quinta-feira, 10 de março de 2022

Quem é o arrecadador de campanha de Bolsonaro que conquistou Michelle e Carlos e irritou ruralistas

Arrecadador da campanha para reeleição, Bruno Scheid se destaca no círculo íntimo de Bolsonaro

     

Bruno Scheid (direita), ao lado de Bolsonaro, Tereza Cristina e Paulo Guedes; pecuarista livre acesso no Planalto. Foto: Isac Nóbrega/PR–7/3/2022

Um personagem desconhecido da política ganhou destaque na rotina de Jair Bolsonaro e no círculo restrito da família do presidente. O pecuarista Bruno Scheid, de Ji-Paraná (RO), apontado como principal responsável por uma arrecadação de campanha para a reeleição em um grupo de ruralistas, tem a porta aberta ao epicentro do poder federal. Ele surpreendeu o meio político ao revelar proximidade com as duas pessoas de maior intimidade com o presidente: a primeira-dama Michelle Bolsonaro e o filho e vereador Carlos Bolsonaro – dos quais poucos conseguiram se aproximar. 

Scheid também tem livre acesso ao gabinete presidencial do 3º andar do Palácio do Planalto. Na última segunda-feira, quando Bolsonaro recebeu um grupo de pecuaristas fora da agenda – o encontro só apareceu registrado no dia seguinte –, o pecuarista de Rondônia estava sentado ao lado esquerdo do presidente – na semiótica da política, uma demonstração de poder e prestígio. A reunião foi anunciada com antecedência no WhatsApp pelo próprio Scheid a possíveis doadores de campanha.

À direita do presidente no encontro estavam a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Segundo ruralistas declararam ao Estadão, Scheid atua de forma incisiva e sem rodeios na busca por doações para a campanha de Bolsonaro. O pedido de recursos desagradou a parte dos pecuaristas abordados.

Viva voz

Aos 38 anos, o pecuarista exibe nas redes sociais uma foto abraçado a Carlos, em geral avesso até a políticos bolsonaristas que, embora aliados do pai, ele entende serem “aproveitadores”. O filho do presidente interagiu de forma amistosa e mandou um “forte abraço”. Com Michelle, a relação foi além das redes. No interior de Rondônia, Scheid realiza, desde o começo deste ano, reuniões eleitoreiras em que telefona à primeira-dama e a coloca, com a chamada em viva voz, em diálogo com apoiadores do presidente e moradores de vilarejos rurais. Nessas chamadas, Michele enaltece a ligação de Scheid com Bolsonaro.

Bruno Scheid exibe nas redes sociais uma foto abraçado ao vereador Carlos Bolsonaro com a legenda 'Esse tem meu total respeito!'. Foto: Reprodução Instagram

Além de furar a bolha da família presidencial, Bruno Scheid tem atropelado antigos aliados de Bolsonaro do agronegócio e se colocado como o interlocutor para obtenção de dinheiro. A iniciativa assustou um setor que, na eleição de 2018, ajudou a eleger Bolsonaro sem centralizar a arrecadação. A preocupação dos ruralistas também tem a ver com as suspeitas de que ele agiria como interlocutor do presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, e do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) – os dois coordenam a preparação da campanha bolsonarista.

O passe livre de Scheid vai além. Até as aeronaves presidenciais se abriram a ele. O pecuarista compôs a comitiva que viajou no avião do presidente de Brasília a Porto Velho (RO), em fevereiro, para um encontro com o presidente do Peru, Pedro Castillo. Sentou-se ao lado do ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno. 

Na véspera da manifestação bolsonarista de 7 de Setembro, no ano passado, Bolsonaro o convidou para sobrevoar Brasília num helicóptero da Força Aérea Brasileira. Scheid era uma das lideranças rurais que ocuparam a Esplanada dos Ministérios nos dias seguintes, com palavras de viés autoritário, e que causaram temor de ruptura e invasão do Supremo Tribunal Federal. 

Scheid nega que tenha organizado reunião de pecuaristas no Planalto, que atue como arrecadador de Bolsonaro e até mesmo que é filiado ao PL, embora tenha compartilhado imagem de Costa Neto para anunciar sua entrada no partido.

Ele também figurou nas páginas policiais de Rondônia, como autor e vítima, em situações de crimes ligados ao conflito de terras. Em 2012, Scheid teria efetuado uma série de disparos com arma de fogo em direção a um sem-terra, em Alvorada do Oeste (RO). Denunciado pelo Ministério Público, Scheid foi absolvido em 2015, por falta de provas. Três anos depois, em 2018, uma fazenda de sua família teria sido assaltada por 15 homens armados, a 400 quilômetros de Porto Velho. O pecuarista, a mulher, Sueli Scheid, a mãe e a filha teriam sido feito reféns e abandonados na estrada. O episódio o fortaleceu politicamente no Estado.

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo, em 10 de março de 2022 | 05h00.Atualizado 10 de março de 2022 | 11h26

"Putin não tem saída, e isso realmente assusta"

Líder russo precisa compreender totalmente que as únicas escolhas que lhe restam são sobre como ele pretende perder a guerra. leia o artigo de Thomas L. Friedman no Estadão hoje

Ucranianos se aglomeram sob uma ponte destruída enquanto tentam fugir pelo rio Irpin nos arredores de Kiev, Ucrânia. Foto: AP Photo/Emilio Morenatti

Pessoa segura uma placa com a frase "Pare, Putin", em Riga, na Letônia; invasão ocorre algumas horas depois de a Rússia afirmar ter recebido um pedido de ajuda dos separatistas pró-Rússia  Foto: Toms Kalnins/EFE/EP

Se você espera que a instabilidade causada nos mercados globais e na geopolítica pela guerra de Vladimir Putin na Ucrânia tenha atingido o auge, sua esperança é vã. Ainda não vimos nada. Espere até Putin compreender totalmente que as únicas escolhas que lhe restam são sobre como ele pretende perder: uma derrota mais rápida e menor, com pouca humilhação; ou uma mais prolongada e maior, profundamente humilhado. 

Não consigo nem pensar sobre que tipo de choques financeiros e políticos irradiarão da Rússia – país que é o terceiro maior produtor de petróleo do mundo e possui cerca de 6 mil ogivas nucleares – quando ela perder uma guerra travada pela escolha de um homem que jamais admitiria uma derrota. 

Por que não? “Porque Putin certamente sabe que a tradição nacional russa não perdoa reveses militares”, observou Leon Aron, especialista em Rússia do American Enterprise Institute, que está escrevendo um livro sobre a trajetória de Putin até a Ucrânia.

As derrotas da Mãe Rússia

“Virtualmente todas as grandes derrotas resultaram em mudanças radicais”, acrescentou Aron, escrevendo no Washington Post. “A Guerra da Crimeia (1853-1856) desencadeou a revolução liberal do imperador Alexandre II a partir de cima. A Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) ocasionou Revolução Russa. 

A catástrofe da 1.ª Guerra resultou na abdicação do czar Nicolau II e na Revolução Bolchevique. E a guerra no Afeganistão tornou-se um fator crucial para as reformas do líder soviético Mikhail Gorbachev.” O recuo em Cuba também contribuiu significativamente para a remoção de Nikita Kruchev, dois anos depois.

Nas próximas semanas, ficará cada vez mais óbvio que nosso maior problema com Putin na Ucrânia é que ele recusa uma derrota mais rápida e menor, e o único outro resultado será uma derrota maior e mais prolongada. Mas, por esta guerra ser uma guerra exclusivamente dele, e por ele não conseguir admitir nenhum tipo de derrota, Putin poderia continuar dobrando sua aposta na Ucrânia até – talvez – considerar o uso de uma arma nuclear.

Os equívocos de Putin

Por que eu digo que a derrota na Ucrânia é a única opção de Putin e apenas seu cronograma e tamanho estão em dúvida? Porque a invasão fácil e de baixo custo que ele idealizou e a festa de boas-vindas dos ucranianos que ele imaginou não passaram de completas fantasias – e tudo mais decorre disso.

Putin subestimou totalmente a vontade da Ucrânia de ser independente e se tornar parte do Ocidente. E subestimou totalmente a vontade de muitos ucranianos de lutar, mesmo que isso significasse morrer por esses dois objetivos. 

Ele superestimou totalmente suas próprias Forças Armadas. E subestimou totalmente a capacidade do presidente Joe Biden de galvanizar uma coalizão global, econômica e militar, para possibilitar aos ucranianos resistir, lutar e devastar a Rússia domesticamente – o mais eficaz esforço de formação de coalizão dos EUA desde que George Bush pai fez Saddam Hussein pagar pelo desvario de invadir o Kuwait.  

E Putin subestimou totalmente a capacidade de empresas e indivíduos de todo o mundo de tomar parte das sanções econômicas contra a Rússia e amplificá-las – para muito além do que foi iniciado ou determinado por governos.

Quando você se confunde tanto como líder, sua melhor opção é uma derrota menor e mais rápida. No caso de Putin, isso significaria retirar suas forças da Ucrânia imediatamente, contando alguma mentira que justificasse sua “operação militar especial”, como alegar que foi bem-sucedido em proteger russos que vivem na Ucrânia, prometendo ajudar seus irmãos russos na reconstrução. Mas a inescapável humilhação certamente seria intolerável para este homem obcecado em restaurar a dignidade e a unidade de sua Mãe Rússia.

Os riscos de uma humilhação 

A propósito, do jeito que as coisas vão na Ucrânia neste momento, existe a possibilidade de Putin poder, na verdade, sofrer uma derrota rápida e maior. Eu não apostaria nisso, mas a cada dia que mais e mais soldados russos são morto, quem sabe o que poderá acontecer com o espírito de luta dos conscritos do Exército russo recebendo ordens para combater numa mortífera guerra urbana contra irmãos eslavos, por uma causa que jamais lhes foi verdadeiramente explicada. 

 Dada a resistência de ucranianos de todos os cantos à ocupação russa, para Putin “vencer” militarmente, seu Exército precisará subjugar todas as grandes cidades da Ucrânia. Isso inclui a capital, Kiev – o que, provavelmente, exigirá semanas de guerra urbana e custará baixas civis massivas. 

Resumindo, isso só pode ser feito se Putin e seus generais perpetrarem crimes de guerra que não são vistos na Europa desde Adolf Hitler. Isso tornará a Rússia de Putin pária internacional permanentemente. 

Além disso, como Putin seria capaz de manter o controle de um país como a Ucrânia, que possui cerca de um terço da população da Rússia, com muitos moradores hostis a Moscou? Ele, provavelmente, teria de manter por lá cada um dos mais de 150 mil soldados que acionou para a invasão – ou mais – eternamente.

Não vejo nenhum caminho para Putin vencer na Ucrânia de alguma maneira que se sustente, simplesmente porque ele não invadiu o país que pensou ter invadido: um local que ansiava uma rápida decapitação de sua liderança “nazista”, para poder retornar gentilmente ao colo da Mãe Rússia. 

Guerra


O caminho mais fácil

Então, ou ele minimiza as perdas e aceita a humilhação – e, para sua sorte, consegue escapar das sanções, ressuscita a economia russa e se mantém no poder — ou encara uma guerra eterna contra a Ucrânia e grande parte do mundo, que consumirá gradualmente a força da Rússia e arruinará sua infraestrutura. 

Já que ele parece aferrado à segunda hipótese, estou apavorado. Porque só há uma coisa pior do que uma Rússia forte sob Putin: uma Rússia enfraquecida, humilhada e desordenada, que poderia se fraturar ou acabar em meio a uma prolongada turbulência política, com diferentes facções se engalfinhando pelo poder – e todas aquelas ogivas nucleares, todos aqueles cibercriminosos e todos aqueles poços de petróleo e gás dando sopa. A Rússia de Putin não é grande demais para não fracassar. Mas é grande demais para fracassar sem levar junto o restante do mundo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO 

Até logo


Casal se despede enquanto a mulher embarca em um trem na estação de Kiev com destino a Lviv, oeste da Ucrânia. Foto: Vadim Ghirda / AP

Thomas L. Friedman, O Estado de S.Paulo, 10 de março de 2022 | 05h00. Original do The New York Times. Tradução do inglês para o portugues: Guilherme Russo.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Congresso mantém brecha no orçamento secreto e deixa verba à mercê de acordos políticos

Sistema lançado pela Comissão Mista de Orçamento organiza a indicação das verbas, mas deixa como optativa a divulgação dos padrinhos dos recursos

O Congresso manteve em segredo os verdadeiros padrinhos das emendas do orçamento secreto e deixou os recursos à mercê dos acordos com o governo federal, em troca de votos no Legislativo. A Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso lançou nesta quarta-feira, 9, um sistema para organizar a indicação das verbas, uma exigência do Supremo Tribunal Federal (STF), mas deixou como optativa a divulgação do nome dos parlamentares que apadrinham os recursos. (Foto: Daniel Teixeira / Estadão)

O movimento contraria decisão do Supremo, que determinou ampla publicidade às indicações. O orçamento secreto somará R$ 16,5 bilhões neste ano. Como apurou o Estadão/Broadcast Político, R$ 11,5 bilhões ficarão com a Câmara e R$ 5 bilhões com o Senado. 

O esquema do orçamento secreto foi revelado em uma série de reportagens do Estadão, no ano passado. Os recursos são carimbados por parlamentares, que escolhem a destinação para beneficiar redutos políticos, e liberados pelo governo em troca de apoio político. No sistema, deputados e senadores poderão cadastrar suas indicações, apontando as ações e os municípios que devem receber os recursos. Não há, no entanto, critérios claros para o rateio da verba.

Caberá ao relator do Orçamento de 2022, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), dar o parecer sobre as propostas. Prefeitos, governadores, instituições privadas e cidadãos comuns também poderão indicar recursos. De acordo com parlamentares críticos ao modelo e especialistas, aí está a brecha para os verdadeiros padrinhos permanecerem ocultos: o recurso pode ser carimbado por quem vai receber o dinheiro, escondendo o verdadeiro dono da escolha.

Além disso, a emenda pode ficar sob o nome do próprio relator, a critério dos parlamentares. Nos últimos dois anos, o governo distribuiu esses recursos sem deixar claro os parlamentares beneficiados com o esquema.

Atualmente, a liberação dos recursos está sob controle do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, caciques do Centrão. As verbas sob o guarda-chuva da Câmara estão organizadas e deputados aliados de Lira devem ser beneficiados, conforme relatos nos bastidores.

O impasse está no Senado, onde o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ainda não assumiu a chancelaria das escolhas. Senadores cobram uma definição até o fim desta semana, afinal, querem saber quem cuidará da chave do cofre e definirá quais partidos serão privilegiados nas escolhas.

"Todas (as indicações) terão identificação. Será obrigatório porque vai ter a indicação do parlamentar, haverá a indicação de um parlamentar", disse Hugo Leal, em referência àquelas emendas em que os deputados e senadores escolhem carimbar. No caso das indicações de prefeitos, governadores e entidades, no entanto, ele afirmou que a identificação do congressista será opcional: "Vai levar o número para o parlamentar que indicou, no desejo da pessoa que queira indicar. Este campo não terá incidência obrigatória."

A lacuna causou críticas de parlamentares que são contra a dinâmica do orçamento secreto e ficam fora dos acordos da cúpula do Congresso. "Isso é uma coisa que tem que ser obrigatória, isso não é uma coisa que tem ser facultativa porque mostra claramente que o orçamento está capturado por forças estranhas e uma nuvem negra que a gente nem sabe", afirmou a deputada Adriana Ventura (Novo-SP).

Outro problema apontado pelos órgãos de controle que julgaram o orçamento secreto no ano passado é que os recursos privilegiam parlamentares que votam com o governo. De acordo com os congressistas, essa dinâmica não mudará, apesar da tentativa de aumentar a transparência. "Não vá se iludir aqui que quem é oposição ao governo e à base do governo vai receber da mesma forma do que quem dá sustentação ao governo", disse o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), vice-presidente da Comissão Mista de Orçamento (CMO).

O lançamento do sistema ocorreu na semana em que se encerra o prazo de cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para dar transparência aos dados das emendas atuais e daquelas liberadas em 2020 e 2021. Na prática, o movimento pode provocar um novo questionamento aos recursos, que chegaram a ser suspensos no ano passado.

Meu pedido aqui é de uma ação enérgica dos presidentes da Câmara e do Senado para publicarem aquilo que eles se comprometeram. Quando a Rosa Weber suspendeu a liminar dela, havia esse compromisso, e certamente isso influenciou na decisão dela. Se nós não fizermos nossa parte, ela pode rever a decisão dela", disse o senador Marcelo Castro (MDB-PI).

Como o Estadão mostrou no mês passado, após o Supremo liberar a execução do orçamento secreto, deputados e senadores continuam a desrespeitar as determinações sobre os critérios de transparência que devem ser adotados no repasse de verbas públicas e promovem nova farra bilionária com recursos do orçamento secreto. 

Entre 13 e 31 de dezembro, o relator-geral do Orçamento de 2021, senador Márcio Bittar (PSL-AC), registrou no site do Congresso indicações no valor de R$ 4,3 bilhões, mas os nomes dos congressistas que apadrinharam os pedidos foram ocultados em 48% dos repasses. 

Na tentativa de evitar que os responsáveis pelas transferências aparecessem, Bittar relacionou prefeitos, vereadores, representantes de entidades sem fins lucrativos e até pessoas que não têm cargo público como autores de quase metade das indicações. 

No papel, eles são autores de pedidos que somam pouco mais de R$ 2 bilhões, aprovados pelo relator-geral. Os políticos que endossaram os repasses, no entanto, tiveram os nomes preservados.

Daniel Weterman e Breno Pires, O Estado de S.Paulo, em 09 de março de 2022 | 19h40

'O nosso inimigo é a oligarquia, não a Rússia', diz biógrafo de Stalin

Em entrevista ao podcast Uncommon Knowledge,  Stephen Kotkin, autor de três livros sobre Stalin, explica por que é preciso conter Putin e seus aliados próximos

'O nosso inimigo é a oligarquia, não a Rússia', diz biógrafo de Stalin

'Putin quer tomar o Mar Negro e inutilizar a Ucrânia'

O historiador Stephen Kotkin, de Princeton, autor de três livros essenciais sobre Stalin: "Putin não entendeu quão forte era a Rússia, quão fraca era a Ucrânia e, qual seria a resposta ocidental" Foto: Eduardo Munoz/Reuters

Existem duas grandes visões opostas, mas não necessariamente excludentes, sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. A primeira se desenvolveu no Ocidente tendo como base o pensamento de Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, ecoando os russos Aleksandr Solzhenitsyn e Mikhail Gorbachev.

Por essa visão, a Ucrânia seria inseparável da Rússia. São povos que comungam uma mesma raiz étnica e cultural. Kiev, hoje capital da Ucrânia, foi o centro da primeira experiência de uma Rússia unificada, sonho desfeito pela conquista Mongol no século XI. É uma visão que valoriza o empuxo histórico profundo e acredita no poder intangível de uma Alma Russa.

A segunda grande visão tem sua matriz no pensamento pragmático de George Kennan, diplomata lendário nos Estados Unidos por ter formulado os princípios fundamentais da convivência não catastrófica com a União Soviética, cuja expressão cínica foi a Guerra Fria. Essa visão se define por considerar que as oligarquias totalitárias (a comunista, antes, e a cleptocracia de Putin, agora) não representam o povo russo, sendo elas os verdadeiros inimigos. Por essa matriz de pensamento, as tiranias que se abatem periodicamente sobre o povo russo precisam ser "contidas" com toda a energia disponível. Contenção é o conceito-chave.

Essa linha de pensamento orbita hoje em torno de Stephen Kotkin, da Universidade de Princeton, autor de três livros essenciais sobre Josef Stalin. Kotkin diz que nos quase 25 anos de independência recente o povo ucraniano escolheu ser europeu e ocidental, o que parece demonstrado pela resistência ardorosa ao invasor russo e o maior êxodo da história recente da Europa — com a fuga de quase 2 milhões de ucranianos, a maioria mulheres e crianças.

Kotkin defende que é preciso conter o inimigo Putin e seus aliados próximos. Ele celebra o fato de que, depois da invasão, o Ocidente se uniu rapidamente em torno de seus valores históricos: capital humano, democracia, liberdade de expressão, economia aberta e instituições fortes.

O professor de Princeton sustenta, em explanação feita ao podcast Uncommon Knowledge , que a guerra na Ucrânia mudou o curso da história contemporânea, fazendo renascer o Ocidente como ideia – mandando também uma mensagem clara para a China sobre o compromisso ocidental com a independência de Taiwan.

A Ucrânia não é da Rússia

Discordo de Henry Kissinger. (o ex-secretário de Estado publicou em 2014, durante a crise da Crimeia, um artigo no Washington Post no qual argumentou que a Ucrânia, pela história próxima com a Rússia, teria de servir de ponte com o Ocidente, mas nunca seria um país totalmente dissociado do Kremlin).

A Ucrânia é um país separado, independente e soberano em relação à Rússia. Isso é verdade desde 1991, e deve ser verdade daqui para frente. A guerra é sempre um erro de cálculo parcial ou total. Você calcula mal o quão forte você é, quão fraco é o inimigo, e quão fácil vai ser. São cálculos errados de quão baixos serão os custos, quão grandes serão os benefícios.

O susto de Putin

Está muito claro que Putin não entendeu quão forte era a Rússia, quão fraca era a Ucrânia e, acima de tudo, qual seria a resposta ocidental. Antes da guerra, muitos subestimavam a sociedade ucraniana. Muitos subestimaram o presidente da Ucrânia, pensaram que os europeus não se levantariam e fariam sacrifícios.

A invasão russa foi iniciada em 24 de fevereiro e causou a pior crise de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Foto: Alexey Nikolsky/AFP - 24/2/2022

Muitos pensaram que o presidente Biden não estava à altura, especialmente depois do fiasco no Afeganistão. Além disso, muita gente pensou que o Exército russo é sério, bem administrado e modernizado. Portanto, há muitas suposições nas quais uma guerra se baseia e quando essas suposições estão erradas, tudo pode parecer insano.

A inteligência do Ocidente funcionou

As agências de inteligência dos EUA estavam certas desta vez. E essa informação foi compartilhada em tempo real com os aliados europeus, mostrando a eles as capacidades e possíveis intenções da Rússia e prevendo que eles invadiriam. As agências de inteligência, com os britânicos, acertaram em cheio nisso.

Depois reuniram publicamente o apoio do Ocidente de uma maneira realmente grande. Parabéns às agências de inteligência que levaram uma surra ultimamente, nas últimas duas décadas no Iraque e em muitas outras questões. Eles acertaram nessa. Essa é uma grande questão, não apenas para a Rússia, mas também para a China.

O heroísmo dos ucranianos

Tudo aqui é sobre o povo ucraniano e o governo ucraniano em primeiro lugar. Eles estão na linha de frente, estão morrendo. Os russos estão bombardeando hospitais infantis. Isso é o que está acontecendo. E os ucranianos se recusam a capitular. Eles estão resistindo, estão desarmados. Mas eles têm a determinação de lutar por seu próprio país. E aquela fibra dos ucranianos, que surpreende os russos, surpreende os europeus, surpreendeu muita gente em Washington, que tinha uma opinião ruim da sociedade ucraniana.

Ucrânia - Resistêcia - Civis

Na vila de Hushchiiyntsi, moradores cavam uma trincheira e preparam um bunker para retardar o avanço das tropas russas  Foto: Brendan Hoffman/The New York Times

As pessoas têm medo de trazer informações ruins para o autocrata. E o autocrata acha que sabe mais do que ninguém, e começam a acreditar em sua própria propaganda. Carecem dos mecanismos corretivos das eleições e de homens sábios dos bastidores que aparecem e dizem: “Sabe, Sr. Presidente, isso pode não ser uma boa ideia”.

Quem faz isso no caso russo ou no caso chinês agora? Ninguém. E isso é uma grande força para uma democracia. Não é preciso ter as pessoas mais inteligentes nos cargos para ter esses mecanismos corretivos.

A expansão da Otan foi só um pretexto

Eu não usaria a palavra “democrata” para muitos que se autodenominavam democratas. Yeltsin era um autoproclamado democrata e nomeou Putin para dar poder à Constituição que Yeltsin criou em 1993. A Constituição foi usada por Putin para criar um regime autocrático. Yeltsin chegou ao poder antes de Putin. Membros da KGB em massa, incluindo Putin, também. Portanto, há um mal-entendido sobre a democracia na Rússia nos anos 90.

Há processos internos na Rússia de Putin, que começaram na Rússia de Yeltsin, que antecedem a ambos em muito, muito tempo, e remontam à autocracia, à repressão, ao militarismo, à suspeita de estrangeiros. Estas não são reações a algo que o Ocidente faz ou deixa de fazer. São processos internos que tiveram uma dinâmica própria e a expansão da Otan se tornou um pretexto ou uma desculpa post facto.

Há muitos anos estamos nessa autoflagelação. Vamos imaginar que não houvesse expansão do perímetro de segurança da Otan, onde estariam esses países agora? Onde estariam a Checoslováquia, Polônia, Estônia, Letônia, Lituânia, onde estariam agora? Eles estariam potencialmente no mesmo lugar que a Ucrânia. Assim, a causalidade é oposta aqui.

A Otan ameaça Putin e sua gangue, não o povo russo

O maior erro de todos é quando nós, o Ocidente, confundimos a Rússia com o seu regime. Putin se sente inseguro, a Otan o ameaça pessoalmente em sua mente. A UE ameaça Putin, a democracia o ameaça, a ele e a seu regime. Mas isso ameaça a Rússia? Ameaça a segurança russa? Uma democracia cheia de falhas como a Ucrânia ameaça a segurança de uma nação gigante, uma civilização completa como a Rússia? Sejamos honestos, não. Isso nunca aconteceu. E, portanto, é uma ameaça fictícia e é uma fusão de um país e sua segurança com um indivíduo e seu regime de gângsteres, místicos e cleptocratas.

Desde que pagou um alto preço pela anexação da do território ucraniano em 2014, a Rússia tentou tornar sua economia à prova de sanções e isolamento.

Então, sinto muito, mas devo discordar de muitos eminentes analistas e dizer que a Otan não é responsável pelo regime de Putin ou pela guerra na Ucrânia. A capacidade dos países de escolher sua política externa e suas alianças voluntariamente está inscrita na carta da ONU. Está escrito na Lei de Helsinque de 1975, na Carta de Paris de 1990 para uma nova Europa, no Ato Fundador da Otan com a Rússia de 1997.

Se as assinaturas da Rússia em cada um desses documentos, e Moscou assinou a carta da ONU, o Ato Final de Helsinque, a Carta de Paris em 1990 e a fundação da Otan, que não coloca nenhum limite à expansão da aliança. A assinatura de Boris Yeltsin está nela. As obrigações internacionais e a liberdade e a defesa da liberdade estão de um lado, e Vladimir Putin e seu regime de gângsteres e sua invasão não provocada da Ucrânia estão do outro lado.

Faltou diplomacia

A expansão da Otan funcionou para o Ocidente, mas não quer dizer que por si só tenha sido uma política inteligente. O problema com a política americana em relação à Rússia, como sempre, é a síndrome de Pigmalião. Ir aos países, transformá-los, transformar sua personalidade. Sempre gostamos de pensar que, se outro país tiver a oportunidade, está morrendo de vontade de se tornar como os EUA. E isso não é verdade.

China e Rússia têm sua própria história, sua própria cultura, suas próprias instituições e seu próprio orgulho. E assim, quando o esforço Pigmalião na Rússia previsivelmente explodiu na cara dos EUA, em paralelo à expansão da Otan, o Pigmalião foi abandonado. Mas se continuou a expansão da Otan. E não havia diplomacia real levando em conta quaisquer interesses estratégicos que a Rússia tivesse. Os EUA ficaram abertos à surpresa de que Putin tinha o poder de fazer algo sobre o acordo injusto. E ele fez. Mas isso não deve ser confundido com a expansão da Otan.

O papel das elites russas

As elites russas precisam de uma participação na ordem internacional. E essa aposta significaria que, em vez de serem incentivados a perturbar e derrubar, eles seriam incentivados a ajudar. Mas não podemos permitir que essa ordem internacional estável seja usufruída às custas da liberdade de outros países. Não podemos entregar a liberdade de outros países.

O mundo multipolar é uma ilusão

A invasão de Putin da Ucrânia é uma enorme oportunidade. Venho argumentando há muito tempo que o Ocidente é incrivelmente poderoso, tem todas as instituições, todo o capital humano, toda a tecnologia, todo o poder. E mesmo assim não entende isso. Aqui estamos no Ocidente, falando sobre como estamos em declínio.

Estamos falando sobre como o sistema transatlântico não é necessário ou não funciona mais. Estamos falando sobre como a Otan é flácida, talvez esteja com morte cerebral e devesse ir embora. Estamos falando sobre como não podemos ensinar sobre a Civilização Ocidental em nossas universidades porque é demais. Mas isso é um absurdo. O Ocidente é incrivelmente poderoso.

O que começou como uma troca de acusações, em novembro do ano passado, evoluiu para uma crise internacional com mobilização de tropas e de esforços diplomáticos

O poder das instituições

Só precisamos lembrar que os Estados Unidos são uma superpotência. Têm o sistema financeiro. Criam a tecnologia, a biotecnologia, e qualquer outra esfera que você possa nomear. Tem as instituições, a separação de poderes, o estado de direito. Defendem a liberdade, a propriedade privada.

Vamos parar com esse absurdo, com essa autoflagelação, e com essa conversa sobre um mundo multipolar que não existe. Não precisamos nos envergonhar por nossa civilização. O Ocidente não é um termo geográfico. É um pacote institucional. A Rússia é europeia, mas não ocidental. O Japão é ocidental, mas não europeu.

O heroísmo de Zelenski

O presidente Zelenski, mesmo em grande perigo pessoal, permaneceu em Kiev para liderar o esforço de guerra que nos galvanizou para lembrar quem somos. É extremamente cedo na guerra e não queremos exagerar, mas esse tipo de heroísmo, em circunstâncias muito difíceis, é incrível.

Redação, O Estado de S.Paulo, em 09 de março de 2022 | 05h00

Quando Putin me disse que nunca confiou em ninguém

O ex-comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa relembra suas negociações com o presidente russo durante a guerra na Chechênia

Vladimir Putin no sábado, 5 de março, nos arredores de Moscou. (Mikhail Klimentyev (AP)

Quando, no outono de 1999, iniciei meu mandato como Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, o que se tornaria a segunda guerra na Chechênia estava apenas começando.

Um confronto armado causado por um grupo de chechenos, liderado por um fanático como Shamil Basayev , acompanhado por milícias islâmicas, que invadiram a vizinha república do Daguestão, e proclamaram o objetivo final de estabelecer um califado no Cáucaso.

Uma loucura que, além de arruinar os esforços dos mais moderados, para construir uma República Chechena em paz, permitiu ao exército russo uma vingança cruel e sangrenta , pela humilhação da primeira guerra, perdida sob o mandato de Boris Yeltsin . E o recém-chegado presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, forja uma imagem de um governante duro e implacável, que reivindicou a manchada honra nacional. Naqueles tempos, começou a ser forjado o presidente que é hoje, um presidente de guerra , que despreza os fracos governantes do Ocidente e parece acreditar apenas na força como meio para atingir os objetivos que se propõe como governante.

Foi com o recém-chegado Presidente Putin que tive de lidar durante aqueles anos de guerra e pós-guerra. Foram várias longas conversas que me permitiram vislumbrar que, por baixo da frieza com que me ouvia narrar as brutalidades do exército russo em solo checheno e a necessidade de pôr fim a essa barbárie e fazer justiça aos crimes contra os indefesos população, ele ainda valorizava a utilidade de fazer alguns gestos, de acordo com o que lhe era pedido, mesmo que fosse por razões puramente táticas.

Lembro-me que, no meu regresso de uma dessas visitas à república chechena, ele me recebeu na famosa mesa comprida, mas desta vez cara a cara e, à parte, sem os microfones que gravavam toda a conversa. Eu lhe disse que ele tinha que acabar com as barbaridades cometidas por seu exército na Chechênia, reprimindo qualquer ataque, com o bombardeio imediato e indiscriminado de uma população nas montanhas ou onde quer que fosse. Criando mais vítimas e ódio.

Ele me ouviu com atenção e respondeu que não tinha outro exército, mas que prometeu tirá-lo da linha de frente em dois meses e entregar a responsabilidade de garantir a segurança geral aos homens de Ramzan Kadyrov. Sabendo da brutalidade e crueldade dessas unidades chechenas leais à Rússia, perguntei se ele confiava nelas para acabar com esses abusos, e ele me disse enfaticamente que nunca confiava em ninguém.

Ele manteve sua palavra e o bombardeio indiscriminado terminou, mas o poder de Kadyrov e sua ditadura na Chechênia foram reforçados. Hoje ele usa as forças sob seu comando para assustar os ucranianos . Como uma arma em parte psicológica, por sua conhecida crueldade e violência.

Aquele presidente Putin de mais de 20 anos atrás ainda escutava e mantinha um espaço de diálogo. Ele também foi cercado por pessoas com um humor diferente, como o então ministro das Relações Exteriores, Igor Ivanov , ex-embaixador na Espanha, um hábil e fino negociador, respeitoso com seus interlocutores, sem nunca usar linguagem agressiva. Ou Vladimir Lukin , ex-embaixador nos Estados Unidos com Yeltsin e Comissário para os Direitos Humanos, com quem trabalhei tanto e que me ajudou. Pessoas moderadas com uma linha direta com o Kremlin. Hoje isso é história. O presidente parece estar cercado apenas por bajuladores, que lhe dizem o que ele quer ouvir, falcões militares e os oligarcas que enriqueceram com ele.

Tenho de admitir que ele foi muito correcto comigo em termos de boas maneiras e duro nos resultados (nunca concordou com o meu pedido de abolição da pena de morte, embora tenha mantido a moratória), mas permitiu conversações informais de paz em Estrasburgo, o lançamento de um Provedor de “guerra”, para receber e investigar denúncias sobre desaparecimentos ou violações de direitos humanos, ou deu o seu consentimento para iniciar a busca dos desaparecidos de ambos os lados, a sua identificação e devolução às suas famílias, com o apoio da União Europeia. Uma operação que o Secretário-Geral do Conselho da Europa iria abortar, pouco depois do fim do meu mandato.

Ele concordou com várias outras recomendações que fiz a ele. Mas não é menos verdade que, ao longo dessas longas conversas, foi possível perceber uma pessoa profundamente magoada pelo Ocidente e o que ele chamou de sua incompreensão da Rússia, pelo menos de sua visão da Rússia. Com um pensamento nacionalista enraizado, ansiando por uma Rússia forte e respeitada no mundo, como na era soviética.

E, claro, muito longe de compartilhar os valores democráticos que caracterizam a Europa e que o Conselho da Europa representa, do qual a Federação Russa era membro. Bastante contradição. A última declaração conjunta com a China já deixa clara a sua crença em outros tipos de valores que, claro, não giram em torno do humanismo, nem do respeito pela dignidade das pessoas, da liberdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos humanos que caracterizam nosso modelo de sociedade democrática europeia.

Mas aquele presidente que eu conheci e com quem negociei não existe mais. Aqueles que, ao seu redor, buscavam a paz e a consolidação de uma democracia mínima foram varridos.

Ao longo do tempo pudemos verificar uma deriva autoritária sem dissimulação, perseguindo aqueles que lhe faziam oposição política, dissolvendo organizações civis que lhe incomodavam, especialmente aquelas que trabalhavam com instituições ocidentais ou delas recebiam fundos. O último a sucumbir a esta política totalitária foi o histórico Memorial . Foi precedida pela então Escola de Estudos Políticos de Moscovo, que realizou um trabalho extraordinário de formação de milhares de jovens em democracia, com o apoio do Conselho da Europa e da União Europeia, e com a qual sempre colaborei, que tem foi fechado e seu endereço exilado na Lituânia.

A justiça é um aparato institucional cuja independência se destaca por sua ausência. Parlamento, um brinquedo nas mãos do partido único. A mídia oficial domina tudo. Os poucos independentes que restaram foram jornalistas fechados e perseguidos criminalmente, com uma lei que uma Duma servil aprovou em 24 horas.

A Rádio ECO de Moscou, à qual fui tantas vezes para falar sobre a situação dos direitos humanos na Rússia e especialmente na Chechênia, acaba de ser fechada. Foi a última voz interna de informação divulgada. Como na era soviética, que o presidente admira, a dissidência não é permitida e a verdade oficial é a única que é transmitida ao povo. Em suma, hoje a Rússia está deslizando para uma ditadura, pura e simples.

Mas aqui também Putin está errado. Hoje existe um mundo paralelo de canais de informação, praticamente incontrolável. E não importa o quanto ele tente intoxicar seu povo , a verdade será conhecida sobre essa agressão contra a Ucrânia, sobre essa guerra imperialista e violadora da ordem internacional. É verdade que não é a única ilegal a que assistimos nos últimos tempos, mas não é menos condenável por isso.

Por outro lado, conseguiu que a União Europeia desse um passo de gigante , com todas as medidas adotadas para enfrentar essa agressão contra um país europeu. E a convicção de que é preciso fortalecer uma política externa e de defesa comum cresceu na opinião pública e entre as forças políticas.

Mas não devemos cometer o erro de julgar o povo russo pelos delírios e atitudes de seu atual presidente, que, não se engane, não é louco. Em absoluto. Tudo o que ele faz e como o faz responde à sua concepção profunda do exercício do poder, das relações de poder no mundo. A única coisa que hoje entende e respeita. Tampouco é apreciado pelo povo russo o mesmo apoio que despertou a invasão da Crimeia. Não há manifestações espontâneas em apoio à guerra. Pelo contrário, uma parte significativa dos cidadãos está nos mostrando sua coragem, manifestando-se contra isso, e há milhares de detidos. Dando testemunho de resistência à ditadura.

Por último, não esqueçamos que, apesar de todo o horror que estamos vendo, devemos fazer um esforço para deixar aberta uma possibilidade de negociação para acabar com esta guerra; e ainda acho que o Ocidente deveria poder usar a plataforma do Conselho da Europa, da qual a Rússia foi suspensa, mas não expulsa, para abrir esse espaço de diálogo, por mais difícil que seja. Foi feito com a guerra da Chechênia e devemos tentar novamente hoje. Devemos isso às vítimas dessa barbárie, incluindo os próprios russos, os jovens soldados que estão morrendo e que, como contou a romancista Svetlana Alexievitch, em breve começarão a ser entregues às mães, em caixões de zinco.

Álvaro Gil-Robles, o autor deste artigo, foi Provedor de Justiça espanhol (1988-1993) e o primeiro Comissário dos Direitos Humanos do Conselho da Europa (1999-2006). Publicadoo originalmente no EL PAÍS, em 09.03.22.

Religião vai à guerra na Ucrânia

Os católicos se mobilizam com o exército ucraniano enquanto as comunidades ortodoxas se separam por sua fidelidade a Kiev ou Moscou

 

Um soldado ucraniano reza na Igreja dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, em Lviv, Ucrânia. (Jaime Villanueva)

Nos aposentos da Catedral da Assunção de Lviv, no oeste da Ucrânia, vive uma mulher acolhida por Dom Macário. Chama-se Nina Nemerovska e é professora de línguas na Academia Militar da Universidade Politécnica de Kharkov. Esta cidade, a 800 quilómetros de Lviv, sofre um dos cercos mais violentos da guerra . Ela tem 70 anos, é baixinha e usa uma boina vermelha que cobre metade da cabeça. Nemerovska tem sido um militante proeminente para separar a Igreja Ortodoxa Ucraniana da obediência ao Patriarca de Moscou. "Em Kharkiv, aqueles que marcam os edifícios a serem bombardeados pelos aviões do invasor são vizinhos fiéis da Igreja russa", diz este filólogo.

A fé na Ucrânia tem um peso proeminente na identidade nacional e também desempenha seu papel no conflito. Na metade oriental da Ucrânia, de Kiev a Donetsk, a população crente é predominantemente ortodoxa. Esta, por sua vez, está dividida entre a Igreja Ortodoxa da Ucrânia e aquela dependente do Patriarcado de Moscou. A Igreja Ucraniana tornou-se oficial como independente de Moscou em 2019, depois de ser reconhecida como tal pelo Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, o líder ecumênico de todas as Igrejas Ortodoxas. A Igreja Russa rompeu com Constantinopla, com a casa universal dos ortodoxos.

O patriarca Kirill de Moscou atua como o braço espiritual do ultranacionalismo do presidente russo Vladimir Putin. Seus slogans a favor da guerra e contra os inimigos do chamado "mundo russo" têm sido constantes nos últimos anos. A guerra de 2014 em Donbass entre as forças separatistas pró-Rússia e o Estado ucraniano agravou ainda mais a distância entre as duas comunidades nacionais. A presença da cultura russa no leste da Ucrânia é significativa, também religiosamente. O mais importante templo ortodoxo da Ucrânia, o mosteiro das Cavernas de Kiev, deve lealdade a Kiril. Para o poder em Moscou, tanto terrestre quanto divino, este lugar é a origem do povo eslavo.

Várias pessoas rezam na Igreja dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, em Lviv, Ucrânia. (Jaime Villanueva)

Nemerovska denuncia que a propaganda nacionalista russa dos púlpitos ortodoxos em Donbas , Kharkov e Odessa tem sido a chave para muitos ucranianos de cultura russa acreditarem que estão em perigo e abraçarem a megalomania Putiniana . Os filhos de Deus estão em conflito e as palavras que se ouvem nos templos nem sempre são de paz.

A Paróquia Ortodoxa da Candelária fica a poucos passos da Biblioteca de Cinema de Lviv. Em seu auditório, foram organizados cursos por voluntários para aprender a usar armas . Alguns participantes param por um momento na paróquia para rezar. Seu pastor, Andrei Tiiachcenko, os abençoa e pede comida e remédios para os militares. Sua opinião sobre os russos é marcada pelo ódio. Questionado se a opinião pública russa a favor de Putin criticaria a invasão militar se houvesse imagens de igrejas ortodoxas destruídas, Tiiachcenko descarta: “A maioria dos russos não se importa, eles não são crentes, não têm moral. Eles só acreditam em álcool e violência.”

Na metade ocidental da Ucrânia, tendo Lviv como cidade de referência, a grande maioria dos fiéis são greco-católicos, ramo do catolicismo de rito bizantino e obediente ao Papa de Roma. Na região são os mais ativos com propaganda patriótica e religiosa. Uma oração está pendurada na estátua da Virgem Maria na Praça Miskevicha para os transeuntes recitarem, pedindo a Deus que proteja "aqueles que defendem a Ucrânia na frente com um rifle dia e noite". Não muito longe dali, outro cartaz pede uma oração "pela única Igreja da Ucrânia, pela vitória do bem sobre o mal".

As paróquias de Lviv multiplicaram o número de missas que celebram. Onde a arreón que a fé deu em tempo de guerra é mais evidente é na igreja de San Pedro e San Pablo. É a igreja militar greco-católica do exército ucraniano e onde os soldados vêm para serem abençoados. Seus padres também são capelães militares. De um lado desta maravilha barroca construída para os jesuítas no século XVII está uma bandeira com o rosto de Cristo e a bandeira ucraniana pregada numa cruz de madeira de bétula. Ao pé da cruz está o equipamento militar destruído de um ataque de forças pró-Rússia a um batalhão motorizado ucraniano em Lugansk. A bandeira era o símbolo deste batalhão. Ao lado estão os retratos de cinquenta soldados falecidos.

Roman, sacerdote da Igreja dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, em Lviv, na Ucrânia, verifica a comida e a ajuda que os fiéis deixaram durante a semana para os refugiados. (Jaime Villanueva)

Algo que diferencia os templos de Lviv dos da Espanha é a grande presença de jovens. Na igreja de Santa Olga e Santa Elisabet, Yuri Kusma preencheu um pedido de oração pelas unidades militares no front no domingo. Seus nomes foram lidos em uma das missas naquele dia. Kusma é guarda-costas de um escritório de advocacia. Ele não concebe outra Ucrânia além da cristã: "Seja católica ou ortodoxa, é o mesmo Deus e a mesma pátria".

Na catedral de São Jorge, padroeiro de Lviv, Anton Scherbak propõe outra abordagem à devoção religiosa na Ucrânia. 33 anos e ator de profissão, foi evacuado de Kharkiv para Lvivapós oito dias de bombardeio. Ele se apresenta como ateu e explica que veio à catedral para admirar sua arquitetura. Scherbak não tem dúvidas de que a desintegração da União Soviética e o desaparecimento desse Estado protetor causaram uma angústia coletiva que boa parte dos cidadãos tentou substituir por "crenças pouco racionais". Scherbak concorda com Nemerovska que, no leste da Ucrânia, a Igreja Russa "é uma máquina de manipulação a soldo do Kremlin". Ele também admite que a Igreja ucraniana desempenha um papel identitário que ele afirma entender em parte: “Antes da guerra, eu nunca teria dito que poderia amar meu país. O que ele queria era ir para a Inglaterra estudar. Agora eu mudei."

Alexi Khreptak, padre da Igreja Ortodoxa Candlemas em Lviv, Ucrânia. (Jaime Villanueva)

Os vitrais da Catedral Ortodoxa da Assunção são protegidos com placas para evitar que possíveis bombardeios os destruam. Em uma de suas salas, os paroquianos beijam um ícone da Virgem que lembra a proteção milagrosa que concedeu aos cossacos ucranianos contra as invasões do Império Otomano no século XVI. O diácono da catedral, Yuri Fediv, destaca a devoção ucraniana à Virgem Maria como símbolo de paz. Perguntado se eles se comunicam com as igrejas locais de obediência ao Patriarca de Moscou, Fediv responde sem rodeios: "Não temos nenhum relacionamento".

Cristian Segura, Enviado Especial do EL PAÍS a Lviv (Ucrânia), em 09.03.22. Cristian escreve para o EL PAÍS desde 2014. Formado em Jornalismo e diplomado em Filosofia, exerce sua profissão desde 1998. Foi correspondente do jornal Avui em Berlim e depois em Pequim. É autor de três livros de não-ficção e dois romances. Em 2011 recebeu o prêmio Josep Pla de narrativa.

terça-feira, 8 de março de 2022

Guerra na Ucrânia: garoto de 11 anos foge sozinho do país em percurso de 1.200 km

Hassan mora em Zaporizhzhia (cidade ucraniana onde está a usina nuclear alvo de bombardeios). Ele deixou o país sozinho porque sua mãe teve que cuidar da avó de Hassan, que é idosa.

Hassan recebeu comida e auxílio por voluntários e seus parentes quando chegou a Bratislava (Crédito: Governo da Eslováquia)

Um garoto de 11 anos chegou em segurança à Eslováquia após viajar 1.200 km a partir do leste da Ucrânia com nada mais do que uma sacola plástica, uma mochila, o passaporte e o número de telefone de parentes no país anotado na mão.

Ele embarcou em um trem e, quando finalmente cruzou a fronteira, foi recebido por funcionários da alfândega.

Já em território eslovaco, foi recebido como herói.

Hassan anotou na mão o número de telefone dos parentes na Eslováquia (Crédito: Governo da Eslováquia)

Com seus poucos pertences, o garoto recebeu comida e água de voluntários enquanto era feito contato com os parentes em Bratislava, a capital eslovaca.

A mãe de Hassan, em um vídeo postado pela polícia eslovaca, agradeceu a todos por cuidar do filho e explicou a decisão de colocar o filho sozinho em um trem.

"Perto da minha cidade está a usina nuclear atingida pelos russos. Eu não podia deixar minha mãe - ela precisa de ajuda para se locomover. Então decidi mandar meu filho para a Eslováquia", disse Julia Pisecka, que é viúva.

A usina nuclear em Zaporizhzhia é a maior da Europa. Foi tomada pelas forças militares russas no último fim de semana. O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky disse que havia risco de um desastre maior do que o ocorrido em Chernobyl em 1986.

Hassan é uma das mais de 2 milhões de pessoas que fugiram da Ucrânia após o início da ofensiva russa. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 1,2 milhão de refugiados seguiram para a Polônia. A Eslováquia recebeu mais de 140 mil.

Ucraniana Julia Pisecka agradeceu a todos que cuidaram de seu filho

Muito emocionada, a mãe de Hassan pediu que todos as crianças ucranianas encontrem um lugar seguro do conflito.

Um funcionário do Ministério do Interior da Eslováquia afirmou que Hassan ganhou a todos com seu sorriso, determinação e coragem.

Após contato telefônico, os parentes em Bratislava buscaram Hassan.

O ministro Roman Mikulec se encontrou com o garoto na última segunda (07/03) e disse que foi pedida proteção temporária na Eslováquia.

Mikulec afirmou que doações para a mãe e a avó de Hassan está sendo feitas através da associação cristã ZKSM.

BBC News, em 08.03.22

Guerra na Ucrânia: 'Minha cidade está sendo bombardeada, mas minha mãe na Rússia não acredita em mim'

"Mas mesmo que se preocupem comigo, eles ainda consideram que isso provavelmente acontece apenas por acidente, que o exército russo nunca teria civis como alvos. E que são os ucranianos que estão matando seu próprio povo."

Oleksandra diz que sua mãe repete as narrativas do que ouve na TV estatal russa

Oleksandra e seus quatro cães estão abrigados no banheiro de seu apartamento em Kharkiv desde o início do bombardeio.

"Quando ouvi as primeiras explosões, saí correndo de casa para tirar meus cães dos cercados em que eles ficam. As pessoas estavam em pânico, abandonando os carros. E eu estava com tanto medo", diz ela.

A jovem de 25 anos tem falado regularmente com a mãe, que mora em Moscou. Mas nessas conversas, e mesmo depois de enviar vídeos de sua cidade natal fortemente bombardeada, Oleksandra não consegue convencer a mãe sobre o perigo que corre.

"Eu não queria assustar meus pais, mas comecei a dizer diretamente a eles que civis e crianças estão morrendo", diz.

"Mas mesmo que se preocupem comigo, eles ainda consideram que isso provavelmente acontece apenas por acidente, que o exército russo nunca teria civis como alvos. E que são os ucranianos que estão matando seu próprio povo."

É comum que os ucranianos tenham família do outro lado da fronteira com a Rússia. Mas, para alguns, como Oleksandra, os parentes russos têm uma compreensão contrastante do conflito. Ela acredita que isso se deve às histórias contadas pela mídia russa rigidamente controlada pelo governo.

Os cães de Oleksandra foram uma fonte de apoio durante o bombardeio

Oleksandra diz que sua mãe apenas repete as narrativas do que ouve nas TVs estatais russas.

"Realmente me assustou quando minha mãe citou exatamente a TV russa. Eles estão apenas fazendo lavagem cerebral. E as pessoas confiam neles", diz.

"Meus pais entendem que alguma ação militar está acontecendo aqui. Mas eles contraargumentam: 'Os russos vieram para libertá-los. Eles não vão estragar nada, eles não vão tocar em você. Eles estão apenas mirando em bases militares'."

Enquanto A BBC entrevistava Oleksandra, o bombardeio continuou. A conexão com a internet era fraca, então foi necessário continuar a conversa por meio de mensagens de voz.

"Eu quase esqueci como é o silêncio. Eles estão bombardeando sem parar", disse.

Nos canais de TV estatais russos, no mesmo dia, não houve menção aos mísseis que atingiram os bairros residenciais de Kharkiv, às mortes de civis ou às quatro pessoas mortas na fila por água.

Os canais de TV estatais russos justificam a guerra culpando a agressão ucraniana e continuam chamando-a de "uma operação especial de libertação". Qualquer veículo russo que use as palavras "guerra", "invasão" ou "ataque" é bloqueado pelo órgão regulador de mídia do país por divulgar "informações deliberadamente falsas sobre as ações de militares russos" na Ucrânia.

Canais de televisão populares dizem que a ameaça aos civis ucranianos não vem das forças armadas russas, mas de nacionalistas ucranianos que usam civis como escudos humanos.

Alguns russos saíram às ruas para protestar contra a guerra, mas essas manifestações não foram noticiadas nos principais canais de televisão estatais.

Mykhailo, um conhecido dono de restaurante de Kiev, não teve tempo nem disposição para assistir à cobertura da invasão na TV russa.

Quando o bombardeio da capital da Ucrânia começou, ele e a esposa estavam se concentrando em como proteger a filha de seis anos e o filho bebê.

Mykhailo com seu pai antes da guerra

À noite, seus filhos acordavam ao som de explosões e não paravam de chorar. A família tomou a decisão de se mudar para os arredores de Kiev e depois fugir para o exterior.

Eles viajaram para a Hungria, onde Mykhailo deixou a esposa e os filhos e voltou para a Ucrânia Ocidental para ajudar no esforço de guerra.

Ele ficou surpreso por não ter notícias do pai, que trabalha em um mosteiro perto de Nizhny Novgorod, na Rússia.

Ele ligou para o pai e descreveu o que estava acontecendo. Seu pai respondeu que isso não era verdade, não houve guerra e os russos estavam salvando a Ucrânia dos nazistas.

Mykhailo disse que sentia que conhecia o poder da propaganda russa, mas quando a ouviu de seu próprio pai, ficou arrasado.

"Meu próprio pai não acredita em mim, sabendo que estou aqui e vejo tudo com meus próprios olhos. E minha mãe, ex-mulher dele, também está passando por isso", diz.

"Ela está se escondendo com minha avó no banheiro, por causa do bombardeio."

A mídia russa tem sido rigidamente controlada por muitos anos e os espectadores têm uma visão acrítica do país e de suas ações ao redor do mundo.

"A narrativa do Estado só mostra a Rússia como o mocinho da história", diz Joanna Szostek, especialista em Rússia e comunicações políticas da Universidade de Glasgow, na Escócia.

"Mesmo nas histórias que contam sobre a Segunda Guerra Mundial, a Grande Guerra Patriótica, a Rússia nunca fez nada de errado. E é por isso que eles não vão acreditar nisso agora."

A maioria dos russos, explica a especialista, não procura outros pontos de vista. A narrativa unilateral que é altamente crítica aos demais países ajuda a explicar por que os russos podem ter visões opostas aos seus parentes que moram do outro lado da fronteira.

"As pessoas que criticam a Rússia há muito tempo são apresentadas como traidoras. Os críticos são todos agentes estrangeiros trabalhando para o Ocidente. Então você nem acredita na própria filha."

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Os pais de Anastasiya vivem em uma pequena vila a 20 km de distância da República Popular de Donetsk, controlada pelos rebeldes apoiados pelos russos.

A vila ainda está sob o controle das autoridades de Kiev, mas os canais de TV estatais russos estão sempre ligados em casa. Eles até têm o relógio ajustado para o horário de Moscou, quase como uma volta ao passado soviético.

Quando, em 24 de fevereiro, Anastasiya acordou em Kiev ao som de sirenes, ela sabia como seus pais reagiriam.

"Minha mãe foi a primeira pessoa para quem liguei quando pulei da cama às cinco horas, desorientada. Ela ficou surpresa por eu ter ligado e parecia muito calma, quase casual", conta.

Anastasiya, uma correspondente da BBC ucraniana que se mudou para Kiev há 10 anos, ouviu bombas explodindo depois de acordar e estava preocupada sobre onde seria o próximo alvo.

Anastasiya — e seu gato Freddie — precisaram sair. Estão num abrigo antiaéreo 

"Liguei para minha mãe novamente. Disse a ela que estava com medo. 'Não se preocupe', me respondeu, tranquilizadora. 'Eles [Rússia] nunca vão bombardear Kiev'."

Mas eles já estão fazendo isso, contrapôs Anastasiya.

"Eu disse a ela que havia baixas entre civis. 'Mas foi o que tivemos também quando a Ucrânia atacou Donbas!', ela disse, rindo. Por um momento eu não conseguia respirar. Ouvir minha mãe dizer isso com tanta crueldade partiu meu coração."

Anastasiya acredita que a imagem que a mídia russa criou é a do "exército russo glorificado" livrando a Ucrânia dos nazistas. Durante anos, ela evitou discussões políticas com os pais, mas desta vez bateu o telefone na cara da mãe.

A BBC conversou com Anastasiya quando ela estava viajando para longe de Kiev, depois de quatro noites em um abrigo antiaéreo. A mente dela estava em um futuro incerto.

"Há muitos pensamentos na minha cabeça agora. O que vai acontecer com todos nós? Para onde isso vai? Será que eu vou voltar? Será que vou ver meus pais novamente? Eu ainda os amo profundamente, mas algo dentro de mim se quebrou."

"E eu não acho que isso possa ser consertado."

Maria Korenyuk e Jack Goodman para a BBC World Service, em 08.03.22

segunda-feira, 7 de março de 2022

Um incomum homem comum

Não é só coragem. Dirigindo-se ao povo russo, em língua russa, Zelensky desmontou cada uma das mentiras difundidas pelo Kremlin. O discurso precisaria ser ouvido no Brasil, onde não faltam papagaios de Putin. Leia aqui o artigo de  Demétrio Magnoli, publicado hoje n'O Globo.

O presidente afegão, Ashraf Ghani, fugiu do país diante da aproximação das forças do Talibã. Volodymyr Zelensky, da Ucrânia, permaneceu em Kiev, recusando a oferta dos EUA de transferir seu governo para Lviv e inspirando a resistência nacional à invasão russa. Analistas distraídos tiveram, então, de reconhecer a coragem do ex-comediante, alvo fácil de suas zombarias.

Não é só coragem. Dirigindo-se ao povo russo, em língua russa, Zelensky desmontou cada uma das mentiras difundidas pelo Kremlin. O discurso precisaria ser ouvido no Brasil, onde não faltam papagaios de Putin.

A invasão destina-se a libertar a nação invadida? “A Ucrânia, nas notícias de vocês, e a Ucrânia, na realidade, são dois países completamente diferentes. O mais importante é que a nossa é real.” A Ucrânia vive sob o nazismo? “Como pode uma nação ser qualificada como nazista depois de sacrificar 8 milhões de vidas para erradicar o nazismo? Como posso ser nazista se meu avô sobreviveu à guerra integrando a infantaria soviética e morreu como coronel numa Ucrânia independente?”, perguntou o ucraniano, que é judeu.

As indagações de Zelensky contêm reflexões raras entre os estadistas políticos atuais: “Dizem a vocês que odiamos a cultura russa. Mas como uma cultura pode ser odiada? Qualquer cultura?”.

Putin alega que a Ucrânia determinou bombardeios sobre a região do Donbass. “Atirar em quem? Bombardear o quê?” Zelensky registrou que tem amigos em Artema, que torceu pela seleção nacional na Arena Donbass antes de lamentar a derrota em meio a cervejas no Parque Scherbakova, que o melhor amigo de sua mãe vive em Luhansk. E vai ao ponto: “Veja que falo em russo, mas ninguém na Rússia sabe o que significam esses nomes, ruas e eventos. Tudo isso é estrangeiro para vocês”.

Nas palavras do ucraniano, o patriotismo cívico toma o lugar do tradicional nacionalismo bélico. A pátria é o lugar em que vivemos, celebramos e choramos, não um hino, uma bandeira ou desfiles marciais. Quantos chefes de Estado entendem essa linguagem?

Zelensky disputou as eleições presidenciais de 2019 como outsider, denunciando a corrupção endêmica na elite política ucraniana. Na campanha, falou verdades simples, mas não simplórias. Disse, especialmente, que pretendia romper a cisão entre os ucranianos do oeste e os do leste, cuja primeira língua é o russo. Terminou obtendo 73% dos votos. Depois, como acontece tantas vezes, a distância entre expectativas e realidades jogou por terra seus índices de popularidade. A agressão militar russa transformou-o em herói nacional — e estadista europeu.

Sob fogo, Zelensky revelou genialidade estratégica. Nos dias iniciais da guerra, reivindicou o ingresso do país na União Europeia. Embora não pudesse explicitar, trocava a ambição constitucional ucraniana de entrar na Otan por um lugar no bloco europeu. Por essa via, sintetizou a meta nacional de pertencer à Europa democrática e, simultaneamente, abriu uma fresta de negociação da paz com a Rússia.

De uma Kiev sitiada, o presidente improvável distingue a busca pela paz do pacifismo hipócrita que, desde o “apaziguamento” de Munique, nunca saiu de moda. “O povo da Ucrânia quer paz. Não estamos falando de paz a qualquer preço. Falamos sobre paz e sobre o direito de todos de definir o próprio futuro. Nos defenderemos. Atacando-nos, vocês verão nossos rostos. Não nossas costas —nossos rostos.” Putin pode vencer a guerra, mas já perdeu a Ucrânia.

Sem a resistência desesperada dos militares e do povo ucraniano, a Alemanha não teria revertido seu paradigma de política externa, o Ocidente não se unificaria em torno das sanções à Rússia, e a Ucrânia já não teria armas para se defender. Soberania, autodeterminação, integridade territorial — Zelensky insiste nos princípios consensuais de uma ordem internacional ancorada em regras. É por isso que, com tristes exceções, entre elas o governo Bolsonaro, o mundo democrático alinhou-se à causa ucraniana.

A Ucrânia, como a Espanha dos tempos da Guerra Civil, vai se tornando uma ideia — e um divisor de águas.

Demetrio Magnoli, historiador, é comentarista do tele-jornal GloboNews "Em Pauta". Publicado originalmente n'O Globo, em 07.03.22

Afronta à Lei Eleitoral

Apesar da proibição legal, têm sido frequentes os casos de campanha eleitoral antecipada

O objetivo da legislação eleitoral é proteger o regime democrático e o livre exercício dos direitos políticos. Aparentemente simples e cristalinos, esses propósitos se manifestam depois em uma normativa especialmente detalhista, com ampla regulamentação. Ainda que se possa com razão criticar tal complexidade, vislumbra-se de fundo uma finalidade louvável: assegurar a efetividade das normas eleitorais. No entanto, deve-se advertir que, muitas vezes, o detalhamento legislativo, em vez de proteger as eleições, é ocasião de indevidas tolerâncias, colocando em risco precisamente os objetivos fundamentais da legislação eleitoral. É o que se observa, por exemplo, com as regras relativas à propaganda eleitoral antecipada.

A proibição da propaganda extemporânea busca evitar o desequilíbrio e a falta de isonomia na campanha eleitoral. Trata-se de princípio básico do regime democrático. Candidatos devem dispor de igualdade de condições. Por isso, acertadamente a Justiça Eleitoral consolidou, ao longo do tempo, jurisprudência no sentido de que a proibição de pedido de voto antes do período de campanha se refere tanto à forma explícita como à implícita. Por exemplo, mesmo sem referência direta a eleições ou a voto, é vedado antes do período de campanha o uso de outdoors para exaltar qualidades pessoais de possíveis candidatos. Tal proibição é o reconhecimento de que a propaganda eleitoral não se resume a pedir votos, mas a difundir que tal pessoa seria a mais apta a determinado cargo eletivo.

No entanto, não obstante a clareza desses critérios, continua sendo frequente – e bastante tolerada – a campanha eleitoral antecipada, como mostrou recentemente o Estadão, desde a instalação de outdoors até a realização de eventos festivos. Aliados do governo ou da oposição, pré-candidatos e partidos têm feito corpo a corpo e usado as redes sociais com inequívoco objetivo de angariar votos. É especialmente ofensiva à equidade nas eleições a propaganda eleitoral antecipada feita por quem ocupa cargo público.

Como mostrou o Estadão, existem ao menos sete representações por campanha antecipada contra o presidente Jair Bolsonaro. Uma delas refere-se a um evento em junho de 2021, em Marabá (PA), no qual o presidente da República mostrou uma camiseta entregue pelo presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, com a mensagem “É melhor Jair se acostumando. Bolsonaro 2022”. De acordo com o Ministério Público Federal, houve propaganda eleitoral antecipada e conduta vedada a agente público no ato, que ademais foi transmitido pela TV Brasil.

Neste ano, Jair Bolsonaro tem feito inequívoca campanha eleitoral a favor do ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, pré-candidato ao Palácio dos Bandeirantes. Além de desrespeitar o período oficial da campanha, essa atividade presidencial é triste repetição da prática lulopetista de usar o aparato estatal em benefício eleitoral. Cabe à Justiça determinar o devido ressarcimento aos cofres públicos, cujos recursos não podem custear campanha de político governista.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 07.03.22

As regras da guerra

Pressão da comunidade internacional é imperativa para parar o massacre da população civil na Ucrânia

Um civil descansou em um abrigo na cidade ucraniana de Kharkov no domingo. (Foto: SERGEY BOBOK (AFP)

A crueldade contra a população civil da artilharia russa deixa imagens insuportáveis ​​ligadas a um cotidiano devastado.A fuga de cidadãos nos arredores de Kiev após uma semana de destruição em massa transforma suas ruas em cemitérios civis. Na estratégia de Putin, a guerra não tem limites, mas mesmo a guerra tem suas regras, e elas não incluem o assassinato indiscriminado da população, mas sua proteção: não são e não podem ser um objetivo militar. Putin está fazendo o oposto na Ucrânia: uma guerra contra pessoas caçadas em fuga, crimes de guerra transmitidos em imagens chocantes. O descumprimento dos acordos de respeito aos corredores humanitários acrescenta mais crueldade ao desamparo de uma população que sobrevive em condições extremas em várias cidades, entre elas Mariupol, fortemente bombardeada e sitiada por uma semana, sem comida, sem água, sem eletricidade,

Desde a quarta Convenção de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais de 1977, a criação de zonas de segurança está prevista como instrumento para garantir a proteção dos civis em tempos de guerra. Fue una Resolución de 14 de diciembre de 1990 de la Asamblea General de Naciones Unidas la que estableció nuevas fórmulas de protección para la población civil, como son los corredores humanitarios, ya sean para el suministro de ayuda humanitaria, la evacuación de personas en peligro o o retorno. As informações no terreno são imprecisas e tanto o governo ucraniano quanto o Kremlin se recriminaram por romper o cessar-fogo na área que deveria ter protegido o corredor humanitáriode Volnovakha e Mariupol para a evacuação de civis. Não há observadores oficiais para verificar o cumprimento do acordo de criação desses corredores, o que os expõe a extrema fragilidade. Mas proteger a população é “absolutamente essencial”, nas palavras do secretário das Nações Unidas, António Guterres.

O cerco extremo de Putin a Mariupol revela que é um enclave estratégico para estabelecer a conexão entre a Crimeia e a área de Donbas, sob o controle das forças separatistas pró-russas, e estender seu domínio ao longo de toda a costa sul da Ucrânia. As forças de ocupação russas aliaram milícias ucranianas na área e foram porta-vozes da administração pró-russa de Donetsk, uma das duas "repúblicas populares" reconhecidas por Putin na véspera de 24 de fevereiro, que culpou o Exército ucraniano por violar o cessar-fogo . A luta no leste da Ucrânia contém os ingredientes para um conflito interno em Donbas, onde cerca de um terço da população é pró-Rússia, e constitui um elemento de instabilidade para a Ucrânia que Putin sempre se interessou em manter.

O assassinato impune da população e o fracasso dos corredores humanitários questionam as próprias leis da guerra e exigem extrema pressão da comunidade internacional para acabar com a barbárie. A diretora executiva dos Médicos Sem Fronteiras, Christine Jamet, denunciou a violência desencadeada vivida pelo inexistente corredor humanitário de Mariupol e lembrou que “a passagem segura e o acesso à ajuda humanitária devem ser um direito, não um privilégio”. Até a guerra deve respeitar suas próprias regras.

Editorial do EL PAÍS, em 07.03.22

Rússia é cruel com civis em sua ofensiva contra a Ucrânia

Moscou acelera o cerco de Kiev, ataca a população civil nos arredores da capital e sufoca Mariupol depois de não conseguir evacuar seus habitantes. Putin garante que só vai parar a guerra se a Ucrânia abandonar a resistência


Na imagem, o corpo sem vida de um homem permanece entre os escombros na cidade de Kharkov. No vídeo, várias pessoas se protegem de um bombardeio dentro de um hospital em Mariupol. (Foto: ANDREW MARIENKO (AP) | Vídeo: EPV

Os bombardeios voltam a enfurecer os civis. Enquanto a guerra de Putin contra a Ucrânia entra em seu décimo primeiro dia, os militares russos, movendo-se mais devagar do que o planejado e intensificando sua ofensiva, voltaram a atacar infraestruturas civis, bairros residenciais e rotas de evacuação usadas por pessoas desesperadas, tentando escapar da violência. Mariupol , a cidade portuária estratégica sitiada e bombardeada por tropas do Kremlin, enfrentava um desastre neste domingo após o fracasso da segunda tentativa consecutiva de cessar-fogo para evacuar centenas de milhares de pessoas presas no que já foi uma próspera cidade industrial. ratoeira.

À medida que as forças armadas e a sociedade civil ucraniana resistem, as forças russas intensificam sua ofensiva contra Kiev, o coração da Ucrânia e seus arredores. Os soldados de Putin lançaram intensos ataques de artilharia em Irpin, uma cidade suburbana a 25 quilômetros da capital, em plena evacuação. O bombardeio matou pelo menos três membros de uma família.

Moscou, que fala de ataques "cirúrgicos" e garante que a ofensiva está indo conforme o planejado, insiste que não ataca civis, mas os bombardeios em Kharkiv, Kiev, Mariupol, Chernihiv, Sumi, Irpin, Kramatorsk e muitas outras cidades sitiadas e à beira do desespero, mostra que a estratégia de Putin é assustar a população para forçar o governo a desistir; também para acelerar o êxodo e travar menos a ocupação. Cerca de 1,5 milhão de pessoas fugiram da Ucrânia, o maior país da Europa, com 44 milhões de habitantes, forçados pela guerra em dez dias; a crise de refugiados que mais cresce no Velho Continente desde a Segunda Guerra Mundial.

Os planos para estabelecer um corredor para evacuar milhares de pessoas da pequena cidade do sul de Volnovakha e Mariupol, no Mar de Azov, foram novamente frustrados neste domingo, quando ataques ao longo do que seria a rota de passagem romperam o cessar-fogo temporário acordado. por Kiev e Moscou, que se acusam mutuamente de impedir a evacuação. As autoridades ucranianas estimam que cerca de 200.000 pessoas no porto de Mariupol deixariam os corredores humanitários em várias fases. A situação na cidade, denunciou Médicos Sem Fronteiras (MSF), é crítica: não há comida, praticamente não há água e está há dias sem eletricidade e aquecimento.

“Não há água potável em toda a cidade. Há apenas um ponto de coleta. Vimos até pessoas em um prédio tentando tirar água do sistema de aquecimento, que não funciona", explica Oleksandr, um trabalhador de MSF na cidade em uma gravação que o EL PAÍS conseguiu ouvir, na qual ele relata como a cidade está repleta de vestígios de explosões e ruínas de edifícios residenciais. “Não há como encontrar pão, lojas e farmácias estão fechadas há dias e as pessoas tiveram que quebrar janelas e portas para conseguir alguma coisa”, diz a agente de saúde, que ressalta que as necessidades mais básicas não são atendidas e que a cidade também está praticamente isolado: apenas mensagens de texto de uma operadora funcionam e apenas em alguns pontos, mas sem eletricidade para carregar celulares,

Esta manhã, as autoridades locais pediram aos moradores que se dirigissem a três pontos de coleta para se juntarem ao comboio de evacuação, que seria liderado pela Cruz Vermelha. As autoridades ucranianas garantem que os bombardeios começaram assim que os veículos chegaram para a coleta. "É extremamente perigoso tirar as pessoas em tais condições", enfatizou a Câmara Municipal em um comunicado. Moradores de Mariupol falam de prédios incendiados, cadáveres nas ruas incapazes de se recuperar de ataques constantes, supermercados e farmácias vazios.

No sábado, o governo ucraniano acusou o Kremlin de bombardear a área estabelecida como corredor humanitário para a saída de civis e a entrada de dispositivos médicos e medicamentos - durante um cessar-fogo de apenas cinco horas - e de usar "artilharia pesada e foguetes". contra Mariupol. O presidente russo, Vladimir Putin, culpou as autoridades ucranianas por "sabotar" o acordo e o corredor para civis. Oleksi Danilov, conselheiro de segurança nacional da Ucrânia, assegurou neste domingo que o país tomou nota da estratégia russa e está se preparando para uma segunda onda de ataques russos no coração das cidades. O plano de Putin é "criar uma situação de desastre humanitário para a população civil", disse ele em um comentário em suas redes sociais.

A Rússia, que quer o controle de Mariupol para estabelecer um corredor da península ucraniana da Crimeia, que foi anexada ilegalmente em 2014, com Donbas, garantiu que suas tropas continuam avançando em sua ofensiva sobre a cidade. Este domingo, um porta-voz militar garantiu que já tomaram o controle de um distrito de Mariupol e que atacaram mais de 60 pontos militares ucranianos. Moscou intensificou sua ofensiva neste domingo, com o bombardeio de um aeródromo militar em Starokostiantiniv, no oeste, e também do aeroporto da cidade de Vinitsia, no centro do país.

Além disso, as tropas de Putin voltaram a atacar Kharkov, a segunda cidade mais populosa do país e de maioria falante de russo —como os cidadãos que o chefe do Kremlin diz querer proteger—, onde vários civis morreram de foguetes. ataques quando faziam fila para comprar, segundo as autoridades locais.

As forças russas também estão tentando avançar no flanco sul, em direção ao Mar de Azov, onde já controlam Berdyansk e Kherson, a única grande cidade que conseguiram ocupar, mas onde houve protestos contra os invasores. Outras cidades sob controle russo também viram protestos contra a agressão russa, como Nova Kajovka, no sul do país, onde tropas russas feriram cinco pessoas que se manifestavam nas ruas, segundo a agência Interfax Ucrânia.

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky acusou a Rússia de planejar um ataque à cidade de Odessa, no Mar Negro, que está na mira de Putin, o que também poderia estar preparando um pouso anfíbio, segundo a inteligência ocidental. “Os russos sempre vinham a Odessa e só conheciam o calor e a generosidade e o que acontece agora? Artilharia, bombas contra Odessa. Isso será um crime de guerra. Este será um crime histórico", disse o líder ucraniano em uma mensagem de vídeo divulgada em suas redes sociais. Odessa, com quase um milhão de habitantes, tem um importante porto e grandes indústrias; perdê-lo significaria uma catástrofe para a Ucrânia.

Apesar do crescente isolamento internacional, das duras sanções e da oposição à guerra de uma parte da sociedade russa, duramente retaliada, Vladimir Putin assegurou em conversa com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan , que não tinha intenção de parar a ofensiva. . De acordo com o resumo da conversa oferecido pelo Kremlin , Moscou só interromperá suas operações militares se a Ucrânia parar de lutar e as exigências russas forem atendidas.

Putin enfatizou que espera que os negociadores ucranianos - que devem se reunir amanhã pela terceira vez desde que Moscou iniciou a guerra - adotem uma abordagem mais construtiva nas negociações e levem em consideração a realidade no terreno. O líder russo também acusou "nacionalistas ucranianos" de estar por trás do bombardeio da usina nuclear de Zaporizhia na sexta-feira e agora controlada pelas forças russas. Um incidente que provocou alarme global. Os funcionários da usina que estavam de serviço no momento do ataque continuam a administrá-la, mas a Agência Internacional de Energia Atômica da ONU alertou que os militares russos cortaram algumas redes móveis e a Internet, complicando as comunicações com a usina. "Estou extremamente preocupado", disse o chefe da agência, Rafael Grossi, em comunicado.

Cerco de Kiev

Enquanto isso, a ofensiva russa também está acontecendo na área de Kiev. Vários morteiros caíram ao longo desta manhã de domingo na estrada ao longo da qual civis da cidade de Irpin estão sendo evacuados a pé em direção a Kiev - as duas cidades estão a cerca de 20 quilômetros de distância. Há pelo menos três mortes causadas por um desses morteiros no cruzamento principal da cidade de Romanov, como vários repórteres presentes durante os ataques confirmaram ao EL PAÍS. Os corpos permaneceram cobertos em frente à igreja e ao monumento aos que tombaram na Segunda Guerra Mundial, a poucos metros de onde o exército ucraniano tem um destacamento na retaguarda, de onde saem soldados constantemente para a linha de frente.

Os morteiros caíram repetidamente no mesmo local onde milhares de vizinhos passaram sem parar nos últimos dias a caminho de Kiev. A maioria são mulheres e crianças que, em alguns casos, são acompanhadas por homens que depois voltam à cidade e colaboram na sua defesa. Romanov contava até o início da guerra em 24 de fevereiro com cerca de 2.000 habitantes. Esta cidade tinha uma das duas pontes que dão acesso a Irpin e que os militares locais dinamitaram na semana passada para tentar deter o avanço das tropas do Kremlin.


MARIA R. SAHUQUILLO e LUIS DE VEGA, de Odessa para o EL PAÍS em 06.03.22.