quinta-feira, 18 de maio de 2023

Caso Deltan expõe ações que podem tirar líderes da Lava Jato do Congresso

Cassação de mandato de deputado em ação de frente liderada pelo PT gera debate sobre interpretação da Lei da Ficha Limpa; Moro, ex-juiz da operação, é alvo de investida do PL

Deltan Dallagnol, na Câmara;discurso com ataques a ‘inimigos’(Crédito: Wilton Junior/Estadão)

A cassação da candidatura – e consequentemente do mandato – do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) expôs uma ampla investida política que pode excluir do Congresso os mais simbólicos representantes da Lava Jato. Mesmo desgastada por críticas aos seus métodos, a operação que nos últimos anos levou para a prisão políticos, empreiteiros, doleiros e lobistas impulsionou no ano passado as eleições do ex-procurador e de Sérgio Moro (União Brasil-PR), dono de uma cadeira no Senado. Moro, ex-juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, também é alvo de ação na Justiça Eleitoral que pode lhe cassar o mandato.

Os dois principais protagonistas da Lava Jato ficaram na mira dos espectros da mais recente polarização nacional. A decisão unânime do TSE foi tomada após representações apresentadas pela Federação Brasil da Esperança, liderada pelo PT (com PCdoB e PV) do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e pelo PMN.

Tramita no Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TREPR) um pedido de cassação contra Moro baseado em suspeitas de irregularidades nos gastos de sua campanha e a prática de caixa 2. O processo foi aberto a pedido do diretório paranaense do PL, sigla do ex-presidente Jair Bolsonaro.

A Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) corre sob sigilo, mas o PL aponta irregularidades no financiamento da campanha ao Senado. Ela foi ajuizada mesmo depois de Moro manifestar apoio a Bolsonaro – de quem foi ministro da Justiça e saiu rompido – no segundo turno da disputa presidencial de 2022. Apesar de ser patrocinado pelo diretório no Paraná, o processo recebeu aval do presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto.

Se conseguir alijar o ex-juiz, o PL pode ficar com a sua vaga no Congresso. Moro foi eleito com 33,82% dos votos, em uma disputa apertada com o segundo colocado, o deputado federal Paulo Martins (PL), que alcançou 29,12% dos votos. O partido cita na ação o caso da ex-juíza Selma Arruda, eleita em 2018 pelo Podemos. Ela foi cassada por irregularidades na prestação de contas. Selma ficou conhecida como “Moro de saias” por impor duras penas ao grupo político do ex-governador Silval Barbosa (MDB). Segundo o TSE, o exjuiz gastou cerca de R$ 5,1 milhões na campanha.

Em meados de dezembro, após três reprovações, as contas de Moro foram aprovadas poucos dias antes da data-limite. O fato, entretanto, não anula a ação movida pelo PL. Conforme mostrou a Coluna do Estadão, motivados com a perda de mandato de Deltan, advogados de alvos da Lava Jato organizam um périplo nos gabinetes de ministros do TSE para defender a cassação do senador.

INELEGÍVEL. Além de cassar seu mandato, a Corte Eleitoral deixou Deltan inelegível por oito anos. O argumento do ministro Benedito Gonçalves, relator do processo, foi o de que o ex-procurador pediu exoneração do cargo para driblar a lei e evitar a inelegibilidade. A decisão teve como base a Lei da Ficha Limpa, segundo a qual são inelegíveis por oito anos magistrados e integrantes do Ministério Publico que “tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”. Deltan respondia a processos no Conselho Nacional do Ministério Público.

A decisão, que ainda permite recurso no próprio TSE ou no Supremo Tribunal Federal (STF), gerou debate sobre a interpretação da Lei da Ficha Limpa no mundo jurídico. Uma das vertentes é a de que houve “erro” da Corte Eleitoral, com a “ampliação” das hipóteses de inelegibilidade. O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. (governo FHC) vê “arbítrio” na decisão do TSE e aponta ainda a violação da presunção de inocência.

“Acho que houve um grande erro do TSE. Fui sempre muito crítico da atuação do Dallagnol, mas, mais do que desgosto com a atuação dele, eu tenho o repúdio ao arbítrio. E houve um arbítrio”, afirmou ao Estadão.

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei vê “incongruências” na decisão do TSE. Ele avalia que foi feita uma “conta de chegada” no julgamento – construiu-se um caminho de argumentos para se chegar à conclusão. “Talvez, se o personagem fosse outro, o resultado seria diferente”, disse.

Já Márlon Reis, ex-juiz eleitoral e idealizador da Lei da Ficha Limpa, defendeu a decisão do TSE. Segundo ele, a sentença é baseada em “fundamentação profunda”. Em entrevista ao Estadão, o hoje advogado afirmou que a tese documentada e apresentada pelo relator foi “muito clara e atenta para o modo como as normas para inelegibilidades devem ser interpretadas”.

A votação para cassar o mandato de Deltan levou um minuto e seis segundos – tempo que conta o fim do voto do relator do caso no TSE à proclamação do resultado. O agora deputado cassado classificou a decisão como uma “vingança de Lula” (mais informações na página ao lado).

O governo do presidente Lula – que chegou a cumprir prisão por condenação, depois anulada, na Lava Jato – usou o Twitter para fazer uma sátira com a cassação do deputado. O perfil oficial publicou uma imagem com o mesmo design do PowerPoint usado por Deltan, então procurador e coordenador da força-tarefa da operação, para indicar ligações do petista com casos de corrupção. •

Natália Santos, Pepita Ortega, Sofia Aguiar e Gustavo Cortês para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 18.05.23

Incompetência não tem ideologia

Estudo mostra que custo Brasil não caiu significativamente nem num governo declaradamente liberal, como era o de Bolsonaro e Guedes; baixa qualificação da mão de obra é o maior entrave

As empresas no Brasil continuam pagando muito mais do que suas concorrentes em outros países para fazer negócios. E, apesar do discurso a favor da livre-iniciativa do governo de Jair Bolsonaro, sobretudo de seu superministro da Economia, Paulo Guedes, não houve redução nos entraves que oneram o mundo corporativo nos últimos quatro anos, como mostra estudo do Movimento Brasil Competitivo, entidade criada e liderada por empresários para promover a bandeira da necessidade de melhorar a competitividade das empresas no País.

Logo no início do governo Bolsonaro, Guedes foi taxativo ao criticar o emaranhado burocrático para abrir uma empresa no País, dizendo que o processo demorava oito ou nove meses. O governo, afirmou, estava empenhado em reformas importantes que provocassem mudanças conceituais no País a favor de maior liberdade de abertura de negócios, que seria, nas suas palavras, “caminho para a prosperidade”.

O cenário de dificuldades para ser empreendedor no Brasil, porém, pouco mudou, como evidencia o levantamento do Movimento Brasil Competitivo. A dúvida, agora, é se o novo governo, de Lula da Silva, será capaz de promover alguma melhora no panorama. Algumas manifestações, inclusive do presidente, assustam o empresariado, por sugerirem reversão de reformas e excessiva interferência estatal. Em abril, por exemplo, Lula comparou a reforma trabalhista a um “tratamento do tempo da escravidão”. E tanto a proposta de âncora fiscal como a reforma tributária não parecem encontrar entusiastas no governo, com exceção da equipe econômica.

O chamado “custo Brasil”, segundo o estudo, atingiu R$ 1,7 trilhão, valor que representa as despesas adicionais que as companhias têm para produzir por aqui em comparação com a média de custos nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O levantamento foi feito em parceria com a Fundação Getulio Vargas e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e leva em consideração o ciclo de vida de uma empresa, analisando-se indicadores em 12 áreas importantes para a competitividade empresarial.

Ao ser medido pela primeira vez, em 2019, chegou ao valor de R$ 1,5 trilhão, ou 22% do Produto Interno Bruto (PIB). Em termos nominais, houve uma melhora, porque o custo Brasil apurado agora corresponde a 19,5% do PIB, mas o próprio estudo do Movimento Brasil Competitivo alerta que é preciso levar em consideração a inflação do período e que, portanto, se considera que houve estabilidade entre os dois indicadores. Não piorou, mas também não melhorou.

O detalhamento do estudo deixa claro que um dos maiores custos para o setor empresarial continua sendo o emprego de mão de obra, que inclui qualificação do trabalhador, encargos e processos trabalhistas. E isso, apesar do impacto da reforma trabalhista, que tinha como objetivo baixar o custo de contratação de pessoas e facilitar esse processo. Para os autores do trabalho, a baixa qualificação da mão de obra brasileira segue como o fator de maior peso na composição do custo Brasil, chegando a 8% do total.

Também chamam a atenção os cálculos de quanto as empresas gastam com os impostos cobrados no País pelas várias esferas governamentais. No caso, o estudo identificou que, por causa da complexidade tributária brasileira, as empresas precisam gastar aproximadamente 62 dias e meio com a preparação para pagamento dos impostos. A média das nações que fazem parte da OCDE é de seis dias. Talvez haja esperança de mudanças nessa área específica, com a possibilidade de reforma tributária, em debate no Congresso Nacional.

O estudo mostrou um aumento nos custos de financiamento das empresas – o que seria mesmo de esperar porque as taxas de juros no Brasil subiram muito nos últimos quatro anos como política do Banco Central no combate à inflação.

Reduzir os custos de produção no Brasil não é uma questão ideológica, de governos mais à esquerda ou mais à direita. É uma questão de competência para enfrentar os problemas pela raiz e de forma permanente. Como em tantas outras questões, nesta também o País tem pressa. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.05.23

quarta-feira, 17 de maio de 2023

‘Há algo de podre quando petistas e bolsonaristas dão as mãos’

Para Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), a proposta de emenda à Constituição (PEC) da Anistia é uma “autoproclamação da anarquia”. 


Procurador de Justiça em São Paulo, Livianu considera que a proposta “rasga a Constituição” por fazer com que partidos que não cumpriram leis anteriormente aprovadas. 

• Como o sr. analisa a aprovação sucessiva de anistias a partidos?

Isso é extremamente danoso, especialmente o caráter naturalizado dessas anistias. Não estamos falando de um acontecimento episódico isolado, isso vem acontecendo ao longo do tempo. Vemos os partidos praticando essas atitudes repetidamente. Temos uma liturgia democrática, mas os partidos querem ser tratados como seres intocáveis. Isso aniquila o estado democrático de direito porque a igualdade de todos perante à lei é destroçada. É absolutamente inaceitável.

• Tanto o líder do governo como da oposição assinaram o requerimento da PEC. O que isso significa? 

Quando se vê petistas e bolsonaristas dando as mãos para a PEC da Anistia ou para derrubar a lei de improbidade administrativa, citando Hamlet, há algo de podre no reino da Dinamarca. Há algo de muito podre em curso. Não é normal ver antípodas políticas se unindo em prol disso.

• Qual é a mensagem à sociedade que essa anistia dá?

É uma vergonha absolutamente inaceitável. No final do mês vamos todos apresentar a declaração de Imposto de Renda. 

Por que os partidos podem se autoproclamar que não irão cumprir leis eleitorais? 

Agora vamos nos autoanistiar. Tudo o que foi feito de errado, não vamos cumprir a lei? 

É a autoproclamação da anarquia. Isso não é republicano, não é democrático. • Como combater medidas como essa?

O caminho é o constrangimento geral da República. Se berrarmos para (o presidente da Câmara Arthur) Lira, para o Congresso, que não somos palhaços, pode ser o único caminho. Temos que gritar na cara deles: “Não aceitamos isso!” É a chance que temos que isso não se concretize. Mesmo assim não temos certeza que vamos conseguir.

Entrevista a O Estado de S. Paulo, publicada em 17.05.23

Quem ‘enquadra’ Lula?

Petista avisou que não admitirá oposição do PT à tramitação do arcabouço fiscal. Mas, ao propor ele mesmo exceções ao texto, o presidente desmoraliza a proposta da Fazenda

Há poucos dias, o presidente Lula da Silva reuniu os ministros palacianos e os líderes do governo na Câmara e no Senado. Segundo consta, nesse encontro o presidente “enquadrou” o PT, deixando claro que, em hipótese alguma, admitirá oposição de seu partido à tramitação do Projeto de Lei Complementar (PLC) 93/2023, que institui o novo arcabouço fiscal.

Em tese, Lula tem razão ao chamar seus correligionários às falas. O mínimo que se espera do partido do presidente, que está à frente de dez Ministérios e de tantos outros postos de destaque na administração pública federal, é a defesa dos projetos elaborados pelo próprio governo. Mas, ao contrário disso, pululam exemplos de que a oposição mais ferrenha ao arcabouço fiscal tem vindo justamente dos petistas, sobretudo na Câmara

É bom ter em mente que, se dependesse da vontade da ala mais sectária do PT, o Congresso não estaria deliberando sobre arcabouço fiscal algum neste momento. No fundo d’alma, petistas como a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do partido, e os deputados Lindbergh Farias e Zeca Dirceu, entre outros, querem que o governo tenha liberdade absoluta para gastar. Alguns economistas heterodoxos que andam fazendo a cabeça dessa turma têm sustentado uma teoria esotérica segundo a qual governos que se endividam na própria moeda jamais seriam insolventes, pois bastaria imprimir dinheiro na medida de sua necessidade para quitar dívidas.

Devaneios à parte, ao fim e ao cabo, Lula teve o bom senso de privilegiar a ala mais moderada do PT, que tem no ministro da Fazenda, Fernando Haddad, uma de suas faces mais conhecidas. Como já dissemos neste espaço, a proposta de arcabouço fiscal apresentada por Haddad, em meados de abril, sem dúvida foi melhor do que a sonhada por muitos de seus colegas de partido, mas ainda está distante de ser um sistema de controle de gastos públicos com a seriedade de que o País precisa como o substituto do regime fiscal anterior, o teto de gastos, o mesmo que é execrado pelos petistas como a raiz de todos os males do Brasil – depois do impeachment de Dilma Rousseff, é claro.

Falta quase tudo no texto original do PLC 93 para que a proposta de arcabouço fiscal possa ser reconhecida como tal. Não há gatilhos rigorosos para deter uma escalada de gastos diante de um cenário fiscal adverso; há muitas exceções para manutenção de subsídios, os chamados gastos tributários; e, principalmente, não estão previstas sanções para agentes públicos que descumprirem as regras fiscais, ferindo de morte a Lei Complementar 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, e fazendo do texto não mais do que uma carta de intenções.

Ao que tudo indica, porém, o relatório do deputado Cláudio Cajado (PP-BA) resolverá, se não todos, quase todos esses problemas, em especial a questão do enforcement, vale dizer, a ausência de punição por descumprimento de metas, e a previsão de gatilhos mais arrojados para o bloqueio de despesas na eventualidade de um cenário de desequilíbrio fiscal.

Para que não haja dúvidas: Lula “enquadrou” os petistas para que, no mínimo, não desconfigurem o trabalho de Haddad por meio de emendas que teriam como objetivo enfraquecer ainda mais um texto que já veio a público desacreditado por sua frouxidão. Lula não cobrou a participação dos petistas na negociação política na Câmara para tornar o arcabouço um projeto crível, de fato.

Diante da inexorabilidade da atuação do Congresso, que, cumprindo seu papel, aprimorará o PLC 93, o presidente em pessoa tem defendido que o aumento real, ou seja, acima da inflação, dos benefícios do programa Bolsa Família e do salário mínimo e os recursos do Fundeb sejam tratados como exceção às regras do novo arcabouço fiscal. Seria o caso de perguntar, então: quem “enquadrará” Lula? Sabe-se que são temas caros ao presidente. E exatamente por isso Lula deveria ser o primeiro a defender um marco fiscal mais rigoroso, ainda que isso seja extremamente improvável.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 17.05.23

Agora pode-se chamar a ex-primeira-dama de MiCash

Para não ser controlada pelo marido, teve que usar uma laranja

Jair e Michelle Bolsonaro participam de evento do PL Mulher, na Alesp - Marlene Bergamo - 6.mai.23/Folhapress

A certeza da impunidade produz episódios que, se estivessem num roteiro de filme, seriam considerados estapafúrdios. Só isso explica a declaração dada por Michelle Bolsonaro, segundo o advogado da família, Fabio Wajngarten, sobre usar o cartão de crédito em nome de uma amiga nos últimos dez anos: "meu marido sempre foi muito pão-duro".

Coitada. Para não ter os gastos controlados pelo companheiro, Michelle teve que usar uma laranja e agora entra para as estatísticas. Uma em cada cinco mulheres fazem compras escondidas do parceiro, segundo levantamento da fintech Onze. Por outro lado, o site Gleeden, especializado em relações não monogâmicas, mostra que 59% dos maridos ocultam parte de suas finanças da esposa.

Tem até nome esse hábito de omitir como são gastos os recursos que teoricamente são do casal: infidelidade financeira. Uma situação difícil quando se tem um marido que anda com um escorpião no bolso, caso de Bolsonaro, segundo Michelle. Poderia ser pior.

Imagine ter as contas pagas por um sujeito suspeito de corrupção, que usa auxílio moradia para comer gente, embolsa parte dos salários dos funcionários e que pode ter se beneficiado dos contratos feitos por uma empresa com o governo federal para pagar os boletos da mulher. Pois é. Muito pior

E, convenhamos, chamar Bolsonaro de pão-duro? Um pouco exagerada, para não dizer mal-agradecida. Não é de hoje que jorra dinheiro na conta da ex-primeira-dama. Nunca soubemos por que Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, depositou R$ 89 mil em sua conta, entre 2011 e 2016. Em cheques, importante dizer.

Talvez agora Michelle se livre da alcunha conquistada no começo do governo do marido quando a lambança dos cheques veio a público. Micheque é coisa do passado, talvez já possa ser chamada de MiCash. Para que Pix, se dá para pagar as contas em dinheiro vivo.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é Jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 16.05.23

A dura vida de Lula

Entre a pressão internacional para proteger a Amazônia e uma das elites mais predadoras do planeta, o presidente do Brasil se aproxima de uma situação impossível

Presidente Lula da Silva. ( Foto: Evaristo Sá, AFP)

Luiz Inácio Lula da Silva sempre pareceu muito confortável no poder. Tanto nos dois primeiros mandatos (2003-2010) quanto neste terceiro, iniciado em janeiro, ele sempre se movimentou como se tivesse nascido naquele habitat, mesmo em crises graves. O ex-sindicalista gosta visivelmente de sua posição e aprecia estar no centro das atenções. Mas talvez isso mude agora que ele está preso entre duas forças radicalmente opostas. Hoje, com menos de cinco meses no cargo, só os políticos mais ávidos gostariam de estar no lugar de Lula.

Por um lado, Lula só alcançará reconhecimento internacional se for capaz de proteger a Amazônia e outros biomas estratégicos do país de maior biodiversidade do planeta e, conseqüentemente, proteger os povos indígenas que mantêm a natureza viva. Por outro lado, Lula tem que governar com um Congresso dominado por uma elite predatória, negacionista e retrógrada, representada pelo que no Brasil é chamado de “bancada ruralista”, altamente organizada e financiada por empresas ligadas ao agronegócio.

Os limites estreitos de Lula ficaram evidentes em abril, no Acampamento Tierra Libre , o mais importante evento indígena anual, realizado na capital federal, Brasília. Para não agravar sua difícil relação com o Congresso, Lula só conseguiu anunciar a demarcação de seis terras indígenas, número irrisório diante da necessidade de justiça e das expectativas das lideranças indígenas que o apoiavam. Por lei, todas as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas até 1993, o que significa que o Estado tem um déficit de três décadas não só com sua população originária, mas também com sua própria Constituição.

O exemplo mais emblemático da situação em que se encontra Lula, entre um planeta em colapso climático e uma elite empenhada em agravar o aquecimento global em nome de benefícios imediatos, é a promoção de Tomás Oliveira de Almeida ao prestigiado cargo de coordenador-geral do o Secretariado dos Comitês do Senado, revelou o The Intercept na segunda-feira. Almeida foi um dos jovens que, em uma manhã de abril de 1997, ateou fogo no índio Pataxó Galdino Jesus dos Santos, que dormia em um ponto de ônibus em Brasília. No dia 19 de abril, data em que se comemora no Brasil o Dia dos Povos Indígenas, o governo Lula homenageou o indígena assassinado. No mesmo momento, o Senado promoveu Almeida, um de seus assassinos.

Esse é o Brasil que Lula tem que governar. Se a sociedade internacional quiser salvar a Amazônia, terá que punir com muito mais rigor o agronegócio brasileiro e, o que é muito importante, tirar de lá as mineradoras de seus próprios países. Se tudo depende da elite predadora que domina o Congresso, logo a Amazônia vai virar ilustração para contar às crianças que um dia existiu um planeta com uma grande selva e dias muito melhores para os humanos.

Eliane Brum, a autora deste artigo, é colunista do EL PAÍS. Pubicado originalmente em 17.05.23. Tradução de Meritxell Almarza.

Por que o TSE cassou o mandato de Deltan Dallagnol

Em votação relâmpago, Tribunal Superior Eleitoral entende que ex-procurador da Lava Jato deixou cargo para evitar punições em processos administrativos. Ainda cabe recurso da decisão no STF.

 Procurador Deltan Dallagnol Procurador Deltan Dallagnol 

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu por unanimidade nesta terça-feira (16/05) pela cassação do registro de candidatura do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR), ex-procurador da República que ganhou notoriedade por sua atuação na operação Lava Jato.

Antes de entrar para a política, Dallagnol coordenou a força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público do Paraná.

Ele pediu exoneração do cargo enquanto ainda respondia a 15 processos disciplinares internos, que poderiam resultar em aposentadoria compulsória ou demissão.

Os ministros do TSE entenderam que, ao pedir a exoneração e logo em seguida concorrer ao cargo de deputado federal, Dallagnol cometeu irregularidades. A Lei da Ficha Limpa e a da Inelegibilidade não permitem que um indivíduo que deixou o Judiciário ou o Ministério Público para escapar de uma punição possa se candidatar a um cargo eletivo.

Dallagnol se elegeu pelo Paraná nas eleições de outubro do ano passado com 344 mil votos, sendo o deputado federal mais votado do estado. Ele pediu a exoneração em novembro de 2021 com planos de disputar as eleições.

O ex-procurador foi condenado com base da Lei da Ficha Limpa. A votação para cassar o mandato de Dallagnol durou um minuto e seis segundos. Ela ocorreu após análise de duas ações que durou cerca de 1h30.

A denúncia e o parecer do relator

Os ministros do TSE analisaram recursos apresentados pela federação Brasil da Esperança (PT, PCdoB e PV) e pelo PMN, que questionavam a regularidade do registro da candidatura, que é um pré-requisito para qualquer candidato disputar as eleições.

Os partidos alegam que Dallagnol deveria ter o mandato cassado porque teria pedido exoneração do Ministério Público Federal (MPF) enquanto havia 15 procedimentos administrativos pendentes no Conselho Nacional do órgão. Essas ações poderiam levar a punições como demissão ou aposentadoria compulsória.

O recurso alega que Dallagnol também teria se afastado do cargo em razão de uma condenação do Tribunal de Contas da União (TCU) por gastos com diárias e passagens de outros procuradores da Lava Jato. Os autores da ação argumentaram ainda que esse afastamento tinha também como objetivo burlar a Lei de Inelegibilidade e a Lei da Ficha Limpa.

Em 19 de outubro, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) analisou o caso e decidiu a favor do registro de candidatura. Mais tarde, o caso foi parar no TSE, que decidiu pela cassação.

O relator da ação no TSE, o ministro Benedito Gonçalves, defendeu a cassação de Dallagnol e entendeu que o acusado deixou o cargo para "burlar" a inelegibilidade. "Referida manobra impediu que os 15 procedimentos administrativos em trâmite no CNMP em seu desfavor viessem a ensejar aposentadoria compulsória ou perda do cargo", destacou.

O ministro afirmou ainda que o ex-procurador "antecipou sua exoneração em fraude à lei. Ele se utilizou de subterfúgios para se esquivar de PADs [processo administrativo disciplinar] ou outros casos envolvendo suposta improbidade administrativa e lesão aos cofres públicos. Tudo isso porque a gravidade dos fatos poderia levá-lo à demissão".

O voto do relator foi seguido pelos outros seis ministros do TSE. O tribunal preservou ainda a contagem dos votos de Dallagnol na eleição em favor do Podemos.

Dallagnol "indignado"

O ex-procurador afirmou em nota que está indignado com a decisão do TSE, que ele atribui a uma "vingança" contra o combate à corrupção. "344.917 mil vozes paranaenses e de milhões de brasileiros foram caladas nesta noite com uma única canetada, ao arrepio da lei e da Justiça", disse.

"Meu sentimento é de indignação com a vingança sem precedentes que está em curso no Brasil contra os agentes da lei que ousaram combater a corrupção. Mas nenhum obstáculo vai me impedir de continuar a lutar pelo meu propósito de vida de servir a Deus e ao povo brasileiro", alegou o deputado cassado.

Seu partido, o Podemos, assegurou que não "poupará esforços" para atuar na defesa do deputado. "O Brasil e o parlamento nacional perdem com a decisão que o TSE tomou", afirmou a legenda, em nota. "O Podemos se solidariza com o parlamentar e não poupará esforços na avaliação de medidas que ainda podem ser tomadas pela defesa de Dallagnol", concluiu.

O que acontece agora?

O TRE do Paraná deverá executar imediatamente a decisão do TSE. Dallagnol, porém, ainda pode recorrer da cassação no Supremo Tribunal Federal (STF).

A decisão do TSE não torna o ex-procurador inelegível, uma vez que a perda do mandato se deu pelo fato de o registro não ter sido autorizado. Isso significa que ele poderá concorrer nas próximas eleições.

Após a decisão do TSE, os votos que Dallagnol recebeu na eleição vão para o partido. Ainda não foi confirmado quem deve assumir a cadeira do ex-procurador na Câmara dos Deputados.

Fama com a Lava Jato

Dallagnol ficou conhecido após a coordenar a Operação Lava Jato, da qual ele foi um dos principais rostos e protagonizou momentos marcantes no caso. Ele foi designado pelo Ministério Público Federal do Paraná para coordenar a operação em 2014. Desde o início dos trabalhos, ele buscou a atenção da imprensa e organizava coletivas para divulgar os passos da Lava Jato.

Em setembro de 2016, Dallagnol organizou a coletiva célebre da operação, na qual ele apresentou uma denúncia criminal contra o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para tentar explicar as acusações, ele mostrou um gráfico em Power Point, que virou meme nas redes sociais. O gráfico possuía balões com situações que indicariam a ligação de Lula com os crimes denunciados.

A atuação de Dallagnol na operação, porém, começou a ser questionada em 2019, quando o site The Intercept Brasil revelou diálogos que levantaram suspeitas de conluio entre o ex-juiz Sergio Moro – eleito senador pelo Paraná nas eleições de outubro – e as principais figuras da força-tarefa da Lava Jato no MPF, incluindo Dallagnol, na condução de inquéritos e ações penais contra réus. 

As mensagens, que foram obtidas ilegalmente por um hacker, indicaram que o então juiz, entre outras coisas, orientou ilegalmente ações da Lava Jato, como negociações de delações, cobrou novas operações e até pediu para que os procuradores incluíssem uma prova num processo. Outras mensagens indicaram que Dallagnol também tentou aproveitar a exposição pública proporcionada pela Lava Jato para lucrar com sua fama no mercado de palestras. 

Em meio ao contexto do escândalo da "Vaza Jato", foi a vez de o STF anular pela primeira vez uma sentença de Moro, com base num novo entendimento sobre a ordem de entrega de alegações finais de réus delatores e delatados numa mesma ação penal. 

Em novembro do mesmo ano, veio o golpe mais duro: por seis votos a cinco, o Supremo decidiu derrubar a decisão que permitia o cumprimento de pena após condenação em segunda instância. Pelo novo entendimento, um condenado só passará a cumprir pena após trânsito em julgado, ou seja, quando a possibilidade de recurso for esgotada. 

Também em 2019, Dallagnol foi criticado por tentar criar com outros procuradores uma fundação bilionária com dinheiro de multas da Petrobras. Pelo plano, essa fundação ficaria responsável pela gestão de R$ 1,25 bilhão. A iniciativa gerou críticas tanto no mundo político quanto dentro do Ministério Público. Ao final, acabou sendo barrada em março pelo Supremo a pedido da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que ainda censurou publicamente os procuradores. 

Dallagnol deixou a força-tarefa em setembro de 2020, alegando questões familiares. 

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 17.05.23

terça-feira, 16 de maio de 2023

Agenda da esquerda do PT não foi eleita

Imaginava-se que Lula se calava sobre seu programa para não desmobilizar a esquerda, mas ele queria era não afastar o centro

Flexibilizar a Lei das Estatais. Derrubar o Marco Legal do Saneamento. Reestatizar a Eletrobras. Elevar a meta de inflação e baixar os juros na marra. Retomar o imposto sindical.

Será que Luiz Inácio Lula da Silva teria sido eleito com esse programa econômico? A pergunta é retórica, pois é impossível voltar ao passado, mas trata-se de dúvida pertinente, já que ele venceu com 50,9% dos votos.

Ouvi de influente economista liberal que teria votado em Lula mesmo que ele tivesse anunciado Guido Mantega como ministro da Fazenda, porque o que estava em jogo eram os ataques de Jair Bolsonaro à democracia com ameaças de subjugar o Judiciário. Mas que tinha esperanças de que Lula seria pragmático.

Muitos brasileiros compartilhavam a mesma esperança, estimulados pelo próprio candidato, que oferecia como garantia seus mandatos anteriores de controle das contas públicas e respeito a contratos.

Na campanha, imaginavase que Lula se calava sobre o programa econômico para não desmobilizar a militância da esquerda. Hoje, só quatro meses depois do início do governo, fica claro que o que ele queria era não afastar o centro. E que acreditava que bastava não se comprometer para ter um cheque em branco para a agenda econômica da esquerda do PT.

Ignorando a legitimidade do Congresso, o Executivo tenta agora impor medidas por decreto e pelo Judiciário. Só que a democracia tem pesos e contrapesos que começam a demonstrar que essa agenda não foi eleita porque não era conhecida. O primeiro exemplo foi a derrubada na Câmara do decreto do governo que revogava o Marco Legal do Saneamento.

A reestatização da Eletrobras também não deve prosperar no Supremo Tribunal Federal (STF), a despeito de que lá o governo conta com mais simpatia que no Congresso. Mesmo a flexibilização da Lei das Estatais, que foi implementada na prática por meio de liminares e pedidos de vistas de alguns ministros, ainda não foi derrubada no plenário do Supremo. Tampouco foi votada no Senado, que recusa o ônus político.

Uma parte do PT já entendeu o recado e sabe que é preciso buscar consenso, e não ruptura. O arcabouço fiscal e a reforma tributária são prioridades dos moderados do governo, de lideranças do Congresso e de quem deseja a modernização do País. Só não parecem ser prioridades de Lula, que insiste em negar a frente ampla que o elegeu.

Resta saber se ele vai mudar de rumo ou passar os próximos quatro anos copiando Bolsonaro e culpando o sistema que não o deixa governar. A julgar pelos ataques ao Banco Central, as perspectivas não são animadoras. 

Raquel Landim, a autora deste artigo, é Jornalista, e analista da CNN Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.05.23

Gestão Bolsonaro comprou pescoço de galinha a R$ 260 o quilo

Valor é 24 vezes maior que o preço do mesmo produto em outros contratos; compra destinada a indígenas foi feita sem licitação

Produto, que seria distribuído a indígenas, pode ser encontrado em supermercados por até R$ 5 o quilo.

O governo Jair Bolsonaro (PL) comprou, no ano passado, sem licitação, pescoço de galinha para indígenas na Amazônia por um preço 24 vezes maior que o valor médio do produto. O item custou R$ 260 o quilo; o preço médio do mesmo produto adquirido em outros contratos fechados no mesmo período pelo governo foi de R$ 10,70. Em grandes redes de supermercados, a carne de pescoço pode ser encontrada por R$ 5 o quilo.

O Estadão revelou que o governo Bolsonaro comprou 19 toneladas de bisteca para o Vale do Javari que nunca foram entregues e gastou R$ 4,4 milhões para fornecer sardinha enlatada e linguiça aos indígenas yanomamis, contrariando a dieta local recomendada.

O pescoço de frango foi comprado para indígenas da etnia mura e funcionários da antiga Fundação Nacional do Índio (Funai) – hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas – numa missão em Manicoré, na Floresta Amazônica. O gasto total com as compras de carne chegou a R$ 927,5 mil, entre 2020 e 2022. Deste valor, R$ 5,2 mil foram para adquirir o lote de 20 quilos de carne de pescoço a R$ 260 o quilo. Não há registros da entrega do produto nesse período.

Com R$ 5,2 mil seria possível comprar meia tonelada de pescoço de galinha se o governo tivesse seguido o preço do produto pago em outros contratos. Para efeito de comparação, o quilo da picanha num dos maiores supermercados do País custava ontem R$ 70.

A empresa selecionada para vender a carne de pescoço, sem concorrência, fica em Humaitá (AM) e tem como dono Herivaneo Vieira de Oliveira Junior, de 23 anos. Ele é filho do ex-prefeito Herivaneo Vieira de Oliveira (PL), que cuida do negócio. Por telefone, o exprefeito primeiro se recusou a falar. “Eu não sei de nada, não”, disse, encerrando a ligação. Depois, retornou, pediu desculpas e relatou que tudo foi entregue conforme as notas fiscais emitidas e os preços levantados pela Funai. Questionado sobre o preço cobrado, afirmou: “Carne de pescoço? Não existe isso aqui. Eu sei que é uma carne ruim demais. Só pode ter sido um erro das notas de pagamento.”

CESTA. Responsável pela compra, a coordenação regional da Funai no Rio de Madeira (AM) adquiriu também mais de uma tonelada de charque, maminha, coxão duro, alcatra e latas de presunto que nunca chegaram às aldeias na época da pandemia de covid-19. Na região onde a carne deveria ter sido distribuída, indígenas enfrentam fome e desnutrição.

A empresa Loja do Crente Rei da Glória foi contratada para entregar as cestas básicas que deveriam conter as carnes diversas, mas os itens não foram incluídos. “A carne não chegou. Aquilo que era adquirido não chegava ao território”, disse o coordenador da Funai no Rio de Madeira, Raimundo Parintintin. Na época das compras, quem comandava o órgão era o capitão do Exército Claudio da Rocha.

O atual comando da Funai e a gestão do órgão no governo Bolsonaro não se posicionaram. Samuel de Souza Matos, dono da Loja do Crente Rei da Glória, e Claudio da Rocha não responderam. 

Daniel Weterman, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 16.05.23

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Áudios sobre golpe provocam fratura entre comando do Exército e militares bolsonaristas

Não há mais convívio entre generais contrários à intentona do dia 8 de janeiro e os envolvidos na aventura; Exército pode abrir processo interno para expulsar acusados por meio do chamado Conselho de Justificação

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado do geneneral Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, comandante do Exército, participa da cerimônia em homenagem ao dia do Exército, no Quartel General, em Brasilia, no mês passado. Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO CONTEUDO

Deslealdade. Esse é o mais educado dos adjetivos usados por generais para qualificar o comportamento de integrantes do governo de Jair Bolsonaro que planejaram aliciar comandantes de batalhões e até mesmo de brigadas para passar por cima dos integrantes do Alto Comando do Exército (ACE) que se recusavam a dar um golpe de estado e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Quatro meses após a intentona do dia 8 de janeiro, a fratura criada na instituição não cicatrizou.

Expoentes do bolsonarismo continuam malvistos e desprezados pelos colegas, que se sentem constrangidos a cada nova descoberta feita pela Polícia Federal envolvendo militares da ativa e da reserva que assessoraram o ex-presidente. Na semana passada, a cúpula do Exército se reuniu em Brasília. Tratava-se de uma reunião administrativa, onde a chefia da Força tratou de seu orçamento e de operações que serão feitas com Argentina, Paraguai e Estados Unidos. Um outro tema, porém, pairava sobre os generais: a situação do tenente-coronel Mauro Cesar Cid.

Para os integrantes do Alto Comando, tudo o que o Exército não precisava agora era de mais problemas. A nomeação do general Marcos Amaro para a chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) parecia normalizar a relação entre o atual governo e a caserna, inclusive com o retorno da segurança presidencial para as mãos do GSI. Amaro é visto pelos colegas como um oficial inteligente e íntegro. Foi instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e conhece a área de informações.

Mesmo a atabalhoada inclusão do general Marcelo Goñes Sabbá de Alencar entre os militares excluídos na “faxina” do gabinete já parecia superada – Sabbá estava havia 9 dias no GSI quando se viu entre os afastados em razão da queda do general Marco Edson Gonçalves Dias, o G. Dias, então ministro-chefe do GSI. Havia entre os generais até mesmo a ideia de mandar Sabbá de volta ao GSI para corrigir a injustiça, mas, por fim, optou-se pela sua nomeação para a 2.ª Subchefia do Estado-Maior, responsável por orientar e avaliar o Sistema de Informações do Exército e sua área digital.

Foi quando chegaram ao comando do Exército as informações encontradas nos telefones celulares do tenente-coronel Cid e do ex-major Ailton Barros, ambos presos pela Polícia Federal sob a suspeita de terem participado de um esquema de falsificação de cartões de vacina contra a covid-19. Um diálogo revelado pela CNN mostrou o coronel Élcio Franco tramando um golpe de estado com o ex-major Barros.

Élcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde durante coletiva sobre o combate ao coronavírus Foto: Júlio Nascimento/PR

Este último diz que era preciso convencer o general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel, do Comando de Operações Especiais (COpEsp), com sede em Goiânia, a mobilizar 1,5 mil homens para prender o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). O COpEsp é subordinado ao Comando Militar do Planalto (CMP), então ocupado pelo general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, outra figura-chave nos eventos do dia 8. Dutra era um dos generais que os conspiradores designavam como “melancia” e pretendiam “bypassar”.

Franco, então assessor da Casa Civil, onde trabalhara com os ministros Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto, não demonstra nenhuma contrariedade à proposta do amigo. Antes, Franco trabalhara com Eduardo Pazuello, no Ministério da Saúde. Em comum com Ramos, Pazuello e outros expoentes do bolsonarismo, ele também é um Força Especial (FE), um militar formado no COpEsp, conforme mostrava o broche da caveira com um punhal que Franco costumava exibir no paletó.

A coterie dos Forças Especiais forneceu à intentona do dia 8 alguns dos principais expoentes no campo militar. O tenente-coronel Cid fazia parte dela e estava designado para comandar o 1.º Batalhão de Ações de Comandos, do COpEp. Foi da mesma brigada de Goiânia que saiu o coronel José Placídio Matias dos Santos, que no dia 8 convocou os colegas para o golpe: “Onde estão os briosos coronéis com tropa na mão?” A exemplo de Franco, Barros e outros, Placídio defendia que os colegas passassem por cima dos generais.

Seu modelo era o dos coronéis gregos que deram um golpe em 1967 e instalaram uma ditadura que durou sete anos sob a direção de Georgios Papadopoulos, para impedir a eleição do socialista Andreas Papandreou. Placídio ofendeu o comandante da Marinha, almirante Marcos Olsen, qualificando-o como “prostituta do ladrão” e o desafiou a puni-lo. O FE Placídio trabalhava no GSI com o general Augusto Heleno, outro oficial que saiu chamuscado do governo Bolsonaro, assim como Ramos, Pazuello e Braga Netto.

Todos, em maior ou menor medida, tornaram-se párias para os colegas em razão da deslealdade e da campanha de difamação e ataques movida contra integrantes do Alto Comando. Não há mais convívio entre os dois grupos. A fratura entre os bolsonaristas e a instituição está longe de acabar.

Por enquanto, nenhum dos golpistas é alvo de Conselho de Justificação, que pode declarar o acusado indigno para o oficialato, cassando o posto e a patente. O ACE decidiu aguardar as investigações da Polícia Federal e o processo no STF – o caso de Placídio estão nas mãos de Moraes. Em caso de condenação a mais de dois anos de prisão, os conselhos serão abertos e o militar, ainda que na reserva, será expulso.

O tenente-coronel do Exercito, Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia em Brasília  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Na avaliação dos generais, os integrantes da ativa envolvidos nos fatos são poucos. Nenhum comandante de organização aderiu à intentona do dia 8. Quem se moveu nas redes sociais ficou apenas nos chamados “atos preparatórios”, sem ultrapassar o limite que qualificaria seus atos como tentativa de crime contra o estado democrático de direito. Pelo menos é o que mostram, por enquanto, as investigações. Todos seriam somente valentões de WhatsApp. “Queria ver botar a cara aqui na frente”, disse à coluna um dos generais do ACE.

Mesmo o caso do coronel Cid é visto com cautela. Os generais negam que o pai do preso, o também general Mauro César Lorena Cid, que fora colega de turma de Bolsonaro na AMAN, esteja contrariado com o Alto Comando. O coronel não foi destratado nem humilhado. O comandante da Força, general Tomás Paiva, considera que Cid deve responder pelo que fez. Mas nada será feito contra o coronel de maneira açodada. As consequências do governo Jair Bolsonaro e da contaminação ideológica ainda incomodam. E cada vez que novos fatos surgem, uma frase começa a ser repetida: “Nunca mais”. A lição foi aprendida.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.05.23. Atualizado às 14h30.

domingo, 14 de maio de 2023

Entre mandar e governar

Empenhado em buscar a paz entre Rússia e Ucrânia, Lula também tenta mandar nos juros e rever decisões do Congresso, mas cuida pouco da obrigação de administrar seu país

Lula quer mandar, muito mais do que governar, como tem demonstrado em quase cinco meses de mandato. Quer mandar nos juros, na Eletrobras, na política de pessoal das estatais, no Orçamento e nos serviços de utilidade pública. Seu desejo pode conflitar com alguma lei sancionada, mas isso pouco importa. De forma desaforada, tentou mudar com dois decretos o marco legal do saneamento, atropelando uma legislação aprovada em 2020. De forma grosseira e indigna, tem atacado pessoalmente o presidente do Banco Central (BC), acusando-o de trabalhar sem compromisso com o Brasil. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também tem criticado os juros, mas sem as baixarias presidenciais. De forma civilizada, já apontou dois nomes para vagas na diretoria do BC. Pode ser uma forma de introduzir a opinião do Executivo nas discussões de crédito e juros. Mas o risco de intervenção permanece, mesmo com as boas maneiras de um ministro conciliador.

Também conciliador e discreto, o economista Gabriel Galípolo, indicado para a Diretoria de Política Monetária do BC, já é visto como possível sucessor do presidente da instituição, Roberto Campos Neto. Por enquanto, Galípolo permanece como secretário executivo do Ministério da Fazenda, posto equivalente ao de viceministro. Sua transferência para a nova função, disse Galípolo, poderá facilitar a harmonização das políticas monetária e fiscal. O discurso parece atraente, mas a palavra “harmonização” é um tanto estranha.

Banco Central e Ministério da Fazenda têm funções diferentes. Se a Fazenda, isto é, o Executivo, administrar com prudência as finanças públicas, a autoridade monetária terá maior facilidade para reduzir os juros, favorecendo o consumo, o investimento e a produção e barateando, talvez, o financiamento do Tesouro. Mas o componente básico desse jogo é a política fiscal seguida pelo governo. Além disso, o crescimento da atividade produtiva depende mais da política econômica, no longo prazo, do que de estímulos monetários. Com a política monetária mais frouxa deste século, o mandato da presidente Dilma Rousseff terminou com o País atolado em recessão e inflação.

Mas política econômica é ação de governo, e governar tem ocupado pouco espaço na agenda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mostrandose pouco propenso a administrar, o presidente cuidou, até agora, muito mais da imagem externa do Brasil do que da retomada do crescimento. Será difícil, no entanto, manter alguma importância externa com uma economia estagnada por longo tempo. Mesmo na América do Sul o País perderá relevância, se passar a ser visto como um grandalhão incompetente e fracassado.

De fato, alguma perda já tem ocorrido, como efeito da crescente presença chinesa nos mercados sul-americanos, incluído o Mercosul. Recompor um quadro mais favorável ao Brasil dependerá basicamente do aumento da competitividade, uma questão ligada a produtividade, qualidade e financiamento. Diplomacia pode ajudar, mas, sem os dados prosaicos dos preços, da qualidade e das condições de pagamento, o trabalho de persuasão pode ser menos eficaz em portunhol do que em qualquer língua com sotaque chinês.

Detalhes como esse poderiam ser pouco importantes no mundo bolsonariano. São familiares e relevantes, no entanto, para o pessoal em torno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os ministros da Fazenda, do Planejamento, do Desenvolvimento e da Agricultura estão preparados para pensar questões ligadas à modernização e à expansão do sistema produtivo. Mas essa capacidade faria pouca diferença, se o chefe do governo fosse incapaz de pensar os problemas do desenvolvimento. Não é o caso do presidente Lula.

Também ele já se mostrou capaz de entender condições essenciais para a promoção de grandes mudanças, como a educação, a pesquisa, a infraestrutura e a capacidade produtiva das empresas. Mais que isso, ele parece perceber com clareza os vínculos entre a prosperidade econômica e a busca da equidade social. Mas avanços concretos envolvem – é preciso insistir no óbvio – fixação de prioridades, avaliação de custos, estratégias de financiamento, definição de rumos e de etapas e um esforço de articulação de tarefas.

Tem faltado, no entanto, o trabalho de liderança e de articulação. O presidente Lula tem-se declarado disposto a ouvir sugestões de empresários, sindicalistas, dirigentes de organizações civis e quaisquer fontes capazes de colaborar com ideias. Para mostrar sua disposição de contato com a sociedade, mandou remover as cercas do Palácio do Planalto. Mas falta ir além do simbolismo.

Em termos simples, falta meter a mão na massa e cuidar de questões concretas e próximas. O presidente brasileiro tem-se empenhado mais na promoção da paz entre Rússia e Ucrânia do que na revitalização econômica de seu país. Lula pouco pode fazer por ucranianos e russos, mas pode fazer muito por milhões de brasileiros, e até por seus vizinhos, se voltar à realidade e cuidar de sua obrigação principal, governar o Brasil. Isso é muito diferente de simplesmente mandar. •

Rolf Kuntz, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 14.05.23

O primeiro inverno do governo Lula

Dada a nossa história, não teria qualquer credibilidade um governo que se limitasse a ‘afirmar’ seu compromisso com a responsabilidade fiscal

“É perfeitamente legítimo a qualquer pessoa expressar de público suas ‘memórias do futuro’, para usar a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos – quer se realizem, quer não.” Assim abri meu artigo de 14/12/2014 neste espaço. O comentário vinha a propósito de discurso feito por Lula durante a campanha eleitoral de 2014, no qual afirmou que já se imaginava em 2022, nas comemorações de nossos 200 anos de Independência, defendendo, com Dilma, tudo o que haviam conquistado “nos últimos 20 anos”.

O primeiro discurso de Lula eleito para seu terceiro mandato, na noite de sua vitória, parecia indicar uma clara percepção do grau de polarização a que havíamos chegado e, principalmente, o reconhecimento de que uma legião de eleitores havia votado nele porque não queria mais quatro anos de Bolsonaro. Ali Lula afirmou que governaria para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para seus eleitores.

Mas Lula é Lula. “Quando completarmos 100 dias, teremos voltado com todas as políticas públicas que criamos e que deram certo neste país” é apenas uma numa sucessão de declarações recentes que evocam um passado glorioso, em modo campanha eleitoral. Mas objetivos meritórios exigem ações eficazes, consistentes e compatíveis com as restrições sob as quais qualquer governo deve operar. Mesmo aqueles que acham que um governo que emite a própria moeda tem amplo espaço de manobra reconhecem que existe uma “restrição da realidade” imposta pela capacidade de resposta da oferta doméstica, existente ou a ser criada pelo governo em articulação com o setor privado, um programa consistente e eficiente de investimentos. Alguns dos adeptos do amplo espaço de manobra reconhecem também que há, sim, restrições orçamentárias a que qualquer governo está – ou deveria estar – submetido no curto e médio prazos.

O projeto de lei do Novo Marco Fiscal encaminhado ao Congresso pelo ministro Fernando Haddad representa o reconhecimento de que há necessidade de respeitar tais restrições; de mostrar que o governo tem regras consistentes para a relação entre gastos, receitas, resultado fiscal e dívida pública, com números críveis para mostrar as respectivas trajetórias.

Dada a nossa história, não teria qualquer credibilidade um governo que se limitasse a afirmar seu compromisso com a responsabilidade fiscal. Principalmente quando muitos na cúpula do PT afirmam, ao mesmo tempo, que há gastos que não são “gastos” e que, portanto, deveriam estar fora da regra que os define.

Da mesma forma, na política monetária não teria qualquer credibilidade um governo que se limitasse a afirmar que envidaria o melhor de seus esforços para preservar a inflação sob controle – mas que teria objetivos mais importantes a perseguir. E que, portanto, a inflação seria a possível nas circunstâncias.

Ambos, regime fiscal e regime monetário, precisam ter discricionaridades restringidas por regras estabelecidas com clareza e acompanhadas pelo Congresso e pela opinião pública. Deverá ser resolvido o atual descompasso entre política monetária restritiva e uma política fiscal que é e será expansionista no que depender do presidente da República; possivelmente por meio da inclusão no Novo Marco Fiscal, pelo Congresso, da exigência de relatórios bimestrais ou trimestrais detalhados sobre a evolução dos gastos e receitas no bimestre (ou trimestre) e projeções para o ano à luz do resultado (e das metas definidas pelo governo). Também por meio da redução das exceções de gastos que estariam fora dos gastos a serem controlados, mas que não deixam por isso de ser gastos. Por último, é preciso indicar na lei o que deveria ser feito, em prazo hábil, se os números se distanciarem demasiadamente das metas estabelecidas. Avanços críveis na área fiscal permitem reduções nas taxas de juros.

O governo deverá demonstrar – na prática, não no discurso – que conseguirá realizar as receitas necessárias e que, ao mesmo tempo, controlará as pressões por expansão das despesas que surgem da sociedade e que certamente existem no âmbito do próprio governo.

Desde 2003, e passando pelas confiantes declarações de Lula na campanha de 2014, o mundo mudou. E também mudou o Brasil, que é hoje ainda mais complexo e difícil de governar. O período inicial deste governo que chega em breve a seu primeiro inverno mostra, por meio de derrotas recentes, que o Poder Executivo não tem (ainda?) uma base de sustentação consistente num Congresso cuja musculatura é hoje muito maior. Aumentou sua parcela de controle sobre a execução do Orçamento por meio de emendas parlamentares impositivas, cresceu seu poder político por meio de vultosos recursos para os fundos eleitoral e partidário. A entrevista do presidente Arthur Lira ao jornal O Globo em 8/5/2023 deixa claro que os tempos são outros.

Concluo com Raymond Aron, “a sociedade moderna precisa ser vista sem arroubos de indignação ou de entusiasmo”; e com Eduardo Giannetti, “a lâmina da serenidade precisa de dois gumes para eliminar excessos de otimismo e de pessimismo”. São as sábias lições que me vêm à mente nestes tempos difíceis.

Pedro S. Malan, o autor deste artigo, foi Ministro da Fazenda (Governo FHC). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 14.05.23

Governo Bolsonaro comprou 19 toneladas de bisteca nunca entregues para indígenas na Amazônia

Uma das firmas contratadas para fornecer a carne congelada tem como atividade principal venda de roupas. O sumiço das bistecas foi confirmado ao Estadão pelos indígenas que deveriam receber o produto e por um comerciante que deveria enviá-lo. A compra foi contestada até pela funcionária da Funai que assinou a compra. “Desperdício de dinheiro público”, diz ela. Contrato segue em vigor

Indígenas de diferentes regiões do País que participaram do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasilia, relataram ao Estadão que entrega de cesta básica em aldeias não é frequente, apesar de gastos do governo. “Matis não comeu bisteca”, relatou um deles Foto: WILTON JUNIOR

O governo federal comprou 19 toneladas de bisteca para compor cestas básicas que deveriam ser enviadas ao Vale do Javari, no Alto Solimões (AM), mas a carne congelada nunca chegou às comunidades indígenas. Mesmo se o produto tivesse sido entregue, não haveria local de armazenamento e conservação para acomodar o alimento. Os contratos foram assinados no governo Bolsonaro entre 2020 e 2022 e seguem em vigor na atual gestão do petista Luiz Inácio Lula da Silva.

A bisteca seria dividida com os funcionários da Funai – agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Como os indígenas dizem que não receberam o alimento, se fossem comer tudo, os 32 servidores que se revezam por lá teriam um quilo de bisteca no prato por dia, o ano inteiro. Isso sem contar que a maioria passa a maior parte do tempo na floresta ao lado dos indígenas, bem longe da base da Funai.

O sumiço das bistecas foi confirmado ao Estadão pelos indígenas que deveriam receber o produto e por um comerciante que deveria enviá-lo. Até a funcionária da Funai que assinou o contrato de compra fala em desperdício de dinheiro público, mas alega que seguia ordens de seus superiores. “Nem tudo que constitui a cesta básica contempla uma alimentação específica desses indígenas. Era um desperdício, realmente, do dinheiro público”, admitiu Mislene Metchacuna Martins Mendes, atual diretora de administração e gestão da Funai. “Parte dos alimentos chegava sem condições para consumo, mas a ordem era entregar”, disse ela.

Procurados, os presidentes da Funai no governo Bolsonaro e no governo Lula não se manifestaram.

Nem tudo que constitui a cesta básica contempla uma alimentação específica desses indígenas. Era um desperdício, realmente, do dinheiro público.”

Mislene Metchacuna Martins Mendes, que assinou os contratos enquanto era coordenadora substituta do órgão no Vale do Javari.

As cestas que efetivamente chegaram para os 13.330 marubos, matises, kanamaris e korubos continham apenas produtos secos, como arroz, farinha e sabão. Os contratos no valor de R$ 568,5 mil foram assinados pela Funai, antiga Fundação Nacional do Índio, de 2020 a 2022, durante o mandato do então presidente Jair Bolsonaro. Parte deles continua em vigor no atual governo.

Bushe Matis, coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), relata que cestas básicas com carne não foram entregues em aldeias

Ao longo de um mês, o Estadão investigou 5,5 mil compras de alimentos para terras indígenas em todo o País e constatou que, a pretexto da pandemia de covid-19, metade foi feita sem licitação. O dinheiro gasto chegou a empresas recém-criadas e não houve comprovação de entrega de lotes de cestas básicas completas.

A reportagem conversou com lideranças e famílias tanto do Javari quanto de outras etnias do País, que estiveram reunidas em Brasília no Acampamento Terra Livre, no mês passado. O relato foi sempre o mesmo: a entrega de cestas básicas não é algo comum nas aldeias.

O Vale do Javari, em especial, é uma das regiões mais isoladas do mundo. Do tamanho do Estado de Santa Catarina, o território indígena tem 8,5 milhões de hectares e é o segundo maior em extensão do País. A área concentra o maior número de povos de língua e tradições desconhecidas. Foi num dos rios que cortam a região que ocorreram os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em junho do ano passado.

Após selecionar as empresas para fornecer a carne no Vale do Javari, o governo efetuou pagamentos que somaram R$ 13,4 mil para a compra de meia tonelada de bistecas. Duas empresas que ganharam as licitações ficam em Manaus (AM), a mais de 1 mil quilômetros das cidades que dão acesso ao território indígena.

A principal organização indígena do Vale do Javari questiona o paradeiro das bistecas. “Nós não recebemos alimentação. Fazer a aquisição e enviar para a aldeia não existe”, afirmou o coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Bushe Matis.

O indígena Walciley Duarte, que trabalhava em uma base da Funai desde o fim de 2021, corrobora que “a entrega de bistecas congeladas nunca aconteceu para os indígenas”. Em abril deste ano, ele foi nomeado como coordenador regional do órgão no Vale do Javari.

Matis não comeu bisteca.”

Duarte destacou que só na metade de 2022 o local recebeu um gerador de energia elétrica para armazenar produtos perecíveis. O governo Bolsonaro, porém, fez empenhos para a compra de bistecas congeladas e outros produtos resfriados antes disso. Ainda em dezembro de 2020, a Funai liberou recursos para comprar 285 quilos de bisteca bovina congelada para o Vale do Javari.

Carnes e roupas

Uma das empresas contratadas admite que a bisteca pode não ter chegado aos indígenas. A S B Freire, de Manaus, que tem a venda de roupas como principal atividade, está registrada em nome de Sigrid Beleza Freire. O marido de Sigrid, Jorge Rodrigues, é quem cuida dos contratos. Ele afirmou ao Estadão que não pode garantir que o produto chegou ao Javari. “Não sei dizer se ele entregava. Os indígenas não tinham onde armazenar alimento perecível”, afirmou.

“Ele” é o comerciante José Carlos Costa, dono da empresa “Irmãos Costa”, sediada em Benjamin Constant (AM), que também ganhou um lote da licitação das cestas básicas. Jorge Rodrigues conta que fez um acordo “por fora” com esse empresário para fornecer as bistecas.

O dono da “Irmãos Costa” é o único que atesta a entrega das bistecas. “Eles têm freezer, vão de barco, tem uma logística”, afirmou. O Estadão constatou, entretanto, que até o ano passado sequer havia congeladores no Javari.

Esse contrato específico com a S B Freire foi encerrado pela Funai pela não entrega das bistecas e outros alimentos previstos na cesta básica.

Não sei dizer se entregava. Eles (indígenas) não tinham onde armazenar alimento perecível.”

Jorge Rodrigues, representante da empresa de roupas que recebeu pela venda de bistecas congeladas para a Funai

Na última licitação, feita no ano passado, uma terceira empresa, a H A de Aguiar, foi selecionada pelo governo como fornecedora de bisteca porque ofereceu o menor preço, de R$ 29 o quilo. A quantidade de carne aumentou, porém, na assinatura do contrato, tornando a compra mais cara do que a estimada inicialmente. Dessa forma, o contrato pulou de R$ 175 mil para R$ 197,2 mil. É esse contrato que foi mantido pelo governo Lula, embora as entregas não tenham ocorrido ainda.

O empresário Humberto Abrão de Aguiar, dono do estabelecimento, disse estar pronto para efetuar todas as entregas neste ano, mas já fala em pedir ao governo Lula o reajuste dos valores para dar conta da distribuição das bistecas. “Se você souber o tanto de índio que tem”, argumentou Aguiar.

Dinheiro para compra de cestas básicas foi gasto pela antiga Fundação Nacional do Índio (Funai), hoje Fundação Nacional dos Povos Indigenas. Na foto, indígenas de diversas etnias durante o Acampamento Terra livre (ATL) em Brasília Foto: WILTON JUNIOR

Procurada pelo Estadão, a Funai – agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas – não se pronunciou. A direção atual do órgão evitou até mesmo responder se irá analisar os contratos em vigor.

O ex-presidente da Funai no governo Bolsonaro, delegado Marcelo Xavier, que respondia pela instituição durante a assinatura dos contratos, também foi procurado, mas não se manifestou.

A servidora Mislene Metchacuna Martins Mendes, que assinou os contratos enquanto era coordenadora substituta do órgão no Vale do Javari, disse que o fez porque foi determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que a Funai entregasse cestas básicas a todos os povos indígenas na pandemia.

“Na ocasião, foi feito uma Informação técnica e enviada à Presidência da Funai, destacando as diferenças culturais e especificidades alimentares dos povos indígenas do Vale do Javari, mas nunca foi considerada. Então, a ordem da gestão anterior era que os servidores entregassem cestas básicas”, justificou.

Daniel Weterman para O Estado de S. Paulo, em 14.05.23

Presidencialismo de comercialização

A reciclagem do orçamento secreto para garantir apoio a projetos ruins em troca de gastos ruins expõe a hipocrisia de Lula e derruba os mitos do ‘grande articulador’ e da ‘frente ampla’

O presidente Lula da Silva liberou R$ 9 bilhões em emendas negociadas pelo antecessor, Jair Bolsonaro, a serem repassadas sem transparência e a conta-gotas, conforme o resultado das votações e a fidelidade dos parlamentares. Em outras palavras, trata-se da reciclagem do orçamento secreto.

O esquema consistiu na hipertrofia das emendas do relator do Orçamento (RP9). Originalmente uma parcela marginal de recursos para ajustes contábeis, a RP9 cresceu para R$ 19 bilhões, distribuídos a aliados sem critérios técnicos nem transparência.

É uma violência aos princípios da publicidade, da impessoalidade e da eficiência. Só quem vota com o governo é beneficiado e os municípios sem padrinho no Congresso são punidos. Além de distorcerem a competição eleitoral e a representação democrática, os recursos não só são mal distribuídos, como, repassados abaixo do radar, abrem margem à corrupção. Há muitos indícios de gastos superfaturados.

A ampliação, a imposição e a diversificação das emendas parlamentares cresceram exponencialmente nos governos Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro. Ambos iniciaram seus mandatos tentando impor seu voluntarismo ao Congresso. À medida que sua credibilidade derretia, as hostes clientelistas farejaram uma oportunidade de chantageá-los e o Orçamento foi loteado em troca de sustentação. As emendas individuais e de bancadas foram engordadas e tornaram-se impositivas. Mas essas ao menos são distribuídas com algum controle e equidade. Já as emendas de relator e as “transferências especiais” (ou “cheque em branco”), realizadas diretamente pelos parlamentares a seus currais eleitorais, são repassadas de maneira totalmente arbitrária e opaca.

Nas eleições, Lula disse que o orçamento secreto foi o “maior esquema de corrupção da história”. Numa tacada, sua reciclagem expõe a hipocrisia do chefão petista e deita por terra dois mitos sobre ele: o do “grande articulador” e o do líder da “frente ampla democrática”. Fosse um líder sincero e um articulador competente, Lula reconheceria que a margem de votos nada ampla que lhe deu a vitória sinaliza menos um endosso ao programa petista que o receio de um novo mandato de Bolsonaro. Tanto que os partidos de sua base eleitoral conquistaram pouco mais de 130 cadeiras na Câmara. Uma articulação republicana implicaria fazer concessões e negociar projetos com a maioria conservadora no Congresso, distribuindo condizentemente o poder.

Lula, porém, concentrou o núcleo do poder no PT, acreditando que garantiria a governabilidade mercadejando cargos de segundo escalão na Esplanada dos Ministérios. Mas justamente os poderes orçamentários acumulados pelo Parlamento tiraram poder dos ministérios, que hoje são uma desvalorizada moeda de troca. Longe de matizar seu voluntarismo ideológico e negociar conteúdos programáticos, Lula tenta enfiar goela abaixo do Congresso as ideias fixas e retrógradas do PT, revertendo decisões do Parlamento (como o Marco do Saneamento ou a privatização da Eletrobras) à base de decretos e ações judiciais. A retaliação veio a galope e o custo da governabilidade aumentou.

“O povo brasileiro vai escolher se quer orçamento feito pelo relator, distribuído pelos deputados e senadores, ou a volta do mensalão”, disse com assustadora franqueza, no ano passado, o presidente da Câmara, Arthur Lira. “São as duas maneiras de cooptar apoio no Congresso.” O povo não precisa fazer essas escolhas, pois ambas são inconstitucionais, como já determinou o Supremo. Já o governo, prisioneiro do voluntarismo de Lula e submetido à lógica desse presidencialismo de comercialização descrito por Lira, pode começar a trabalhar de verdade para construir uma base confiável, unida por propósitos políticos comuns, ou pode se deixar submeter a esse presidencialismo de comercialização, em que cada voto deve ser comprado com emendas parlamentares sem controle nem transparência. Aparentemente, Lula já fez sua escolha.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.05.23

"A esquerda deve oferecer uma visão positiva do patriotismo"

O pensador americano, Michael Sandel,  autor do aclamado ensaio 'The Tyranny of Merit', sustenta que os progressistas devem articular um senso de comunidade em torno de conceitos como assistência médica universal ou justiça fiscal

Michael Sandel, filósofo e professor da Harvard Law School, na sede do IE em Madri em 24 de abril. (Jaime Villanueva)

Há quase 30 anos, o professor de Harvard Michael J. Sandel (Minneapolis, 1953) arranhou a superfície dourada dos anos 1990 e, logo abaixo daquela camada de prosperidade e euforia que se seguiu ao fim da Guerra Fria, encontrou um burburinho de ansiedade . Ouviu lá embaixo uma rejeição incipiente ao projeto globalizador das elites. Um projeto que se impôs como inevitável e foi extraído, portanto, do debate cívico democrático. O professor coletou esse desconforto em Descontentamento democrático (1996), que logo se tornou um clássico com conotações premonitórias.

Hoje Sandel é a pessoa mais próxima de uma estrela do rock da filosofia. Suas palestras enchem o público e suas ideias sobre como resolver a incômoda coexistência entre capitalismo e democracia estão no centro do debate em que a social-democracia ocidental está imersa, de Joe Biden a Olaf Scholz, o chanceler alemão que não escondeu a influência que exerceu teve em seu projeto o livro de Sandel A Tirania do Mérito(Debate, 2020), em que desmonta a teoria da meritocracia pela ausência de igualdade de condições entre os cidadãos que a torna possível. Depois de abordar naquele volume aquela venenosa cultura do mérito, que semeou ressentimentos legítimos com consequências desastrosas nas classes trabalhadoras, Sandel agora retorna ao seu livro de 1996 para atualizá-lo após três décadas que explodiram aquele incipiente descontentamento democrático sobre o qual ele escreveu.

A entrevista é no arranha-céu de Madri da Universidade IE, onde foi convidado a oferecer aos sortudos alunos uma de suas palestras sobre justiça que se tornaram famosas. É uma experiência e tanto ver ao vivo como Sandel gera com os alunos o tipo de debate cívico apaixonado que ele exige para toda a sociedade. Antes, contemplando as vistas avassaladoras da cidade de um 29º andar, filósofo e jornalista relembram seu último encontro, no porão sem alma do Carpenter Center for Visual Arts que Le Corbusier construiu na Universidade de Harvard. Uma estranha entrevista três anos atrás, com dois metros de distanciamento social, com máscaras, numa realidade distópica que hoje parece distante, e que Sandel também consegue girar em sua história. A pandemia, a guerra, a luta contra a crise climática, tudo acaba se encaixando no discurso esclarecedor que Sandel vem tecendo sobre as causas da profunda decepção que pesa sobre a vida pública no Ocidente. Para sair daí, o pensador deixa duas mensagens incômodas para a esquerda confusa: uma, reconfigure a economia para torná-la suscetível ao controle democrático; e dois, abrace o patriotismo. Mas não o patriotismo que a direita populista construiu sobre muros e medo, mas outro que articula o sentimento de comunidade em torno de conceitos como saúde universal ou justiça fiscal.

PERGUNTA. O descontentamento democrático com o qual ele lidou há quase 30 anos era então um boato, ele escreve na nova edição do livro, e agora é um som alto e estridente. Tem acontecido?

RESPOSTA. Durante a década de 1990, havia confiança, mesmo com certa arrogância, por parte de políticos e economistas de que a versão americana do capitalismo democrático havia vencido. E que, consequentemente, as principais questões políticas já eram meras questões tecnocráticas. Adotou-se a versão neoliberal da globalização que incluía a terceirização de empregos para países de baixos salários, a desregulamentação do setor financeiro, tudo em nome de uma certa concepção de eficiência econômica. O que eles perderam foi o efeito que tal projeto teria sobre as comunidades trabalhadoras e as crescentes desigualdades de riqueza que ele produziria.

P. Você adverte que parte das pessoas que votaram em Trump , assim como em outras opções populistas de direita em outras partes do mundo, o fizeram porque concordaram com certas ideias xenófobas, mas outra parte do apoio se deve a reclamações legítimas construídas ao longo de quatro anos décadas de governos neoliberais. Como estão essas reclamações agora, quando podemos enfrentar um segundo turno de Trump contra Biden?

R. Essas queixas são basicamente as mesmas de quando Trump deixou o cargo, e é por isso que a maioria dos eleitores republicanos aceita a grande mentira de que a eleição foi roubada. Grande parte dos trabalhadores vê a esquerda mais alinhada com os valores e interesses das classes profissionais bem-educadas do que com os da classe média e dos trabalhadores. Essas foram as queixas às quais Trump apelou. E persistem, infelizmente, porque o lado progressista ainda não encontrou uma resposta alternativa para essas reclamações. O populismo de direita é historicamente um sintoma do fracasso da política progressista.

P. Mas vimos políticas progressistas claras da Casa Branca nestes dois anos.

R. Você tem que dar crédito a Biden. Seu governo fez mais do que qualquer um esperava para começar a romper com a versão neoliberal da globalização. Por exemplo, não promoveu acordos de livre comércio. O primeiro candidato democrata em 36 anos sem um diploma de uma universidade da Ivy League, ele era menos apegado à fé meritocrática do que seus predecessores. E ele é um pouco mais cético em relação aos economistas que aconselharam governos democratas e republicanos anteriores.

P. Por que a direita populista continua se conectando mais com a classe trabalhadora?

R. Em parte, a resposta é que a política não trata apenas de questões redistributivas. Também está ligado ao patriotismo. As pessoas precisam de um forte senso de identidade e comunidade. E a esquerda falhou em oferecer sua própria versão positiva de patriotismo como alternativa ao hipernacionalismo estreito, fanático e xenófobo oferecido pela direita populista. Já na primeira edição do Descontentamento DemocráticoExpressei minha preocupação com o fato de as pessoas sentirem que o tecido moral da comunidade está se desfazendo ao seu redor, nas famílias e nos bairros, mas também em nível nacional. A globalização, ou pelo menos a globalização liderada pelo mercado, ignorou o significado de comunidade nacional. E isso é algo que os progressistas ainda não souberam abordar. Para a direita, para Trump, a fronteira e a imigração são uma forma de apelar a esse desejo de identidade nacional. A esquerda quer outra abordagem para a imigração. Mas precisa oferecer uma ideia alternativa do que nos mantém unidos como país, como comunidade, como nação.

P. Os defensores da globalização, você explica em seu livro, desprezavam o patriotismo como algo quase atávico. Por isso foi um patriotismo tóxico, como o de Trump ou o do Brexit, que prevaleceu. Como construir essa outra versão saudável de patriotismo que você defende?

R.Podemos começar perguntando o que devemos uns aos outros como concidadãos. E isso entra em debates como o da saúde pública. O debate sobre a saúde universal, na melhor das hipóteses, é um debate sobre obrigações mútuas entre os cidadãos. Se você reparar, a reforma da saúde de Obama foi defendida principalmente com argumentos tecnocratas: que era mais eficiente e assim por diante. Mas o sentimento subjacente de comunidade nacional ainda não foi articulado. É um debate moral e cívico, não de eficácia tecnocrática. E isso é apenas um exemplo. Também é uma questão da comunidade nacional decidir se as empresas podem se mudar para outros territórios para pagar menos impostos. Isso também pode ser enquadrado como uma questão de chauvinismo econômico. Evite alíquotas de impostos em um país transferindo as operações para outro país com alíquotas mais baixas. Isso não é apenas uma falha. É um problema de patriotismo.

P. A esquerda tem medo de falar sobre patriotismo?

R. Sim. Por causa desse medo, quase dessa alergia, o monopólio do patriotismo como argumento político foi dado à direita. Grande erro, a direita explorou muito bem.

P. Quando conversamos pela última vez, quase três anos atrás, eu esperava que a pandemia ajudasse a tornar as desigualdades visíveis. Mostrou até que ponto dependemos de trabalhadores que, na lógica meritocrática, tínhamos menosprezado. Até começamos a chamá-los de “trabalhadores essenciais”. Você viu sinais de uma mudança na forma como valorizamos a dignidade do trabalho. Tem sido assim?

R. Temo que o tempo tenha passado sem uma reflexão séria sobre os trabalhadores essenciais, sobre como alinhar seu reconhecimento e pagamento com a importância de sua contribuição.

P. Outra coisa que a pandemia mostrou é a importância do Estado e da política. Isso também foi esquecido?

R. Não creio que tenhamos esquecido a importância do Estado. As limitações fiscais características da era da austeridade em muitos países foram rejeitadas. Os governos realizaram estímulos fiscais em larga escala e itens de gastos que seriam inconcebíveis nos anos após o crash de 2008. Outra coisa é o papel da política. A era da globalização nos ensinou que não há alternativa senão a fé no mercado. Eles insistiram que a versão neoliberal da globalização é como um fenômeno climático. Não é algo sujeito ao controle humano e, portanto, não deve ser aberto ao debate democrático. Mas a crise financeira e as crescentes desigualdades foram produto de decisões políticas deliberadas que poderiam ter sido diferentes. Olhando para trás, é o espaço da política que foi eliminado.

P. Enfrentamos agora o grande desafio que, como sociedade, devemos pensar juntos: a transição verde, a luta contra a crise climática . Como fazer isso sem repetir erros, sem aumentar novamente a distância entre vencedores e perdedores?

R.A forma como lidamos com as alterações climáticas será o teste mais importante daquilo de que falamos, no âmbito de um verdadeiro debate político. Há uma tendência de encarar a mudança climática como um problema tecnocrático, de acertar o alvo com incentivos econômicos, mecanismos de mercado. Mas é mais do que um problema tecnológico e econômico. Fundamentalmente, é uma questão política. Precisamos de uma política climática de baixo para cima, não de projetos abstratos ou soluções tecnocráticas. Você precisa começar conversando com as pessoas, especialmente em comunidades onde vidas e empregos dependem de combustíveis fósseis. Isso exigirá liderança política e ativismo. A razão para a resistência a políticas que levariam a uma economia verde é que existe um profundo ceticismo por parte dos trabalhadores. Milhares de empregos foram perdidos em vastas áreas industriais em nome da globalização econômica. Foi-lhes dito: haverá perdedores, sim, mas os ganhos dos vencedores compensarão as perdas dos perdedores. Isso funcionou em teoria. Mas a compensação nunca aconteceu. Agora eles vão se perguntar se o mesmo não vai acontecer com eles. E é uma questão legítima.

P. Em uma conversa com Yuval Noah Harari, você disse que o debate sobre a mudança climática não é sobre conhecer os fatos, que não é sobre educação.

R. Costuma-se dizer que a razão da oposição à transição verde é que essas pessoas não sabem o suficiente sobre ciência. O que devemos ensinar a eles? E quando tentamos fazer isso, ficamos frustrados porque eles não sabem o suficiente para adotar nossas políticas. Mas é que não se trata de ciência e não se trata de educação. Isso não é uma palestra sobre os perigos do aquecimento global. É sobre confiança, fundamentalmente. É uma questão política e, como tal, requer um tipo genuíno de engajamento e discussão cívica de base.

P. Na Espanha, estamos em ano eleitoral, como os políticos poderiam encontrar o caminho dialético intermediário entre a tecnocracia e o grito?

R. Políticos e partidos devem ampliar os termos da conversa política para incluir questões como as que estamos discutindo. Mas não é realista esperar que eles façam isso por conta própria. Temos que entender que o tipo mais amplo de conversa pública só pode vir de dentro da sociedade civil.

P. As redes sociais são um fórum adequado para essa conversa?

R. Precisamos desafiar a forma como a mídia social funciona. Precisamos criar plataformas para conversas públicas que não aceitem simplesmente o modelo de negócios baseado em anúncios das empresas de tecnologia. Um modelo de negócios que depende da mercantilização do cuidado, de manter as pessoas por perto o maior tempo possível para que possam coletar cada vez mais dados pessoais para vender-lhes coisas que reforcem esse ciclo de consumismo, que é a antítese do tipo de conversa pública de que precisamos. É urgente cultivar a arte perdida da conversa pública democrática.

P. Se a social-democracia, com líderes como Biden ou Scholz, está encontrando um discurso econômico que olha novamente para a classe trabalhadora, onde estão as diferenças entre a centro-esquerda e a esquerda mais radical agora?

R. Acho que a relação entre os partidos de centro-esquerda e os de esquerda mais populista está agora em processo de redefinição.

P. Onde eles devem começar?

R. A combinação mais poderosa para rejuvenescer a centro-esquerda é conectar os valores ostensivamente conservadores de patriotismo e identidade compartilhada com um projeto criativo de reconfiguração da economia para torná-la passível de controle democrático, algo tradicionalmente associado à esquerda populista. Noções poderosas de comunidade, que parecem beber do pensamento conservador, e um poder econômico controlado pelos cidadãos. Conectar essas duas ideias é o projeto futuro da política progressista.

P. A guerra na Ucrânia foi deixada de fora das páginas de seu livro nesta resenha. Uma guerra na Europa hoje , como isso se encaixa no seu pensamento?

R. Acho que a guerra na Ucrânia é o exemplo mais dramático do absurdo da globalização neoliberal. Que os laços comerciais tornariam a guerra obsoleta era uma ideia central do globalismo liberal. Embora remonte a Montesquieu, que falava de doux commerce. Quanto mais as nações comercializam umas com as outras, menos provável é que lutem umas contra as outras, porque os laços comerciais lhes darão interesse na paz. Ouvimos isso repetidas vezes na década de 1990 e no início dos anos 2000 como um argumento para admitir a China na OMC, por exemplo, e certamente na Alemanha por desenvolver uma dependência energética da Rússia. Bem, é evidente que este não foi o caso. A Ucrânia tem sido um lembrete de que a política e as fronteiras nacionais não vão desaparecer. Devemos desenvolver padrões de negociação com alguma noção de quem são os parceiros confiáveis, não apenas movidos pela busca de uma suposta eficiência. Essa é outra ideia que acho que a guerra ucraniana trouxe: a ideia de que a economia não é autônoma. Não é um fato da natureza.

Pablo Guimon, o autor deste artigo, é o editor-chefe da seção Society do jornal global EL PAÍS.  Foi correspondente em Washington e Londres, lugares onde cobriu os últimos anos da presidência de Trump, assim como o referendo e o choque do Brexit. Antes disso, foi responsável pela secção de Madrid do El País Semanal, e foi chefe da secção de Cultura e do suplemento Tentaciones.Publicado originalmente em 14.05.23.