Seu furor protecionista não ameaça só o livre comércio, mas o Estado de Direito. Judiciário dos EUA tem a chance de restaurar as prerrogativas do Congresso e o respeito à Constituição
A Corte de Apelações do Circuito Federal dos Estados Unidos ouviu na semana passada os argumentos finais sobre a legalidade das tarifas impostas por Donald Trump a pretexto de uma “emergência nacional”. O caso, movido por empresas importadoras e uma coalizão de Estados, é mais que uma disputa tributária: trata-se de um teste decisivo sobre os limites do poder presidencial. E, por extensão, uma batalha sobre o futuro do Estado de Direito no país.
As tarifas fazem parte do infame regime batizado de “Dia da Libertação”, anunciado em abril, que impôs uma alíquota de 10% sobre praticamente todas as importações, com aumentos adicionais para países como Índia (25%) ou Brasil (50%). Para justificar a manobra, o governo recorreu à Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (Ieepa, na sigla em inglês), criada em 1977 para permitir sanções econômicas em casos de ameaças extraordinárias vindas do exterior. O problema: o déficit comercial americano – invocado como emergência – é tudo, menos extraordinário. Como apontaram os próprios juízes, trata-se de um “fenômeno persistente há meio século”.
Em maio, a Corte de Comércio Internacional já havia concluído que o presidente ultrapassou os limites da Ieepa ao usá-la para redesenhar, unilateralmente, a estrutura tarifária do país. A decisão foi suspensa pela instância superior, que agora analisa o caso. Durante as audiências, o ceticismo foi evidente: “É difícil enxergar como o Congresso teria pretendido dar ao presidente autoridade irrestrita para rasgar a tabela tarifária que levou anos para ser construída”, disse o juiz Timothy Dyk. O argumento do governo – de que o termo “regular importações” implicitamente autoriza a criação indiscriminada de tarifas – é um abuso sem precedentes. Nenhum outro presidente, em mais de quatro décadas de vigência da Ieepa, ousou tanto.
A Constituição é cristalina: compete ao Congresso o poder de legislar sobre tarifas. A delegação dessa prerrogativa ao Executivo, quando ocorre, deve ser explícita, limitada e vinculada a procedimentos específicos. A interpretação maximalista de Trump não apenas atropela o Legislativo, como desafia os fundamentos do sistema de freios e contrapesos. Aí reside o verdadeiro perigo. As tarifas são o sintoma. A doença é o projeto de um Executivo hipertrofiado que reivindica poderes imperiais.
Desde seu primeiro mandato, Trump vem sistematicamente testando os limites institucionais: declarou emergências para construir um muro fronteiriço sem aprovação orçamentária; desafiou o Congresso ao se apropriar da Guarda Nacional da Califórnia; ameaçou juízes e promotores; sugeriu que seu adversário político merecia “pena de morte” – isso sem falar na tentativa de obliterar a transferência de poder, instando manifestantes a invadir o Congresso para impedir a ratificação das urnas em 6 de janeiro de 2021. Em seus atos e palavras, Trump vê as instituições democráticas não como garantias, mas como obstáculos.
O caso das tarifas sintetiza esse ethos autoritário: um presidente que usa poderes de guerra para taxar tênis canadenses e brinquedos alemães, que trata o comércio como instrumento de chantagem e que vê em cada desacordo diplomático uma emergência nacional. E tudo com efeitos econômicos devastadores. Empresas alertam para o aumento de preços e para a desorganização das cadeias de suprimentos. Grupos como a U. S. Chamber of Commerce e a Consumer Technology Association ingressaram na ação denunciando o impacto sobre investimentos, empregos e inflação.
Não se trata, portanto, apenas de uma disputa sobre políticas comerciais. Trata-se de impedir que um presidente transforme o livre comércio – e a própria Constituição – em reféns de seu voluntarismo. Mais cedo ou mais tarde a questão precisará ser solucionada pela Suprema Corte. O desfecho do processo poderá definir os limites do Executivo nos anos por vir. Que a Justiça se recorde de que, numa democracia digna desse nome, o presidente não pode fabricar “emergências” para contornar o Congresso e suspender o império da lei.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 03.08.25
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