Preocupado com sua sobrevivência política e a fuga da prisão que se avizinha, Bolsonaro nem percebe que a Trump interessa mesmo é terras raras e ‘big techs’
Era impensável que os Estados Unidos da América entrassem em conflito com o nosso país, impondo tarifas de importação astronômicas, mesmo tendo superávit nas trocas comerciais, e que impedissem a entrada em seu país de oito ministros de nossa Suprema Corte e do procurador-geral da República, aplicando, em violação de nossa soberania, a morte financeira ao ministro Alexandre de Moraes.
Mas é isso que fantasticamente ocorre por terem os Estados Unidos um presidente em transtorno delirante contínuo, para quem é natural impor o que lhe apetece mesmo intrometendo-se, de forma desabrida, em questões internas de outro país.
Industriado pela difamação do Brasil, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF), promovida pelo agente avançado Eduardo Bolsonaro, Trump transformou o ex-presidente Bolsonaro em vítima, considerando seu julgamento uma vergonha internacional, que não deveria estar ocorrendo. E peremptoriamente declara ser “uma caça às bruxas que deve acabar IMEDIATAMENTE!” (“imediatamente” escrito em caixa alta).
Trump acusa o Brasil de ser contrário às eleições livres e à liberdade de expressão, tanto que o Supremo “emitiu centenas de ordens de censura SECRETAS e ILEGAIS a plataformas de mídia social dos EUA”.
Não poderia vingar outra narrativa quando a versão veio sendo construída por Eduardo Bolsonaro, cujo desprezo pelo nosso país e por suas instituições democráticas verificava-se desde 2018, quando disse: “Se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um cabo e um soldado. O que é o STF? Tira o poder da caneta deles, como é que vão reagir?”.
E agora, ao defender até mesmo ação armada dos Estados Unidos contra o Brasil, declarou, sem qualquer pudor, que, “se houver um cenário de terra arrasada, pelo menos eu estarei vingado desses ditadores de toga”.
Que lição se tira da era Bolsonaro, desde quando o capitão assumiu o poder até os dias de hoje? O clã familiar é movido por egoísmo e covardia.
O grupelho extremista, formado por familiares e acólitos, só se preocupa com a manutenção do poder, e não está voltado para promover o bem geral da população, como se viu na pandemia, quando conspiraram contra a vacina, fizeram chacota de pessoas doentes e defenderam o desrespeito a medidas de prevenção, como o uso de máscaras. Suas atitudes foram dirigidas pelo cálculo de manter a popularidade graças à continuidade da atividade econômica, mesmo ao custo de milhares de mortes, como efetivamente se deu. É egoísmo em elevada potência.
Covardia porque, ao não obter a adesão dos chefes do Exército e da Aeronáutica ao golpe, Bolsonaro e grupo íntimo passaram a persegui-los e a seus familiares pelas redes sociais. Assim, decidiu Bolsonaro continuar o golpe por meio dos acampados na frente de quartéis, que alimentou com a esperança de intervenção militar em seguida à ocupação das sedes dos Três Poderes.
Nesse sentido, é significativo o destaque dado pelo procurador-geral da República ao diálogo registrado entre o braço direito de Bolsonaro, Mauro Cid, e o coronel Rafael Martins de Oliveira. Em troca de mensagens eletrônicas realizada em 11 de novembro de 2022, Rafael Martins de Oliveira indagou a Mauro Cid: “Ae... o pessoal tá querendo a orientação correta da manifestação. A pedida é ir para o CN e STF? As FFAA vão garantir a permanência lá??/Perguntas recebidas”. O réu colaborador, então, respondeu: “CN e STF / Vão”.
Além do mais, a prova testemunhal, em especial o colaborador Mauro Cid, indica que o então presidente sempre dava esperanças de que algo aconteceria para convencer as Forças Armadas a concretizar o golpe.
Esperar comer com a mão do gato e sair às escondidas para os Estados Unidos, para que, em sua ausência, o País pegasse fogo é situação reveladora de triste covardia. Pessoalmente, em nada se arriscava na insurreição que industriava.
Agora, Bolsonaro, por via do filho, cuja viagem e campanha contra o País financia, entrega-se nas mãos de Trump, festejando a chantagem de que as ameaças à nossa economia seriam cessadas se arquivado, imediatamente, o processo criminal!
Para se salvar da responsabilidade de seus atos ilegais, Bolsonaro não se incomoda que sacrifiquem nosso país, sujeito a humilhações. Aplaude a barganha de supressão da medida que tira empregos dos brasileiros, se inventada uma fórmula para o livrar hoje da tornozeleira eletrônica, amanhã da condenação.
As injustificadas tarifas de 50% nas exportações prejudicam, especialmente, o setor do agro (café e carne), que sempre deu a Bolsonaro grande apoio. Agora o agro se vê sacrificado pelas ações de um delirante presidente americano em defesa de um Bolsonaro que não se comove com o prejuízo imposto aos seus fiéis apoiadores.
Unicamente preocupado com sua sobrevivência política e a fuga da prisão que se avizinha, Bolsonaro nem percebe que a Trump interessam mesmo as terras raras e big techs. Diante desse quadro, só mesmo a cegueira deliberada faz com que pessoas ainda cerrem fileira atrás deste mito de pés de barro.
Miguel Reale Júnior, o autor, é Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 02.08.25
Nenhum comentário:
Postar um comentário