quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A rede de notícias falsas que faz manifestantes bolsonaristas desconfiarem do próprio presidente

Essas reações podem ser fruto de uma ambiguidade proposital que está embutida no discurso de Bolsonaro — caso do curto pronunciamento feito na tarde de terça no Planalto, no qual o presidente não reconhece a derrota no segundo turno para Lula, mas permite que o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, anuncie o início do processo de transição.

Protesto contra a eleição de Lula em Anápolis, Goiás, no feriado de 2 de novembro (Crédito: Ueslei Marcelino / Reuters)

Grupos bolsonaristas presentes em aplicativos de mensagem e nas redes sociais já se preparavam para estimular manifestações após a eleição porque sustentavam a falsa narrativa de que uma fraude impediria a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, diz o pesquisador Leonardo Nascimento, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

"Isso explodiu há mais de um mês. Já vinham sendo preparadas manifestações no caso de a eleição, no dizer desses grupos bolsonaristas, ser 'fraudada'. Já falavam coisas como 'o Brasil vai parar'. Há 15 dias começaram a surgir panfletos de convocação para protestos, às vezes para ocorrerem no próprio dia da eleição do segundo turno, às vezes no dia seguinte", diz.

Nascimento explica que redes atuantes no Telegram e WhatsApp fazem um trabalho "constante, diário" de envio de informações que alimentam um sentimento de prontidão e uma lógica de paranoia para se defender de uma ameaça representada pelos grupos contrários aos bolsonaristas.

'Desobstruam as rodovias': após quase 72h, Bolsonaro pede a apoiadores que desfaçam bloqueios em estradas

"Eles vivem num emaranhado de posts, vídeos e áudios de confirmação de suas crenças. Estão fortemente imbuídos de teorias da conspiração ou de lógicas operatórias. E há o aspecto de que, de 2016 para cá, o relacionamento com pessoas de visões diferentes foi diminuindo", em um reforço do conceito de "bolhas", que impedem desafios aos pensamentos e linhas de raciocínio do grupo.

O pesquisador afirma que essa lógica funciona não só para apresentar narrativas de potenciais ameaças contra eles, mas também de que há "um grande plano" preparado para o domínio bolsonarista.

"Por isso, não adianta o vice-presidente [Hamilton Mourão] anunciar que já está sendo feita uma transição, que o governo vai mudar. Porque nos grupos bolsonaristas prevalece a narrativa de que existe um plano sendo preparado para o retorno dos militares, onde todos os supostos algozes serão presos, como o ministro [do STF] Alexandre de Moraes."

Ele cita um vídeo que circula bastante desde a terça-feira (01/10), feito por um repórter da Rádio Gaúcha, em que manifestantes bolsonaristas nas imediações do Comando Militar do Sul em Porto Alegre comemoram efusivamente a falsa notícia de que Moraes havia sido preso.

Cenas semelhantes foram registradas em outras localidades, como no Rio.

"As pessoas nos grupos bolsonaristas ficam falando o tempo todo daquilo. As pessoas acreditam que aquilo se torna realidade. Para compreender o que está acontecendo nos grupos, a gente precisa tentar se deslocar do ponto de vista lógico, do que efetivamente está acontecendo, para o ponto de vista de como eles interpretam o que está acontecendo", diz.

Até mesmo mensagens vindas diretamente de Bolsonaro que contrariam expectativas dos partidários podem causar dúvida sobre a autenticidade.

No vídeo em que o presidente pede a desobstrução das rodovias postado em seu perfil oficial e verificado no Facebook uma usuária chega a duvidar que o conteúdo é genuinamente relacionado aos atuais protestos.

"É mentira isso. Vídeo antigo. Prestem atenção, [isso] foi na outra manifestação dos caminhoneiros", afirma a seguidora do presidente em uma das respostas.

Essas reações podem ser fruto de uma ambiguidade proposital que está embutida no discurso de Bolsonaro — caso do curto pronunciamento feito na tarde de terça no Planalto, no qual o presidente não reconhece a derrota no segundo turno para Lula, mas permite que o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, anuncie o início do processo de transição.

"O tempo todo Bolsonaro está administrando um espaço em que ele está dentro da ordem, em que respeita a ordem democrática e, ao mesmo tempo, dá margem para subverter essa ordem. Essa ambiguidade do discurso, de idas e vindas, de afirmações e negações é constitutiva da estrutura política do exercício do bolsonarismo", analisa Nascimento.

Manifestante segura cartaz com frase em inglês "nós somos contra o comunismo" em São Josdos Campos, interior de SP (Crédito, Roosevelt Cassio / Reuters)

Ele desenvolveu ao lado de Letícia Cesarino, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Paulo de Freitas Castro Fonseca, também da UFBA, uma análise sobre mais de 2,1 milhões de mensagens na plataforma no período próximo à realização do primeiro turno da eleição de 2022, com foco no processo de desinformação no Telegram.

Uma das conclusões foi a identificação de pautas conspiracionistas cada vez mais expressivas em torno da ideia de fraude na votação.

Narrativas que tentaram descreditar o sistema eleitoral brasileiro, com as Forças Armadas evocadas como fiscais do processo, também apareceram com destaque entre as mensagens analisadas, além de convocatórias para os atos de 7 de setembro que serviram para promover a candidatura de Bolsonaro.

Para Nascimento, não há interesse em arrefecer essa retórica presenciada nas redes de confrontos e ameaças em relação aos opostos.

"Não interessa porque se arrefecer, vira regime democrático, se arrefecer vira diálogo. E eles não querem diálogo."

Shin Suzuki, da BBC News Brasil em São Paulo, em 03.11.22, às 08:05hs /  Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63494495

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

“Somos tribais. Com aqueles de fora do grupo, podemos ser incrivelmente cruéis"

Com a era Trump ele se tornou um intelectual estrela. Americano de origem alemã, agora estuda o desafio do multiculturalismo nas democracias.

O cientista político Yascha Mounk em Washington DC em 15 de janeiro de 2019. (Foto: Stephen Voss / Redux / Contactphoto)

Yascha Mounk (Munique, 40 anos) é um americano de origem alemã que não esconde, mas cultiva, um leve sotaque alemão em seu inglês fluente, ágil e convincente. Durante a era Trump ele se tornou um intelectual estrela, procurado por todos os meios de comunicação. Seu último livro, The Great Experiment: Why Diverse Democracies Fail and How to Make Them Work(Estado e Sociedade), é a história das democracias que enfrentam o desafio de gerir uma sociedade multicultural, mas é também uma canção otimista em defesa das instituições democráticas e do Estado de Direito. Professor visitante do St. Antony's College, em Oxford, recebe o EL PAÍS no refeitório de uma instituição universitária cuja calma representa o contrário do calor e da agitação dos debates políticos em que o autor gosta de mergulhar.

PERGUNTA.  Suas ideias quase navegam contra a corrente. Ele vê as ameaças à democracia, mas acredita que a democracia é mais forte...

RESPOSTA. Um número muito importante de democracias está à beira de ser tomado pelo autoritarismo, como Hungria, Brasil ou Índia. Mesmo aquelas democracias que sempre consideramos mais estáveis ​​estão seriamente ameaçadas, como é o caso dos Estados Unidos . Mas, ao mesmo tempo, nos últimos dois anos, os governos autoritários provaram ser bastante fracos. A Rússia não é atraente hoje e enfraqueceu sua posição no mundo com o terrível e injusto ataque à Ucrânia. E a China hoje não parece ser o modelo de sucesso de alguns anos atrás.

P. _ Xi Jinping se firmou no poder por pelo menos mais cinco anos.

R.  O que temos é uma crise global de confiança que é falsa em sua origem. Porque, comparada às ditaduras, a democracia ainda é bastante atraente. Dez anos atrás, a China podia ter um sucesso econômico impressionante e havia um pouco de liberdade para seus cidadãos, um pouco de consumo de mídia estrangeira, até mesmo formas leves de crítica em espaços não dominados por partidos. Hoje é uma estrutura autoritária tornando-se totalitária , cuja reputação no exterior sofreu muito.

P.  E não vemos, no entanto, o progresso de nossas democracias.

R. _ Temos visto um tremendo progresso na posição das mulheres ou nos direitos dos homossexuais. Na verdade, assistimos a uma rápida transformação de muitas sociedades europeias, que têm uma concepção muito mais multiétnica de si mesmas. Houve avanços muito importantes para as minorias em países como os Estados Unidos. Então, para mim, o verdadeiro desafio da democracia é a diversidade étnica ou religiosa, embora eu tenha motivos para ser otimista quanto a esse desafio.

P.  É o tema central do seu último livro. O desafio do multiculturalismo.

R. _ Vivemos uma situação sem precedentes em muitos países. Espanha, Alemanha - onde cresci - Suíça, Itália..., todas eram razoavelmente homogêneas. Em todos eles compartilhavam uma origem étnica, embora houvesse diferenças linguísticas, como na Espanha. O conceito de nação era o de homogeneidade étnica e cultural .

P.  E agora muitos cidadãos não digerem a mudança diante de seus olhos.

R. _ O que todos esses países estão tentando fazer agora é construir uma nova sociedade que seja muito mais diversificada étnica e religiosamente e trate todos os seus cidadãos igualmente. Não há precedente de sucesso em tal tentativa em toda a história da humanidade. É por isso que falo da “grande experiência”.

P.  Você aponta três grandes obstáculos para tentar tirá-lo do papel.

R. _ A primeira é que os seres humanos são tribais. Tendemos a tratar os membros do nosso grupo com muita generosidade e altruísmo, até mesmo com bravura. Mas não nos sentimos obrigados a agir da mesma forma com quem está fora do grupo. Com eles podemos ser incrivelmente cruéis. A segunda é que os grupos podem traçar barreiras entre si com base em critérios de etnia, religião, idioma ou nacionalidade, e isso levou às guerras mais destrutivas, aos piores genocídios e limpezas étnicas de que há memória.

P. _ E a terceira, a mais marcante, é que a democracia pode não ser a melhor ferramenta para enfrentar esses desafios.

R.  Exatamente. Como defensores da democracia, tendemos a pensar que todos esses problemas podem ser resolvidos por meio de mecanismos eleitorais, mas a única coisa que conseguimos é exacerbá-los. Em uma monarquia absoluta, nem você nem eu teríamos o menor poder. Devemos confiar no sistema para encontrar uma solução. E se você é um imigrante e tem mais filhos do que eu, e eu sinto que você está me roubando, não posso fazer nada. Mas em uma democracia construímos maiorias. Se eu era maioria e agora vejo que você faz parte de um setor em crescimento, posso ter medo do futuro e tentar concentrar o poder antes de perdê-lo.

O que se tornou a social-democracia?

P.  Nenhuma fórmula de integração parece ter funcionado, nem a que nos torna homogêneos —os Estados Unidos— nem a que separa os grupos quase em guetos —o Reino Unido—.

Resposta  : Devemos nos perguntar que tipo de metáfora queremos adotar quando pensamos em integração. A imagem tradicional dos EUA e de outros países tem sido a do caldeirão , o caldeirão no qual tudo se mistura . Diferentes culturas são integradas em uma cultura homogênea. Outros sociólogos abraçaram a ideia da saladeira .(a saladeira), também chamado de mosaico. Comunidades que convivem umas com as outras, sem interagir. Ambos os modelos, na minha opinião, estão errados. Proponho um terceiro, que defino como o parque público. Um lugar onde podemos conhecer diferentes cidadãos e conversar. Uma democracia liberal nos permite essas conexões enquanto socializamos na maioria das vezes com nossa comunidade religiosa ou nossas origens nacionais.

P.  Você propõe uma cola interessante, uma ideia de patriotismo atraente e eficaz.

R.  Eu sou um judeu alemão. Nem nacionalismo nem patriotismo vêm naturalmente para mim. Mas nos últimos 20 anos compreendi o poder que os símbolos e a retórica nacionais têm. É uma ilusão pensar que estávamos em uma era pós-nacionalista. Agora acredito que o patriotismo é um animal semi-domesticado, muito perigoso nas mãos de alguns.

P.  E nem o étnico nem o que se ajusta ao mínimo denominador comum de um texto constitucional é válido.

R.  Tradicionalmente, existem duas abordagens. Um nacionalismo étnico, que justificou a agressão contra o mundo exterior, e que rejeito. E depois o chamado patriotismo constitucional ou cidadão. Estou mais inclinado para este segundo, que geralmente se concentra nas leis e direitos que nos unem. Mas acredito que não basta manter a solidariedade necessária para sustentar democracias diversas. É por isso que devemos aspirar a um “patriotismo cultural”, que se refere a cidades, paisagens, paisagens, cheiros, traços culturais, até pessoas famosas ou estrelas do YouTube. Uma celebração do presente, dinâmica, mutável, e que já contém as influências de imigrantes e grupos diversos. Um patriotismo cultural diário que nos faz perder nossos medos.

Rafael de Miguel, o autor desta reportagem, é correspondente do EL PAÍS para o Reino Unido e Irlanda. Ele foi o primeiro correspondente da CNN+ nos EUA, onde cobriu o 11 de setembro. Dirigiu os Serviços Informativos do SER, foi Editor-Chefe da Espanha e Diretor Adjunto do EL PAÍS. Graduado em Direito e Mestre em Jornalismo pela Escola de EL PAÍS/UNAM. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 26.10.22, às 00h:00

"Brasil teve que passar por Bolsonaro para se olhar no espelho"

Geovani Martins, jovem escritor carioca, uma das revelações da nova literatura brasileira, confia na vitória de Lula nas eleições de domingo


O escritor Geovani Martins, na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. (Foto: Leonardo Carrato)

Para os moradores das favelas do Rio de Janeiro, a Via Appia não é o caminho para o coração de Roma, mas uma das principais portas de entrada para a Rocinha, uma das maiores favelas do Brasil. Nessa caótica rua comercial, o jovem escritor Geovani Martins (Rio, 31 anos), uma das descobertas mais celebradas da literatura brasileira contemporânea, caminha desviando de mototáxis como se nada tivesse acontecido e cumprimenta alguns vizinhos. Martins já passou por várias favelas, mas estava morando na Rocinha no momento em que o projeto policial 'pacificador' chegou com a promessa de acabar com o tráfico de drogas, ou pelo menos varrê-lo para debaixo do tapete a tempo da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas. 2016. .

Martins relata esse fracasso em seu novo romance, Via Apia , por meio de cinco jovens dessa favela. O livro dá algumas pistas de por que há gerações inteiras de favelados traumatizados pela violência policial. "Minha literatura acaba sendo uma tentativa de recontar essas histórias a partir de pontos de vista que foram ignorados", diz. Seu primeiro livro, O Sol na Cabeça (Alfaguara, 2019), impressionou Chico Buarque e foi devorado por Luiz Inácio Lula da Silva na prisão. O roteirista prepara agora uma adaptação para a televisão, mas confessa que nos últimos dias está difícil para ele se concentrar e pensar em outra coisa além das eleições. Ele sonha em derrotar Jair Bolsonaro, mas não é difícil para ele criticar uma certa esquerda elitista que, em sua opinião, tem uma ideia míope do Brasil.

Perguntar. A polícia deteve no domingo um político aliado de Bolsonaro, Roberto Jefferson , que disparou tiros e jogou granadas em policiais. A polícia negociou com ele a rendição. O que teria acontecido se ele fosse um homem negro de uma favela?

Resposta. Não teria sido necessário alguém atirar antes. Vemos casos todos os dias. A sociedade brasileira deixa bem claro quais corpos podem ser mortos. No Brasil, o filho de um juiz é preso com fuzil e 150 quilos de maconha e está solto, não está morto. Fora da favela, a droga é totalmente legalizada.

P. Como mudar a imagem que a favela tem da polícia?

R. O primeiro passo é acabar com a Polícia Militar, porque é uma força que está preparada para matar essas pessoas, ou para extorquir dinheiro. A polícia rouba com total descaramento, há dois meses eles invadiram a casa da minha tia de 60 anos, e roubaram pertences pessoais, dela e dos meus primos. Ela é uma policial que quando não te mata te rouba, te extorque. É uma força policial completamente corrupta que desumaniza essas pessoas. Precisamos que a sociedade civil e o Estado vejam esses jovens das favelas com o poder que eles têm, não apenas com essa ideia de morte. Para mudar essa imagem, é preciso mudar a visão do Estado sobre os territórios e descriminalizar as drogas.

P. Você fala em acabar com a Polícia Militar e legalizar as drogas, mas é utópico no Brasil. Nem está na agenda da esquerda.

R. Não é porque a esquerda não está falando com as pessoas. A maioria dos problemas que temos com o genocídio negro no Rio e no Brasil vem da guerra às drogas.

P. Fala-se muito de polarização nestas eleições...

R. O Brasil está polarizado há muito tempo. Já era indígena contra colonizadores, rico contra pobre, e assim por diante o tempo todo. Não começou agora, o país não estragou com Bolsonaro. Piorou muito, isso é indiscutível. Mas a merda que é o Brasil, o pesadelo que é, é uma coisa muito antiga. Simas (Luiz Antonio Simas, historiador) diz uma coisa com a qual concordo plenamente: o Brasil não tem que começar a funcionar corretamente, tem que começar a falhar. O que vemos é o projeto colonizador, o Brasil tem mais de 500 anos de sucesso. Você tem que fazê-lo falhar e se tornar outra coisa.

P. O bolsonarismo deu voz a um sentimento que sempre esteve presente?

R.Claro, o Brasil sempre foi um país extremamente racista. Antes de Bolsonaro, já era o país que matava um jovem negro a cada 23 minutos, o que mais matava LGTBIs no mundo. O que Bolsonaro faz é dar cara a isso, ele se torna representante de algumas pessoas que se sentem cada vez mais à vontade em mostrar quem são. Acho que a gente tinha que passar por esse momento, confrontar Bolsonaro, porque isso também é olhar no espelho. Por muitos anos foi forçada a ideia de democracia racial, de que não havia racismo porque era um país muito mestiço. Muitas ações ultraviolentas foram encobertas com isso. Hoje, após a partida dessas figuras do submundo, podemos vê-las diretamente e saber quem são nossos inimigos. O Brasil é muito maior que isso, mas também conheço o tamanho e a força dessas pessoas.

P. A esquerda no Brasil é muito dependente de uma pessoa?

R. É que Lula é uma figura muito maior que o PT e a esquerda. No primeiro turno, aqui estava cheio de mulheres de 90 anos com adesivos de Lula; senhoras que não entendem de partidos, nem de direita-esquerda, mas sabem o que Lula quer dizer. Sua figura tem esse poder. Mas concordo que precisamos de novos líderes. Espero que, durante o tempo em que esteve preso injustamente, tenha chegado a essa conclusão.

P. Se você ganhar, haverá um governo diverso, um gabinete com a cara do Brasil?

R. Haverá muita negociação, mas haverá números mais próximos da face do Brasil. Lula disse no último debate que vai criar um ministério para os povos indígenas. Não será um governo ideal, sabemos. Mas é a nossa melhor opção neste momento, a única que temos para derrotar a maquinaria absurda de Bolsonaro.

P. Muita gente defende que a democracia corre perigo se Bolsonaro vencer.

R. Não há democracia no Brasil, você tem que construir essa ideia. É simplesmente uma ilusão, uma coisa que vive nas casas de pouquíssimas pessoas. Minha casa aqui na Rocinha foi invadida várias vezes pela polícia. Se vivêssemos em um país democrático isso não aconteceria. Temos que parar com essa ideia de ameaça à democracia, que é um discurso completamente elitista. Temos que começar a falar sobre a construção de uma democracia. Nós nunca tivemos.

Joan Royo Gual, repórter, do Rio de Janeiro - RJ para o EL PAÍS, em 26.10.22, às 00h:10

Como Bolsonaro turbinou o uso da máquina pública na eleição

Entre 1º e 2º turnos, o governo incluiu milhares de famílias no Auxílio Brasil e no auxílio gás, liberou empréstimo consignado para beneficiários do programa e criou financiamento com FGTS futuro, entre outras medidas.

Visando ampliar sua chance de reeleição, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vem ao longo do ano abrindo os cofres públicos para criar e ampliar uma série de programas sociais que beneficiam as famílias mais pobres e categorias que integram sua base de apoiadores, como taxistas e caminhoneiros.

O carro-chefe foi a aprovação de uma emenda à Constituição em julho, apelidada "Kamikaze", que decretou o estado de emergência no país para autorizar a criação de novos benefícios em ano eleitoral, pagos à margem do teto de gastos.

Na esteira, o governo aumentou o valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, e do auxílio gás de R$ 50 para R$ 110, e criou um auxílio mensal de R$ 1.000 para taxistas e caminhoneiros, entre outras medidas.

A gestão Bolsonaro também já havia zerado a alíquota de tributos federais e limitado a alíquota do ICMS, um imposto estadual, cobrado sobre os combustíveis, o que levou à redução do preço do diesel, da gasolina e do gás, com efeito na redução da inflação.

O uso da máquina pública para a criação de novos benefícios diretos e indiretos seguiu após a realização do primeiro turno, em 2 de outubro, quando Bolsonaro recebeu 43,2% dos votos válidos, ficando atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que teve 48,4%.

A agência Reuters calcula que os benefícios criados e prometidos por Bolsonaro nos últimos meses somam R$ 273 bilhões, com impacto tanto em 2022 como em 2023. Outra conta, apresentada pelo economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, aponta que o custo anualizado das medidas de elevação de despesas e redução de receitas tomadas desde o fim de 2021 chega a cerca de R$ 400 bilhões, ou 4% do PIB (Produto Interno Bruto).

As medidas anunciadas pelo governo neste ano não foram alvo de questionamento da Procuradoria-Geral Eleitoral por possível abuso de poder político e econômico. O órgão é chefiado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, considerado pela oposição um aliado do presidente.

Confira as medidas anunciadas pelo governo após o primeiro turno:

Antecipação do pagamento do Auxílio Brasil e do auxílio gás

Em 3 de outubro, o governo anunciou que o pagamento do Auxílio Brasil e do auxílio gás do mês de outubro seria feito entre os dias 11 e 25, sete dias antes do que no calendário original, que ia de 18 a 31 de outubro. A antecipação do calendário não vale para os meses seguintes.

Cerca de 21,1 milhões de famílias recebem o Auxílio Brasil de R$ 600, e 5,9 milhões são beneficiárias do auxílio gás, pago a cada dois meses no valor de R$ 112.

Inclusão de mais famílias no Auxílio Brasil e no auxílio gás

Em 4 de outubro, o governo anunciou a inclusão de mais 500 mil famílias no Auxílio Brasil já neste mês. Comparado a julho, quando 18,1 milhões de famílias recebiam o benefício, a alta foi de 16,5% no total de famílias atendidas pelo programa.

No mesmo dia, o governo anunciou também a inclusão de mais 200 mil famílias no auxílio gás, elevando o número de famílias beneficiadas de 5,7 milhões para 5,9 milhões no programa.

Promessa de 13º do Auxílio Brasil

Também em 4 de outubro, Bolsonaro prometeu que, se reeleito, pagará uma 13ª parcela do Auxílio Brasil para mulheres chefes de família a partir de 2023, o que beneficiaria 17 milhões de mulheres, a um custo de quase R$ 10 bilhões.

O presidente não especificou qual seria a fonte dos recursos para esse benefício adicional.

Refinanciamento de dívidas

Em 6 de outubro, Bolsonaro anunciou que a Caixa lançaria um programa de renegociação de dívidas de empresas e pessoas físicas. Trata-se da reciclagem de um programa já existente, chamado Você no Azul, que ocorre anualmente desde 2019.

O presidente disse que o programa poderia beneficiar até 4 milhões de cidadãos e 400 mil empresas com dívidas com a Caixa. A iniciativa permite a quitação de dívidas com atraso acima de 360 dias, com descontos de 40% a 90% do valor devido.

Antecipação do auxílio para taxistas e caminhoneiros

Em 7 de outubro, o governo anunciou que pagará uma parcela extra do auxílio taxista no fim do ano, como se fosse um décimo terceiro salário, mas em valor ainda não definido. A justificativa foi de que menos profissionais se cadastraram do que o previsto, e a sobra dos recursos seria utilizada no mesmo programa.

A data do pagamento do auxílio taxista e do auxílio caminhoneiro em outubro também foi adiantada, do dia 22 para 18. As parcelas são de R$ 1.000 mensais, com o objetivo de compensar a alta dos combustíveis.

Início do consignado do Auxílio Brasil

A presidente da Caixa, Daniella Marques, anunciou em 4 de outubro que o banco começaria a oferecer empréstimos na modalidade "consignado" para os beneficiários do Auxílio Brasil e do Benefício de Prestação Continuada (BPC), com juros de 3,45%, abaixo do teto de 3,5% estabelecido pelo governo. Os empréstimos começaram a ser liberados em 11 de outubro.

O valor máximo da parcela a ser descontada para o pagamento do empréstimo é de 40% do benefício, ou R$ 160 – o valor-base é do Auxílio Brasil é de R$ 400. A juros de 3,5%, o valor máximo do empréstimo é de R$ 2.569,34, pagos em 24 vezes.

Nesta segunda-feira, o ministro Aroldo Cedraz, do Tribunal de Contas da União (TCU), recomendou a suspensão temporária do empréstimo consignado do Auxílio Brasil, até que o órgão analisasse o possível uso da iniciativa para "interferir politicamente nas eleições presidenciais". Nesta terça-feira, a Caixa anunciou a suspensão da concessão de novos empréstimos nessa modalidade por 24 horas, atendendo à recomendação.

Especialistas em políticas sociais criticaram a possibilidade de obter empréstimos consignados com base no Auxílio Brasil, pois as parcelas comprometeriam os recursos dessas famílias mais pobres para garantir sua sobrevivência nos meses seguintes.

Mais prazo para atualizar dados no Cadastro Único

Em 13 de outubro, o governou prorrogou por 30 dias o prazo para que famílias atendidas por benefícios sociais atualizassem seus dados no Cadastro Único, medida necessária para evitar a suspensão ou cancelamento do recebimento dos programas.

Mais de 1,4 milhão de famílias haviam sido convocadas para atualizar seu cadastro até 14 de outubro, dos quais 757 mil são beneficiárias do Auxílio Brasil. Muitas delas estavam enfrentando filas nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) ou postos de atendimento dos municípios, que realizam esse cadastro.

Via de regra, as famílias devem atualizar os dados a cada dois anos, ou quando houver alterações.

Financiamento imobiliário com FGTS futuro

Em 18 de outubro, Conselho Curador do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) aprovou o uso de recursos futuros do FGTS para a garantia de financiamentos imobiliários, atendendo a uma sugestão do Ministério do Desenvolvimento Regional.

A iniciativa valerá inicialmente para famílias com renda bruta de até R$ 2.400, e permitirá que financiem imóveis com valor acima do seu limite de endividamento atual.

Nessa modalidade, parcelas futuras depositadas no FGTS do tomador do empréstimo serão automaticamente reservadas para pagar o financiamento. Se o empregado for demitido, porém, ele não poderá sacar o saldo já comprometido.

Essa medida tem potencial para ampliar o acesso à compra de imóveis por meio do Programa Casa Verde Amarela, criado no governo Bolsonaro.

Bruno Lupion, o autor deste artigo, é Repórter. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 26.10.22

O Barão de Itararé, as eleições e as consequências econômicas que vêm depois

Na reta final desta campanha eleitoral, parece que os candidatos estão muito mais preocupados com a pauta de costumes do que com a economia. 

Discute-se a bobagem do banheiro unissex, como se discutiu em 2018 a mamadeira de piroca. Nessa pauta, a única notícia que merece atenção é a acusação de assédio do presidente Bolsonaro às meninas venezuelanas. 

Contudo, não se discute o futuro do país.


Barão de Itararé. sempre atual: "as consequencias vem depois".

Muitos fatos apontam para nuvens no horizonte a curto prazo — isto é, primeiro trimestre de 2023. Segundo o jornal Valor Econômico da última sexta feira (21/10/22), a fabricante das conhecidas marcas Cônsul e Brastemp teve redução de lucro em 70%, fruto do cenário macroeconômico adverso — pelo menos ainda teve lucro... A expectativa de saldo positivo nas contas públicas (superavit primário) caiu em R$ 20 bilhões, em razão da queda na estimativa de arrecadação, conforme projeção da  Instituição Fiscal Independente (IFI). O PIB caiu 1,13% em agosto, segundo o Banco Central.

Em um cenário tão devastador, constata-se que o presidente Bolsonaro abriu os cofres públicos na campanha por sua reeleição. O Valor Econômico aponta que foram aprovadas despesas, todas com prazo de vencimento em 31 de dezembro deste ano: (1) com o Auxílio Brasil: R$ 26 bilhões; (2) vale-gás ampliado: R$ 1 bilhão; (3) auxílio a caminhoneiros: R$ 5,4 bilhões; (4) auxílio a taxistas: R$ 2 bilhões; e (5) transporte a idosos: R$ 2 bilhões.

Foram também aprovadas renúncias fiscais, representadas pelo corte de Pis/Cofins e Cide sobre combustíveis até final do ano: R$ 31,5 bilhões.

Total do pacote de bondades eleitorais relacionadas pelo Valor Econômico: R$ 68 bilhões. Só no grupo do Auxílio Brasil constam 21 milhões de pessoas, sendo que, na prática, o pagamento está se tornando per capita e não por família — o número de famílias unipessoais foi fortemente ampliado desde o início do pagamento desse benefício, o que causa estranheza.

Há também, no grupo de renúncias fiscais, a possibilidade de as pequenas e médias empresas renegociarem parte de suas dívidas tributárias, o que importa em mais R$ 20 bilhões.

De onde vem esse dinheiro? Do cancelamento de programas em prol da educação, saúde, ciência e tecnologia (sobre o assunto, confira as reportagens de Uol, Veja, Folha de S.Paulo e ConJur), para usar na reeleição, sem efetiva transparência. Resultado: população empobrecida e a economia despencando.

Mas não é só. Existe outro grupo nesse pacote de bondades eleitorais, que visa a apagar a pandêmica atuação governamental durante a pandemia, que são os empréstimos, que devem ser quitados futuramente: (1) foram disponibilizados R$ 87 bilhões em crédito para micro e pequenas empresas; (2) os trabalhadores puderam sacar R$ 30 bilhões que estavam depositados no FGTS, reduzindo fortemente seu saldo naquele fundo e comprometendo o equilíbrio do sistema a médio prazo; e (3) ainda sobre o FGTS, foi permitido o uso de parcelas a receber para obter o financiamento da casa própria — e se o indivíduo ficar desempregado, possibilidade gigantesca nos dias atuais, sua dívida só aumentará, e ainda perderá o imóvel. Além disso, (4) quem recebe o Auxílio Brasil, hoje em R$ 600 por decisão do Congresso, poderá obter empréstimo consignado usando o futuro recebimento desse auxílio (que vence em dezembro de 2022), cujas operações, só na semana passada, já chegaram a R$ 1,8 bilhão. Isso é dinheiro injetado na veia desse grupo de pessoas, antecipando benefícios que deveriam ser pagos de forma mensal, visando garantir seu sustento. Alguém tem dúvida de que dinheiro antecipado, sob a forma de empréstimo, vai evaporar? Já dizia uma velha música do Paulinho da Viola, dinheiro na mão é vendaval....

Se você acompanhou até aqui, saiba que ainda tem mais, pois os empréstimos anteriormente concedidos foram perdoados, tendo sido (1) concedido perdão de até 99% das dívidas junto ao Fies (Lei 14.375/22) e (2) também concedido perdão de 90% das dívidas para os inadimplentes com a Caixa Econômica Federal, após o afastamento do presidente da Caixa por assédio sexual.

Tudo isso acrescido do famigerado Orçamento Secreto, que a revista Piauí resumiu em um vídeo com enorme poder de síntese, que comprova a vinculação do presidente Bolsonaro em sua gestão e sua importância eleitoral. Valor do orçamento secreto para esse ano: R$ 19 bilhões.

Nem vou tratar da camisa de força que o governo federal impôs aos estados e, por tabela, aos municípios, com o teto do ICMS, o que os impactou em incontáveis bilhões, comprometendo os serviços públicos que estão a seu encargo, como saúde, educação e segurança pública. Nesse ponto, o presidente Bolsonaro fez uma cortesia com o chapéu alheio, pois apenas garroteou de imediato o ICMS dos estados, pegando carona em uma decisão do STF (Tema 745, Repercussão Geral), que estabelecia sua redução apenas em 2024 — mas, até lá, as eleições teriam passado... O irônico é que o slogan desse governo é mais Brasil e menos Brasília — lembram?

Aliás, o capítulo sobre redução do preço dos combustíveis merece uma análise específica, pois houve redução dos tributos (os federais, até final do ano; e o estadual, de forma perene), mas o preço dos bens e serviços permanece igual ou aumentando (o frete ficou mais barato? Ou o ônibus? O táxi? O Uber? O supermercado?). Além disso, a Petrobras continua gerando lucros, o que demonstra que o problema não foi enfrentado, mas driblado, pois o preço do barril aumenta no mercado internacional, entretanto os preços permanecem os mesmos — até passar a eleição.

Muitas dessas medidas são importantes, mas porque estão sendo realizadas apenas agora, às vésperas das eleições? O jornal Folha de S.Paulo elaborou um infográfico que indica as datas em que várias dessas medidas foram aprovadas, o que demonstra a trilha em busca da reeleição, para um candidato que, em 2018, prometia não se candidatar à reeleição — o que foi esquecido.

A lista de irresponsabilidades fiscais poderia ser ampliada, mas paro por aqui e retorno ao início.

O que todos esses fatos econômicos criaram na economia? A curto prazo (até o final do ano), tudo aponta para um voo de galinha — como você sabe, galinhas não voam longe, quando muito dão uns saltos esvoaçantes e logo retornam ao solo. Essas medidas econômicas podem até dar a impressão de que vamos decolar como uma águia, mas é falso. Quais obras estruturantes estão sendo realizadas com essa dinheirama toda? Nenhuma.

De fato, como dizia o refinado humorista Barão de Itararé, as consequências vêm depois...

E o depois implica em depois das eleições, que ocorrerão no próximo domingo, quando todo o quadro acima começará a ser desmontado e a realidade econômica que surgirá não será nada boa.

Sigamos o dinheiro e constataremos que, qualquer que seja o vencedor, está ocorrendo o abuso de poder econômico — com dinheiro público, representado pelos nossos impostos — ou você acha que todos esses bilhões surgiram em árvores? O Ministério Público Eleitoral está olhando muito mais para a pauta de costumes do que para a rota do dinheiro, rumo às urnas. Não se deu conta que a pauta de costumes é apenas uma cortina de fumaça para esconder o uso abusivo do dinheiro público em busca da reeleição.

Parodiando a frase de James Carville para Bill Clinton em 1992: É o dinheiro, estúpido...

Fernando Facury Scaff , o autor deste artigo, é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados. Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 25.10.22, às 8h00

'Pauta moral é o voto de cabresto religioso', diz diretor de política da CNBB

A religião tornou-se um dos pontos centrais do debate político nacional no segundo turno das eleições brasileiras, com grande polêmica em torno de pautas sobre moralidade.


(Crédito da foto: Getty Images)

O padre Paulo Adolfo Simões acompanha atentamente o fenômeno. Diretor do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (Cefep), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ele afirma que o uso político das pautas religiosas se tornou uma espécie de "voto de cabresto religioso" — em referência à prática de abuso de poder econômico de agentes (como coronéis ou fazendeiros) para obrigar eleitores a votarem nos seus candidatos.

No caso da religião, essa coersão se daria por meio de líderes religiosos, que utilizam o discurso da moralidade para influenciar o voto de seus seguidores.

"Surge esse novo perfil de religiosos, que foi construído também com algumas intenções. Eles trazem para o debate a pauta moral, que é para capturar os votos desses rebanhos. É o voto de cabresto religioso. Os fiéis de determinada igreja (...) vão todos para aquele candidato", afirma.

'Perseguição contra cristãos já começou no Brasil. Só que dentro da igreja'

Pastores fazem pressão por voto e ameaçam fiéis com punição divina e medidas disciplinares

De seu escritório em Brasília, Simões atendeu à reportagem da BBC News Brasil nesta terça-feira (18/10), em uma conversa de quase duas horas por videoconferência onde fez críticas ao presidente Jair Bolsonaro (PL), que disputa a reeleição contra Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"Ele se diz católico, mas é tudo ao mesmo tempo. A pauta dele não é dos católicos, não e dos evangélicos. A pauta dele é dele, é da extrema-direita. E onde dá voto, ele vai", comenta Simões, que disse apoiar Lula, por ele apresentar "uma proposta que tem mais a ver com o evangelho".

"Ele se diz católico, mas é tudo ao mesmo tempo", diz padre Paulo Adolfo Simões sobre Bolsonaro (Getty Images)

O padre comenta também diferentes episódios de acirramento dos ânimos por conta de discussões relogiosas — como a visita de Bolsonaro à Aparecida no dia 12; um padre que teve a missa interrompida no Paraná; e o assédio virtual ao cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, por conta de suas vestes vermelhas, cores litúrgicas correspondentes ao seu posto.

"É muito fácil chamar todo mundo de comunista. Sobrou até para o cardeal dom Odilo, que, aliás, se defendeu muito bem. Achei a fala dele muito boa, alertando para o crescimento do nazifascismo no Brasil", afirma o diretor do Cefep.

O padre lembra que a CNBB, que acaba de completar 70 anos de história, nunca se furtou a posicionar-se politicamente. O organismo foi ativo na oposição a ditadura militar que comandou o país de 1964 a 1985, defendeu o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992, e tem publicado diversos posicionamentos contra atos do governo Bolsonaro, especialmente quando afetam políticas públicas de amparo social ou de proteção a minorias.

Além disso, anualmente, a instituição promove a Campanha da Fraternidade, que de forma recorrente debate temas sociais e políticos.

Padre Paulo Adolfo Simões é diretor desde março de 2019 do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (Cefep)

A seguir, os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Muitos católicos, de certa forma para se proteger, estão optando por não falar em política, não se manifestar politicamente. Como é ser político dentro da Igreja?

Padre Paulo Adolfo Simões - Não tem nada mais político do que se dizer apolítico. Quem fica em cima do muro toma uma posição. Construímos um projeto [de conscientização] com foco nas eleições, mas é mais amplo: o projeto Encantar a Política. O ponto de partida é exatamente isso: existe uma noção de que política é só militância partidária, eleitoral. E outra ideia de que política é coisa muito suja, que não dialoga com religião.

Qual a percepção que a gente tem? Que as duas ideias não são espontâneas, são uma construção de quem está no poder. Sempre para que o povo não participe das decisões que afetam sua vida, é como se deixássemos nas mãos da mesma elite que vem desde o Brasil colonial definindo os destinos do país ou, em outra leitura, uma certa elite de iluminados que goste mais de política. Entendemos que a militância partidária e, sobretudo, eleitoral, é fundamental.

É importante o cristão e a cristã que se sente chamado assumir isso com todo o ônus que isso traz. Mas não é a única forma de fazer política. Você faz política de muitas formas, como nos sindicatos, nas associações, nos conselhos de direitos e até no ato de ir à igreja, de não ir, de participar de um evento social, de pronunciar-se ou se calar diante de alguma questão. São atos políticos.

A grande pergunta que a gente tem de fazer é a seguinte: minha militância política é em favor de quem? Aí é a pergunta de Paulo Freire [educador brasileiro que viveu entre 1921 e 1997]: é a favor dos opressores ou dos oprimidos? Estou a favor da maioria empobrecida ou a favor de manter o status quo? E às vezes isso se mistura um pouco. Na prática, de repente, você está defendendo a causa dos pobres e mantendo um grupo no poder. Ou, de repente, você está ajudando a manter um grupo no poder e, de alguma forma, também beneficiando os pobres. As coisas são muito complexas, mas o importante é isso. Não dá para separar fé de política.

O Frei Betto [frade dominicano e escritor] tem uma frase muito interessante. Ele fala que nós somos seguidores de um preso político, que é Jesus. Jesus Morreu por uma condenação política, e não religiosa. Jesus não morreu atropelado por um camelo nas ruas de Jerusalém, nem de gripe na cama. Ele morreu por uma condenação política. Ele não morreu condenado religiosamente, morreu por uma questão política. Isso não nos permite sermos omissos. Podemos até errar nas opções, mas precisamos fazê-las.

"Tanto a Igreja Católica quanto os campos progressistas, acho que ainda não conseguimos falar com o povão de forma direta, sobretudo usando as mídias sociais. E a extrema-direita faz isso muito bem", diz Simões (Getty Images)

BBC News Brasil - Por falar em opções, como o senhor vê a polarização atual da política brasileira?

Simões - A gente tem falado que a polarização em si não é tão ruim, pois através de dois polos você pode fazer uma síntese. E sempre tivemos no Brasil uma polarização.

O problema é essa polarização violenta, que faz com que alguns até deixem de se posicionar por medo de alguma reação, risco até de violência física ou de contaminar o ambiente familiar, de trabalho. Essa é uma questão muito séria. A percepção internacional é que essa polarização é uma forma da extrema-direita dar um cala-boca em quem pensa diferente, criando justamente isso de que as pessoas, em nome da boa convivência, evitem falar em política, evitem se posicionar.

No Brasil, eu percebo que, politicamente, não temos uma polarização. Temos uma extrema-direita, violenta e tal, mas não temos uma extrema-esquerda, ao menos não uma extrema-esquerda que seja representativa. Não temos ninguém defendendo a invasão de terras, ninguém defendendo a estatização de bancos, nada disso. Temos um campo representado pelo candidato Lula [Luiz Inácio Lula da Silva], pelo PT, que congrega outros partidos e inclui hoje muitos que defendem políticas liberais, que são mais de centro. São políticas de centro. Não temos uma extrema-esquerda militante, então a polarização é complicada de ser analisada.

Percebo que é mais uma tentativa de inviabilizar o discurso político e propiciar uma ascensão da extrema-direita, que é, inclusive como [o cardeal arcebispo de São Paulo] Odilo Scherer alerta, o surgimento, o crescimento do nazifascismo no Brasil. Uma coisa muito séria, muito grave.

Esquerda precisa focar em emprego contra 'identitarismo de maioria' de Bolsonaro, diz pastor

BBC News Brasil - É esta gravidade que fez com que houvesse união em torno do Lula, em sua opinião?

Simões - O [ex-presidente] Fernando Henrique ao lado de Lula é muito simbólico. Até o [fundador do partido novo, João] Amoêdo, quando manifesta o voto em Lula. A questão que une todo esse grupo é a defesa da democracia, que é um bem maior, que está acima das ideologias e do modelo econômico. Porque num sistema democrático você pode discutir o modelo de país.

Se não tem o sistema democrático, não sabemos se vai poder discutir alguma coisa. Esta é a grande questão. […] O crescimento desta extrema-direita, inclusive católica e religiosa, indica que o brasileiro, em geral, é conservador. E até os governos populares, com alguns avanços, acabaram ferindo o pensamento dessas pessoas que agora querem se manifestar. […] O momento é importante par a gente enfrentar e mostrar para essa extrema-direita, sobretudo cristãos católicos que estão se posicionando nesse espectro, que há outro pensamento, outra possibilidade. Que não podemos cair no extremismo. E as pessoas precisam entender o que é fascismo.

BBC News Brasil - Mas esse discurso chega à população?

Simões - Não sei muito se esse discurso de democracia e fascismo interessa à população em geral, que quer ter comida na mesa. O pessoal está preocupado se tem alguma coisa na geladeira, se sobra um dinheirinho no fim de semana, se vai dar para tirar férias. Se isso vem da democracia ou de uma ditadura, para o povo, pouco importa. Aí vem um fator interessante, preocupação da Cefep: a falta de discussão política que nós temos.

Precisamos trabalhar mais, as pessoas não só não querem atuar politicamente como não querem discutir política, fogem disso. Precisamos formar o nosso povo, trabalhar para que as pessoas percebam que, num sistema democrático, com um governo mais progressista, a comida chega na mesa para todos e para todas. E os direitos estão garantidos para as minorias. No outro sistema a gente não sabe se um dia vai chegar [a comida]. Mas tanto a Igreja Católica quanto os campos progressistas, acho que ainda não conseguimos falar com o povão de forma direta, sobretudo usando as mídias sociais. E a extrema-direita faz isso muito bem.

Código de Direito Canônico proíbe padres e bispos de manifestarem apoio a candidatos (Getty Images)

BBC News Brasil - Grupos de WhatsApp de católicos, mesmo aqueles criados com o objetivo de promover rezas comunitárias e confraternizações entre pessoas da mesma paróquia, estão dominados por posts em defesa de Bolsonaro e com críticas a um suposto comunismo. Há até vídeos, que viralizam, de padres fazendo novenas e pedindo orações a favor da reeleição do atual presidente, citando-o nominalmente. Há alguma orientação da Igreja para que padres não se posicionem dessa forma?

Simões - Sim. Tem inclusive uma posição do próprio [Código de] Direito Canônico que diz que padres e bispos não devem manifestar apoio a candidatos. O papel da Igreja é orientar a consciência do cristão, dar informação para que as pessoas possam tomar a sua posição. O que temos no Brasil de hoje é que enquanto sempre se tomou muito cuidado com quem se posiciona a favor de alguma proposta política de esquerda, não se toma cuidado com quem se posiciona a favor da direita. Não se tem nenhum cuidado com quem se posiciona a favor do candidato Bolsonaro.

Aí ficamos numa situação complicada. Parece que somos muito ingênuos ainda com relação a isso, embora tenha essa orientação, a extrema-direita já trouxe essa questão para o centro do debate. E, nesse momento eleitoral, seria muito ingenuidade não nos posicionarmos. Isto [este silêncio] está contribuindo para que os católicos pensem que todos os padres, bispos e religiosos estão com Bolsonaro.

BBC News Brasil - Mas se está previsto no Direito Canônico, esses padres podem ser punidos?

Simões - O bispo [da diocese onde ele atua] pode tomar posição com relação a eles. Mas até agora não foi tomada nenhuma posição, então parece que os bispos ou estão temerosos, ou estão a favor [desse tipo de manifestação bolsonarista].

BBC News Brasil - O bispo pode suspender ou apenas advertir?

Simões - Seria uma advertência. Tenho notícia de que alguma diocese, depois que padres bolsonaristas se posicionaram, outros tomaram posição também [a favor de Lula]. O bispo tentou conversar com todo mundo. […] Aí houve um acordo entre eles e aceitaram a orientação do bispo.

Intolerância religiosa vai piorar após eleição seja qual for o resultado, diz pesquisadora

Campanha de última hora dentro de igrejas evangélicas pode ter ampliado votos de Bolsonaro, diz cientista política americana

Segundo Simões, católico em geral "escuta o que diz o padre, o bispo, mas vota de acordo com sua consciência" (Getty Images)

BBC News Brasil - Por que nestas eleições a religião assumiu papel tão importante?

Simões - São vários fatores que se entrelaçam. Um deles é que esta extrema-direita sabe que o eleitor evangélico segue um determinado pastor. E o eleitor católico que pertence a um grupo tradicionalista, normalmente ligado à Renovação Carismática [movimento ultraconservador do catolicismo], esse eleitor é muito fiel a seu chefe. Ele vota em quem manda o padre, o pastor, o guru. Diferentemente do católico em geral que escuta o que diz o padre, o bispo, mas vota de acordo com sua consciência, que é aquilo que a teologia moral ensina: o católico tem de seguir sua consciência.

Então surge esse novo perfil de religiosos, que foi construído também com algumas intenções.

Eles trazem para o debate a pauta moral, que é para capturar os votos desses rebanhos. É o voto de cabresto religioso. Os fiéis de determinada igreja, de determinado coletivo de católicos vão todos para aquele candidato. E então entra o populismo: o político percebe qual a índole do seu eleitorado e passa a assumir o discurso daquele grupo. Nem sempre ele acredita nisso.

O Bolsonaro, por exemplo, é contra o aborto, mas já defendeu a liberdade do casal de abortar. […] Enfim, [os políticos] não acreditam nessas pautas. Essa é uma questão. É um eleitorado fácil de ser comprado, isso se percebe claramente. Esse eleitorado é composto por grupos normalmente com baixa formação cristã no sentido crítico. É uma formação que vai mais na linha de um treinamento para repetir alguns chavões.

Até usam, por exemplo, a Doutrina Social da Igreja [conjunto de orientações sociais do magistério católico] para dizer que a Igreja condenou o comunismo, mas também não definem o que é o comunismo. Repetem à exaustão uma fala do papa Pio 11 [que comandou a Igreja de 1922 a 1939], uma fala muito específica e [ignoram que] depois esse pensamento evoluiu.

Isso é muito claro: é um grupo muito fácil de ser manipulado.

BBC News Brasil - E a pauta de costumes parece "colar"…

Simões - Eleitoralmente é o principal. Quando você traz a pauta de costumes, fala que um candidato é a favor do aborto, fala que um candidato vai colocar banheiro unissex nas escolas, fala essa bobeira toda, essas fake news de grupos de WhatsApp, você não discute as grandes questões do país.

Não se discute a fome, a pobreza, o desmonte das políticas públicas, o desmonte e o descrédito das instituições que é o mais sério que essa extrema-direita faz. Isso é muito grave. A pauta de costumes é a cortina de fumaça para que não se pautem questões sérias e, mais ainda, não se apresentem programas de governo.

Para mim, é discurso para enganar bobo. Você pode ser contra tudo isso, mas nenhuma lei vai obrigar tudo isso. É uma democracia. A gente depende da democracia, uma lei que possibilita que quem quer, faça, mas que dentro da Igreja, da comunidade, eu possa ser contra, orientar meus fiéis. Mas politicamente é tudo irrelevante. A gente não está discutindo de fato o que leva a morte das pessoas, que é a pobreza, que é a economia.

BBC News Brasil - Afinal, a Igreja tem alguma orientação no sentido de que os fiéis não votem em candidatos que defendam questões que vão contra a doutrina da própria Igreja? Um católico deve escolher o político conforme o catecismo?

Simões - Papa Francisco, quando veio ao Brasil [em 2013], na entrevista ocorrida no avião um jornalista perguntou para ele se ele não ia falar contra o aborto. Ele respondeu que todo mundo já sabe que a Igreja é contra o aborto e não precisamos repetir isso à exaustão. Todos os assuntos são muito complexos. A Igreja é contrária a essas pautas, mas se você vai votar ou não em candidato que defende essas pautas, é outra questão.

Tem muito padre dizendo que católico não pode participar de partido de esquerda. Mas o cristão, em geral, é chamado a ser missionário, a viver o evangelho. O missionário está em todo lugar que possibilite a fala. Muitos cristãos vêm conversar e se manifestar dizendo que pela fala de alguns padres, católicos não podem participar de partidos de esquerdas porque estes são comunistas.

Primeiro precisa definir o que é comunismo e o que são comunistas. Porque se você pega os Atos dos Apóstolos [livro do Novo Testamento, que narra os acontecimentos vividos pelos primeiros seguidores de Jesus logo após a morte dele], a proposta da Bíblia é comunista. Até mais radical. Por exemplo, Maria no Magnificat [cântico cuja autoria é atribuída à mãe de Jesus, conforme citação no Evangelho de Lucas] fala não só para colocar comida nas mesas dos pobres como para despedir os ricos de mãos vazias.

O comunismo não chegou a isso. Então Maria era mais comunista do que eles. O cristão católico — e a doutrina da Igreja vai nesta linha — é sobretudo um missionário. O missionário fala em todos os espaços em que é permitida a fala. Ele só não deve estar nos espaços onde a fala é tolhida. E aí temos bons cristãos católicos e de outras denominações religiosas, de outras igrejas, que militam tanto em partidos de esquerda quanto em partidos de direita. Não sei se os de extrema-direita são cristãos de verdade, mas de direita a gente conhece.

"Quando você traz a pauta de costumes, fala que um candidato é a favor do aborto, fala que um candidato vai colocar banheiro unissex nas escolas, fala essa bobeira toda, essas fake news de grupos de WhatsApp, você não discute as grandes questões do país", diz Simões (Getty Images)

BBC News Brasil - Ou seja: para ter liberdade de fala, é preciso democracia…

Simões - Vejo como pauta fundamental a questão da democracia versus autoritarismo, inclusive dentro dos partidos. Porque uma coisa é você militar ou votar para candidatos ou partidos que têm uma pauta que não contempla as propostas da Igreja Católica, mas que lá dentro é um partido democrático, permite a discussão, a conversa, vai ouvir a sociedade. Outra coisa é você estar em um partido que também defende pautas contra a Igreja Católica, ou não defende pauta nenhuma, e que impõe um modelo, não permite a discussão. Onde é possível conversar, discutir, é fundamental que o cristão católico esteja presente e leve sua contribuição.

BBC News Brasil - E o aborto, padre?

Simões - Quando a gente fala da pauta de aborto, a gente tem uma sensação que os movimentos chamados pró-vida foram captados por uma extrema-direita. Por quê? Eles se contentam em dizer que são pró-vida só defendendo que as pessoas nasçam, mas eles não defendem a vida dos que já nasceram. E o papa Francisco, em uma exortação apostólica sobre a santidade, ele fala que os cristãos devem defender de forma clara e apaixonada a vida dos nascituros, mas também defender com a mesma ênfase a vida de todos os que já nasceram e que se debatem na pobreza. Então ser cristão pró-vida não é só ser contra o aborto. Mas a gente não pode ser ingênuo de entrar nessa questão porque muitas vezes essas pautas são cortina de fumaça para desviar o assunto do que é essencial.

Simões: "Nenhum ser humano tem o direito de pensar na hipótese de tirar a vida do outro. Questiono a humanidade dessas pessoas" (Getty Images)

BBC News Brasil - Podemos dizer então que é mais interessante para o cristão estar em um lado político em que haja debate do que estar em um campo que simplesmente vete o que for contrário à doutrina católica?

Simões - Exato. Podendo expor seu ponto de vista, debater, conversar, ouvir o contraditório, a ciência. A grande defesa que o evangelho faz é a defesa da vida, sempre. E às vezes tem discurso que pode parecer pró-vida mas, na verdade, não redunda na vida. Tudo isso é importante de ser ouvido. Por isso o debate é importante. É a história: Jesus debateu com todo mundo, conversou com fariseus, pecadores, com todos. […] É uma mesa na qual cabe todo mundo.

BBC News Brasil - E o que justifica um cristão defender o armamentismo, o porte de armas? Não é contra o evangelho?

Simões - Eu diria, e esta é uma posição minha, que defender porte de armas é um absurdo do ponto de vista humano. Nenhum ser humano tem o direito de pensar na hipótese de tirar a vida do outro. Questiono a humanidade dessas pessoas. Quem defende o porte de armas está se desumanizando. Esta é a primeira questão. Se a gente vai falar com gente conservadora que defende o porte de armas, é preciso lembrar o quinto mandamento: não matar. Olha, você vai matar outra pessoa para defender sua propriedade? Você mata e vai para o inferno em seguida, isso é muito tranquilo para mim, não tenho dúvidas.

"No futuro, a divergência entre os cristãos não seria mais entre evangélicos e católicos, mas entre fundamentalistas e progressistas dos dois campos", opina Simões (Getty Images)

BBC News Brasil -Bolsonaro tem origem católica e se diz católico, mas frequenta cultos evangélicos e, em geral, aparece muito mais ao lado de pastores evangélicos do que no meio católico. A pauta dele é evangélica ou católica? Tem diferença?

Simões - A pauta dele é dele. Da extrema-direita. Onde dá voto ele vai.

BBC News Brasil - Essa postura dele e de seus seguidores tem acirrado a rivalidade entre católicos e evangélicos no Brasil?

Simões - Li em 2019, não me lembro quem falou, que no futuro a divergência entre os cristãos não seria mais entre evangélicos e católicos, mas entre fundamentalistas e progressistas dos dois campos. Claro que acaba existindo esse discurso contra evangélicos, que a gente faz até meio sem querer, mas, por outro lado, estamos muito próximos dos campos evangélicos progressistas, embora eles sejam minoria. Nas próprias igrejas, se um pastor se posiciona contra Bolsonaro, muitas vezes ele é tirado do ministério. Enfim, são minoria e sofrem muita retaliação. Quando falamos em campo evangélico no Brasil, a gente tem de tomar cuidado. Não é homogêneo. […] E todos esses pastores midiáticos que estão com Bolsonaro, eles estiveram com Lula e com Dilma.

BBC News Brasil - Têm uma relação fisiológica com o poder?

Simões - Exato. Bolsonaro tem o projeto dele. E essas igrejas têm o projeto delas. Isso é muito sério. Mas a discussão é a divergência entre progressistas e fundamentalistas.

BBC News Brasil - Até dentro da Igreja Católica?

Simões - Claramente.

"É muito fácil chamar todo mundo de comunista. Sobrou até para o cardeal dom Odilo, que, aliás se defendeu muito bem. Achei a fala dele muito boa, alertando para o crescimento do nazifascismo no Brasil" (Getty Images-

BBC News Brasil - Nos últimos 10 dias, houve uma nota crítica da CNBB ao uso político da religião, a confusão da visita de Bolsonaro e seus apoiadores à Basílica de Aparecida, um padre no Paraná que teve a missa interrompida por um bolsonarista e o cardeal de São Paulo atacado nas redes sociais por conta da cor vermelha de suas vestes litúrgicas. Como se manifestar sem ser taxado de partidário? Qual a orientação da CNBB neste contexto?

Simões - Historicamente, a religião cristã como um todo sempre se pautou por uma mística. Então aquilo que fortalece o cristão militante, que clareia suas posições, é ter uma mística. Vai muito além de ter momentos de oração e de reflexão, mas inclui também isso.

É conhecer o evangelho, ter familiaridade com isso, dar espaço para a palavra de Deus, a meditação, a participação da comunidade na sua vida. Nos seus posicionamentos, neste momento de segundo turno, está necessariamente o apoio não a um dos dois candidatos e projetos, mas às causas de suas propostas.

Eu não defendo o Lula pelo Lula. Não defendo o PT pelo PT. Defendo porque, a meu ver, neste momento, ele apresenta uma proposta que tem mais a ver com o evangelho. É mais coerente do que o outro candidato, que é católico, mas é tudo ao mesmo tempo e tem uma incoerência muito grande, por exemplo, quando fala da família tradicional. Ele pode representar a família tradicional de qualquer um, menos a minha, que e tradicional. Eu não tenho aquele perfil de família.

E são muitas contradições. O essencial do evangelho é o pobre. Nossa defesa é dos pobres, dos empobrecidos. E também as pautas em relação a minorias. Mas a defesa do pobre, em geral, porque os pobres são o centro do reino de Deus. E volto para o Magnificat, "derrubou dos seus tronos os poderosos, exaltou os humildes, saciou de bens os famintos, despediu os ricos de mãos vazias". É muito fácil chamar todo mundo de comunista. Sobrou até para o cardeal dom Odilo, que, aliás se defendeu muito bem. Achei a fala dele muito boa, alertando para o crescimento do nazifascismo no Brasil. Este é o modus operandi, essa violência extremista.

Edison Veiga, repórter, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 19.10.22. Publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63292458

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Caso Jefferson prova que Bolsonaro é mal maior

Bolsonarista jogando granadas contra a polícia é algo que assusta o eleitor moderado

O ataque do ex-deputado federal Roberto Jefferson à Polícia Federal é tudo o que Bolsonaro não precisava neste final de campanha eleitoral. Os obstáculos que o presidente teria de superar para reeleger-se nunca foram pequenos.

Na prática, ele precisaria não apenas atrair para si a maior parte dos eleitores que ficaram órfãos dos candidatos eliminados no primeiro turno como também tirar alguns votos do petista, o que é infrequente, ainda que não impossível. As cenas protagonizadas pelo manda-chuva do PTB recentemente convertido num aliado paroxístico de Bolsonaro atrapalham bastante essa tarefa.

De um modo geral, a base mais fiel de apoiadores é aquela que o candidato mais pode maltratar numa campanha. Mesmo que Lula convidasse João Amoêdo para ministro da Fazenda, os petistas não teriam muita alternativa que não votar no ex-metalúrgico. E, se essa é uma realidade no mundo todo, ela é ainda mais intensa no Brasil, onde o voto é obrigatório. É que nas nações em que ele é facultativo, o candidato precisa não apenas ganhar novos adeptos como também motivar sua base a sair de casa para votar. Aqui, essa segunda parte, que dá maior poder de influência à coorte dos mais fiéis, é muito menos necessária.

Meu ponto é que a extrema direita, que vê a atitude de Jefferson como resistência heroica a uma suposta ditadura do STF, não deixará de votar em Bolsonaro porque o presidente tenta distanciar-se do aliado. Vejam que Bolsonaro hesitou muito pouco antes de chamá-lo de bandido. O problema é que o fato em si, isto é, um bolsonarista extremado e armado jogando granadas contra a polícia, é algo que assusta o eleitor moderado que até aqui evitou ambos os candidatos e tenta decidir qual deles representa o mal menor. Bolsonaro, pelo discurso belicoso que estimula esses ataques, pela facilidade com que trai aliados e pelo descompromisso com as instituições, prova que é o mal maior.

 Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…"Publicado originalmente em 24.10.22, às 14h30.

Do que o bolsonarismo é capaz

O bolsonarismo ameaça o respeito à lei, a integridade das instituições, a liberdade política e a paz social. Se alguém ainda tinha dúvidas, Roberto Jefferson desenhou para o País 

O ex-deputado Roberto Jefferson mostrou do que o bolsonarismo é capaz. Seu ataque a policiais federais que foram a sua casa para prendê-lo, anteontem, não foi um ato isolado nem fruto de loucura: foi a consequência natural da escalada retórica violenta e golpista do presidente Jair Bolsonaro contra as instituições democráticas.

No 7 de Setembro do ano passado, convém recordar, Bolsonaro declarou que, “qualquer decisão do Alexandre de Moraes, este presidente não mais cumprirá”, referindo-se ao ministro do Supremo Tribunal Federal responsável pelo inquérito que apura o financiamento e a organização de atos bolsonaristas contra a democracia. E acrescentou, em seu dialeto bronco: “Dizer aos canalhas que eu nunca serei preso”, sugerindo que resistiria a uma eventual ordem de prisão.

Pois bem: em perfeita sintonia com seu líder, Roberto Jefferson, que estava em prisão domiciliar no âmbito da ação penal conduzida por Moraes, decidiu resistir a uma ordem de prisão emitida pelo ministro – e ainda avisou que o faria em vídeos que postou em redes sociais no momento em que a ordem estava para ser cumprida. “Eu não vou me entregar. Eu não vou me entregar porque acho um absurdo. Chega, me cansei de ser vítima de arbítrio, de abuso. Infelizmente, eu vou enfrentá-los”, declarou Jefferson enquanto se preparava para atacar os policiais. Ato contínuo, deu mais de 20 tiros nos policiais, ferindo dois deles, e ainda atirou granadas.

É improvável que isso tenha acontecido por acaso. Ao contrário: Jefferson, como bolsonarista exemplar, parecia ter um plano meticuloso. Primeiro, usou as redes sociais para violar, de modo deliberado, os termos de sua prisão domiciliar. Na ocasião, ofendeu a ministra Cármen Lúcia, do Supremo, porque ela votou no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a favor de decisões que, no entendimento de bolsonaristas, configuram censura. A estratégia é óbvia: sabendo que a violação de sua prisão domiciliar, de forma reiterada e insolente, teria resposta da Justiça, Jefferson provavelmente pretendia caracterizar essa reação como perseguição política e cerceamento da liberdade de expressão. É o estado da arte do bolsonarismo.

Os acontecimentos de domingo são gravíssimos em si mesmos, e Jefferson deve ser punido com todo o rigor da lei, sem qualquer hesitação. Mas o caso não se encerra com o encaminhamento do sr. Jefferson para a cadeia. Se o aspecto jurídico se limita à punição do ex-parlamentar, o escândalo político vai muito além.

Bolsonaro, depois de alguma vacilação, tratou de tentar se desvincular de Jefferson, ciente dos estragos potenciais em sua campanha, mas sua proximidade com o ex-deputado vai muito além de algumas fotos dos dois juntos, que o presidente jurava não existirem. Essa proximidade é a única explicação possível para o fato inaceitável de que Jefferson teve tratamento privilegiado da Polícia Federal mesmo depois do ataque a tiros e granadas do ex-deputado contra policiais. Está documentada, em vídeos e testemunhos, a cordialidade com que Jefferson foi tratado – nem algemas lhe puseram. Para culminar, a negociação para a rendição de Jefferson contou com a presença do ministro da Justiça em pessoa, despachado pelo presidente Bolsonaro para cuidar do caso, como se se tratasse de um preso especialíssimo – e não de um criminoso comum. 

Seja como for, a tentativa de Bolsonaro de se afastar do caso é inútil. O episódio todo está prenhe de bolsonarismo, em suas múltiplas dimensões – das quais o uso de armamentos contra agentes da lei é apenas o mais vistoso. Enquanto o presidente da República, por mero cálculo político, aparentava abandonar seu aliado fiel, os fanáticos camisas pardas bolsonaristas nas redes sociais procuravam maneiras de justificar a barbárie, sempre em nome da defesa da “liberdade” e contra o que o próprio presidente chamou de “estado ditatorial” promovido pelo Supremo e pelo TSE.

Não há como ignorar. Na Presidência da República, Jair Bolsonaro é um altíssimo risco para o respeito à lei, para a integridade das instituições, para a liberdade política e para a paz social. Se alguém ainda tinha dúvidas, Roberto Jefferson desenhou para o País.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 25.10.22, às 03h00

Bolsonaro pode responder por crime eleitoral caso não prove denúncia de fraude

A acusação foi feita por Fabio Faria em uma coletiva de imprensa, no Palácio da Alvorada, cuja convocação seria para "acompanhar a exposição de um fato grave"


Fábio Faria, Ministro de Bolsonaro

O ministro Fabio Faria, das Comunicações, acusou, ontem, que a campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) está sendo prejudicada com uma quantidade menor de inserções de rádio. Segundo ele, seriam 154 mil a menos que a do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nas últimas duas semanas. Faria anunciou que estava remetendo a documentação reunida ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para cobrar o restabelecimento da isonomia entre os dois candidatos.

Porém, depois da apresentação dos supostos dados levantados por uma auditoria particular contratada pelo comitê de Bolsonaro, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, deu prazo de 24 horas para que sejam apresentadas provas que comprovem os números apresentados por Faria. Caso as acusações não sejam comprovadas, a coligação do presidente poderá ser enquadrada em crime eleitoral.

"Os fatos narrados na petição inicial não foram acompanhados de qualquer prova e/ou documento sério, limitando-se o representante a juntar um suposto e apócrifo 'Relatório de Veiculações em Rádio', que teria sido gerado pela empresa 'Audiency Brasil Tecnologia'", aponta o ministro.

Moraes cobra, ainda, o detalhamento das informações que embasariam as acusações de Fabio Faria. "Nem a petição inicial, nem o citado relatório apócrifo indicam eventuais rádios, dias ou horários em que não teriam sido veiculadas as inserções de rádio para a Coligação requerente; nem tampouco a indicação de metodologia ou fundamentação de como se chegou à determinada conclusão", destacou Moraes.

Coletiva

A acusação de Fabio Faria foi feita em uma coletiva de imprensa, no Palácio da Alvorada, cuja convocação seria para "acompanhar a exposição de um fato grave". Ao lado de Fabio Wajngarten, coordenador de comunicação da campanha de Bolsonaro, o ministro das Comunicações disse que uma auditoria constatou que as rádios, principalmente da Região Nordeste — onde Lula lidera com folga a corrida eleitoral —, não estão exibindo as propagandas encaminhadas pela campanha do presidente.

O ministro acusou que a maioria das rádios que "censuram" Bolsonaro estão na Bahia — onde Lula teve 69,73% dos votos no primeiro turno e o presidente, 24,31%. Segundo Faria, o petista tinha três em quatro inserções nas rádios. A auditoria teria apurado que não foram exibidos, durante 14 dias do segundo turno, 154 mil propagandas de Bolsonaro. De acordo com Faria, isso equivale 1.234 horas de programação.

Wajngarten classificou o episódio como "censura" e afirmou que a equipe de mídia vai revisar a prática desde o primeiro dia do primeiro turno. As inserções são pequenas propagandas de 30 segundos, durante a programação normal das emissoras de rádio e televisão.

O promotor de Justiça e promotor eleitoral Wesley Machado explicou que, caso uma emissora de rádio ou tevê não exiba uma propaganda eleitoral, pode sofrer graves consequências. "Inclusive a suspensão da programação normal, conforme prevê resolução do Tribunal Superior Eleitoral. A depender das circunstâncias do caso, pode se estar diante de uma hipótese de uso indevido dos meios de comunicação social", explicou.

Para o cientista político Valdir Pucci, a denúncia deve ser investigada pela Justiça Eleitoral e, caso comprovada, a emissora que descumpre a lei deve ser punida. "Não acredito em suspensão do segundo turno por uma denúncia que ainda será apreciada pela Justiça. E não há previsão legal de suspensão de eleição neste caso, apenas a punição dos envolvidos", disse.

A acusação feita por Faria vem em um momento de desgaste para a campanha de Bolsonaro com o ataque do ex-deputado Roberto Jefferson contra uma equipe de agentes da Polícia Federal, que foram levá-lo para regime fechado de prisão por violar as regras da detenção domiciliar. Além disso, pesquisa de intenção de votos do Ipec, divulgada ontem, mostra que Lula tem 50% contra 43% do presidente.

Fernanda Strickland e Gabriela Ornelas, as autoras deste texto, são jornalistas. Publicado originalmente pelo Correio Braziliense, em 25.10.22, às 03h55.

O STF e a proteção do voto: uma ADPF à procura de um autor

 Impressiona que o afastamento tenha ocorrido "a despeito de ainda não haver denúncia oferecida", conforme voto da ministra relatora.

Lênio Streck na tribuna do STF

1. O caso do governador Paulo Dantas

No dia 11 de outubro último, o governador alagoano Paulo Dantas (MDB) foi afastado cautelarmente do cargo em razão de uma decisão concedida pela ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça. Dantas é candidato à reeleição, tendo sido cumpridos nada mais do que 30 mandados de busca e apreensão. Em pauta, acusações de peculato e lavagem de dinheiro que seguem tramitando nos autos do Inquérito 1.582.

Em nota, MPF e PF afirmaram que a "necessidade e a urgência das medidas cautelares foram amplamente demonstradas nos autos da investigação policial", mas, segundo a Folha de S.Paulo, os fatos investigados remontam à época em que Dantas era deputado estadual (aqui). Bom, de pronto, há um fato: Dantas assumiu o governo em maio. Não há nesse inquérito fatos sobre esse período do novo cargo.

Por maioria de votos, a Corte Especial do STJ referendou a decisão em 13/10 (aqui e aqui). Impressiona que o afastamento tenha ocorrido "a despeito de ainda não haver denúncia oferecida", conforme voto da ministra relatora.

Eis um resumo: candidato afastado 19 dias antes do segundo turno e uma operação lastreada em nenhuma denúncia por parte do Ministério Público. O mérito, em si, não me interessa discutir. Quero falar do problema da inserção do Poder Judiciário nessa seara: o voto popular às vésperas do pleito.

O governador é a figura diretamente prejudicada — foi para o segundo turno com larga margem de votos.

Porém, penso que o maior derrotado, ainda, foi o que levou uma goleada: a instituição do Ministério Público. Dono da ação penal? Dominus litis? Como assim? Lembro-me do primeiro ato de controle de constitucionalidade feito no Brasil, no dia 6 de outubro de 1988. Fui eu. Em uma comarca do interior do RS. Para dizer, em alto e bom som que o MP era o dominus litis [1]. Passados mais de 34 anos, percebo que estava enganado. O MP abriu mão de suas prerrogativas. Em nome de quê?

Explico. O MP concorda que a polícia federal peça o afastamento de um governador. O STJ afastou um governador com base em inquérito. Sem denúncia. Nos casos de afastamento anteriores que se encaixam no precedente citado (QO na AP 970-DF), todos tinham denúncia. Aqui, portanto, o precedente não se encaixa(ria).

De todo modo: não há polícia federal que atua especificamente junto ao STJ. Só o MP. Trata-se do foro por prerrogativa de função. Essa garantia é do povo e não dos governadores. Logo, só o MP — que atua junto ao STJ — poderia pedir o afastamento de um governador. A PF não tem atribuição para tal. O MP achou normal que a polícia assumisse o seu lugar. Vai se saber as razões dessa autofagia... Como dizia o velho "conselheiro", as consequências sempre vêm depois.

Abstraindo o resultado em si, vale salientar o essencial: a suspensão do mandato do governador interfere diretamente nas eleições. Veja-se, nesse sentido, a reportagem do UOL que aponta nesse sentido — e isso a partir de opiniões de ministros da mais alta corte, segundo a jornalista Mônica Bergamo (aqui).

Sem pretender exaurir essa discussão levantada pela jornalista e por parte da comunidade política e jurídica, cumpre refletir sobre a razão pela qual tudo ocorreu pouco antes do segundo turno e que disso não se conclua que nenhuma investigação possa ocorrer neste período. Qual seria a urgência?

Todavia, a questão é outra: será que uma decisão dessa magnitude não trará consequências para o contexto eleitoral? Será que foi adequada?

De novo: passados mais esses dias, ainda não há denúncia. Note-se: a ministra do STF, Rosa Weber, negou pedido do governador para retornar.

Eis a questão posta.

2. Uma pequena genealogia

Pois olhemos para o retrovisor para compreendermos uma resposta e uma solução para o que o expus.

Apurando acontecimentos de 2014 — cuja investigação terminou em 2016 — uma prisão temporária foi imposta ao ex-governador Beto Richa em pleno trâmite eleitoral de 2018. Liderando as pesquisas, foi destroçado por uma decisão judicial. Que redundou em nada. Mas era tarde. Seu mandato se esfumaçou. Também escrevi sobre o caso mais de uma vez [2].

Enfim enfrentando a (in)adequação e as consequências de decisões que imponham medidas midiáticas em pleno processo eleitoral, respondo sem qualquer dúvida: o Direito não está a nossa disposição e torna-se importante compreender que quando o assunto é eleição, minar o processo eleitoral será sempre uma decisão inadequada, a não ser um caso de plena e grave flagrância delitiva.

Expor um candidato a acusações que não vão ser brevemente resolvidas inexoravelmente será algo que mudará a equação dos votos do eleitor.

Nem preciso falar da divulgação dias antes das eleições de 2018 de delação (bichada) de Palocci.

Tampouco necessitamos trazer à baila o caso Marconi Perillo.

Interessante: todos os presos e suspensos de suas funções perderam as eleições que disputavam. Claro. Por isso, precisamos falar sobre essa relação voto x decisão judicial.

3. Uma solução possível — o que fazer?

Penso que medidas dessa gravidade não poderiam jamais dispensar denúncia e pedido do MP. É o mínimo que se exigiria para salvaguardar pleitos eleitorais.

Afastar um governador ou um prefeito alguns dias antes da eleição pode ferir gravemente o princípio democrático e também a vontade popular. Ou seja: influencia indevidamente na vontade popular. E isto é fundamental que se compreenda.

Diante de tudo: exsurge a necessidade de o voto ser protegido e daí porque de estarmos diante de um caso de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Cabe ao Supremo proteger o devido processo eleitoral de forma urgente. Uma ADPF à procura de um autor. Claro que o parlamento deve agir também.

Vários preceitos fundamentais estão sob violação: a vontade popular (veja-se que até mesmo um eleitor não-candidato não pode ser preso três dias antes da eleição). A ratio é proteger o voto popular. Por analogia, o que podemos dizer sobre prender um candidato ou o afastar do cargo 15, 20 ou 30 dias antes do pleito?

Todavia, ainda no que diz respeito a jurisdição constitucional, importantíssimo frisar este ponto de uma possível APDF: cabe ao Supremo Tribunal Federal resguardar o devido processo eleitoral. Afinal, sempre corremos o risco de a polícia ou o MP levarem ao judiciário, dias antes do pleito, investigações seletivas. A democracia não pode ser transmudada em um espetáculo.

Por conseguinte, torna-se importante que o próprio Judiciário reconheça seu papel de garantidor do processo eleitoral; e em face disso deve o STF evitar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público. In casu, reparar lesão que atingiu a vontade popular, que foi resultado de decisão proferida pelo STJ e que sequer possui respaldo numa denúncia do Ministério Público.

Quer dizer que nunca o Judiciário deve interferir no processo político? Não. O Judiciário deve, sim.

Só que é o Direito que controla a política, não o contrário. Sou o primeiro a sustentar isso.

O que estou dizendo é que uma decisão drástica como a que afastou o governador de Alagoas não está vedada se o governador estivesse burlando a lei eleitoral em plena eleição. Ainda assim, há que cuidar, uma vez que sempre é possível cassar uma chapa depois de eleita.

Portanto, é óbvio que não se pode burlar a lei eleitoral para vencer uma eleição. Mas também não é recomendável, cautelarmente (portanto, provisoriamente), tomar medidas dias antes da eleição cujas consequências, querendo ou não, sempre são nefastas para o candidato afastado ou preso. Que o digam Beto Richa e Perillo. E tantos outros.

Por tudo isso necessitamos de uma ADPF para que o STF diga que no mínimo 30 dias antes das eleições operações desse tipo não podem acontecer. Afastamentos e coisas do gênero só se decorrerem de flagrante.

Para preservar o voto popular. Afinal, todo poder emana do povo.

[1] Ver meu livro Trinta anos de Constituição em trinta julgamentos: uma radiografia do STF. Gen Forense, 2019.

[2] Por todas elas, conferir: https://www.conjur.com.br/2018-set-13/senso-incomum-comum-casos-richa-haddad-advogada-algemada

Lenio Luiz Streck, o autor deste artigo, é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados. Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 24.10.22, às 15h28

Contra ataques ao STF, ex-presidente José Sarney declara voto em Lula

O ex-presidente José Sarney, que governou o Brasil entre 1985 e 1990, decidiu declarar publicamente o voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições presidenciais, contra Jair Bolsonaro (PL).

Ex-presidente José Sarney sai em defesa do Supremo e declara voto em Lula no 2º turno

Em texto publicado em seu site, Sarney deixou claro que um dos motivos para a sua escolha é a necessidade de defender o Supremo Tribunal Federal. Ele afirmou que raras vezes se viu um ataque tão sistemático do Executivo contra o Judiciário.

"A partir da transição democrática, a Corte Suprema consolidou-se como o mais importante símbolo do Estado brasileiro, por caber-lhe sobretudo a defesa daquilo que nossa Constituição tem de melhor: a garantia dos direitos — individuais, coletivos, difusos, sociais", diz trecho da manifestação de voto. 

Essa não foi a primeira vez que o ex-presidente se pronunciou sobre os ataques de Jair Bolsonaro e seus aliados a ministros do STF. Na última sexta-feira (21/10), Sarney afirmou que a corte nunca faltou à nação e que sem um Supremo forte não há democracia.

Leia abaixo a íntegra da declaração de voto de Sarney:

"Quando, em janeiro de 1985, Tancredo Neves e eu fomos eleitos por um grande acordo da sociedade, tínhamos muito claro um compromisso: a transição para a democracia. A partir da eleição é que, no espaço cedido pela Fundação Getúlio Vargas, começou-se a detalhar números e tarefas. Antes de janeiro a tarefa não apenas era impossível por não dispormos dos dados reais sobre o funcionamento do governo, mas sobretudo porque a dimensão do que se decidiria na eleição era política e institucional, num nível superior de decisão: estava em jogo o Estado Democrático de Direito, o futuro da Nação.

Estamos, neste momento, numa situação que tem desafios semelhantes. Disfunções dos Poderes aconteceram de tempos em tempos, mas raras vezes se viu o ataque sistemático do Executivo contra o Judiciário. Ora, guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal se transformou, ao longo das gerações, no ponto de equilíbrio do nosso sistema político. O desacato de Floriano Peixoto, nos primeiros dias da República; a intervenção de Getúlio Vargas, acompanhando os Estados concentracionários europeus; o regime militar, manipulando sua composição para controlá-lo, foram momentos breves, registros inglórios de tempos sombrios. A partir da transição democrática, a Corte Suprema consolidou-se como o mais importante símbolo do Estado brasileiro, por caber-lhe sobretudo a defesa daquilo que nossa Constituição tem de melhor: a garantia dos direitos — individuais, coletivos, difusos, sociais.

O atual contrato 'secreto' entre o Executivo e o Legislativo, fixado em valores agigantados diante dos parcos recursos do Orçamento da República, é campo privilegiado para os interesses escusos. A minoria, esmagada de uma forma que não se via desde o princípio do Império — lembro que nos períodos de exceção não há maioria ou minoria —, tem como única defesa apelar para que o Judiciário faça o que não é sua função e interfira no funcionamento do Congresso Nacional.

Um aspecto tenebroso dos movimentos políticos é sua globalização. Desde a Antiguidade as estruturas das nações assumem formas paralelas. Um exemplo é a proximidade das figuras de Trump, Orbán, Putin, Bolsonaro. Uma de suas marcas é a proliferação das fake news. Outras a xenofobia, o racismo, a divisão da sociedade. Assim se hostiliza, agora, os nordestinos, os pobres, como se fossem brasileiros inferiores. Isso atenta contra todos os princípios democráticos e até éticos. É a guerra contra a democracia, o demos, o povo.

No próximo domingo, o eleitor decidirá se vota pelo fim da democracia ou por sua restauração. Esse voto não é para quatro anos de governo: é um voto para o destino do Brasil. O voto em Bolsonaro é voto contra as instituições, que terá como consequência anos de autocracia, um regime de força, construído na mentira sistemática e no abuso do poder. O voto em Lula — que já tem seu lugar na História do Brasil como quem levou o povo ao poder e como responsável por dois excelentes governos — é voto pela democracia, pela volta ao regime de alternância de poder, pela busca do Estado de Bem-Estar Social. A diferença é clara.

No mesmo espírito dos que construíram em torno de Tancredo Neves a Aliança Democrática, reunindo um amplo espectro de homens públicos, agora congregamos em torno do Presidente Lula os homens de maior responsabilidade do País para formar uma nova união pela democracia. É a esperança que nos convoca".

Publicado no Consultor Jurídico, em 24.10.22, às 21h44