segunda-feira, 22 de maio de 2023
Governar para quem?
A revanche como política de governo
Se Lula se inclina cada vez mais a apelar à emoção, ao passado e à polarização, não é só por ressentimento, mas para disfarçar sua falta de rumo, de ideias novas e de base parlamentar
Ogoverno tem imensos desafios, porque o País tem imensos desafios: o desafio conjuntural, de cicatrizar feridas abertas pela pandemia na educação, na saúde ou no mercado de trabalho; o estrutural, de criar condições para um desenvolvimento sustentável; e o político, cuja superação é precondição para enfrentar os outros, de apaziguar as tensões que dilaceram o debate público pelo menos desde 2013.
Há sinais de sensibilidade para esses desafios nos recessos da consciência do presidente Lula da Silva. Sua principal promessa de campanha, recordese, foi governar com uma “frente ampla democrática”. “Nosso governo não será um governo do PT”, disse ainda no segundo turno. “Não existem dois Brasis”, declarou logo depois de eleito. “Não há tempo para vingança, para raiva, para ódio. O tempo é de governar.”
Mas há um abismo entre esta sensibilidade e a ação. Primeiro, porque falta um plano inovador de governo. Mas, sobretudo, porque dos recessos mais obscuros da consciência do presidente brota forte um sentimento que obnubila o planejamento e a articulação política e sufoca os ânimos conciliatórios que ele diz ter: o ressentimento.
Ante a decisão da Justiça Eleitoral de cassar o mandato do deputado Deltan Dallagnol, por supostamente não atender aos requisitos da legislação eleitoral, um lacônico “nada a declarar” seria a única resposta desejável de um governo responsável e cônscio de que não há tempo a perder para congregar forças aptas a enfrentar os desafios do País. Mas, ao invés disso, o governo petista, como se fosse liderado por crianças pirracentas, encontrou tempo para empregar a máquina do Estado para fabricar memes tripudiando seu desafeto.
Ao invés de jogar água na fervura, o governo sopra a brasa. Mas, muito mais que um desabafo, a euforia juvenil ante os revezes de adversários como Dallagnol sugere nervosismo e até mais: uma estratégia calculada. O governo se inclina cada vez mais a apelar à emoção, ao passado e à polarização para justificar sua presença no Planalto como um muro de contenção à barbárie bolsonarista. Mas essa cortina de fumaça não disfarça a realidade da falta de rumo, de ideias novas e de base. Neste vácuo, o revanchismo se consolida cada vez mais como política de governo.
A educação, por exemplo, precisa de planos para compensar o déficit gerado pela pandemia, de soluções para fortalecer a aprendizagem e a formação dos professores e de um sistema de cursos técnicos e profissionalizantes para enfrentar as transformações do mercado de trabalho. Mas a principal medida do governo foi suspender a reforma do ensino médio. A maior chaga social do
Brasil, o saneamento básico, precisa de investimentos e planos consistentes de parcerias público-privadas. Mas o governo empenha-se em desconstruir o Marco do Saneamento.
O revanchismo é flagrante nos ataques à Lei das Estatais ou das Agências Reguladoras, à independência do Banco Central ou ao teto de gastos – marcos criados pelo Congresso justamente para pôr fim à malversação de recursos públicos e à sangria fiscal que grassaram nas gestões petistas, arrebentando a economia e desmoralizando a política.
Ao invés de oxigenar o País com novas políticas, o governo se empenha em reciclar políticas passadas. Ao invés de colocar o País na rota do futuro, enfrentando desafios inéditos do presente, empenha-se em reescrever a história e apagar da memória nacional desmandos como o mensalão, o petrolão ou a recessão, como se fossem mera narrativa e injustiça da oposição. Ao invés de aprender com seus erros e caminhar para frente com o Congresso, empenhase em desconstruir marcos criados pelo Congresso para sanar esses erros. Mesmo sua proposta mais consistente para promover o crescimento sustentável, o marco fiscal é mais ameaçado pelo próprio PT do que pela oposição.
Qual a chance de se discutir a sério políticas públicas que demandam um mínimo de coesão social e articulação política quando a vingança domina os corações e mentes no governo? Se Lula quer que esse mandato seja seu melhor, precisa refrear em si e na militância o rancor e começar a fazer política de fato. Se, como ele mesmo disse, “é tempo de governar”, então que o faça.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 22.05.23
Deltan Dallagnol está na cova dos leões
Religiosização (com perdão do neologismo) da política só interessa a um lado; Direita se move desenvolta nesse léxico
O deputado cassado Deltan Dallagnol, na Câmara - Pedro Ladeira/Folhapress
O pastor pregava numa igreja Batista: "Neemias agiu. Se nós queremos mudar o sistema, precisamos orar, agir e apoiar medidas contra a corrupção".
Era 2015, e Neemias foi do Velho Testamento ao sermão para justificar o avanço religioso sobre a política. Ao murar a cidade sagrada de Jerusalém, servira a dois senhores, o estado terreno (governou a Judeia) e o reino divino. Quem buscou o exemplo foi Deltan Dallagnon, que tinha 35 anos e uma missão.
Como a missão lava-jatista se cumpriu, é prudente atentar para suas profecias.
A mais recente veio em reação ao tuíste digno das narrativas bíblicas, quando o moralizador foi pego de moral curta. Legítima ou espúria, a cassação deu-lhe outro púlpito, o de perseguido.
Em meio a cartazes de "Perseguição política não é justiça", discursou no estilo em que fez carreira, com a Bíblia e a Constituição confundidas.
A retórica cristã tem sido seu trunfo na trajetória curta entre a obscuridade paranaense e a luminosidade de Brasília. Daí equiparar sua sina às de José e Daniel.
O primeiro, vendido pelos irmãos como escravo, permitiu-lhe sintonizar com o grande mote contemporâneo da direita, o da primazia da liberdade.
O segundo lhe deu a camisa do crente, salvo da pena injusta pelo poder da fé. Trata-se de Daniel, acusado de traição ao rei por orar a Deus. O soberano pôs a divindade concorrente à prova, trancando o infiel numa cova com leões. O salvamento foi por graça divina.
Já os acusadores provaram a inclemência terrena, devorados pelos felinos. Uma mensagem de revanche: Dallagnol está na cova, mas quando sair, condenará os inimigos ao suplício.
À diferença de Daniel, vai comboiado à vingança. O protesto contra sua cassação ajuntou do 03 à deputada de tiara de florzinha, a que votou contra a equiparação salarial entre os gêneros e insinuou usar metralhadora contra Lula.
O ato de desagravo exibiu uma arca da aliança, que o pastor chamou de "a direita unida contra a arbitrariedade". Nela cabem muitos pecadores.
A cruzada moral é para salvar um mundo corrompido desde a expulsão do Paraíso.
Exemplos religiosos e ações políticas se embaralham, enraizando a moralidade pública em uma moral privada particular, de tipo religioso. Avoca o monopólio da honra e da correção à sua igreja política, já os adversários seriam todos corrompidos.
Os últimos anos mostraram o poder político desta retórica moralizadora, que opõe impolutos e conspurcados. Suscitou nada menos que paixão nacional. Por isso o "tombo", palavra do caído, serviu para regar o terreno laico da política partidária com os valores de uma seita.
Dallagnol, como Daniel, vive uma provação, mas promete voltar fortalecido, graças à fé em Deus e nas "344 mil vozes caladas", as dos eleitores que o sufragaram. Não na Constituição.
A língua religiosa da oposição acabou na boca do governo, que devia ser laico. O ministro da Justiça se saiu com o evangelho de Mateus: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!"
Ao adotar a linguagem do inimigo, aceita-se o debate político nos seus termos. E se cai na armadilha de falar mais de moral que dos problemas do país.
A religiosização (com perdão do neologismo) da política só interessa a um lado. A direita se move desenvolta nesse léxico. E, ao fundamentar seus atos em citações sagradas, prossegue a política nos termos de seu velho Messias.
Angela Alonso, a autora deste artigo, é Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 21.05.23, às 23h15
Laico não é ateu
Por vezes falta compreensão sobre a importância da religião como força social
Precisamos dialogar mais sobre Estado laico. Sobretudo, compreender melhor que dialogar não é somente falar, mas também ouvir com atenção e ter empatia pelas realidades que atravessam o diálogo. O Estado precisa ser o "ente subsidiário" que dialoga com a sociedade, inclusive com o campo religioso. Segundo dados do Censo de 2010 sobre religião no Brasil, cristãos são 86,8%.
Todavia, para o tema, trago aqui um exemplo recente do futebol europeu sobre esse "ente" laico, o Estado. A Federação Francesa de Futebol comunicou seu corpo de arbitragem que não deveria pausar as partidas para permitir que jogadores muçulmanos quebrassem o jejum durante o Ramadã, o mês sagrado. No futebol inglês, a decisão foi inversa e permitiu que as partidas da Premier League possam fazer uma parada técnica para os jogadores muçulmanos cumprirem seus preceitos religiosos.
A resposta oficial da federação francesa foi: "A ideia é que haja um tempo para tudo. Um tempo para fazer esporte, um tempo para praticar a religião", afirmou Eric Borghini, chefe da comissão de arbitragem. Como primeira impressão, diria que a resposta foi coerente. Entretanto, demonstrou pouco conhecimento de religião e, consequentemente, das pessoas religiosas; logo, conhece pouco da humanidade. Borghini primou pela obediência à regra da laicidade francesa, e acrescentou: "Ninguém se importa que eles não façam isso. Porque não estamos em um país muçulmano. Você tem que aceitar o país em que vive".
Liberdade religiosa é direito fundamental. É sem limites? Não. Mas ela está no mesmo contexto que exige de nós capacidade de reconhecer e respeitar a diversidade humana e a pluralidade cultural que compõem o nosso país. Há uma tensão ambivalente entre inúmeros levantes reacionários e capilarizados na sociedade contra conquistas democráticas. Temos agentes públicos, representantes do Estado e tantas outras forças sociais em defesa peremptória da democracia e laicidade do Estado.
Contudo, em meio a esse esgarçamento social, estão muitas pessoas religiosas que não reconhecem, na religião, esse tipo de força a ser disputada, já que muita gente nem alcançou a vida digna. Portanto, exercer a religiosidade significa potência para suportar as agruras da vida, significa estar em rede de apoio mútuo, ter suporte emocional, espiritual, financeiro —mesmo em meio a muitas contradições.
A sociedade brasileira está cansada e adoecida. A religião fornecerá ainda mais sentido de vida e para a vida a muito mais pessoas. Projetos políticos deixaram muita gente com fome ou na insegurança alimentar, desabrigadas, endividadas, desesperadas. O tamanho da orfandade pela pandemia e pelo feminicídio é enorme em nosso país. Passamos por uma grave crise sanitária, na qual fomos jogados como rebanho sem pastoreio.
O Estado laico deve ser o sustentador da pluralidade de credos, opiniões e convicções religiosas —ou da ausência desta na vida de nossa gente. Essa sustentação o diferencia do conceito de um Estado ateu, no qual incorporaria ao regime político a não crença na existência de Deus ou de alguma outra divindade ou entidade espiritual.
Encerro retomando o caso da França. A federação de futebol escolheu ser inflexível, optou pela segurança das regras ao se manifestar contrária ao diálogo. Poderia ter aprendido com a liga inglesa, que negociou e combinou deixar o banco de reservas em prontidão para receber seus colegas muçulmanos com fruta e água —e, assim, poderiam eles entregar o jejum em oração para posteriormente retornarem ao jogo.
Nesse sentido, pergunto: não teriam faltado diálogo e compreensão sobre a importância da religião como força social? Não houve preconceito em entender que a religião pode ser promotora de sentido de vida? Faltou reconhecer que a religião, como qualquer outro aspecto da cultura, molda e media subjetividades.
Valéria Cristina Vilhena, a autora deste artigo, é teóloga, mestra em ciências das religiões e doutora em educação e história da cultura; fundadora do coletivo Mulheres EIG - Evangélicas pela Igualdade de Gênero. Publicado originalmente n'a Folha de S. Paulo, edição impress, em 21.05.23, às 22h00.
Zelensky, 40; Putin, 0
A Rússia proclamou a conquista de Bakhmut no fim de semana, mas o presidente da Ucrânia obteve uma vitória diplomática ao se reunir com cerca de 40 líderes em 48 horas, enquanto Putin está severamente impedido de deixar seu país.
Volodimir Zelensky e os líderes do G-7, ontem, em Hiroshima. (StefanRousseau / AP)
O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, se reuniu no fim de semana com cerca de 40 líderes mundiais durante duas viagens à Arábia Saudita ( cúpula da Liga Árabe ) e ao Japão ( cúpula do G-7 ). O presidente russo, Vladimir Putin, não só não teve uma grande agenda diplomática nos últimos dias, como também não fez nenhuma viagem ao exterior este ano além de algumas visitas à Ucrânia ocupada (que a Rússia considera parte de seu território), de acordo com a compilação do Site do Kremlin dedicado a ele. Significativamente, enquanto Zelensky estava viajando, a mídia russa informou que as autoridades russas emitiram um mandado de prisão para o promotor do Tribunal Penal Internacional que, por sua vez, emitiu um mandado de prisão contra o líder russo meses atrás. O contraste diz algumas coisas sobre a posição internacional dos dois. Você não precisa ampliá-lo. Não o subestime também. Vamos ver.
Putin e a Rússia não estão isolados. Cerca de 140 países apoiaram o voto da ONU condenando a invasão, com 35 abstenções e cinco a favor. Mas apenas cerca de quarenta implementam sanções ou restrições contra a Rússia. A segunda maior economia do mundo, a China, cultiva uma parceria estratégica com Moscou e seu presidente, Xi Jinping, viajou recentemente para a Rússia; a quinta, a Índia, mantém laços estreitos que vêm do passado, mas persistem no presente. Existem muitos países que não aprovam a invasão e, no entanto, não têm problemas em continuar a interagir com a Rússia como antes. Muitos deles censuram os países ocidentais pela hipocrisia do duplo padrão entre o Iraque e a Ucrânia.
Mas é claro que Putin está em uma situação de profunda dificuldade diplomática. Se em algum momento ele pensou que seu desafio frontal à ordem mundial moldada pelo Ocidente teria conquistado o apoio — moral, senão material — de outros países insatisfeitos com ela, seu cálculo estava errado. Apenas quatro países apoiaram a Rússia na ONU. São dezenas que continuam a fazer negócios, que não têm interesse em enfrentar Moscovo, mas que claramente não têm uma vontade especial de tirar fotos com o invasor numa grande guerra que nem se chama assim.
O mandado de prisão emitido por Haia vincula teoricamente os 123 países membros do Estatuto de Roma. Na prática, como já aconteceu em outros casos, eles podem violá-lo sem sofrer consequências porque não existem mecanismos sancionatórios para isso. No entanto, não há dúvida de que essa questão representa um enorme risco que desacelera ainda mais a projeção diplomática de Putin. A mídia sul-africana noticiou recentemente que o governo local teria desaconselhado o líder russo a comparecer pessoalmente à cúpula do BRICS marcada para agosto. Esse problema é bastante simbólico, já que os BRICS encarnam justamente um fórum de contrapeso ao Ocidente.
Em contraste com esta situação, Zelenski conseguiu assistir a uma cimeira da Liga Árabe, organização que reúne 22 países, e outra do G-7 em que, além dos sete sócios e dos líderes da UE, estiveram presentes líderes de oito países convidados e líderes de instituições internacionais como a ONU. Teve assim oportunidade de lhes apresentar os seus argumentos e, em muitos casos, de cultivar ou estabelecer relações pessoais com reuniões bilaterais.
Isso não significa, por si só, conseguir uma mudança nas posições políticas dos outros. Estes, é claro, são baseados em interesses nacionais ou visões ideológicas difíceis de mudar. Não é, portanto, de esperar qualquer reviravolta. Tanto no bloco árabe, no qual a Arábia Saudita há muito está envolvida em estreita cooperação com a Rússia na modulação do mercado de petróleo no âmbito da OPEP+, quanto com o punhado de convidados não alinhados convidados para o G-7. O fracasso do encontro com Lula é um sintoma das dificuldades. Embora a motivação para o desacordo não seja clara, o mesmo fato fala das dificuldades pendentes.
Mas os líderes de países importantes e não alinhados com o Ocidente, como a Arábia Saudita ou a Índia, fizeram reuniões com Zelenski, com uma atitude sorridente e descontraída. Eles o ouviram. E todas as lideranças têm um componente pessoal, humano, no qual o contato direto pode influenciar. Em todo caso, a priori, que seus bons amigos de Riad e Nova Delhi se encontrem sorridentes com o chefe da suposta quadrilha nazista no poder em Kiev —segundo a conhecida retórica do Kremlin— é uma pílula amarga para Moscou.
Tudo isso é relevante em dois planos em que, mesmo sem grandes desvios que não são esperados, pequenas mudanças também podem ser úteis. Primeiro, no que diz respeito ao nível de disponibilidade de países terceiros para se prestarem à medida que as sanções atraem os mercados. Há uma área cinzenta entre não aplicá-los e torná-los fáceis de zombar. A segunda diz respeito ao que podem ser futuras negociações de paz, nas quais um deslocamento, mesmo que moderado, da pressão pode ser favorável. Zelensky aproveitou sua passagem para vender seu plano, explicar seus argumentos, enfatizar que permitir que a soberania e a integridade territorial de outros países sejam violadas é ruim para todos. E que o fato de haver precedentes não significa que um novo caso deva ser aceito sem mais delongas.
O fim de semana mostrou que Kiev tem total apoio das potências ocidentais que desmentem qualquer suspeita de cansaço ao abrir caminho para um projeto de longo prazo como a entrega do F-16 . Também que tem a possibilidade de diálogo direto com partidos não alinhados com os quais Moscou espera cooperar para estabelecer uma ordem alternativa.
A Rússia, por sua vez, conta com o apoio da China, mas claro que isso não é incondicional. Pelo contrário, tem limites enormes e, em certo sentido, é mais uma relação de uso e vassalagem incipiente do que de apoio. Ao mesmo tempo, é claro, Moscou não tem facilidades para implantar seu projeto diplomaticamente.
Nada disso é decisivo. No mesmo fim de semana em que ocorreu esse impressionante descompasso diplomático em favor de Kiev, Moscou anunciou a suposta conquista de Bakhmut após meses de batalha. Zelenski negou. De qualquer forma, o fato é um lembrete de que a máquina de guerra russa ainda é assustadora. Porém, no campo diplomático, é difícil refutar que a vitória foi de Zelenski.
Andrea Rizzi, oo autor deste artigo, foi o enviado especial do EL PAÍS à reunião do G7 em Hiroshima, Japan, É o correspondente de assuntos globais do EL PAÍS e autor de uma coluna dedicada a questões europeias publicada aos sábados. Anteriormente, foi editor-chefe do Internacional e vice-diretor de Opinião do jornal. É licenciado em Direito (La Sapienza, Roma), mestre em Jornalismo (UAM/EL PAÍS, Madrid) e em Direito da União Europeia (IEE/ULB, Bruxelas). Publicado originalmente em 22.05.23
sábado, 20 de maio de 2023
Adeus, reforma!
Com uma estrutura partidária tornada em tragicomédia e o poder parlamentar real exercido pelo Centrão, alguém acredita na instauração da paz e da ordem no País?
“O sistema presidencial de governo só funciona nos Estados Unidos. Em outros países, ele degenera em presidencialismo, ou seja, em ditadura” (Maurice Duverger)
Tivesse tido a oportunidade de acompanhar a eleição norte-americana de 2016 e os desmandos da era Trump, o mestre francês Maurice Duverger por certo teria sido mais sóbrio em sua avaliação do sistema de governo norte-americano.
Aqui, precisamos retroceder ao pleito presidencial de 1960, que deu a vitória ao ex-governador de São Paulo Jânio Quadros, lançado pela minúscula sigla do Partido Trabalhista Nacional (PTN). Consta que Jânio Quadros era um bom dicionarista, mas como político foi um dos mais grotescos espécimes do populismo latino-americano. Espargindo caspa pelos ombros e caprichando em seus dons teatrais, não teve dificuldade em personificar um líder gaiato que o tosco Brasil daqueles tempos acolheria com entusiasmo. Do lado oposto, a União Democrática Nacional (UDN), consciente de sua fragilidade diante da mística getulista – criptografada pela aliança PSD-PTB (Partido Social-Democrático/Partido Trabalhista Brasileiro) –, bandeou-se para o populismo janista. Acrescentemos que a Constituição da época não exigia que os candidatos a presidente e a vice pertencessem a um mesmo partido, e assim Jango, percebendo que Jânio venceria o Marechal Lott por larga margem, em vez de encarnar o evangelho segundo Getúlio, aliou-se por baixo do pano ao Messias da Vila Maria.
O resultado da aliança Jânio-Jango foi o previsível desastre. Tendo cumprido somente oito meses de governo, Jânio Quadros, obviamente tentando efetuar um golpe plebiscitário, enviou ao Congresso Nacional uma carta-renúncia, na intenção de que o povo o levaria nos ombros de volta ao Planalto. Agindo com sabedoria, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, sentenciou: “Uma carta de renúncia não é suscetível de votação. A renúncia do presidente da República é um ato de vontade e não depende do Congresso. Está recebida a carta! Arquive-se!”. Neste momento, Jango, em viagem oficial à China, foi notificado por uma junta militar que tomara o poder de que seria preso assim que pusesse o pé no território nacional.
Decorridos 61 anos, limito-me a lembrar que a possibilidade de uma guerra civil logo se delineou, em razão da resistência do Rio Grande do Sul, hipótese contornada por um improvisado “parlamentarismo” (um típico semipresidencialismo) que radicalizou o País e desembocou diretamente no golpe militar de 1964.
O curioso dessa história é que, na prática, tivemos vários ensaios de “semipresidencialismo” antes mesmo de ele surgir na França – sem maiores consequências até a tentativa de golpe contra o presidente João Goulart, em 1961, que forçou a formalização do sistema sob a falaciosa denominação de parlamentarismo. Até então, uma figura informal semelhante à de um primeiro-ministro já fora investida, com poderes variáveis, ora pelo ministro da Justiça, ora pelo da Fazenda. Durante os governos militares, tivemos no papel o general Golbery do Couto e Silva, Petrônio Portella e o ministro Leitão de Abreu, este chefiando a Casa Civil. Sem esquecer, é claro, que no início dos anos 90 o presidente Itamar Franco retomou o modelo do “semi-informal”, que ganhou seriedade não por suas qualidades intrínsecas, mas porque a função foi entregue ao senador Fernando Henrique Cardoso.
É lógico que a experiência de 1961-1963 nada tinha de parlamentarismo; era um emaranhado de contradições. Em tese, é lícito cogitar que a instauração (ou não) de um sistema parlamentarista mediante plebiscito seria um caminho consistente. E, de fato, chegou a ser voz corrente que o Ato Adicional do referido emaranhado estipulara a realização de um plebiscito cinco anos após o estabelecimento do “parlamentarismo”. Quanto a esse ponto, não há dúvida de que alguém andou vendendo gato por lebre. (A seguir, com grifos meus.) O artigo 22 das Disposições Transitórias apenas autorizava o Legislativo a fazer o que é de sua obrigação: “Poder-se-á complementar a organização do sistema parlamentar de governo ora instituído, mediante leis votadas, nas duas Casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta de seus membros”. À vacuidade do artigo 22, acrescentava-se no artigo 25 uma pérola de engenharia constitucional: “Art. 25. A lei votada nos termos do artigo 22 poderá dispor sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do termo do atual período presidencial”.
Nos dias de hoje, com uma estrutura partidária transformada em tragicomédia e o poder parlamentar real exercido por aquela chusma denominada Centrão, alguém acredita na instauração da paz e da ordem no País?
O presidente Charles De Gaulle não disse, mas poderia com plena razão dizer que o Brasil não é um país sério.
Bolívar Lamounier, o autor deste artigo. é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.05.23
Deltan: ‘Como explicar para a sociedade que o Lula está elegível e o Deltan inelegível?’
Parlamentar cassado afirma que decisão do TSE foi uma fraude e teme pelos riscos à democracia no País
Deltan Dallagnol teve o mandato cassado pelo TSE na terça-feira, 16. Foto: Bruno Spada / Câmara dos Deputados
O deputado cassado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) afirmou em entrevista exclusiva ao Estadão que vai recorrer até o fim para manter seu mandato na Câmara. Nesta semana, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o parlamentar paranaense alegando que ele violou a lei da Ficha Limpa. Deltan disse que a decisão da Corte foi fraudada. “Eu roubei, me corrompi, abusei, torturei? Não”.
Para ele, a preservação de seu mandato depende de uma decisão política do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL, a quem Deltan ainda pretende recorrer para assegurar que a decisão do TSE não seja aplicada automaticamente. “O maior medo que eu tenho é a perda da fé das pessoas na democracia”.
A votação que cassou o mandato de Dallagnol, como mostrou o Estadão, durou um minuto e seis segundos, se considerado o período entre o fim do voto do ministro Benedito Gonçalves - relator do caso - e a proclamação do resultado. O deputado perdeu o cargo por unanimidade, com base na Lei da Ficha Limpa, mas ainda cabe recurso.
“Hoje sou eu, amanhã são outros parlamentares”, afirmou.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista do ex-procurador da Lava Jato e deputado cassado:
O TSE errou ao cassá-lo?
Com certeza o TSE errou. O TSE inventou uma inelegibilidade que não existe na lei. A legislação é objetiva e clara. É inelegível o membro do Ministério Público que sai na pendência de processo disciplinar. Isso não existia no meu caso, não existia nenhum processo disciplinar. A Constituição orienta que restrições de direitos fundamentais não podem ser interpretadas de modo extensivo.
Houve um abuso na interpretação da Lei da Ficha Limpa?
O TSE criou uma hipótese, um caso de inelegibilidade imaginário, que não está previsto em lei, em cima de quatro suposições. A primeira é de que eu teria saído do Ministério Público por conta de um risco de inelegibilidade. A segunda é de que isso aconteceu porque existiam reclamações disciplinares que poderiam se converter em PAD (Processo Administrativo Disciplinar). A terceira é de que PADs poderiam gerar condenação. A quarta é que alguma condenação poderia ser a pena de demissão. Ou seja, é como se eu fosse punido por um crime que eu não cometi, mas poderia cometer no futuro. Ou ainda pior, é como se eu fosse punido por uma possibilidade de que, no futuro, eu fosse acusado.
Como explicar para a sociedade brasileira que Lula, condenado em três instâncias por corrupção, está elegível e com mandato e que Deltan, que não foi investigado, acusado e processado criminalmente, muito menos acusado administrativamente, porque não existia PAD, se tornou inelegível? Como explicar essa absurda contradição? O TSE alegou que eu fraudei a lei, mas está muito claro que quem fraudou a lei foi o TSE. Certamente foi (um julgamento) político.
O ministro Benedito Gonçalves afirma que o senhor teve o “intuito” de manobrar a lei.
O que eles fizeram foi um exercício de leitura de mente e que, por si só, não era suficiente. Teve que ser combinado com uma futurologia. Eles precisaram, primeiro, supor uma intenção e somar a três possíveis desdobramentos cumulativos. Isso não é possível porque não existe essa hipótese prevista na lei. Hipóteses de inelegibilidade não podem ser estendidas, segundo entendimento pacífico das Cortes Superiores, não podem ser alargadas pela interpretação ou pelo julgador.
A Lava Jato, comandada pelo senhor, acusou Lula de ter uma “real intenção” de adquirir o triplex no Guarujá. Por que no caso do presidente a intenção pode ser levada em consideração e, no seu caso, não?
As duas situações são completamente diferentes. Lula foi acusado de praticar um crime e condenado por corrupção e lavagem de dinheiro. Quando você avalia o cometimento de crime por alguém, você avalia se a pessoa agiu com consciência e vontade, o dolo. Algumas pessoas vão traduzir como intenção. A minha situação é completamente diferente. Eu não pratiquei um crime. Nenhuma conduta que eu fiz está prevista na lei como inelegibilidade. É totalmente diferente. O comportamento dele (Lula) se enquadra perfeitamente num crime descrito na lei. No meu caso, o meu comportamento não se enquadra em nenhuma inelegibilidade descrita na lei. Eles (TSE) tiveram que estender a lei. É como se eu estendesse o crime de corrupção para situações que não são corrupção para enquadrar alguém. Essa decisão do TSE cria uma punição para onde o Direito não prevê. Os meus advogados estavam dizendo: “é impossível deixarem inelegível dentro do Direito. Você só vai se tornar inelegível se for uma decisão muito política”. Todo mundo me dizia isso, eu não acreditava que isso pudesse acontecer.
O senhor foi pego de surpresa?
Eu fiquei absolutamente surpreso. Não só pela decisão, mas por ela ter acontecido em 66 segundos e contrariando todas as posições unânimes dos membros do Ministério Público e dos julgadores que tinham atuado antes nesse caso.
Quando o senhor pediu exoneração, havia sindicancias e reclamações que poderiam virar PAD.
É uma espécie de procedimento preliminar que é, simplesmente, uma capa dada a um pedido feito contra mim no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Todas as semanas, nós sofríamos reclamações disciplinares de pessoas e partidos investigados na Lava Jato. Nós respondemos a dezenas, a centenas de reclamações disciplinares. Agora, elas só são convertidas em processo disciplinar quando existe viabilidade e fundamento. Quantos foram convertidos? Dois. Eu roubei, me corrompi, abusei, torturei? Não. Fui punido por críticas ao Supremo Tribunal Federal e ao (senador) Renan Calheiros. Sem excesso de linguagem, sem ofensa. Dentro dos limites da crítica, da democracia.
O senhor pediu exoneração para evitar que esses procedimentos virassem PAD e impedissem sua candidatura?
Não. Essas reclamações já estavam pendentes há meses. Eram remanescentes de mais de 50 reclamações que foram arquivadas paulatinamente no CNMP. Algumas ficaram, por exemplo, porque eram baseadas em notícias do The Intercept. Se alguma pudesse conduzir à minha demissão, a minha exoneração não poderia ter ocorrido. Existe uma regra que diz que quando um servidor responde a um procedimento que pode gerar sua demissão, ele não pode se exonerar. Eu pedi minha exoneração depois de receber um convite do (ex-senador) Álvaro Dias para lutar por mudanças no Brasil ao lado de Sérgio Moro que voltava ao Brasil para ser candidato à Presidência da República. A minha entrada na política dependia de uma série de negociações com os partidos. Conversei com o Novo, o Republicanos, o Podemos e o União Brasil. Isso não podia ser feito enquanto eu estava no Ministério Público, porque existe uma vedação de atividade político-partidária. Eu saí para poder manter conversas partidárias e isso precisava acontecer antes do prazo de filiação que era 6 meses antes da eleição. Além disso, existia uma narrativa de que promotores ou procuradores se afastavam da carreira muito perto das eleições quando se deveria existir uma quarentena maior. A tudo isso, se somou a reflexão que eu fiz com a minha família em que a gente entendeu que depois de toda a reação do sistema corrupto, eu não conseguiria mais lutar contra a corrupção dentro do Ministério Público.
Vai recorrer ao Supremo?
Sim.
Nesta semana?
Essa questão está sendo definida pelos nossos advogados. Estão estudando as possibilidades, redigindo as peças. Nós vamos recorrer até o fim, vamos lutar até o fim. Não se trata de Deltan, se trata de três causas: a defesa da democracia, do voto e da soberania do povo. A segunda é conter a juristocracia, (que é) o avanço judicial sem base na lei nas competências de outros poderes ou sobre as liberdades. A terceira é garantir que o combate à corrupção não vai ser enterrado no Brasil.
O senhor agora está sofrendo com uma interpretação abrangente da lei, que era algo muito criticado nos métodos da Lava Jato?
Na Lava Jato, as críticas sobre supostos excessos eram que as pessoas discordavam sobre onde exatamente estava a linha da lei. Alguns achavam que estava um pouco para cá, outros achavam que estava um pouco para lá. Nessa discussão, sujeita à interpretação sobre onde está a linha da lei, algumas pessoas falaram: “olha, eles pisaram na linha, eles foram um pouco para lá”. Naturalmente, os advogados sustentavam isso. Contudo, neste tipo de situação, de abuso de Direito, como definiu (o jurista) Miguel Reale (Jr.), de risco à democracia, como disse a Transparência Internacional, de decisão combinada, como disse (o ex-ministro do STF) Marco Aurélio (Mello), você não questiona se passou um pouco do limite da lei. A lei ficou lá atrás, ficou lá longe. Está completamente fora da lei.
O senhor volta a trabalhar na Câmara nesta semana?
A partir da decisão (do TSE), da comunicação que foi feita ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral do Paraná) e à Câmara, o procedimento será da minha notificação. Em seguida, terei prazo de cinco dias para apresentar uma defesa sobre aspectos formais. Isso vai para o corregedor da Câmara, que vai apresentar um parecer. Esse documento será submetido à Mesa (Diretora). Estima-se que isso aconteça nos próximos 10, 15 dias. Contudo, a implementação da decisão pode ser imediata ou pode demorar meses ou anos. Isso depende muito da vontade e da visão política, especialmente, do presidente (da Casa).
O presidente da Câmara, Arthur Lira, não defendeu o senhor publicamente nem se manifestou contrariamente à decisão do TSE.
Estou buscando marcar um encontro com ele para eu apresentar as razões pelas quais eu entendo que, não só é uma decisão injusta, mas que não deve ser executada de imediato pela Câmara dos Deputados antes de um posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Especialmente, quando você está tratando de algo tão sagrado da democracia que é a soberania popular e o voto de 345 mil pessoas. É preciso que o Parlamento defenda os parlamentares, defenda a soberania do voto.
Se a Mesa Diretora cumprir a decisão e o senhor tiver que deixar o mandato, o que fará daqui para frente?
Eu não estou traçando um plano B agora. Muitas pessoas vieram expressar sua solidariedade e abrir portas, trazer possibilidades. Mas a única possibilidade que eu vejo hoje é lutar com unhas e dentes para honrar a confiança das 345 mil pessoas que votaram em mim. O TSE passa o ano inteiro das eleições falando sobre o valor e a importância do voto. No ano passado, em especial, defendeu firmemente a segurança das urnas eletrônicas. Contudo, agora, fora da lei, o que eles fazem é anular 345 mil votos. O maior medo que eu tenho é a perda da fé das pessoas na democracia.
O TSE vai cassar o senador Moro?
Seria um exercício de especulação. O que eu vejo sendo pavimentado é um caminho para cassação não só de Sérgio Moro, mas de vários outros parlamentares. O que se fez esta semana foi ultrapassar as linhas para cassar alguém que é visto como um adversário político do atual governo e alguém contra quem o atual presidente queria vingança. Hoje sou eu, amanhã são outros parlamentares.
O senhor conversou com Moro?
Sim. Ele expressou solidariedade, irresignação e se colocou à disposição para ajudar e apoiar a mim e à minha família de modo pessoal e profissional naquilo que a gente precisasse. Respondi que, neste momento, nós estamos focados em construir uma solução para o mandato possa ser preservado. Ele se colocou à disposição para ajudar.
Entrevista concedida a Julia Affonso para O Estado de S. Paulo. Pubicada originalmente em 20.05.23, edição online, atualizada às 16h32
Moro culpa Lula e PT por cassação de Deltan e diz que TSE leva insegurança ao Congresso
Senador e ex-ministro de Bolsonaro afirma que tribunal fez interpretação incorreta da Lei da Ficha Limpa
O senador Sergio Moro durante entrevista em seu gabinete no Senado - Pedro Ladeira-28.fev.23/Folhapress
Ex-juiz e ex-ministro da Justiça, o senador Sergio Moro (União Brasil-PR) culpa o governo do presidente Lula (PT) pela decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que cassou o mandato do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR). O PT moveu a ação contra o ex-coordenador da Lava Jato.
"Eu respeito os tribunais, o TSE, os ministros, o entendimento deles e isso tem que ser discutido nos meios recursais próprios. Agora, existe um contexto que a gente não pode ignorar, que é um contexto de perseguição à oposição", afirmou o senador em entrevista à Folha.
Para Moro, os ministros da corte fizeram uma interpretação incorreta da Lei da Ficha Limpa. Além de divergir da decisão, ele criticou a postura de aliados de Lula.
"Não tem motivo para comemorar. O governo tem insistido na polarização como estratégia política, que é a mesma estratégia que se criticava no governo anterior. Então o que mudou? Mudou apenas o chicote de mão? Ou a gente vai trabalhar realmente para construir um país que é para todo mundo e vamos respeitar as divergências políticas?", questionou.
Apesar da decisão do TSE contra Deltan, o ex-ministro declarou estar tranquilo em relação ao próprio mandato e lembrou que, no fim do ano passado, a corte, por unanimidade, manteve a validade de sua candidatura.
Qual sua avaliação sobre a decisão do TSE?
Eu lamento a decisão. Eu divirjo dela respeitosamente. É uma pena. Eu acho que perde o Brasil e perde a política, mas espero que o próprio TSE ou STF possam eventualmente rever a decisão.
No fundo, eu coloco a culpa no governo, porque o PT e o governo vêm construindo esse clima no Brasil de continuidade da polarização. Então, o tribunal aplicou a lei, acho que fez uma interpretação incorreta da lei, não a melhor. Mas, no fundo, é esse contexto de cassação, de ameaça, de censura, isso não faz bem para o país.
A ação contra Deltan foi movida pelo PT, mas a decisão foi tomada por sete juízes, sendo que três foram indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Eu respeito os tribunais, o TSE, os ministros, o entendimento deles e isso tem que ser discutido nos meios recursais próprios. Agora, existe um contexto que a gente não pode ignorar, que é um contexto de perseguição à oposição. Em qualquer governo, há as pessoas que apoiam o governo e tem a oposição. Temos que discutir projetos, mas o grande problema é que o governo e o Lula, em particular, têm contribuído com discurso que não pacifica o país.
O sr. acredita que o PT e aliados do governo articularam a favor dessa decisão para cassar o Deltan?
Eu não posso comentar sobre fatos que eu não conheço. Eu vi a decisão. E esse clima provocado pelo governo Lula que favorece a perseguição da oposição dificulta até que uma decisão como essa, que é controvertida, seja bem acolhida.
Deltan disse que os corruptos estão em festa com a decisão do TSE, inclusive o ministro Gilmar Mendes, do STF, e o deputado Aécio Neves (PSDB). O sr. concorda com essa declaração?
O que eu vi foram manifestações de agentes políticos, de pessoas comemorando a cassação do mandato. Não vi nenhum posicionamento do ministro Gilmar Mendes a esse respeito. Eu vi, sim, alguns políticos comemorando. Falta um pouco de humanidade. Podem não gostar do deputado, mas o deputado sofreu uma cassação de mandato, frustrando aí 344 mil eleitores. Não tem motivo para comemorar.
O governo tem insistido na polarização como estratégia política, que é a mesma estratégia que se criticava no governo anterior. Então o que mudou? Mudou apenas o chicote de mão? Ou a gente vai trabalhar realmente para construir um país que é para todo mundo e vamos respeitar as divergências políticas?
Deltan Dallagnol concede entrevista no Salão Verde da Câmara para falar da cassação do mandato - Pedro Ladeira-17.mai.23/Folhapress
O sr. diz que houve uma inovação na decisão do TSE. Se essa posição for mantida, qual deve ser o efeito disso?
Pode criar um precedente para os mandatos dos parlamentares diante do Conselho de Ética. Hoje, objetivamente, a gente tem que, se um parlamentar renunciar durante um processo aberto no Conselho de Ética, ele é alcançado pela Lei da Ficha Limpa. Como é que vai ficar agora? Se ele renunciar numa perspectiva de ter um processo, ele fica inelegível? Gera insegurança, porque são situações similares.
Eu respeito a decisão do TSE, mas divirjo respeitosamente, gera insegurança. Se isso for aplicado, como é que fica no Senado e na Câmara? Qualquer parlamentar que ficar sujeito amanhã a um processo no Conselho, se renuncia antes, ele está inelegível? Não me parece que é a melhor interpretação.
Acha que haverá pressão ou necessidade de mudança na Lei da Ficha Limpa?
Não creio que seja o caso de rever a Lei da Ficha Limpa. O que existe foi uma interpretação num caso específico. Eu acho que é muito prematuro para se falar nisso [revisão da lei].
Adversários e críticos dizem que o sr. também contribuiu para esse clima de polarização. De forma nenhuma eu vejo dessa forma. Quem foi processado na Lava Jato recebeu suborno ou pagou o suborno. São decisões que foram inclusive mantidas pelos tribunais recursais da 4ª região, foram mantidas pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça]. O que houve depois foi uma revisão, uma revanche contra esse combate à corrupção que eu lamento, mas eu nunca tratei essas questões do ponto de vista pessoal.
Jamais fiz qualquer manifestação minha comemorando, por exemplo, um infortúnio de alguém na época da Lava Jato. O que existiu ali, podem dizer o que quiserem, foi a aplicação da lei. O grande problema é que esse não é um assunto do dia. Nos meus discursos do Senado, eu não falei de tríplex, eu não falei de sítio em Atibaia. A gente está focado no presente e no futuro. Esse tem que ser o foco do governo, e não o revisionismo do passado.
O sr. se sente, de alguma maneira, ameaçado com esse entendimento do TSE diante de ações que são movidas contra sua eleição?
Estou muito tranquilo. O direito e os fatos estão a meu favor. Existem duas ações no TRE [Tribunal Regional Eleitoral] do Paraná, ao meu ver, absolutamente improcedentes [tratam de acusação de caixa 2 e de abuso de poder econômico]. E o TSE, em dezembro do ano passado, por decisão unânime, manteve minha candidatura.
O sr. acredita que eventual indicação de Cristiano Zanin para o Supremo seria aprovada no Senado?
Qual seria a sua postura? Eu só vou me manifestar quando vier a indicação. O que eu posso apenas adiantar é que qualquer que seja o indicado o Senado precisa cumprir o seu papel de fazer uma sabatina rigorosa, sem questões pessoais envolvidas. Discutir realmente se o indicado preenche os requisitos constitucionais, que são notório saber jurídico e a reputação ilibada. E pensarmos institucionalmente o STF, o que nós queremos de um Supremo Tribunal Federal. Queremos um STF independente.
Qual a sua avaliação sobre a gestão atual do Ministério da Justiça, pasta que o sr. já chefiou?
O próprio ministro [Flávio] Dino é uma pessoa qualificada, um juiz federal, deixou também a carreira, depois foi governador. É uma pessoa até de afável trato, mas está na hora de a gente colocar, como se diz, a bola no chão e discutir políticas públicas com naturalidade. Esse clima de polarização acaba prejudicando esse próprio debate.
Como está o processo de ameaças contra o sr. que foi desarticulado pela PF?
O grupo encarregado de fazer aqueles atos está respondendo na Justiça, inclusive presos preventivamente os dois principais responsáveis porque são líderes de crime organizado envolvidos no planejamento de um assassinato. Me parece que a Polícia Federal tem feito um grande trabalho. Aqui no Senado nós apresentamos um projeto, que foi aprovado, que preenche uma lacuna legal importante: criminalizar o planejamento de ataques do crime organizado a autoridades públicas.
O sr. fala muito sobre tornar o debate público mais saudável e, para isso, um passo é reconhecer quando os adversários acertam. O sr. vê algum acerto do atual governo nesses primeiros meses de governo?
A manutenção desse clima de polarização tem, no fundo, gerado prejuízos para uma avaliação correta e isenta dos fatos e muitas vezes essas políticas públicas têm sido obscurecidas pelos desacertos. A gente vê por exemplo a tentativa de revogação do novo Marco Legal do Saneamento. Isso gera tensão com o Congresso, isso gera tensão com a sociedade e as ações positivas do governo acabam ficando obscurecidas por essas ações que são muito mais ruidosas.
Se a votação sobre o arcabouço fiscal no Senado fosse hoje, o sr. votaria contra ou a favor?
Hoje provavelmente votaria contra. Eu particularmente discordo da forma como foi feito. Acho que ele é frouxo. No fundo é um projeto que gera um expansionismo fiscal, quando a medida correta na minha opinião é o corte de gastos e assim a gente consegue entrar numa linha de declínio dos juros para ativar a economia e a gente crescer principalmente pelo investimento privado.
RAIO-X | SERGIO MORO, 50
Hoje filiado à União Brasil, foi juiz na Operação Lava Jato e condenou Lula em 1ª instância no processo que depois levou o agora presidente à prisão. Abriu mão da magistratura para ser ministro da Justiça e Segurança Pública no governo Bolsonaro. Deixou a pasta após 16 meses acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal. Moro foi declarado parcial pelo STF em sua atuação nos processos de Lula e teve suas decisões anuladas. Tentou se viabilizar como candidato à Presidência da República na eleição de 2022, mas acabou eleito para o Senado pelo Paraná. Se reaproximou de Bolsonaro no pleito de outubro.
Thiago Resende e Matheus Teixeira, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 19.05.23 na eduçao impressa, às 12h00.
Collor terá tempo de sobra para desfrutar do que mais ama, seu ócio
Como nunca trabalhou, é um laborfóbico incurável. Quer irritá-lo? Fale de trabalho
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 19 de maio de 2023 - Bruna Barros
Quem diria. Collor estava tão por baixo que ninguém se lembrava dele. Demorou, mas agora é oficial. Trinta anos depois de ser chutado do Planalto, o Supremo lhe deu o diploma de corrupto. Terá de devolver os R$ 20 milhões que roubou.
Que ninguém duvide da sua desonestidade. A mãe, irmãs e irmãos, "parças" e rivais, nunca nenhum cristão teve dúvidas de que fosse um larápio, um batedor de carteira que forra os bolsos com isopor para afanar gelo em coquetéis.
Como não faltam coquetéis de uísque paraguaio em Brasília, e de pinga com umbu em Maceió, Collor surrupiou Kilimanjaros de carteiras e Everestes de gelo. Com o tutu, viveu décadas como marajá. Com o gelo, conservou a frieza da alma. Tem-se por único, mas na verdade é ordinário.
Não é um ladravaz do jaez de Maluf, Cabral ou desses lobões de moletom que botam o boné na mesa da balada brasiliense, fungam uma carreira da colombiana, viram um shot e encoxam na marra. É questão de berço. Bolsos de isopor, sim, mas em paletós italianos.
Ao ver Bolsonaro às voltas com overdose de morfina, contrabando de brincos e sobrepreço de sanduíches, dá para ouvir Collor lastimar: tsc, tsc, tsc, que falta de classe, que pé-rapado. Se é para se pavonear, que seja de Rolls-Royce, Maserati, Porsche, Ferrari, Bentley.
Embora difiram na gabolice, o Marajá e o Mito compartilham a mesma burrice. Collor achou que ninguém notaria que ele tinha 15 bólidos de luxo estacionados à sombra das cascatas da Casa da Dinda. Logo ele, que não pagava IPVA e foi destituído devido a um reles Fiat Elba.
Em primeiro plano, um homem está vestido com turbante adornado de joias. Com uma mão, ele segura uma xícara e com a outra, uma maleta por onde escapam notas de dinheiro. Ao fundo, um sol brilha.
Bolsonaro supôs que seria uma boa guardar os atestados falsos de que tomou vacina. Se o STF descobrisse, os bananas não fariam nada, pensou. Logo ele, que fez campanha contra a imunização, xingou Xandão de canalha e otário, e Barroso, de idiota e filho da puta.
Além da burrice, há a soberba. O profissional que chega ao Planalto se acha léguas acima do baixo clero, um ungido por Xangô, Jeová, Maquiavel, Cristo, um desses. Até FHC se julgou insubstituível e patrocinou a patranha de mudar a lei e se aferrar a seu cargo.
Depois da era das vacas fardadas, só vices vestiram a carapuça de políticos carreiristas: Sarney, Itamar e Temer. Fernando Henrique se fez ver como intelectual. Lula, como sindicalista e herói do povo. Dilma, como gerente. Bolsonaro, como um verdadeiro gorila aspirante a troglodita.
E Collor? Era um pet da milicada que virou a casaca para fazer carreira. Que contratou 15 mil pobres diabos quando prefeito e os demitiu ao se tornar governador de Estado —para posar de verdugo de barnabés e ladrilhar a trilha rumo à Presidência. Que foi conviva de cama, mesa e cofre de usineiros alagoanos.
Era um embuste da cabeça gomalinada aos pés que calçavam Church’s, passando pelas calças largas —para disfarçar as pernas arqueadas—, as gravatas Hermès e as camisas de alfaiataria com punhos dobrados e abotoaduras cafonas. De verdadeiro, nele, somente a sua gélida ambição.
Mercê do medo empresarial do sapo barbudo, do anticomunismo rábico da classe média proto-bolsonarista e da repulsa unânime aos jaquetões da Nova República, elegeu-se. Deu-se então a guarânia: não tinha a mais escassa noção do que fazer. A ambição cedeu lugar à melancolia.
Procurou gente à altura de sua mediocridade e se cercou de poltrões. Do confisco da poupança ao "Besame Mucho" de Zélia e Bernardo Cabral, deu tudo errado. O governo oscilou entre o banzé e a abulia. No final, só era aplaudido por Brizola e Antonio Carlos Magalhães, o avô de Grampinho.
Certos traços de Collor ajudam a explicar seu apego à roubalheira. Como nunca trabalhou na vida, é um laborfóbico incurável. Quer irritá-lo? Fale de trabalho. Seu estado natural é o ócio.
Dá uma importância louca à aparência —a roupas, cremes, cabelos, prendedores de gravata. Passa acetona nas unhas. Não é asqueroso como Bolsonaro, mas está longe, muito longe, de ser agradável.
Transpira insinceridade. Parece representar um papel o tempo todo, mas o personagem que encarna é um espantalho. Vi-o de porre em um Carnaval fora de hora em Maceió. Nem ali disse algo espontâneo. O espaço infinito de seu vazio interior atordoa.
Já PC Farias era a simpatia em pessoa, um pícaro risonho, um novo-rico de bem com a vida. Era o Robin que cumpria ordens do Bruce Wayne ensimesmado no Bat-Planalto.
"Não quero mais nada com o Fernando", me disse PC. "Ele é mesquinho e se acha melhor que todo mundo." Tinha razão.
Mario Sergio Conti, o autor deste artigo, é Jornalista, autor de "Notícias do Planalto". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 19.05.23, às 19h32
sexta-feira, 19 de maio de 2023
Deltan cassado: juristas contestam decisão do TSE e apontam ‘abuso’
Ex-ministro da Justiça e crítico da atuação do ex-procurador, Reale Júnior repudia decisão da Corte; professor Rafael Mafei, da USP, diz que ‘talvez, se personagem fosse outro, resultado seria diferente’
O jurista Miguel Reale Jr. na Comissão Especial do Impeachment no Senado (Foto: André Dusek|Estadão)
A cassação do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) gerou debate sobre a interpretação da Lei da Ficha Limpa no mundo jurídico. Uma das vertentes é a de que houve “erro” da Corte Eleitoral, com a “ampliação” das hipóteses de inelegibilidade. O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior (governo FHC) vê “arbítrio” na decisão do TSE e aponta ainda a violação da presunção de inocência – alguém somente será considerado culpado, perante a Justiça, após condenação definitiva.
“Acho que houve um grande erro do TSE. Eu fui sempre muito crítico da atuação do Dallagnol, mas, mais do que desgosto com a atuação dele, eu tenho o repúdio ao arbítrio. E houve um arbítrio”, afirmou Miguel Reale Júnior ao Estadão. “Não é por que Dallagnol praticou erros passados que se deve injustamente puni-lo com inelegibilidade”, afirmou.
Na mesma linha, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei vê “incongruências” na decisão do TSE. Ele avalia que foi feita uma “conta de chegada” no julgamento – construiu-se um caminho de argumentos para se chegar à conclusão. “Talvez, se o personagem fosse outro, o resultado seria diferente”, disse o professor.
Reale Júnior afirmou que a hipótese de inelegibilidade prevista na Lei da Ficha Limpa serve para casos de ex-integrantes do Ministério Público ou do Judiciário que tenham deixado o cargo com pendência de processo administrativo disciplinar (PAD).
No caso de Deltan, não havia nenhum PAD aberto quando ele saiu da Procuradoria da República no Paraná, em novembro de 2021. “Ele tinha apurações preliminares em curso, muitas delas de relevo mínimo. Então, cassaram o mandato com base em apurações preliminares, que nem tinham se transformado em processo administrativo, dizendo que ele poderia ser condenado no PAD”, disse.
Segundo o jurista, normas punitivas, como a Lei da Ficha Limpa, que restringe direitos políticos, devem ser interpretadas de “forma restrita”. Para Reale Júnior, houve uma extensão da hipótese de inelegibilidade, ligada ao PAD, para caso de apurações preliminares. O ex-ministro da Justiça vê “abuso”. “Não se pode estender norma punitiva por meio de analogia ou uma interpretação ilática”, afirmou.
Na mesma linha, Mafei explica que a Lei da Ficha Limpa “traçou a risca” de um dos casos de inelegibilidade na existência de um procedimento administrativo disciplinar. Segundo ele, o marco foi estabelecido “justamente para não haver casuísmo”. Mafei também entende que houve, no caso, ampliação das hipóteses de inelegibilidade, abrindo caminho para questionamentos – “como quando há condenação em duas instâncias ou quando uma pessoa é alvo de 15 inquéritos sendo que em um deles pode advir condenação”.
Segundo o professor, o entendimento pode tornar mais “fácil” o reconhecimento de inelegibilidade de funcionários públicos, em especial de carreiras da polícia, do Ministério Público e Receita.
Fora a interpretação da Lei da Ficha Limpa, Mafei considera que o caso de Deltan não é de “fraude à lei”, como entendeu o ministro Benedito Gonçalves, relator da ação que culminou na cassação do deputado. Tal termo descreve uma espécie de “vício” no ato do ex-procurador – para Gonçalves, o deputado cassado praticou conduta que, à primeira vista, “consistiria em regular exercício de direito”, mas, na verdade, acaba por burlar a lei.
O professor Mafei explica que tal “vício” é verificado quando uma pessoa pratica um ato “não visando seus efeitos próprios”. Ele cita o exemplo de uma pessoa que, no curso de uma ação de execução – fase de cumprimento da sentença, quando o condenado tem de pagar multas – faz doações para familiares com o intuito de escapar de medidas que atinjam seu patrimônio.
No caso de Deltan, para Mafei, a renúncia ao cargo de procurador se deu “visando os fins próprios” do ato – a possibilidade de o ex-chefe da Lava Jato se candidatar na eleição de 2022.
‘Fundamentação profunda’
De outro lado das avaliações sobre a decisão do TSE, o ex-juiz e idealizador da Lei da Ficha Limpa, Márlon Reis, defendeu a decisão da Corte eleitoral. Em sua avaliação, o entendimento do colegiado é baseado em “fundamentação profunda”. Para Reis, o voto do relator Benedito Gonçalves foi “muito claro e atento” em relação a como as previsões de inelegibilidade devem ser interpretadas.
Pepita Ortega, originalmente, no blog do Fausto Macedo. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 17.05.23, às 15h55.
Absurdo está na famigerada Lei da Ficha Limpa, não na condenação de Deltan
O caso de Deltan Dallagnol é simples. Um dos líderes da "república de Curitiba" foi arrebatado por uma das mais violentas formas de indeferimento de registro de candidatura da famigerada Lei da Ficha Limpa, a alínea "q"[1].
Quis a lei que magistrados e membros do Ministério Público "que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de oito anos" estão inelegíveis. Em síntese, se já há processo administrativo disciplinar não posso pedir exoneração ou aposentadoria voluntária, sob pena de ficar inelegível e ter o registro de candidatura indeferido.
A ideia é que aquele que pede exoneração ou aposentadoria quer fugir dos efeitos de uma decisão condenatória que poderia redundar em inelegibilidade. Uma perversidade inominável presumir tanta má-fé de pessoas que julgam outras e tem o monopólio da ação penal.
São aquelas inelegibilidades constituídas sem decisão judicial ou pela interrupção de processo administrativo sancionador, em que sequer há decisão judicial, mesmo precária. Nesses casos, soma-se, à violação da presunção de inocência, o "devido processo legal convencional", pois basta para o resultado funesto da inelegibilidade, o pedido de renúncia ou o pedido de exoneração/aposentadoria, pendente o bendito processo administrativo disciplinar.
A inelegibilidade, assim, surge de uma presunção jure et jure da renúncia ou pedido de aposentadoria ou exoneração como confissões de ilícitos, para, daí, gerar a cominação, em claro desrespeito à ampla defesa e ao contraditório que não poderão ser exercidos após esses atos unilaterais, em violação direta ao devido processo convencional e à presunção de inocência[2].
O trágico fim da inelegibilidade e indeferimento do registro do candidato Deltan exigia, deste modo, a conjugação dos três elementos nucleares da norma: i) condição de membro do Ministério Público; ii) pedido de exoneração; iii) existência de processo administrativo disciplinar.
O TSE reconheceu que não havia processo administrativo disciplinar no acórdão que indeferiu o registro de candidatura. Não houve a equiparação de sindicância a processo administrativo disciplinar, como querem alguns mais apaixonados. No caso de Deltan, não havia um só processo administrativo disciplinar. Como condenar Deltan?
Surge a ideia no acórdão da fraude[3], porque a exoneração aí ocorrera para evitar que os fatos apurados se transformassem naquele elemento nuclear exigido pela norma, ou seja, procedimento administrativo disciplinar. Essas epigêneses das infâncias dos procedimentos administrativos disciplinares só não floresceram em face da exoneração.
O acórdão pressupôs que aqueles procedimentos correicionais investigativos e preliminares fossem se tornar procedimentos correicionais acusatórios na modalidade de processo administrativo disciplinar, no exemplo do Manual de Processo Administrativo Disciplinar da Corregedoria-Geral da União[4]. Assim fazendo, Deltan fraudou uma inelegibilidade futura que ocorreria, caso não houvesse o pedido de saída do Ministério Público[5].
A ilogicidade formal do argumento repousa não apenas na inexistência de um requisito nuclear da norma (existência de procedimento administrativo disciplinar), mas no fato solene que, ao tempo do seu registro de candidatura, a existência de mera investigação era irrelevante. Ao tempo dos fatos, o seu pedido de exoneração, para os fins do registro de candidatura, era ato lícito. Nenhuma norma o impedia de exonerar-se exatamente para que não houvesse ainda um processo administrativo disciplinar e sua candidatura fosse legal.
Não se trata de fraude, mas de exercício regular do direito. Aliás, exercício regular e inteligente de um direito para impedir embaraços para sua candidatura. Wederson Advíncula, em irrespondível argumento, aduziu em grupo da Abradep (Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político) que faz o mesmo aquele candidato que tenta evitar a inelegibilidade e se afasta do cargo no prazo de seis meses antes do pleito. Ele se afasta do cargo exatamente para cumprir a lei e ser elegível. O cumprimento da lei pode ser considerado fraude, quando o que se busca é fugir de uma situação geradora de inelegibilidade? Evidente que não.
Deu-se aqui uma interpretação extensiva para sancionar não apenas aqueles exonerados com pendente processo administrativo disciplinar, mas para tornar inelegíveis aqueles exonerados sobre os quais haja fatos que possam se tornar processos administrativos disciplinares. Se há fato disciplinar a ser apurado que possa, no futuro incerto e provável, torna-se um processo administrativo disciplinar, nessa insana futurologia, toda exoneração pode gerar uma elegibilidade potencialmente fraudada...
Noutro extremo, Renato Ribeiro de Almeida, amigo fraterno, não vê interpretação extensiva, porque "Deltan poderia vir a ser demitido dos quadros do MPF"[6].
Aqui o poder estatal não foi deduzido do poder comunicativo dos cidadãos, como diria Jurgen Habermas, na forma de uma lei abstrata, geral impessoal e anterior à conduta. Houve simplesmente a declaração pela autoridade judicial autocrática de norma personalizada (act or bill of attainder), uma norma em forma de acórdão ex post facto — a insegurança jurídica na sua vertente mais crua da imprevisibilidade[7].
Neste caso, o fato futuro não devia mover moinhos presentes, eu diria. Já sancionamos o passado com essa famigerada lei, quando a aplicamos para aqueles condenados antes da sua promulgação e agora criamos inelegibilidade presentes por fatos futuros e prováveis... Só falta a sanção do além-túmulo para tornar a piada integral.
Há muitos anos venho apontando o desacerto da famigerada Lei da Ficha Limpa, após influência direta dos amigos Adriano Soares da Costa, Eneida Salgado e Ruy Samuel Espíndola, este mais de perto, da tribuna do TRE-SC (Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina)[8]. Escrevi o primeiro livro no Brasil sobre a violação dessa lei à Convenção Americana e à jurisprudência da Corte e venho, desde então, aqui e ali, sublinhando a irracionalidade e tragédia do diploma e do seu particular zeitgeist (espírito do tempo) para a derrocada da democracia nacional ao tentar melhorá-la pela restrição moral dos direitos políticos e limitação do universo dos candidatos, na busca idealizada de candidatos angelicais inexistentes — uma impossibilidade em si[9].
É bem verdade que nos últimos tempos tem crescido o esforço nacional em favor da pauta do Direito Internacional dos Direitos Humanos no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e no site do STF (Supremo Tribunal Federal). Há até uma hoje uma recomendação aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro de observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.[10]
Quanto aos direitos políticos, contudo, nossa absoluta falta de crença na capacidade do povo de escolher tem nos embretado em soluções jurisdicionais para melhorar a democracia pelo rompimento violento dos subsistemas do direito e da política. Temos ignorado a recomendação do CNJ de "observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil e a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas".
O avanço do tema geral dos direitos humanos não faz verão nos direitos políticos e o artigo 23 da Convenção Americana e os hard cases da Corte Interamericana são desprezados.
Vige a ideia de um povo infantilizado e incapaz a ser constantemente tutelado e impedido de suas decisões por colegiados judiciais, não raro com soluções autocráticas, envolvidos que estamos nesse espírito de porco da famigerada Lei da Ficha Limpa[11]. No fundo, o medo do povo perpassa todo o direito eleitoral atual.
A primeira promessa falsa dessa Lei da Ficha Limpa foi o seu propósito evangelizador para as boas práticas republicanas[12], o "espírito da lei na alma do povo", a proclamada "bandeira da moralização da política" nas palavras do ex-senador Demóstenes Torres, para extirpar aqueles que "não possuem conduta adequada à dignidade das relevantes funções públicas". Nessa religiosa barafunda uniram-se OAB, CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e um Parlamento amedrontado em ser contra tão importante ideário.
Olvidamos — eu também embarquei nessa toada evangelizadora — que a moralidade é má conselheira do direito eleitoral e da democracia. A história tem demonstrado que a moralidade, quando incidente sobre o direto eleitoral, tem servido ao longo do tempo para perseguir opositores e deformar a cidadania. Os eleitos têm outros filtros como a decisão dos partidos e o voto. Quando se cassa e se "caça" uma candidatura (e aqui a correção da expressão "indeferimento do registro" escamoteia a violência política), quase nunca se lembra, está se negando validade a milhares de votos. Quando se afirma a inelegibilidade, está se proibindo que o povo escolha determinado candidato ou que seu escolhido exerça a função pública. Sanção maior à cidadania em uma democracia é difícil apontar. Por isso mesmo são econômicas as inelegibilidades na Europa, o disfranchising nos Estados Unidos [13] e na América Latina, enfim, nas democracias ocidentais, cada vez mais raras.
Adriano Soares da Costa tratou da necessidade de refinamento e de construção de uma ciência do Direito Eleitoral, este ramo prenhe de conceitos indeterminados e que geram uma liberdade inaudita da jurisprudência, como se fossem não apenas indeterminados, mas conceitos vazios: "há apenas, como consectário disso, a irracionalidade jurídica, o decisionismo voluntarista e uma crise de segurança jurídica"[14].
Só uma doutrina malcriada nos salvará. A bajulação incentiva o desastre da famigerada sempre novidadeira lei das inelegibilidades.
Enfim, nada espelha melhor a tragédia dessa lei que o indeferimento do registro de candidatura de Deltan, em face desse ambiente de correção dos males de nossa democracia pela cassação judicial de mandatos, sob a ótica da periculosidade de Michel Foucalt[15]. A decisão seguiu o que se vê todos os dias para milhares de candidatos: a ausência de preocupação com a fundamentalidade dos direitos políticos. Absolva-se a decisão, portanto.
E nosso Antoine-Joseph Santerre encontrou-se com sua injustiça guilhotina. Para alguns, merecida recompensa de uma carreira de hostilidade à própria política pela falta de compreensão da complexidade do fenômeno, uma "falta de aderência à realidade". Para outros, uma chance de voltar ao tema, repetir-se e reclamar que se salvem pelos menos as almas dos candidatos desse caldeirão insensato de inelegibilidades mundanas e criativas.
[1] "q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)".
[2] A Convenção Americana repudia essa antecipação, porquanto expressamente, afirma no seu art. 9º que a presunção de inocência deve perdurar “enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. Ora, a culpa somente será comprovada ao término do procedimento judicial (afastado o mero procedimento administrativo) e não durante, em um ponto aleatório escolhido pelo legislador como a decisão colegiada, sendo, ela, pressuposto da cominação da sanção. Do contrário, poder-se-ia afirmar que a mesma presunção de inocência vale até o momento do ajuizamento de uma ação de improbidade ou de uma denúncia criminal ou da primeira audiência, por exemplo, esvaziando-se a proteção conferida pela ideia de não se presumir o resultado antes que ele ocorra.
[3] “Em outras palavras, o objeto da controvérsia em apreço não é, como quer fazer crer o recorrido, a possibilidade ou não de se conferir interpretação ampliativa ao termo “processo administrativo disciplinar”. O que aqui se tem é uma conduta anterior e contrária ao Direito para evitar a instauração desses processos, ou seja, fraude à lei”.
[4] São eles “15 procedimentos administrativos de natureza diversa no CNMP, sendo nove Reclamações Disciplinares, uma Sindicância, um Pedido de Providências, três Recursos Internos em Reclamações Disciplinares e, ainda, uma Revisão de Decisão Monocrática de Arquivamento em Reclamação Disciplinar”. Acórdão do Recurso Ordinário 0601407-70.
[5] “Referida manobra, como se verá neste tópico, impediu que os 15 procedimentos administrativos em trâmite no CNMP em seu desfavor viessem a gerar processos administrativos disciplinares (PAD) que poderiam ensejar a pena de aposentadoria compulsória ou de perda do cargo”. Acórdão do Recurso Ordinário 0601407-70.
[6] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-18/renato-ribeiro-cassacao-deltan-consequencias Acesso em 18.05.2023.
[7] A segurança jurídica perde-se, enfim, na impossibilidade do “direito de calcular as consequências do comportamento próprio e alheio”. HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 182.
[8]SALGADO, Eneida Desiree; ARAÚJO, Eduardo Borges. Do Legislativo ao Judiciário: a Lei Complementar nº 135/2010 (“Lei da Ficha Limpa”), a busca pela moralização da vida pública e os direitos fundamentais. A&C- Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 54, p. 121-148, out./dez. 2013. Disponível em: http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com/2010/07/vida-pregressa-e-inelegibilidade-hora.html; http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com/2012/03/quitacao-eleitoral-e-hipermoralizacao.html; Acesso em: 18.05.2023.
[9] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino Ferreira. O controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: direitos políticos e inelegibilidade. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2019, 3ª edição; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino; MEZZAROBA, Orides. A Lei da Ficha Limpa: o Cavalo de Troia do protagonismo do Poder Judiciário. Revista dos Tribunais [Recurso Eletrônico]. São Paulo , n.974, dez. 2016; Disponíveis em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-22/opiniao-detracao-condenacao-criminal-lei-ficha-limpa; https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/lawfare-a-revanche-contra-o-ministerio-publico/; https://noticias.uol.com.br/colunas/abradep/2021/11/09/o-pix-eleitoral-e-deltan.htm Acesso em: 18 maio 2023.
[10] Cuida-se da Resolução CNJ n. 123 de 07/01/2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4305 Acesso em: 18 maio 2023.
[11] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial: o caso brasileiro no divã. Florianópolis: Habitus. 2020.
[12] JUNIOR, Ophir Cavalcante. Ficha Limpa: A Vitória da Sociedade Comentários à Lei Complementar 135/2010. Conselho Federal da OAB.
[13] Comissão de Veneza Trata-se do corpo consultivo do Conselho da Europa sobre temas constitucionais. European Commission for Democracy through Law, Code of Good Practice in Electoral Matters: Guidelines and Explanatory Report - Adopted by the Venice Commission at its 51st and 52nd sessions (Venice, 5-6 July and 18-19 October 2002). Disponível em:
<http://www.venice.coe.int/webforms/documents/?pdf=CDL-AD(2002)023-e>. Acesso em: 18 maio 2023.
[14] COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 10º. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 17.
[15] "A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam". FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau edit., 1996, p .85.e
Marcelo Ramos Peregrino Ferreira , o autor deste artigo, é doutor em Direito (UFSC), membro fundador da Abradep (Associação Brasileira de Direito Eleitoral), presidente da Caoeste (Conferência Americana de Organismos Eleitorais Subnacionais) pela Transparência Eleitoral e integrante do Iasc (Instituto dos Advogados de Santa Catarina). Publicado originalmente pela Revista Consultor Jurídico, em 19.05.23
quinta-feira, 18 de maio de 2023
Não se aplica sanção por meio de interpretação extensiva. É inconstitucional.
O TSE, sem o devido processo legal, ou melhor, sem o devido processo legal administrativo, culpou Dallagnol. Absurdo: julgou sem ser o juiz natural, constitucional, preestabelecido pela lei.
O deputado federal cassado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) sai em busca de tábua de salvação, sem desistir do papel de taumaturgo circense.
Algumas considerações sobre a perda do mandato do ex-procurador que coordenou a força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba:
1- Suspender a cassação
A decisão relâmpago do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) resultante na cassação do mandato popular de Deltan Dallagnol (Podemos-PR) tem eficácia imediata. Em outras palavras: Dallagnol não é mais deputado federal.
A cassação tornou-se pública, sem precisar de publicação no Diário Oficial da União. A decisão foi publicada na própria sessão plenária de ontem.
Segundo se sabe, Dallagnol vai tentar obter uma tábua provisória de salvação junto ao STF (Supremo Tribunal Federal).
Seria uma medida acautelatória liminar, com fundamento na irreparabilidade do dano sofrido e numa existente e visível fumaça de bom direito (fumus boni juris).
A alegação de dano irreparável vai estar ligada ao princípio da soberania popular do voto, em tempo passado denominada de garantia ao sufrágio universal.
Sem mandato, haveria um dano aos cerca de 400 mil votantes em Dallagnol e à representação por mandato (procuração) conferida democraticamente. A lembrar que se tornou inelegível por oito anos.
Trocado em miúdos: o cidadão (na definição constitucional, cidadão é sinônimo de eleitor) perderia o representante e no lugar ingressaria um suplente, não escolhido pela vontade do eleitor.
Os danos irreparáveis à pessoa de Dallagnol, um ex-procurador que buscou carreira política, também serão considerados.A fumaça do bom direito tem conexão com a possibilidade, diante do direito invocado, de o recurso ao STF poder prosperar.
2- Inconstitucional interpretação extensiva
O marquês Cesare Beccaria é considerado o precursor do direito penal (criminal) moderno. Foi um humanista.
O seu livro intitulado "Dos Delitos e das Penas" (Dei Delitti e delle Pene), publicado em 1764, é, no mundo ocidental, de leitura obrigatória nas faculdades onde se ensina o direito e a jurisprudência.
Beccaria, usando linguagem do século 21, inspirou o garantismo de matriz iluminista e brecou a selvageria e as ordálias, ou juízos de Deus.
A partir de Beccaria chegou-se ao "nulla poena nullum crimen sine lege", que é o princípio da legalidade que está expresso na nossa Constituição. Não existe crime sem lei e, também, pena sem previsão legal. O princípio vem do filósofo e jurista alemão Anselm von Feuerbach e foi para o código penal da Baviera de 1813.
Como decorrência, o direito penal (criminal) não admite a denominada interpretação extensiva, salvo se for para favorecer o acusado, no caso Dallagnol.
O TSE usou de interpretação extensiva para condenar Dallagnol. Entendeu que 15 reclamações protocoladas poderiam ser presumidas e que virariam um processo administrativo disciplinar contra Dallagnol.
As 15 reclamações, arquivadas por decisão do governo do Ministério Público Federal, teriam, na visão de adivinho do TSE, potencial para virar processo administrativo. As 15 estão arquivadas diante do fato de Dallagnol ter deixado o Ministério Pùblico Federal.
Atençao: a lei de inelegibilidade exige processo administrativo. E exoneração ou renúncia postuladas pelo funcionário público ( engloba órgão de poder) para evitar o seu julgamento, com eventual imposição de sanção-pena.
O TSE, sem o devido processo legal, ou melhor, sem o devido processo legal administrativo, culpou Dallagnol. Absurdo: julgou sem ser o juiz natural, constitucional, preestabelecido pela lei.
Reclamações, como já decidiu o STF, representam expectativa de direito. Os que apresentaram as 15 reclamações contra Dallagnol tinham uma expectativa dele ser sancionado, não direito reconhecido num devido processo administrativo.
A decisão do TSE fez o supracitado marquês de Beccaria revirar na sepultura. Não se aplica sanção por meio de interpretação extensiva. É inconstitucional.
Com efeito, aí está a chamada fumaça do bom direito que o STF, se provocado por Dallagnol, deverá apreciar para decidir pela concessão ou não de uma medida liminar acautelatória.
3 - STF e a liminar
O pedido de liminar acautelatório — que deverá ser seguido depois por um recurso solicitando o reexame da decisão do TSE — será examinado por um ministro sorteado por sistema eletrônico.
Estarão impedidos de votar o ministro Alexandre de Moraes e a ministra Cármen Lúcia, por terem participado e votado pela cassação de Dallagnol. Precisará se dar por suspeito o ministro Gilmar Mendes. Isso pelo que já disse sobre Dallagnol, seu inimigo de carteirinha.
Se a decisão do ministro sorteado for técnica e não política, Dallagnol tem grande chance de obter a liminar.
Caso não obtenha a liminar, o seu recurso de reexame da cassação pelo STF poderá levar anos para ser colocado em pauta de julgamento.
E poderá até não ser julgado. Isso ocorrerá se for colocado em pauta quando a legislatura já estiver encerrada e não se poder mais falar em mandato.
Enquanto isso, Dallagnol prepara uma saída jurídica. Politicamente, sem mandato, inaugurou ontem, em entrevista, o circo de esperneios e ele no papel de injustiçado taumaturgo.
Wálter Maierovitch, o autor deste artigo, é magistrado federal aposentado e colunista do UOL. Publicado originalmente em 18.05.23
Bolsonaro admite conversas com major investigado por trama golpista
Em depoimento à PF, ex-presidente foi confrontado com troca de mensagens entre Barros e contato chamado ‘PR 01’
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) admitiu à Polícia Federal que conversava diretamente com o major da reserva do Exército Ailton Barros, que está no centro da investigação sobre “tratativas para a execução de um golpe de Estado”. Em depoimento anteontem, Bolsonaro disse que mantinha conversas “esporádicas” com Barros, preso no início do mês na Operação Venire – que apura fraude em cartões de vacinação.
Bolsonaro foi confrontado com mensagens enviadas pelo major a um contato identificado como “PR 01”. Os diálogos colocaram Barros na mira do inquérito dos atos golpistas de 8 de janeiro, e podem implicar ainda mais Bolsonaro nessa apuração, na qual ele é investigado por incitação.
As mensagens foram obtidas pela PF a partir da quebra de sigilo do ex-ajudante de ordens da Presidência no governo Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid. Ele é implicado em diferentes investigações no Supremo Tribunal Federal: sobre atos antidemocráticos, das milícias digitais e é figura central na apuração sobre pagamentos de contas da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Cid está preso desde o início do mês por suspeita de liderar um esquema de fraudes na carteira de vacinação de Bolsonaro.
Em uma das mensagens usadas pela Polícia Federal para questionar Bolsonaro, o major cita a mobilização de grupos que, segundo ele, “organizaram” atos antidemocráticos em 7 setembro de 2021. Em seguida, ele menciona a intenção dos grupos em “acampar em Brasília”, em 31 março de 2022 – data em que aliados do expresidente comemoram o golpe militar de 1964 – “até os 11 ministros do STF saírem de suas cadeiras”.
Ao “PR 01”, Barros diz que é possível operar nos grupos “para as pautas serem de seu interesse”, sugerindo algumas delas, como ataques ao ministro Alexandre de Moraes, do STF, e a “questão das urnas eletrônicas”. As mensagens foram posteriormente apagadas por Barros, após ele dizer que “pegou orientação com Cidinho” – em referência a Mauro Cid.
À PF, o ex-presidente negou ter orientado “qualquer ato de insurreição ou subversão” contra o estado de direito”. Sobre a menção de Barros às “orientações” de Cid, Bolsonaro disse não conhecê-las e afirmou “duvidar” que seu exassessor teria “dado reforço para as referidas pautas”. Ele também negou ter sido procurado diretamente por Barros para dar “orientações”.
PROXIMIDADE. Em seguida, a PF mostrou mensagens enviadas pelo militar. Bolsonaro reafirmou que não teve conhecimento das pautas antidemocráticas citadas. Ele admitiu conversas esporádicas com o major, mas negou manter “relacionamento pessoal” com ele. Bolsonaro disse que as aproximações de Barros “se davam principalmente em momentos eleitorais” – o major reformado se candidatou a cargos eletivos em 2006, 2020 e 2022, sem sucesso.
Na decisão que autorizou a fase ostensiva das apurações da Venire, Moraes apontou que a milícia digital sob suspeita “transbordou” para além da esfera virtual. O relator viu elemento de “união” na atuação do grupo, “seja nas redes sociais, seja na realização de inserções de dados falsos de vacinação contra a covid-19, ou no planejamento de um golpe de Estado”.
Pepita Ortega para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 18.05.23
Avança a PEC da sem-vergonhice
Anistia a partidos aprovada pela CCJ da Câmara afronta a Constituição e tem de ser barrada pelo STF
No dia 16 passado, entre a deliberação sobre um projeto que torna o forró uma manifestação cultural nacional e outro para que a conta de luz passe a notificar sobre audiências públicas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara encaixou um golpe contra a Constituição de 1988. Mais especificamente, contra o caput do artigo 5.º da Lei Maior, princípio basilar da República: a igualdade de todos perante a lei.
Por 45 votos a 10, o colegiado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que concede anistia aos partidos políticos – a quarta em 30 anos – que violaram a lei que dispõe sobre as regras de distribuição dos recursos do fundo eleitoral, além de estabelecer cotas para candidaturas de mulheres e negros. As dez maiores bancadas na Câmara têm contas a prestar à Justiça Eleitoral, o que explica esse placar, expressão da solidariedade na desfaçatez.
A audácia dessa PEC é tanta que, a um só tempo, se faz letra morta da isonomia inscrita no texto constitucional, dificulta-se o acesso de grupos sub-representados ao Congresso e, como se não bastasse, afrontase o Supremo Tribunal Federal (STF) ao autorizar que partidos políticos peçam dinheiro a empresas para quitar dívidas contraídas até 2015, ano em que o STF proibiu a doação de pessoas jurídicas para legendas e candidatos.
Caso seja aprovada pelo plenário da Câmara e, ao final do processo, a PEC da sem-vergonhice seja promulgada pelo Congresso, partidos políticos tornar-seão entidades acima do bem e do mal no Brasil. A nenhuma outra organização privada é dado afrontar as leis e a Constituição de forma tão descarada e inconsequente – o que Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e articulista do Estadão, chamou, com razão, de “autoproclamação da anarquia”.
Em qualquer país democrático no mundo, que cidadão ou empresa pode arrogar para si o estupendo poder da autoanistia? Essa PEC, mais que um escárnio, é uma evidente demonstração de que a maioria dos membros da CCJ da Câmara considerou que o Brasil é uma republiqueta de idiotas, formada por uma massa ignara que nem sequer é capaz de dimensionar a barbaridade que foi cometida por alguns de seus representantes eleitos.
Contra essa violência, primeiro, a sociedade civil precisa se insurgir e mostrar que está atenta à ação insidiosa de parlamentares que agiram não em seu nome, mas em nome dos interesses privados das organizações às quais pertencem. Além disso, o STF, evidentemente, não pode deixar de intervir nesse caso. Fez bem a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP), membro da CCJ, ao impetrar mandado de segurança para que a tramitação da PEC da sem-vergonhice seja interrompida. A judicialização da política, como este jornal já sustentou não poucas vezes, é quase sempre indesejável. Não é incomum que o Judiciário seja visto como valhacouto de derrotados em debates que devem estar circunscritos ao Legislativo. Todavia, a quem recorrer senão ao guardião maior da Constituição quando nada menos que a CCJ da Câmara rasga um dispositivo constitucional de forma tão desabrida?
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.05.23