segunda-feira, 22 de maio de 2023

Laico não é ateu

Por vezes falta compreensão sobre a importância da religião como força social

Muçulmanos participam de oração que antecede a quebra do jejum durante o Ramadã em mesquita de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL

Precisamos dialogar mais sobre Estado laico. Sobretudo, compreender melhor que dialogar não é somente falar, mas também ouvir com atenção e ter empatia pelas realidades que atravessam o diálogo. O Estado precisa ser o "ente subsidiário" que dialoga com a sociedade, inclusive com o campo religioso. Segundo dados do Censo de 2010 sobre religião no Brasil, cristãos são 86,8%.

Todavia, para o tema, trago aqui um exemplo recente do futebol europeu sobre esse "ente" laico, o Estado. A Federação Francesa de Futebol comunicou seu corpo de arbitragem que não deveria pausar as partidas para permitir que jogadores muçulmanos quebrassem o jejum durante o Ramadã, o mês sagrado. No futebol inglês, a decisão foi inversa e permitiu que as partidas da Premier League possam fazer uma parada técnica para os jogadores muçulmanos cumprirem seus preceitos religiosos.

A resposta oficial da federação francesa foi: "A ideia é que haja um tempo para tudo. Um tempo para fazer esporte, um tempo para praticar a religião", afirmou Eric Borghini, chefe da comissão de arbitragem. Como primeira impressão, diria que a resposta foi coerente. Entretanto, demonstrou pouco conhecimento de religião e, consequentemente, das pessoas religiosas; logo, conhece pouco da humanidade. Borghini primou pela obediência à regra da laicidade francesa, e acrescentou: "Ninguém se importa que eles não façam isso. Porque não estamos em um país muçulmano. Você tem que aceitar o país em que vive".

Liberdade religiosa é direito fundamental. É sem limites? Não. Mas ela está no mesmo contexto que exige de nós capacidade de reconhecer e respeitar a diversidade humana e a pluralidade cultural que compõem o nosso país. Há uma tensão ambivalente entre inúmeros levantes reacionários e capilarizados na sociedade contra conquistas democráticas. Temos agentes públicos, representantes do Estado e tantas outras forças sociais em defesa peremptória da democracia e laicidade do Estado.

Contudo, em meio a esse esgarçamento social, estão muitas pessoas religiosas que não reconhecem, na religião, esse tipo de força a ser disputada, já que muita gente nem alcançou a vida digna. Portanto, exercer a religiosidade significa potência para suportar as agruras da vida, significa estar em rede de apoio mútuo, ter suporte emocional, espiritual, financeiro —mesmo em meio a muitas contradições.

A sociedade brasileira está cansada e adoecida. A religião fornecerá ainda mais sentido de vida e para a vida a muito mais pessoas. Projetos políticos deixaram muita gente com fome ou na insegurança alimentar, desabrigadas, endividadas, desesperadas. O tamanho da orfandade pela pandemia e pelo feminicídio é enorme em nosso país. Passamos por uma grave crise sanitária, na qual fomos jogados como rebanho sem pastoreio.

O Estado laico deve ser o sustentador da pluralidade de credos, opiniões e convicções religiosas —ou da ausência desta na vida de nossa gente. Essa sustentação o diferencia do conceito de um Estado ateu, no qual incorporaria ao regime político a não crença na existência de Deus ou de alguma outra divindade ou entidade espiritual.

Encerro retomando o caso da França. A federação de futebol escolheu ser inflexível, optou pela segurança das regras ao se manifestar contrária ao diálogo. Poderia ter aprendido com a liga inglesa, que negociou e combinou deixar o banco de reservas em prontidão para receber seus colegas muçulmanos com fruta e água —e, assim, poderiam eles entregar o jejum em oração para posteriormente retornarem ao jogo.

Nesse sentido, pergunto: não teriam faltado diálogo e compreensão sobre a importância da religião como força social? Não houve preconceito em entender que a religião pode ser promotora de sentido de vida? Faltou reconhecer que a religião, como qualquer outro aspecto da cultura, molda e media subjetividades.

Valéria Cristina Vilhena, a autora deste artigo, é teóloga, mestra em ciências das religiões e doutora em educação e história da cultura; fundadora do coletivo Mulheres EIG - Evangélicas pela Igualdade de Gênero. Publicado originalmente n'a Folha de S. Paulo, edição impress, em 21.05.23, às 22h00.

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