros parceiros comerciais, como a União Europeia e o Japão, com os quais os EUA têm déficits maiores: US$ 240 bilhões e US$ 70 bilhões, respectivamente, somente no ano passado.

E mesmo esses acordos vieram com condições. Os países que não puderam se comprometer, por exemplo, a comprar mais produtos americanos, muitas vezes enfrentaram tarifas mais altas.

Coreia do Sul, Camboja, Paquistão — à medida que a lista crescia e cartas tarifárias eram enviadas para outros lugares, a maior parte das importações americanas agora é coberta por um acordo ou um decreto presidencial concluído com um breve "obrigado por sua atenção a este assunto".

Capacidade de 'prejudicar' a economia global

Muito foi revelado como resultado disso.

Primeiro, as boas notícias. As negociações dos últimos meses significam que as tarifas mais dolorosas e os alertas de recessão foram evitados.

Os piores temores — em termos de níveis tarifários e possíveis repercussões econômicas (para os EUA e outros países) — não se concretizaram.

Os maiores temores — os alertas de um possível desastre econômico — diminuíram (OHN G MABANGLO/EPA/Shutterstock)

Em segundo lugar, o acordo sobre os termos tarifários, por mais desagradável que fosse, reduziu grande parte da incerteza (utilizada pelo próprio Trump como uma poderosa arma econômica) para o bem — e para o mal.

Para o bem, no sentido de que as empresas podem fazer planos, e investimentos e decisões de contratação que estavam suspensos agora podem ser retomados.

A maioria dos exportadores sabe que tarifas seus produtos enfrentam — e pode descobrir como se adaptar ou repassar o custo aos consumidores.

Essa sensação crescente de certeza gera um clima mais tranquilo nos mercados financeiros, com as ações nos EUA subindo notavelmente.

O presidente dos EUA, Donald Trump, cumprimentando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. (REUTERS/Evelyn Hockstein)

Mas é para o mal, no sentido de que a tarifa típica para vender nos EUA é mais alta do que antes – e mais extrema do que os analistas previram há apenas seis meses.

Trump pode ter enaltecido a dimensão do acordo dos EUA com a União Europeia – mas não se trata dos acordos que derrubavam tarifas e eliminavam barreiras comerciais, como nas décadas anteriores.

Os maiores temores, os alertas de um possível desastre, diminuíram. Mas Ben May, diretor de previsões macroeconômicas globais da Oxford Economics, afirma que as tarifas dos EUA têm o potencial de "prejudicar" a economia global de várias maneiras.

"Elas estão obviamente aumentando os preços nos EUA e reduzindo a renda das famílias", diz ele, acrescentando que as políticas também reduziriam a demanda ao redor do mundo se a maior economia do mundo acabasse importando menos produtos.

Vencedores e perdedores: Alemanha, Índia e China

Não se trata apenas do valor da tarifa, mas da magnitude da relação comercial com os EUA. Assim, embora a Índia possa enfrentar tarifas superiores a 25% sobre suas exportações para os EUA, economistas da Capital Economics estimam que, com a demanda americana representando apenas 2% do Produto Interno Bruto (PIB) indiano, o impacto imediato no crescimento pode ser mínimo.

As notícias não são tão boas para a Alemanha, onde as tarifas de 15% podem reduzir o crescimento deste ano em mais de meio ponto percentual, em comparação ao que era esperado no início do ano.

Isso se deve ao tamanho do seu setor automotivo — o que não ajuda uma economia que pode estar à beira da recessão.

O presidente dos EUA, Donald Trump, mostrando uma tabela de 'tarifas recíprocas'. (Chip Somodevilla/Getty Images)

Enquanto isso, a Índia se tornou a principal fonte de smartphones vendidos nos EUA nos últimos meses, depois que os temores sobre o que poderia acontecer com a China levaram a Apple a transferir sua produção.

Por outro lado, a Índia está ciente de que países como o Vietnã e as Filipinas — que enfrentam tarifas mais baixas ao vender para os EUA — podem se tornar fornecedores relativamente mais atraentes em outros setores.

De modo geral, porém, há um alívio pelo fato de que o impacto, pelo menos, provavelmente será menor do que poderia ter sido. Mas o que já foi decidido aponta para ramificações de longo prazo para os padrões comerciais globais e alianças em outros lugares.

E o elemento de risco introduzido em uma relação de longa data com os EUA deu um impulso adicional à busca do Reino Unido por laços mais fortes com a União Europeia — e obtenção de um acordo comercial com a Índia.

Para muitos países, isso serviu como um alerta — a necessidade de permanecer atento a novas alianças.

Uma ameaça política bastante real para Trump?

À medida que os detalhes são definidos, as implicações para a economia dos EUA também ficam mais claras.

O crescimento no fim da primavera no hemisfério norte foi beneficiado por uma onda de vendas de exportação, já que as empresas se apressaram para evitar tarifas mais altas impostas aos produtos americanos.

Os economistas esperam que o crescimento perca força ao longo do resto do ano.

As tarifas, que aumentaram de uma média de 2% no início do ano para cerca de 17% atualmente, tiveram um impacto notável nas receitas do governo dos EUA — um dos objetivos declarados da política comercial de Trump. Até agora, os impostos de importação arrecadaram mais de US$ 100 bilhões este ano — cerca de 5% da receita federal dos EUA, em comparação com cerca de 2% nos anos anteriores.

O secretário do Tesouro americano, Scott Bessent, disse que espera que a receita tarifária deste ano totalize cerca de US$ 300 bilhões. Para efeito de comparação, os impostos federais sobre a renda geram cerca de US$ 2,5 trilhões por ano.

Os consumidores americanos continuam na linha de frente, e ainda não viram os preços mais altos serem repassados integralmente. Mas, à medida que gigantes do setor de bens de consumo, como Unilever e Adidas, começam a calcular os aumentos de custos envolvidos, um aumento de preços se aproxima — potencialmente o suficiente para adiar o corte de juros desejado por Trump —, e possivelmente reduzir os gastos do consumidor.

Se as tarifas atuais provocarem um realinhamento fundamental, os resultados podem não acabar sendo favoráveis aos EUA (Reuters / Evelyn Hockstein)

As previsões são sempre incertas, é claro, mas isso representa uma ameaça política bastante real para um presidente que prometeu reduzir os preços ao consumidor, e não tomar medidas que os aumentariam.

Trump e outros funcionários da Casa Branca lançaram a ideia de fornecer cheques de reembolso aos americanos de baixa renda — o tipo de eleitor da classe trabalhadora que impulsionou o sucesso político do presidente —, para compensar parte do impacto no bolso do consumidor.

Tal esforço poderia ser complicado, e exigiria a aprovação do Congresso.

É também um reconhecimento tácito de que simplesmente se gabar de novas receitas federais para compensar os gastos atuais e os cortes de impostos, e manter a perspectiva de geração futura de empregos e riqueza no país, é politicamente perigoso para um Partido Republicano que terá que enfrentar os eleitores nas eleições de meio do mandato estaduais e para o Congresso no próximo ano.

Os acordos que ainda precisam ser fechados

Para complicar ainda mais a situação, há muitos lugares onde ainda não se chegou a um acordo – em particular, no Canadá e em Taiwan.

O governo dos EUA ainda não se pronunciou sobre suas decisões para as indústrias farmacêutica e siderúrgica. A questão colossal da China, sujeita a um prazo diferente, continua sem solução.

Trump concordou com uma prorrogação das negociações com o México, outro importante parceiro comercial dos EUA, na manhã de quinta-feira.

Muitos dos acordos firmados foram verbais, e ainda não foram assinados. Além disso, não se sabe se e como as condições vinculadas aos acordos de Trump – mais dinheiro a ser gasto na compra de energia americana ou investido nos EUA – serão realmente cumpridas.

Em alguns casos, líderes estrangeiros negaram a existência das cláusulas enaltecidas pelo presidente.

Quando se trata de avaliar os acordos tarifários entre a Casa Branca e vários países, diz May, "o problema está nos detalhes" — e os detalhes são escassos.

O objetivo geral de Trump — trazer de volta a produção e os empregos para os EUA — pode ter um sucesso muito limitado. (JOHN G MABANGLO/EPA/Shutterstock)

Ficou claro, no entanto, que o mundo recuou do precipício de uma guerra comercial devastadora. Agora, enquanto as nações lidam com um novo conjunto de barreiras comerciais, Trump pretende dar as cartas.

Mas a história nos mostra que seu objetivo geral – trazer de volta a produção e os empregos para os EUA – pode ter um sucesso muito limitado. E os parceiros comerciais de longa data dos EUA, como o Canadá e a União Europeia, podem começar a buscar relações econômicas e políticas que burlem o que eles não consideram mais um aliado econômico confiável.

Trump pode estar se beneficiando da vantagem proporcionada pela posição única dos EUA no centro de uma ordem comercial global que levou mais de meio século para ser estabelecida. No entanto, se as tarifas atuais desencadearem um realinhamento fundamental, os resultados podem não ser favoráveis aos EUA.

Essas questões serão respondidas ao longo de anos, não de semanas ou meses. Enquanto isso, os próprios eleitores de Trump ainda podem ter que arcar com os custos — por meio de preços mais altos, menos opções e crescimento mais lento.

Anthony Zurcher e Dharshini David para a BBC News, em 01.08.25. / Reportagem adicional de Michael Race

'Tarifas e sanções ao Brasil são chantagem', diz Nobel de Economia

"Chantagem". Essa foi a palavra escolhida pelo vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2001, Joseph Stiglitz, para classificar a decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e as sanções impostas ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.


Joseph Stiglitz foi economista-chefe do Banco Mundial e ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2001 (Reuters)

"Eu descreveria [essas medidas] como o presidente Lula o fez. São uma chantagem", diz Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial, à BBC News Brasil em entrevista.

O economista tem acompanhado com atenção o aumento das tensões entre o Brasil e os Estados Unidos desde que Trump anunciou, no dia 9 de julho, que adotaria a tarifa adicional para a importação de produtos brasileiros.

Na ocasião, o presidente norte-americano vinculou as tarifas ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no STF por seu suposto envolvimento em uma trama golpista e à atuação do Judiciário brasileiro em relação a empresas americanas de redes sociais, as chamadas "big techs".

Trump também chamou o julgamento de Bolsonaro de "caça às bruxas". O ex-presidente alega ser inocente no processo.

Desde então, o governo brasileiro respondeu às acusações norte-americanas, disse que o país estaria aberto a negociar, mas que não aceitaria interferência estrangeira em questões domésticas.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu declarações afirmando que Trump não teria sido eleito para "imperador do mundo". Suas declarações, no entanto, foram criticadas por membros da oposição que alegaram que o presidente estaria provocando o líder norte-americano.

No início da semana, porém, Stiglitz divulgou uma carta elogiando a postura de Lula diante de Trump.

"Espera-se que outros líderes políticos demonstrem coragem semelhante diante do bullying do país mais poderoso do mundo", disse Stiglitz.

Ainda nesta semana, o governo norte-americano divulgou a ordem executiva que implementa o tarifaço sobre o Brasil a partir do dia 6 de agosto. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos divulgaram uma lista com quase 700 produtos que estariam isentos da tarifa, o que foi visto por alguns analistas como um recuo de Trump.

No mesmo dia, o governo dos Estados Unidos anunciaram sanções financeiras a Alexandre de Moraes, relator do caso de Bolsonaro no STF.

À BBC News Brasil, o economista voltou a elogiar o comportamento de Lula e disse que outros líderes não adotaram uma postura semelhante por conveniência política.

"O que Lula fez não era apenas o único curso de ação possível, mas também o mais estratégico que o Brasil poderia adotar."

Segundo ele, a decisão de não capitular diante da pressão norte-americana, faz sentido estrategicamente porque, para o economista, Trump não respeita acordos.

"Outra coisa que se deve lembrar sobre Trump é que nenhum acordo vale o papel no qual está escrito".

Stiglitz diz que não é possível falar que Trump cedeu ao abrir exceções ao tarifaço brasileiro. Segundo ele, seria preciso entender os mecanismos internos e externos que levaram à sua decisão.

Para o economista, os acordos anunciados por países e blocos, como a União Europeia, com os Estados Unidos dificilmente serão implementados e só foram assinados para que os líderes dos países ameaçados com tarifas pudessem obter uma espécie de "cessar-fogo".

Stiglitz disse ainda que a situação entre Brasil e os Estados Unidos é imprevisível porque, segundo ele, "Trump não conhece limites".

Ainda segundo ele, o presidente norte-americano se empenha tanto na defesa de Bolsonaro por motivos particulares. "O motivo é claro: trata-se de um grupo de pessoas fora da lei".

O economista diz ainda que os supostos ataques dos Estados Unidos ao Brasil deverão empurrar o país cada vez mais para próximo da esfera de influência chinesa.

"Os Estados Unidos fazem de tudo para perder essa nova guerra fria com a China."

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Nos últimos dias, o governo Trump anunciou tarifas sobre produtos brasileiros e sanções contra um ministro do STF, vinculando tudo isso ao processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. O governo brasileiro classificou essas medidas como chantagem. Como o senhor descreveria tudo isso?

Joseph Stiglitz - Eu descreveria [essas medidas] como o presidente Lula o fez. São uma chantagem. Eu não acredito que o presidente Trump tenha a autoridade legal para fazer o que está fazendo.

Muitos comentaristas jurídicos dizem que ele teria uma duvidosa autoridade legal para impor tarifas quando há disputas econômicas. Mas o argumento que ele está usando para impor tarifas contra o Brasil não é econômico. Vocês têm superávit com os Estados Unidos. É justamente o contrário.

Na lógica dele, vocês é que deveriam impor tarifas contra os Estados Unidos. É uma questão política. E o mais surpreendente é que ele está violando o Estado de Direito, como tem feito repetidamente, ao insistir que o Brasil viole o seu Estado de Direito.

O ministro do Supremo [Alexandre de Moraes], pelo que vejo à distância, está agindo totalmente dentro da lei. Sobre o uso da Lei Magnitsky, estudiosos do direito dizem que isso é muito duvidoso. Ninguém jamais teve a intenção de que essa lei fosse usada da forma como está sendo usada.

É um precedente extremamente perigoso quando um líder autoritário nos Estados Unidos diz que vai usar seu poder para interferir no Estado de Direito em outros países.

BBC News Brasil - Ao que tudo indica, Lula parece não ter cedido à pressão dos Estados Unidos, ao menos para interromper o julgamento de Bolsonaro. Nesta semana, o governo americano divulgou uma lista de exceções que exclui 42% das exportações brasileiras dessas novas tarifas. Quem o senhor acha que venceu esse primeiro round desse confronto entre Lula e Trump?

Stiglitz - É preciso dizer que as tarifas prejudicam mais o povo americano do que qualquer outro país. Nós é que pagamos os custos. Trump está prejudicando a economia americana nos fazendo pagar preços mais altos pelo que compramos.

O que eu gostaria de enfatizar é que os Estados Unidos perderam. Essas tarifas são um jogo de perde-perde e o grande perdedor é os Estados Unidos.

Acho que é realmente muito bom que Lula esteja se posicionando assim como a China se posicionou ante este líder autoritário que está tentando destruir o Estado de direito internacional o qual, ironicamente, os Estados Unidos se esforçaram tanto para construir ao longo dos últimos 80 anos.


'Essas tarifas são um jogo de perde-perde e o grande perdedor é os Estados Unidos' (Getty Images)

BBC News Brasil - O que motiva Trump a defender com tanta veemência Jair Bolsonaro?

Stiglitz – O motivo é claro: trata-se de um grupo de pessoas fora da lei. Trump violou a lei na sua insurreição de 6 de janeiro. E foi uma violação terrível da lei em uma das partes mais importantes da democracia que é a transição pacífica de poder.

É por isso que continuo chamando-o de líder autoritário. Ele tentou impedir essa transição pacífica de poder mesmo com o presidente (Joe) Biden tendo recebido 7 milhões de votos a mais. Nem sequer foi uma disputa apertada. Ele não tinha absolutamente nenhuma justificativa.

E então, claro, essa pessoa fora da lei, autoritária e fora da lei, apoia outras pessoas do mesmo tipo. Bolsonaro imitou o 6 de janeiro. Vocês tiveram o 8 de janeiro. Bolsonaro foi ainda mais imprudente, houve uma insurreição ainda pior.

Felizmente, o Brasil está fazendo a coisa certa, e eu parabenizo os tribunais brasileiros por manterem o Estado de Direito. Isso não é uma caça às bruxas.

BBC News Brasil – O senhor elogiou a postura do presidente Lula desde o início desta crise e também escreveu que líderes mundiais deveriam seguir o exemplo dele. Por que eles não o fizeram?

Stiglitz – Alguns o fizeram. O presidente Xi Jinping se posicionou. Mas acho que a maioria deles sucumbiu à abordagem de Trump. A esperança deles era que uma tarifa de 10% não era tão ruim. Eles achavam que isso simplesmente desapareceria.

Acho que eles estavam esperando que o problema passasse. Foi uma atitude politicamente mais fácil. Eles calculam que ceder é mais fácil que lutar, especialmente considerando todos os instrumentos que Trump tem à sua disposição e que ele está usando.

Trump pode fazer qualquer coisa, porque ele é fora da lei. É por isso que eu acho que eles não se posicionaram. E acho que isso é um grande erro.

BBC News Brasil - No Brasil alguns setores argumentam que o comportamento de Lula foi excessivamente combativo e que ele acabou, em vez de ajudar, prejudicando o país. Como o senhor responde a essa crítica?

Stiglitz – Eles estão equivocados. Lula foi muito claro ao dizer que está disposto a negociar. Mas ele disse que não está disposto a negociar a soberania nacional do seu país. Ele não vai comprometer o Estado de Direito do país. E eu o apoio totalmente nisso. Há coisas que você pode negociar, e há outras que são inegociáveis.

Outra coisa que se deve lembrar sobre Trump é que nenhum acordo com ele vale o papel no qual está escrito. Ele assina um acordo e depois o viola. Você cede, capitula, e então ele exigirá mais. Nunca sabemos quando isso vai acabar.

Quando se está lidando com uma figura autoritária e errática, você não pode prever nada. Mas, com base no passado de Trump, acredito que o que Lula fez não era apenas o único curso de ação possível, mas também o mais estratégico que o Brasil poderia adotar.


Bolsonaro e Trump são considerados aliados políticos desde o primeiro mandato do norte-americano (Getty Images)

BBC News Brasil – Outros países e até mesmo a União Europeia assinaram acordos com Trump. Na sua opinião, esses acordos foram bons ou ruins?

Stiglitz – Antes de tudo, como já disse, um acordo com Trump não vale o papel em que está escrito. Canadá e México assinaram um acordo com Trump há cinco anos e ele os rasgou assim que voltou ao poder. Um acordo não é um acordo. No fim das contas, se ele sentir que não é favorável a ele, ele vai rompê-lo.

Não se deve tomar nada do que ele diz ao pé da letra. A maioria desses acordos, eu acredito, não será realmente implementada. Os países fizeram promessas, mas não explicaram como irão cumpri-las.

A Europa não é uma economia centralizada. Os líderes europeus podem gostar de ouvir que as pessoas farão investimentos, mas eles não podem controlar isso.

As pessoas na Europa podem pensar: "Os EUA é um país maluco para se investir". Como podemos ter certeza de que os europeus farão os investimentos que prometeram? São acordos muito estranhos que não significam muita coisa.

BBC News Brasil - Mas se eles não significam muita coisa, qual é o sentido de fechar esses acordos?

Stiglitz – Do ponto de vista das pessoas que fecham o acordo, é uma trégua temporária. Eles assinam um acordo e Trump promete que, por um tempo, não vai impor aquelas tarifas absurdas. Eles, por outro lado, dizem que não vão retaliar e temos uma trégua.

Isso dura até que Trump mude de ideia. Eles prometem que farão investimentos, mas como se monitora isso? Tudo isso fica no ar.

Daqui a dois anos, alguém vai olhar os números e dizer: "Vocês não cumpriram o que prometeram". E aí teremos outra rodada de negociações. E eu presumo que, nesse momento, Trump já será história.

BBC News Brasil - O senhor acredita que a situação entre Brasil e Estados Unidos pode piorar?

Stiglitz - Qualquer coisa é possível com Trump. Ele não conhece limites. As coisas são simplesmente imprevisíveis com ele. O resto do mundo precisa se acostumar com o fato de que estamos em um novo mundo, onde a maior economia do planeta está sob o controle de um líder errático e autoritário.

A boa notícia para o Brasil é que vocês estão comercializando com a Europa e com a China. A China é, na verdade, o maior comerciante do mundo. Em termos de quem tem as cartas na mão, quem tem poder econômico como potência comercial, está claro que é a China.

Os Estados Unidos dizem que essa é uma nova guerra fria com a China, mas parece que os próprios Estados Unidos estão fazendo de tudo para perder essa guerra fria.

BBC News Brasil – Na carta que publicou há alguns dias, o senhor escreveu que Lula se posicionou contra os interesses das grandes empresas de tecnologia, que são apoiadas por Trump. Por quanto tempo um país como o Brasil pode se opor não apenas à maior economia do mundo, mas também a algumas das maiores corporações do planeta?

Stiglitz - Eu acho que a realidade é que o Brasil tem poder para enfrentar essas empresas de tecnologia. O Brasil tem o direito de regulamentar empresas de tecnologia que operam no país, assim como a Europa faz, de maneira compatível com a lei.

A Europa aprovou a Lei de Serviços Digitais para regulamentar conteúdo, prevenir danos digitais. Todo país deveria fazer isso. As empresas de tecnologia têm roubado conteúdo de outras empresas sem compensação. O Brasil tem o direito, e eu diria até a obrigação, de agir quando há esses atos de roubo cometidos pelas empresas de tecnologia.

Uma das boas coisas sobre o Brasil é que vocês têm um alto nível de competência tecnológica. No mundo moderno, não é tão difícil criar suas próprias plataformas. E nem mesmo é tão difícil criar suas próprias empresas de inteligência artificial.

Na minha opinião, o Brasil tem o poder intelectual, político, tecnológico e econômico para fazer isso.

BBC News Brasil – Algumas pessoas dizem que isso pode aproximar ainda mais o Brasil da China. O senhor acredita que isso é uma possibilidade?

Stiglitz – Como acabei de dizer, o que os EUA estão fazendo é forçar todos os países a se diversificarem e se afastarem dos Estados Unidos. E basicamente há, podemos dizer, três grupos de países para os quais os outros estão se voltando: Europa, China e o restante dos mercados emergentes e em desenvolvimento.

Acho que esses três serão os caminhos seguidos não apenas pelo Brasil, mas por todos os demais países. Os EUA estão mostrando que não são um parceiro comercial confiável, nem um parceiro econômico confiável. E quando você não tem um parceiro econômico confiável, você se afasta dele. É simples aritmética.

BBC News Brasil – O senhor questionou a legalidade das tarifas, dizendo que apenas o Congresso poderia impô-las. Até agora, há uma impressão de que o Congresso e a Suprema Corte não impõem limites à atuação do presidente. Neste momento, Trump é imparável?

Stiglitz – Em muitas áreas houve decisões judiciais contra Trump. Elas o desaceleraram, embora não resultaram em uma verdadeira reversão de suas ações.

O Congresso se mostrou submisso a ele. Muitas pessoas acham que as eleições de 2026 serão um marco, porque as coisas não estão indo bem, o crescimento desacelerou, a inflação subiu, ele não cumpriu todas as suas promessas, o apoio dos eleitores é muito fraco. Espera-se que ele perca a liderança em pelo menos uma das casas do Congresso, o que pode enfraquecê-lo.

Minha preocupação é que alguém como Trump, que afirma que não perdeu as eleições de 2020, mesmo tendo perdido por 7 milhões de votos, não reconhecerá essa derrota ou tentará interferir nos resultados das eleições legislativas de 2026 de alguma forma.

Ele é imparável? Espero que não, mas neste momento a resposta não é clara e é por isso que é tão importante que democracias como o Brasil defendam o Estado de Direito.

BBC News Brasil - Como é, para o senhor, viver nos Estados Unidos atualmente?

Stiglitz – Estou na Universidade Columbia, que é uma das universidades que têm sido atacadas de uma forma que viola todos os princípios da liberdade acadêmica. Nossa universidade cedeu, e isso é, obviamente, muito desconfortável, porque os princípios da liberdade acadêmica são muito importantes para mim.

Os ataques à ciência, aos valores do Iluminismo, ao humanismo e aos princípios da verdade têm sido feitos de uma forma que ninguém poderia prever. É obviamente muito desconfortável. Pior que isso, eu nem sei qual palavra usar. Aqueles que leem história sentem calafrios na espinha.

Leandro Prazeres, de Brasília-DF para a BBC News Brasil, em 02.08.25

sábado, 2 de agosto de 2025

Egoísmo e covardia

Preocupado com sua sobrevivência política e a fuga da prisão que se avizinha, Bolsonaro nem percebe que a Trump interessa mesmo é terras raras e ‘big techs’

Era impensável que os Estados Unidos da América entrassem em conflito com o nosso país, impondo tarifas de importação astronômicas, mesmo tendo superávit nas trocas comerciais, e que impedissem a entrada em seu país de oito ministros de nossa Suprema Corte e do procurador-geral da República, aplicando, em violação de nossa soberania, a morte financeira ao ministro Alexandre de Moraes.

Mas é isso que fantasticamente ocorre por terem os Estados Unidos um presidente em transtorno delirante contínuo, para quem é natural impor o que lhe apetece mesmo intrometendo-se, de forma desabrida, em questões internas de outro país.

Industriado pela difamação do Brasil, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF), promovida pelo agente avançado Eduardo Bolsonaro, Trump transformou o ex-presidente Bolsonaro em vítima, considerando seu julgamento uma vergonha internacional, que não deveria estar ocorrendo. E peremptoriamente declara ser “uma caça às bruxas que deve acabar IMEDIATAMENTE!” (“imediatamente” escrito em caixa alta).

Trump acusa o Brasil de ser contrário às eleições livres e à liberdade de expressão, tanto que o Supremo “emitiu centenas de ordens de censura SECRETAS e ILEGAIS a plataformas de mídia social dos EUA”.

Não poderia vingar outra narrativa quando a versão veio sendo construída por Eduardo Bolsonaro, cujo desprezo pelo nosso país e por suas instituições democráticas verificava-se desde 2018, quando disse: “Se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um cabo e um soldado. O que é o STF? Tira o poder da caneta deles, como é que vão reagir?”.

E agora, ao defender até mesmo ação armada dos Estados Unidos contra o Brasil, declarou, sem qualquer pudor, que, “se houver um cenário de terra arrasada, pelo menos eu estarei vingado desses ditadores de toga”.

Que lição se tira da era Bolsonaro, desde quando o capitão assumiu o poder até os dias de hoje? O clã familiar é movido por egoísmo e covardia.

O grupelho extremista, formado por familiares e acólitos, só se preocupa com a manutenção do poder, e não está voltado para promover o bem geral da população, como se viu na pandemia, quando conspiraram contra a vacina, fizeram chacota de pessoas doentes e defenderam o desrespeito a medidas de prevenção, como o uso de máscaras. Suas atitudes foram dirigidas pelo cálculo de manter a popularidade graças à continuidade da atividade econômica, mesmo ao custo de milhares de mortes, como efetivamente se deu. É egoísmo em elevada potência.

Covardia porque, ao não obter a adesão dos chefes do Exército e da Aeronáutica ao golpe, Bolsonaro e grupo íntimo passaram a persegui-los e a seus familiares pelas redes sociais. Assim, decidiu Bolsonaro continuar o golpe por meio dos acampados na frente de quartéis, que alimentou com a esperança de intervenção militar em seguida à ocupação das sedes dos Três Poderes.

Nesse sentido, é significativo o destaque dado pelo procurador-geral da República ao diálogo registrado entre o braço direito de Bolsonaro, Mauro Cid, e o coronel Rafael Martins de Oliveira. Em troca de mensagens eletrônicas realizada em 11 de novembro de 2022, Rafael Martins de Oliveira indagou a Mauro Cid: “Ae... o pessoal tá querendo a orientação correta da manifestação. A pedida é ir para o CN e STF? As FFAA vão garantir a permanência lá??/Perguntas recebidas”. O réu colaborador, então, respondeu: “CN e STF / Vão”.

Além do mais, a prova testemunhal, em especial o colaborador Mauro Cid, indica que o então presidente sempre dava esperanças de que algo aconteceria para convencer as Forças Armadas a concretizar o golpe.

Esperar comer com a mão do gato e sair às escondidas para os Estados Unidos, para que, em sua ausência, o País pegasse fogo é situação reveladora de triste covardia. Pessoalmente, em nada se arriscava na insurreição que industriava.

Agora, Bolsonaro, por via do filho, cuja viagem e campanha contra o País financia, entrega-se nas mãos de Trump, festejando a chantagem de que as ameaças à nossa economia seriam cessadas se arquivado, imediatamente, o processo criminal!

Para se salvar da responsabilidade de seus atos ilegais, Bolsonaro não se incomoda que sacrifiquem nosso país, sujeito a humilhações. Aplaude a barganha de supressão da medida que tira empregos dos brasileiros, se inventada uma fórmula para o livrar hoje da tornozeleira eletrônica, amanhã da condenação.

As injustificadas tarifas de 50% nas exportações prejudicam, especialmente, o setor do agro (café e carne), que sempre deu a Bolsonaro grande apoio. Agora o agro se vê sacrificado pelas ações de um delirante presidente americano em defesa de um Bolsonaro que não se comove com o prejuízo imposto aos seus fiéis apoiadores.

Unicamente preocupado com sua sobrevivência política e a fuga da prisão que se avizinha, Bolsonaro nem percebe que a Trump interessam mesmo as terras raras e big techs. Diante desse quadro, só mesmo a cegueira deliberada faz com que pessoas ainda cerrem fileira atrás deste mito de pés de barro.

Miguel Reale Júnior, o autor, é Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 02.08.25

Direto da escola para a guerra: os russos de 18 anos lutando e morrendo na Ucrânia

Uma investigação do Serviço Russo da BBC revelou que pelo menos 245 jovens russos de 18 anos foram mortos lutando na Ucrânia, nos últimos dois anos.

Muitos dos jovens ucranianos entraram no conflito diretamente ao saírem da escola 

Muitos deles entraram no conflito diretamente ao saírem da escola. Eles fizeram uso das novas regras que permitiam que eles eliminassem o serviço militar e seguissem direto para o exército normal, como soldados contratados.

Alguns dos jovens constantes da nossa lista foram mortos em questão de semanas.

A BBC News Rússia conversou com famílias enlutadas para saber por que jovens recém-saídos da escola, que estão apenas começando a vida, vêm se alistando para morrer na brutal guerra de Vladimir Putin.

O sonho desfeito

No dia 7 de maio de 2025, alunos da escola n° 110 na cidade de Chelyabinsk, na Rússia europeia, participaram de uma cerimônia para marcar o 80° aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

As crianças desfilaram no salão da escola, agitando bandeiras da Rússia e da antiga União Soviética (1922-1991). Elas também carregavam retratos de ex-alunos que foram lutar na guerra atual, sendo travada na Ucrânia.

Uma das fotografias era de Aleksandr Petlinsky, que se alistou duas semanas após completar 18 anos. Ele foi morto apenas 20 dias depois.

Sua mãe Elena e sua tia Ekaterina ficaram lado a lado no salão, assistindo à cerimônia em lágrimas.

Após um minuto de silêncio em homenagem aos mortos, Ekaterina subiu ao palco para falar sobre o sobrinho.

Sasha, como ela o chamava, era um menino apaixonado e determinado. Ele sonhava com uma carreira como médico e havia conseguido uma vaga na Faculdade de Medicina de Chelyabinsk.

"Mas Sasha tinha outro sonho, acrescentou Ekaterina, após uma pausa. "Quando a operação militar especial começou, Sasha tinha 15 anos de idade. E ele sonhava em ir para o front."

Ela se referia à guerra na Ucrânia, lançada pela Rússia em fevereiro de 2022.

Sasha Petlinsky é um dentre pelo menos 245 jovens de 18 anos mortos na Ucrânia nos últimos dois anos, segundo informações em domínio público compiladas e confirmadas pelo Serviço Russo da BBC.

A comemoração do Dia da Vitória, na escola onde estudava Aleksandr Petlinsky, com uma mulher em um microfone enquanto outras duas enxugam as lágrimas. (Crédito, Ekaterina Orekhova/VK)

Desde os primeiros meses da guerra na Ucrânia, o envolvimento de pessoas muito jovens em combate tem sido objeto de debate na Rússia.

Inicialmente, o foco era nos recrutas do exército.

O presidente russo, Vladimir Putin, afirmou diversas vezes que nenhum jovem convocado para o serviço militar obrigatório com 18 anos de idade seria enviado para lutar na Ucrânia.

Mas, em março de 2022, apenas quatro dias depois da promessa de Putin de que a Rússia não envolveria recrutas na chamada "operação militar especial", o Ministério da Defesa do país admitiu que alguns deles realmente haviam sido destacados para a zona de combate.

A BBC confirmou os nomes de pelo menos 81 recrutas mortos na Ucrânia durante o primeiro ano da guerra. E as autoridades ucranianas afirmam terem capturado "centenas" de outros.

O exército russo deixou de enviar recrutas para lutar na Ucrânia. Mas existem outras formas que levam pessoas muito jovens para o conflito.

Quando as tropas ucranianas ocuparam partes da região russa de Kursk, em agosto de 2024, recrutas que patrulhavam a fronteira estavam entre os primeiros a sofrer os ataques.

Mas, segundo os dados coletados pela BBC, a maior parte dos jovens de 18 anos acaba no campo de batalha ao se inscreverem como soldados contratados.

Na primavera de 2022 no hemisfério norte, as autoridades russas alteraram a legislação para incentivar ativamente os homens com idade de combate a se alistarem. E, desde 2023, autoridades regionais vêm oferecendo altos pagamentos em dinheiro para os novos recrutas.

Inicialmente, os jovens que queriam fazer uso das novas regras precisavam ter pelo menos três meses de serviço militar. Mas, em 2023, esta restrição foi silenciosamente eliminada, apesar dos protestos de alguns parlamentares.

Agora, qualquer jovem que tenha atingido 18 anos de idade e se formado no ensino médio pode se inscrever no exército russo.

A parlamentar Nina Ostanina chefia o Comitê da Família da Duma, a câmara baixa do Parlamento russo. Ela alertou que as mudanças trariam consequências desastrosas para os formandos vulneráveis.

"As crianças que acabam de sair da sala de aula e querem ganhar dinheiro hoje em dia, assinando um contrato, simplesmente ficarão desprotegidas", afirmou ela.

Anúncios de serviço militar mostram a foto de uma família sorrindo e atrás o cartaz de um militar.(Crédito: PERM 36/6, TVK, CHP NIZHNEVARTOVSK)

'Serviço contratado — um futuro de valor'

Desde o início da invasão em larga escala da Ucrânia, professores russos foram obrigados por lei a oferecer aulas dedicadas à chamada "operação militar especial".

E, à medida que a guerra se aprofundava, passou a ser comum que os soldados retornassem do front para visitar as escolas e contar suas experiências.

As crianças aprendem a fazer redes de camuflagem e velas de trincheira. Os próprios alunos do jardim da infância são incentivados a enviar cartas e desenhos para os soldados na linha de combate.

Desde que os jovens de 18 anos foram autorizados a assinar contratos para entrar no exército, muitos órgãos de imprensa independentes da Rússia relataram que as escolas estão aumentando seus esforços para promover o serviço militar contratado.

Em Perm, na Rússia europeia, os alunos das escolas receberam folhetos com a foto de um homem de meia-idade em uniforme militar, abraçando sua esposa e seu jovem filho. O slogan diz: "serviço contratado — um futuro de valor!"

Na região autônoma russa de Khanty-Mansisk, nos montes Urais, cartazes nos quadros de avisos das escolas incentivam as pessoas a "defender a Pátria ombro a ombro". E, em Krasnoyarsk, no oeste da Sibéria, um cartaz com a frase "ligue agora" foi colocado em um quadro em sala de aula.

No início do novo ano escolar, em 1° de setembro de 2024, o currículo passou a incluir uma nova disciplina.

Em um retorno à era soviética, estudantes secundaristas voltaram a aprender como usar espingardas Kalashnikov e granadas de mão, como parte de um curso chamado "Introdução à Segurança e Defesa da Pátria".

Em muitas regiões do país, os recrutadores militares comparecem a aulas de carreira em escolas e faculdades técnicas. Eles ensinam os jovens a se inscrever como soldados contratados depois de se formarem.

Em abril de 2024, Konstantin Dizendorf, chefe do Distrito de Taseyevsky, na região de Krasnoyarsk, visitou uma faculdade técnica local para conversar com os alunos sobre seu futuro. Ele selecionou um estudante específico para elogiá-lo.

Aleksandr Vinshu, de 18 anos, já havia anunciado sua intenção de entrar para o exército. Ele foi considerado um herói local e foi autorizado a prestar seus exames finais mais cedo, para poder se alistar o mais rápido possível.

Sete meses depois, em novembro de 2024, chegou a notícia da morte de Vinshu.

Retrato de Aleksandr Vinshu, um jovem de cabelos bem curtos vestindo uma blusa preta.(Crédito,VK)

A contagem dos jovens mortos na guerra

A BBC News Rússia identificou e confirmou os nomes de 245 soldados contratados de 18 anos mortos na Ucrânia entre abril de 2023 e maio de 2025.

Todos eles foram recrutados como soldados contratados. E, a julgar pelos seus obituários publicados, a maioria entrou nas forças armadas voluntariamente.

Mas 21 deles haviam saído da escola há muito pouco tempo e assinaram seus contratos enquanto prestavam o serviço militar.

As famílias de alguns desses jovens alegam que oficiais superiores os pressionaram a se alistar.

Os dados da BBC mostram que as regiões com o maior número de mortos entre jovens de 18 anos ficam na Sibéria ou no extremo leste da Rússia. Confirmamos 11 mortos na região de Novosibirsk, outros 11 em Zabaykalsky e mais 10 nas regiões de Altai e Primorsky, respectivamente.

Os números da BBC são baseados em informações de domínio público. E, como nem todas as mortes são informadas, o número real de perdas entre soldados contratados de 18 anos provavelmente é maior.

Mas é importante observar que estes números ainda são muito menores que os da perda de homens mais velhos que foram contratados para servir o exército russo.

Os dados em domínio público coletados pela BBC desde o início da invasão em larga escala identificaram os nomes de 2.812 indivíduos, com 18 a 20 anos de idade, que foram mortos na Ucrânia, contra 8.267 mortes de homens de 45 a 47 anos.

Soldados mais velhos podem enfrentar índices de mortalidade mais altos por se encontrarem em forma física inferior. Mas o forte desequilíbrio provavelmente também reflete a menor disposição dos jovens para se alistar, mesmo com a oferta de substanciais incentivos financeiros.

Esta possibilidade está de acordo com uma pesquisa de opinião realizada pela organização independente Centro Levada, em maio de 2025. Ela demonstrou que 35% dos jovens com 18 a 24 anos de idade apoiam a guerra na Ucrânia, em comparação com 42% na faixa de 40 a 54 anos e 54% das pessoas com mais de 55 anos.

Olhos brilhantes



Aleksandr Petlinsky era um jovem gentil que gostava de ajudar os outros, segundo seus amigos.


Ele adorava desenhar e estava sempre pronto para fazer esboços dos personagens favoritos dos seus colegas.


Petlinsky também era um membro ativo de uma organização local de jovens. Ele coletava livros para as bibliotecas locais, visitava museus locais e organizava reuniões com uma enfermeira que havia trabalhado na linha de frente na Ucrânia.


Todas as pessoas entrevistadas pela BBC News Rússia contaram que o menino sonhava em ser médico, mas ninguém parecia saber que ele também sonhava em entrar para o exército e ir lutar na Ucrânia.

Aleksandr Petlinsky, na sua formatura da 9ª série (Crédito: VK)

No dia 31 de janeiro de 2025, Aleksandr Petlinsky completou 18 anos. Sua primeira ação foi pedir um ano de licença da faculdade, para poder assinar o contrato com o Ministério da Defesa da Rússia.

"Quando ele apresentou o pedido, perguntei o que sua mãe iria dizer", contou a secretária da faculdade posteriormente aos jornalistas locais.

"Ele respondeu: 'O que isso tem a ver com a minha mãe? É a minha escolha.' Seus olhos brilhavam."

Apenas três semanas depois, Petlinsky já havia assinado seu contrato e entrado na sua unidade de treinamento. E, pouco antes de sair, ele encontrou sua amiga Anastasia.

Os dois antigos colegas de classe se sentaram em um banco e conversaram sobre desenhos. Petlinsky desenhou uma tocha com uma chama no pulso de Anastasia, como presente de despedida.

Aquela foi a última vez que ela viu o amigo.

Algemado e espancado

A história do jovem de 18 anos Vitaly Ivanov, da região russa de Irkutsk, na Sibéria, e como entrou para o exército não poderia ser mais diferente.

Ele nasceu e cresceu em Tayturka, uma pequena aldeia de trabalhadores a duas horas de Irkutsk, onde moram apenas 5 mil pessoas.

No ensino médio, ele e seu amigo Misha haviam trabalhado em meio período em uma casa de caldeiras local. Eles também ajudaram a colher batatas nos jardins.

No verão, Ivanov ganhava dinheiro levando castelos infláveis pelas aldeias vizinhas.

Naquela época, ele conheceu uma jovem que chamaremos de Alina. Eles começaram a namorar e Ivanov a visitava com frequência.

Ele também a ajudava, colhendo batatas na sua fazenda e fazendo consertos pela casa.

Vitaly Ivanov na infância (Crédito,Vitaly Ivanov/VK)

"Ele costumava me dizer que eu estava sob a asa dele, sob sua proteção", conta Alina. Mas, às vezes, quando eles discutiam, Ivanov ameaçava deixá-la e se alistar no exército.

"Era como [se ele dissesse] 'eu vou e vou ficar bem'", relembra Alina.

Quando completou 16 anos, Ivanov saiu da escola e conseguiu uma vaga de aprendiz de mecânico em uma escola local, mas logo saiu.

Aos 18 anos, ele planejou prestar seu serviço militar obrigatório e, em seguida, ir para Kazan, para trabalhar em turnos na construção de rodovias, contou seu amigo Misha à BBC. Mas, em novembro de 2024, tudo mudou.

Houve um assalto a uma loja local. E, quando os policiais examinaram as imagens de circuito fechado, eles concluíram que um dos assaltantes se parecia com Ivanov.

Sua mãe Anna contou à BBC que ele era conhecido da polícia. No ano anterior, ele havia sido preso depois de entrar em uma briga com alguém que, segundo ela, era um traficante de drogas local. Ivanov foi acusado e condenado a prestar serviços comunitários.

Ele foi intimado pela polícia e mantido na delegacia por várias horas. Quando foi finalmente liberado, ele enviou para sua namorada uma mensagem de vídeo pelo Telegram que ela compartilhou com a BBC.

Nela, Ivanov chora ao contar para a namorada que foi algemado e espancado pela polícia.

"Aqueles demônios foram tão horríveis", conta ele, entre soluços. "Fiquei profundamente abalado."

Ivanov contou à sua mãe e à namorada que a polícia queria que ele confessasse o roubo. Sua mãe acha que foi a polícia quem disse a ele que assinasse um contrato para entrar no exército.

"É compreensível, ele estava assustado, ele tinha apenas 18 anos", ela conta. "Eles o algemaram e bateram nele por duas horas."

Vitaly Ivanov se queixou de ter sido agredido na delegacia de polícia para que confessasse o roubo (Crédito,Vitaly Ivanov)

Ao sair da delegacia, Ivanov encontrou Misha e contou a ele que havia decidido se alistar no exército. Misha ficou em choque.

"Eu perguntei 'para que você quer fazer isso? Venha comigo para Kazan, para trabalhar na construção de estradas. Será muito melhor para você.'"

Misha contou à BBC que outro amigo também havia tentado dissuadi-lo. Mas Ivanov excluiu todas as suas mensagens e interrompeu os contatos.

No dia antes de sair de casa, Ivanov ligou para sua mãe, que havia saído para trabalhar.

"Mãe, estou saindo cedo", disse ele.

"Para Kazan? OK, boa viagem", respondeu ela.

"Não, mãe, você não entendeu. Vou para a operação militar especial", respondeu ele.

Anna conta que "chorou a noite toda".

"Ele manteve tanto segredo sobre aquilo tudo", relembra ela. "Ele não me contou nada. Nunca reclamou. E fez tudo pelas minhas costas."

Alina relembra que, quando eles se encontraram pela última vez, Ivanov parecia completamente calmo.

Ele se despediu de forma contida e disse para ela não chorar. Em seguida, ele foi calmamente para casa, embalou suas coisas e saiu para a estação do trem.

Por conselho de um amigo que já havia estado no front, ele decidiu se alistar na região de Samara, não em Irkutsk. No outono de 2024, a região de Samara pagava alguns dos maiores bônus de alistamento do país.

Ivanov teria recebido cerca de quatro milhões de rublos (cerca de US$ 50 mil, ou R$ 278 mil) em bônus regionais e federais. Uma soma quase inimaginável para um menino de 18 anos do interior, com pouca formação e perspectivas ainda menores.

Primeira e última missão

Por caminhos muito diferentes, Vitaly Ivanov e Aleksandr Petlinsky, pouco depois que ambos completaram 18 anos de idade, chegaram ao front mais ou menos na mesma época, em fevereiro de 2025.

Alina relembra que, quando Ivanov ainda estava em treinamento, eles mantiveram contato constante.

"Ele escrevia que lamentava aquilo", ela conta. "Que tinha dificuldade para dormir."

"Mãe, eu percebi que isso não é brincadeira", relembra Anna, sobre suas palavras.

Depois de apenas duas semanas de treinamento, Ivanov foi destacado para uma função de reconhecimento militar.

"Filho, você aprendeu alguma coisa no treinamento?", perguntou Alina.

Mas a resposta do filho não foi animadora.

Vitaly Ivanov na guerra (Crédito: Anna Gromova/OK)

"Mãe, para se tornar um verdadeiro soldado de reconhecimento, é preciso estudar três anos!", respondeu ele. "Eu aprendi só um

Anna soube de Ivanov pela última vez em 5 de fevereiro. Ele escreveu contando que estava sendo enviado para uma missão de com

"Aquela foi a sua primeira e última missão", lamenta Anna.

No dia 4 de março, oficiais do escritório de alistamento militar telefonaram para Anna e a informaram que seu filho havia sido morto em combate no dia 11 de fevereiro de 2025. Ele havia servido apenas uma semana na frente de batalha.

Seu corpo foi trazido de volta para Tayturka em um caixão de zinco. Dezenas de pessoas vieram prestar seus respeitos e o caixão foi levado para o cemitério local.

Autoridades municipais fizeram discursos durante o funeral.

"Eles disseram que ele deu a vida pela nossa pátria, que ele foi corajoso e saiu para lutar. Aquilo que costumam dizer", conta Misha.

"Mas todos se perguntavam por que ele fez aquilo e diziam que não havia sentido em ir para a guerra com tão pouca idade. Muitas pessoas ainda não conseguiam acreditar, incluindo eu."

A família e os amigos de Ivanov não comentaram o fato de que sua participação na guerra poderia ter causado a morte de soldados ou civis ucranianos.

Profundamente abalados

Um mês após a morte de Ivanov, Petlinsky também foi morto, em 9 de março.

Seus amigos do movimento local de jovens postaram uma mensagem memorial online, destacando que ele havia "morrido na linha de combate militar durante a Operação Militar Especial".

"Como ele poderia estar lá se havia acabado de completar 18 anos um mês antes???", escreveu alguém na seção de comentários.


Retrato do funeral de Aleksandr Petlinsky (Crédito,Aleksandr Petlinsky)

"Como cidadã da Federação Russa, tenho orgulho do meu filho. Mas, como mãe, não consigo superar a perda", contou a mãe de Petlinsky, Elena, à BBC. Ela se recusou a dizer mais.

A BBC só conseguiu falar com a mãe de Ivanov, Anna, na segunda ou terceira tentativa. Nos primeiros minutos da ligação, ela soluçava e não conseguia falar.

Anna contou que continuava repassando na mente sua última despedida para o filho. "Parece ter sido ainda ontem", segundo ela.

A amiga de Petlinsky, Anastasia, declarou que, para ela, o fato de que jovens de 18 anos estão assinando contratos para se alistar no exército, agora, é um "tema muito doloroso".

"Eles são jovens, ingênuos e há muitas coisas que eles não entendem", segundo ela. "Eles simplesmente não compreendem toda a responsabilidade do que estão fazendo."

Anastasia não comentou quais poderiam ter sido as consequências da participação de Petlinsky na guerra para as pessoas na Ucrânia.

'Ninguém tem interesse'

A morte de Aleksandr Petlinsky e Vitaly Ivanov afetou profundamente seus amigos e as famílias. Mas o fato de que jovens de 18 anos estão se alistando e sendo mortos na Ucrânia, até agora, não parece ter tido maior repercussão na sociedade russa.

A família de outro homem muito jovem que se alistou na escola e foi morto muito pouco tempo depois realmente tentou defender a suspensão do envio de recém-formados do ensino médio para a frente de batalha.

Daniil Chistyakov, de Smolensk, no oeste da Rússia, havia comemorado seu 18° aniversário há menos de dois meses quando foi morto.

Como Petlinsky e Ivanov, ele havia acabado de chegar ao front. Sua família só descobriu que ele estava entrando no exército no dia em que se alistou.

"Escrevi para muitas agências, tentando falar com alguém, para que a lei que permite que jovens de 18 anos assinem contratos fosse revogada", contou um de seus parentes à BBC. "Mas ninguém teve interesse, nem se preocupou."

A mãe de Petlinsky, Anna, tentou fazer contato com as autoridades, sem sucesso, para investigar os policiais que detiveram seu filho e que ela acredita sejam os responsáveis pela sua súbita decisão de se alistar.

Nos seus esforços para "conseguir justiça", ela também escreveu uma longa carta sobre o caso do seu filho para o programa de entrevistas Homens e Mulheres em Moscou, do canal 1 da TV estatal. A carta foi enviada por correio registrado, mas ninguém do programa foi até a agência dos correios para retirá-la.

  • Anastasia Platonova e Olga Ivshina da BBC News Rússia. Publicado originalmente em 02.08.25
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