segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Moscou garante que o diálogo está "longe de esgotado" apesar da escalada de tensão na Ucrânia

O Kremlin preparou um documento de cerca de 10 páginas com as respostas aos Estados Unidos e à OTAN sobre suas demandas de segurança para a Rússia

Putin e Lavrov, durante seu encontro nesta segunda-feira em Moscou. (Foto: SPUTNIK (VIA REUTERS)

Por Javier G. Cuesta 

Todas as luzes estavam acesas no Parlamento russo, que entrou em cena nesta segunda-feira com seu pedido ao presidente para reconhecer a independência do leste da Ucrânia. No entanto, foram Vladimir Putin e seu ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, que encenou uma breve troca de palavras minutos antes do debate que arrebatou todo o protagonismo do drama que está sendo escrito nestes meses no Leste Europeu. "Existe uma oportunidade de chegar a um acordo com nossos parceiros sobre as principais questões que nos preocupam ou é apenas uma tentativa de nos arrastar para um processo de negociação sem fim?", começou o presidente russo. Lavrov admitiu que as negociações estão demorando muito, mas abriu a porta para o otimismo. "Ainda assim, como chefe do Ministério das Relações Exteriores, devo dizer que sempre há uma oportunidade." Putin então ordenou que ele continuasse negociando.

Putin realizou duas breves reuniões televisionadas na segunda-feira com Lavrov e o ministro da Defesa, Sergei Shoigu. Apesar dos ultimatos lançados de Moscou nos últimos meses sobre uma contagem regressiva que estava se esgotando , o chefe da diplomacia russa foi enfático ao afirmar que ainda há espaço para diálogo. “Tenho a impressão de que nossas chances estão longe de se esgotarem. É claro que eles não devem continuar indefinidamente, mas neste estágio sugiro prolongá-los e intensificá-los", disse Lavrov ao presidente, ambos separados por uma mesa enorme, como aconteceu uma semana antes com o presidente francês Emmanuel Macron .

O Kremlin já preparou sua resposta às respostas oferecidas pelos Estados Unidos e pela OTAN às suas demandas por garantias de segurança para a Rússia. Lavrov confirmou que o documento está finalizado e sua extensão é de “cerca de 10 páginas”.

Shoigu revisou os exercícios maciços que as tropas russas estão realizando com a Ucrânia, tanto no sul do país quanto em sua aliada Bielorrússia. O ministro da Defesa indicou que parte das manobras terminará em breve, embora não tenha entrado em mais detalhes sobre o retorno ou não das tropas.

Essas reuniões ocorreram pouco antes de a Duma Estatal (Parlamento) abordar uma nova medida de pressão sobre Kiev. Essa câmara deveria debater nesta segunda-feira um projeto de lei apresentado em janeiro pelo Partido Comunista para pedir ao presidente que reconheça as autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk na Ucrânia. No entanto, a formação de Putin, Rússia Unida, apresentou outro rascunho para que a iniciativa seja analisada antes por Lavrov. O presidente da câmara baixa, Vyacheslav Volodin, anunciou que os dois textos serão votados na terça-feira.

Até agora, Moscou defendia que a região ficasse dentro da Ucrânia com um status especial, conforme constava dos acordos de paz assinados há sete anos . Os protocolos de Minsk foram selados pela primeira vez pela Rússia, Ucrânia e pela Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) em setembro de 2014, quando a ofensiva do Exército ucraniano colocou os separatistas nas cordas, e revistos novamente em fevereiro de 2015 após uma bem sucedida contra-ofensiva das milícias apoiadas pela Rússia.

Moscou exige que Kiev converse com as autoridades das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk para concordar com a realização de eleições locais, conforme consta no ponto 12 dos protocolos. Além disso, o Kremlin insta o governo ucraniano a reformar a Constituição e dar a Donbas um status especial, uma questão que deveria ter sido resolvida em 2015, de acordo com o ponto 11. No entanto, Kiev, por sua vez, exige que a Rússia cumpra outros compromissos importantes, pontos 9 e 10: o retorno à Ucrânia do controle da fronteira entre a zona separatista e a Rússia e a retirada de todas as formações armadas e equipamentos militares da região.

Movimentos de tropas ucranianas

Apesar dos apelos ao diálogo, o porta-voz de Putin denunciou na segunda-feira "um agravamento significativo da situação" devido ao movimento de tropas "das Forças Armadas da Ucrânia e unidades de outra natureza" ao longo da linha de contacto de Donbas e da fronteira com a Rússia. Dmitri Peskov enfatizou que esses desdobramentos não são menos importantes do que os realizados pelas Forças Armadas Russas em seu território e na Bielorrússia.

Com a tensão máxima no leste do continente, o Kremlin saudou a entrevista concedida ao BCC pelo embaixador ucraniano no Reino Unido, Vadym Prystaiko, que afirmou que seu país poderia reconsiderar a adesão à OTAN , uma das linhas vermelhas do Kremlin . "Poderíamos. Especialmente sendo ameaçado dessa forma, chantageado e pressionado a fazê-lo”, disse o diplomata.

As suas palavras foram refutadas pelo porta-voz do Presidente da Ucrânia, Sergei Nikiforov, que respondeu publicamente que este retrocesso não foi de forma alguma considerado porque o desejo de aderir à Aliança Atlântica está contido na própria Constituição. O próprio presidente Zelenski se expressou da mesma forma após se encontrar na segunda-feira em Kiev com o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Olaf Scholz. No entanto, o porta-voz de Putin não perdeu a oportunidade de trazer à tona uma das principais demandas de Moscou. "Este seria, sem dúvida, um passo que contribuiria significativamente para dar uma resposta mais significativa às preocupações russas", sublinhou o representante do Kremlin, embora considere "improvável" que esta ideia tenha mais viagens por parte de Kiev.

Peskov também falou sobre a visita do ministro das Relações Exteriores Scholz a Moscou na terça-feira . Em seu encontro com Putin, eles abordarão não apenas toda a crise em torno da Ucrânia e a busca de um novo sistema de segurança com a Rússia, mas também a paralisação do gasoduto Nord Stream 2 , cujas obras foram concluídas em janeiro, mas ainda não receberam a aprovação de Bruxelas para operar porque sua gestão pertence ao monopólio estatal russo Gazprom e o risco de se tornar um instrumento de pressão do Kremlin.

Washington e Londres ainda veem "um espaço crucial para a diplomacia"

O presidente dos EUA, Joe Biden, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, quiseram enfatizar que "ainda há um espaço crucial [uma janela crucial, segundo o comunicado oficial] para a diplomacia e para a Rússia recuar em suas ameaças contra Ucrânia”, informou Downing Street na segunda-feira. Ambos os dignitários tiveram uma conversa telefônica para analisar a crise atual. Os dois queriam deixar claro que "qualquer incursão na Ucrânia resultará em uma extensão da crise para a Rússia, com danos muito maiores tanto para aquele país quanto para o resto do mundo". 

Washington e Londres, que vêm insistindo desde este fim de semana que uma invasão russa pode ser iminente, concordaram que os aliados ocidentais devem manter sua unidade diante das ameaças russas, "mesmo ao impor um grande pacote de sanções". sua escala de agressão”, diz o comunicado do governo britânico. Biden e Johnson reiteraram a necessidade de os países europeus reduzirem sua dependência do gás russo. "Um movimento que, mais do que qualquer outro, atingiria o coração dos interesses estratégicos da Rússia." R de M .

Javier G. Cuesta é correspondente do EL PAÍS em Moscou. Publicado originalmente em 14.02.22

BBVA cresce no Brasil com investimento de 263 milhões no banco digital Neon

A entidade facilita o acesso a serviços financeiros entre pessoas físicas, freelancers e pequenas empresas brasileiras e tem 15 milhões de contas cadastradas

Sede do BBVA em Madrid.

Por Álvaro Sanchez

O BBVA anunciou esta segunda-feira um investimento de 300 milhões de dólares (263 milhões de euros) no banco digital brasileiro Neon, onde já detinha uma participação de 8% através do fundo de capital de risco Propel. A nova compra eleva a posição da entidade espanhola para 29,7% da Neon e reforça a estratégia de tentar crescer em outros mercados por meio de plataformas digitais financeiras: em 2015 entrou no britânico Atom Bank —do qual detém 40%—, e em 2018 no Solarisbank alemão —16%—.

A Neon, fundada em 2016, facilita o acesso a serviços financeiros para pessoas físicas, freelancers e pequenas empresas brasileiras e possui 15 milhões de contas cadastradas. O BBVA vê duas grandes vantagens em adquirir mais ações do banco. “Além de uma clara aposta na inovação, o investimento permite ao BBVA ter exposição ao negócio da banca de retalho no Brasil, um dos mercados com maior potencial do mundo”, explica em comunicado enviado segunda-feira.

A área da América do Sul é a quarta maior área de influência do BBVA. Em 2021, obteve lá um lucro de 491 milhões, 10,1% a mais que no ano anterior, mas atrás dos lucros no México, Espanha e Turquia. O banco realizou nos últimos meses uma redistribuição geográfica de seus ativos. Em novembro, vendeu seus negócios nos Estados Unidos para o PNC Financial Services Group por 9,7 bilhões de euros , o que lhe deu força financeira. Nesse mesmo mês lançou uma OPA pela metade que não controlava do banco turco Garanti em troca de 2.249 milhões. E agora está crescendo no segmento de banco digital brasileiro.

A oferta de serviços financeiros da Neon inclui contas correntes gratuitas, cartões de débito e crédito, empréstimos e produtos especializados para microempresas. Seu desempenho chamou a atenção da BlackRock, maior gestora de fundos de investimento do mundo, que faz parte de sua participação acionária. O mesmo que a plataforma de pagamento PayPal. Antes do investimento do BBVA, a empresa havia levantado 423 milhões em várias rodadas de financiamento. E entre seus parceiros estão também o fundo General Atlantic, Vulcan e Banco Votorantim, com sede no Brasil.

Fintech: concorrentes e aliados

Pedro Conrade, fundador da Neon, acredita que o investimento do BBVA irá ajudá-los a alcançar mais clientes. “Queremos alcançar mais brasileiros e promover nosso propósito de reduzir as desigualdades e fazer a diferença na vida das pessoas no Brasil”, disse. A subscrição das ações e a integralização ocorrerão em fevereiro. E de acordo com o banco espanhol, a operação consumirá aproximadamente 10 pontos base no índice de capital CET1 totalmente carregado do BBVA , a mais alta qualidade, que no final de 2021 era de 12,75%.

O desembolso surge num ambiente de crescente competição entre a banca tradicional e um ecossistema de fintech , neobancos e aplicações financeiras ao qual as entidades que agora dominam o mercado temem que gigantes tecnológicos como Google, Amazon, Facebook ou Apple se juntem. Para tentar contrariar, os bancos estão a atuar em duas vertentes: internamente, com uma digitalização acelerada das suas operações que está a gerar algumas tensões por deixar para trás clientes mais antigos habituados ao atendimento presencial e em certos casos desligados do universo digital . E a externa, com a aquisição de ações em plataformas financeiras digitais.

No campo das operações corporativas, o BBVA também está acompanhando de perto a venda do Banamex, que começará na primavera, depois que o banco norte-americano Citigroup, seu proprietário, anunciou que pretende vender suas empresas de banco de consumo e pequenas empresas no México. O BBVA é atualmente líder no mercado mexicano, mas alguns de seus concorrentes, como o Banco Santander, ameaçam esse lugar de privilégio se crescerem no México com a aquisição do negócio do Citi.

Álvaro Sanchez, o autor deste artigo, é Editor de Economia. Foi correspondente do EL PAÍS em Bruxelas e colaborador da rede SER na capital da União Europeia. Antes, passou pelo jornal mexicano El Mundo e pela mídia local, como o Diario de Cádiz. É formado em Jornalismo pela Universidade de Sevilha e mestre em jornalismo pelo EL PAÍS. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 14.02.22.

Já não basta surpreender, é preciso "chocar"

As normas da informação clássica com seus rígidos padrões de veracidade das notícias estão sendo explodidas. O importante é o primeiro impacto

Um homem lê um jornal com a manchete em português "Isolado. Rio em guerra contra o coronavírus" no Rio de Janeiro, Brasil, em 20 de março de 2020. (Silvia Esquerda / AP)

Por Juan Árias

Vivemos não apenas em uma modernidade líquida e na era da pós-verdade, onde as cartas de hoje se misturam e se confundem. Já não nos basta surpreender quando apresentamos uma notícia como acontecia no jornalismo antigo. Hoje precisamos de mais em nosso desejo de surpreender. Precisamos chocar. Quanto mais melhor. O escândalo também dá lucro. Se no século XVII, o filósofo francês René Descartes, em seu Discurso do Método , cunhou a famosa frase “Penso, logo existo”, hoje a reflexão não é suficiente para confirmar que existimos. Precisamos dar um salto que pode acabar sendo mortal. O lema de hoje poderia ser "escandalizo logo existo".

Foi o pensador coreano Byung Chul Han quem sublinhou que hoje "o debate foi substituído pelo escândalo", ou seja, quem for capaz de chamar mais a nossa atenção com algo escandaloso "receberá mais toques na Internet". Isso acaba, dizem os especialistas em comunicação, nos arrastando para uma tentativa de ver quem choca mais e melhor. A surpresa é conservadora. Temos as notícias do mundo ao segundo através de informações online. Já não nos surpreendem nem nos excitam. Precisamos de algo mais substancial. É assim que nasce a notícia que causa escândalo, não importa se é verdadeira ou falsa.

Isso explica o crescimento dos boatos nas redes sociais, das mentiras descaradas, do lance para ver quem é mais escandaloso e quem é capaz de mentir melhor. As normas da informação clássica com suas severas normas sobre a veracidade das notícias estão sendo explodidas. O importante é o primeiro impacto da surpresa. É a fama construída sob a força do escândalo.

O Brasil vive nos dias de hoje vários exemplos da febre de chocar para obter notoriedade. Um dos advogados mais renomados apareceu em uma reunião profissional virtual vestido de terno e gravata, mas em vez de calça ele estava vestindo um maiô. Certamente aquela imagem sem vergonha lhe deu mais eco nacional do que muitas das defesas de personalidades ilustres.

Por sua vez, no podcast Flow, um dos mais ouvidos do país para o qual personalidades e políticos famosos são convidados, uma verdadeira guerra eclodiu na semana passada. O famoso apresentador Monark defendeu que a Alemanha errou ao "condenar o nazismo". Ele foi seguido pelo deputado do PMB Kim Kataguiri dando mais um passo no desejo de escandalizar e defendeu que um partido nazista deveria ser criado também no Brasil.

Ambos sabiam que a Constituição brasileira condena qualquer um que defenda o nazismo e o Holocausto a vários anos de prisão, para os quais a criação de um partido nazista seria impensável. O escândalo rendeu ao apresentador e ao deputado mais de 200 mil interações nas redes sociais. Se fosse uma discussão simples, sem escandalizar, as afirmações dos defensores do nazismo não teriam chamado a atenção. O que os enriqueceu em visibilidade foi o escândalo produzido.

Dias antes, na TV Jovem Pan, o comentarista Adriles Jorge se permitiu, na tentativa de chamar a atenção, fazer um típico gesto nazista que o lançou nas redes. Resultado? O partido conservador, PTB, imediatamente lhe ofereceu uma vaga como candidato nas próximas eleições. Como comentou o advogado André Masiglia, especialista em questões de comunicação de massa, “chamar a atenção de alguém hoje é mais do que apenas ser alguém”.

Na discussão sobre o nazismo hoje no Brasil, chegou ao clímax que o partido do deputado Katiguiri, em vez de repreender o político por seus excessos na análise do nazismo, anunciou que vai processar quem pede o impeachment de O político.

Hoje se sabe que, por exemplo, o presidente Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 graças ao bombardeio de notícias falsas e mentiras que inundaram as redes amplificadas por centenas de robôs financiados por alguns empresários de extrema direita. E toda a sua política hoje é baseada em suas reuniões matinais com um grupo de seus seguidores mais fanáticos. Nessas reuniões, o presidente se dedica a contar mentiras descaradas e agredir verbalmente jornalistas que tentam lhe fazer uma pergunta comprometedora, mesmo com frases sexuais grosseiras. E isso lhe dá notoriedade e imprensa.

Se hoje o importante é conseguir fama a qualquer preço, nada melhor do que a mentira dura e grosseira, lançada sem escrúpulos, que é apenas a antítese do que deveria ser o escrúpulo de dizer a verdade dos fatos. Fatos que às vezes podem ser discutíveis, mas sem uma vontade explícita ao publicá-los para enganar para chocar.

Hoje o Prêmio Nobel Espanhol de Literatura Camilo José Cela, que ficou conhecido pela força de sua ironia, riria do viés que certos meios de comunicação e sites da internet adotaram para conseguir seguidores e dinheiro. Na década de 1980, Cela passou por Roma, a convite da Embaixada da Espanha. Nós, correspondentes, conhecíamos as saídas de ácido que ele dava às perguntas que lhe faziam. Naquela época, celulares e redes sociais ainda não existiam, e embora nós, jornalistas, procurássemos surpreender com notícias que outros não tinham, ainda não existia a febre de querer “chocar” a qualquer custo. Num intervalo, durante um jantar, um correspondente espanhol atreveu-se a perguntar a Cela o que era preciso para poder “surpreender” face ao excesso de notícias veiculadas pela rádio e televisão naquela altura. O Nobel, com sua voz clássica de barítono e sua natureza burlesca, respondeu: "Bem, cara,

Diante da atual vontade de escandalizar ainda que seja com mentiras e calúnias, a brincadeira do ilustre Cela soa como algo angelical.

Juan Árias, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS no Brasil. Publicado originalmente em 14.02.22.

Entre o ruim e o pior

Ante o desafio da adequação das leis às inovações do mercado de trabalho, o bolsonarismo só oferece a anarquia, e o lulopetismo, o retrocesso

Um mercado de trabalho em acelerada transformação exige uma legislação trabalhista em constante renovação. Essa obviedade seria indigna de nota se o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, não tratasse os direitos do trabalho como meros empecilhos a serem removidos, e se o líder das pesquisas de intenção de voto à Presidência não propusesse o oposto de uma modernização desses direitos: longe de revisar a reforma de 2017, muito menos aprimorá-la ou complementar suas lacunas, Luiz Inácio Lula da Silva propõe revogá-la por completo.

Promovida pelo governo Temer e laboriosamente deliberada pelo Congresso, a reforma foi um marco jurídico sofisticado de raro equilíbrio social e econômico que atualizou a legislação anacrônica herdada da era Vargas, proporcionando mais liberdade e flexibilidade nas condições de trabalho.

O ex-presidente Lula repete o mantra de que a reforma não gerou empregos e de que flexibilização é sinônimo de precarização.

Em primeiro lugar, não há uma relação causal direta entre reforma e emprego. Uma boa legislação é condição necessária para criar empregos, mas não suficiente. Ofertas de empregos e boas condições de trabalho dependem de investimentos e crescimento econômico. Mas justamente a irresponsabilidade fiscal da gestão lulopetista mergulhou o País na recessão que destruiu milhões de empregos não resgatados até hoje.

Lula gosta de citar como modelo a contrarreforma recém-aprovada na Espanha. De fato, após a crise de 2008, os legisladores espanhóis apostaram na redução à proteção de diversas formas de contratação como uma tentativa de estimular as empresas a empregarem.

Mas a reforma aprovada no Brasil não extinguiu um único direito. Ao contrário, criou novas formas de proteção não contempladas antes dela, como no caso dos trabalhadores terceirizados. Todas as novas modalidades criadas garantem as proteções previstas na Consolidação das Leis do Trabalho e na Constituição.

Entre outras conquistas, a reforma introduziu a regulação do trabalho remoto; criou novas modalidades de contratação temporária, intermitente ou terceirizada; reduziu o excesso de litígios que sobrecarregavam a Justiça do Trabalho; reduziu a insegurança jurídica e consagrou a autonomia e a liberdade de empregados e empregadores ao ampliar suas prerrogativas de negociar condições específicas de suas relações de trabalho; e eliminou a imoral e inconstitucional “contribuição” obrigatória dos trabalhadores aos sindicatos.

A maior crítica que se pode fazer à reforma é que ela não foi suficientemente abrangente. A mazela possivelmente mais grave do mercado brasileiro, a alta taxa de informalidade, que atinge cerca de 40% da força de trabalho, e a consequente lacuna entre os custos e proteções do trabalhador formal e do informal, ainda precisa de soluções mais robustas. Tampouco a legislação brasileira oferece uma regulação satisfatória para contratos entre trabalhadores nacionais e empresas internacionais, ou vice-versa, essencial em uma economia cada vez mais digitalizada e globalizada.

Isso sem falar das megatendências que estão desafiando todo o mundo, como o envelhecimento da população ou as inovações tecnológicas, que exigirão políticas capazes de recriar os sistemas de formação e realocação dos profissionais.

Como já dito neste espaço (O PT não sabe o que é cidadania, 9/1/22), “assim como todo Direito, a legislação trabalhista deve proporcionar, por meio de uma regulação adequada das relações sociais, autonomia e liberdade. Não é barbárie ou anarquia (como propõe Jair Bolsonaro), como também não é cabresto ou sujeição (como propõe Lula)”.

A reforma trabalhista não é um dogma. Como toda legislação ou política pública ela deve ser reavaliada e pode ser revisada pelo Parlamento. Mas não é isso o que propõe o PT. Em seu negacionismo econômico característico, ele quer não só resgatar as políticas que mergulharam o País no desastre econômico no qual agoniza até hoje; deseja retroceder a legislação trabalhista em mais de meio século, de volta às leis da ditadura varguista.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 14 de fevereiro de 2022 | 03h00

‘Decepção’ e ‘vergonha’ são os sentimentos mais relacionados ao governo Bolsonaro, diz pesquisa

Vergonha e desapontamento aparecem na sequência entre os sentimentos negativos, com 30% e 19%. A pesquisa foi feita com 2 mil entrevistados em todo o País no início do fevereiro.  

 Uma pesquisa da Genial/Quaest a que a Coluna teve acesso com exclusividade mapeou o sentimento da população em relação ao governo de Jair Bolsonaro e mostrou que “decepção” é o sentimento mais relacionado ao governo, para 36% dos entrevistados.

Vergonha e desapontamento aparecem na sequência entre os sentimentos negativos, com 30% e 19%. A pesquisa foi feita com 2 mil entrevistados em todo o País no início do fevereiro.

Entre os sentimentos positivos sobre o governo, “esperança” foi citada por 28% dos entrevistados. “Confiança” (14%) e “admiração” (13%) vieram na sequência.

“O governo Bolsonaro é sinônimo de vergonha para os eleitores de Lula, sinônimo de decepção para eleitores do Moro e do Doria, e sinônimo de otimismo e esperança para os eleitores de Bolsonaro. Sentimentos divergentes, que vão do otimismo eleitoral à frustração de quem acreditou no projeto”, disse Felipe Nunes, cientista político e diretor da Quaest.

Camila Turtelli / O Estado de S.Paulo, em 14 de fevereiro de 2022 | 05h00

Da comida à religião: as semelhanças entre Rússia e Brasil

 Em termos populacionais, o Brasil está na frente. Tem a sexta maior população do mundo, com 216 milhões de habitantes. Os russos são 145 milhões — figuram na nona colocação.

Catorze horas de avião separam Brasília de Moscou — e olhando bem, há muito em comum entre brasileiros e russos. (Getty Images)

Catorze horas de avião separam Brasília de Moscou — são mais de 11 mil quilômetros. E um sem-número de diferenças históricas, culturais, étnicas, sociais, geográficas e climáticas, é claro. Mas, olhando bem, há também muito em comum entre brasileiros e russos.

"O Brasil exerce uma espécie de fascínio sobre os russos, e a Rússia, sobre os brasileiros", diz a jornalista Vivian Oswald, em seu livro Com Vista para o Kremlin. "A grande distância entre estes países continentais — quase intangível para aqueles que nunca a percorrerão — se encarrega de apimentar os imaginários coletivos com uma dose de exotismo e muitas pitadas de estereótipos em relação ao outro."

"Além da dimensão continental e as temperaturas extremas, o Brasil para mais, a Rússia para menos, há pouca coisa [em comum entre os países]", comenta o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, que já escreveu livros sobre as duas nações. "Eles [os russos] têm um respeito e conhecimento pelo seu passado e pela sua cultura que o brasileiro médio não chega aos pés. Eles são simpáticos, mas mais fechados."

A seguir, algumas curiosidades sobre esses dois países.

Gigantes

Ambos estão na seleta lista dos países de dimensões continentais. A Rússia — que na época da União Soviética chegou a ter uma área de 22,5 milhões de quilômetros quadrados — lidera o ranking mundial com impressionantes 17 milhões de quilômetros quadrados. Caberiam na Rússia quase 39 milhões de Vaticanos.

O Brasil não perde feio. Com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, é o quinto maior país do mundo.

Essas enormidades fazem de ambos os territórios espaço para diversidades climáticas e culturais. E isso se reflete até nos fusos horários: o Brasil tem quatro, a Rússia tem 11.

Em termos populacionais, o Brasil está na frente. Tem a sexta maior população do mundo, com 216 milhões de habitantes. Os russos são 145 milhões — figuram na nona colocação.

Por outro lado, parece que atraímos mais os russos do que o contrário. Dados mais recentes do Ministério das Relações Exteriores registram apenas 1,1 mil brasileiros vivendo na Rússia. Segundo a Embaixada da Federação Russa no Brasil, há 35 mil russos vivendo no Brasil. No livro Imigrantes Russos no Brasil, o pesquisador Igor Chnee afirma que vivem em solo brasileiro 1,8 milhão de descendentes de imigrantes russos atualmente.


Novelas e futebol

Russos e brasileiros compartilham alguns gostos em comum. As novelas, por exemplo. Produções nacionais são exibidas por lá desde a época soviética — com A Escrava Isaura. E seguem sendo um hit.

"Fonte inesgotável de informações sobre cenários e comportamentos tipicamente brasileiros, as nossas novelas continuam fazendo sucesso na Rússia", diz Oswald, em seu livro. "Acho que boa parte da simpatia que nutrem por nós […] vem das imagens que guarda das novelas. Descobri, inclusive, que as novelas brasileiras estão entre os itens mais pirateados da internet russa, segundo dados de uma empresa de segurança que acompanha movimentos suspeitos de cópias e reproduções piratas na rede."

Vágner Love fez história no CSKA Moscou, onde jogou de 2004 a 2012 e, depois, novamente em 2013.(Getty Images)

"É comum vê-los sonhando com as praias cariocas", acrescenta ela.

O futebol é outra paixão em comum. E aí russos não pestanejam em exaltar nomes como Pelé, Ronaldinho, Kaká, Neymar… E Vágner Love, atacante que está longe de ter se tornado uma unanimidade no Brasil, mas que fez história no clube CSKA Moscou, onde jogou de 2004 a 2012 e, depois, novamente em 2013.

Coincidentemente, Brasil e Rússia foram os países-sede das últimas duas Copas do Mundo, respectivamente em 2014 e 2018.

Religião

Mais de 100 milhões de russos se declaram cristãos da Igreja Ortodoxa — embora se estime que o número de fiéis ativos esteja entre 20 e 30 milhões. No Brasil, são quase 119 milhões de católicos — e 170 milhões que se dizem cristãos.

Igreja do Sangue em Honra de Todos os Santos que Resplandeceram na Terra Russa, em Ecaterimburgo, no mesmo local onde os Romanov foram executados.( Edison Veiga)

Além da religiosidade em si, a história das duas principais denominações religiões também diz muito sobre a formação social de ambos os países. Isto porque as igrejas Católica Apostólica Romana e Ortodoxa Russa têm uma raiz comum — e guardam semelhanças e uma relação de respeito mútuo.

O racha histórico entre esses dois mundos ocorreu em 1054, no episódio chamado de Cisma do Oriente. Conforme explica o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre em Roma, uma diferença importante é que a Igreja Ortodoxa "não tem a autoridade central, como os católicos têm o papa".

"São igrejas autocéfalas, com patriarcas, que são líderes locais. No caso russo, há a figura do patriarca de Moscou, atualmente Cirilo 1º. Para os ortodoxos, papa Francisco seria o "patriarca de Roma".

A relação é amigável. Em 2016, Francisco e Cirilo se encontraram, em um gesto histórico. "Ao mesmo tempo, é uma relação de cuidado, diplomática. Porque a Igreja Russa é muito influenciada pelo governo russo", diz Domingues.

Nesse sentido, pode haver algum paralelo com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que costuma adotar pautas moralistas, se aproximando do eleitorado cristão conservador.

"[O presidente russo Vladimir] Putin usa a Igreja Ortodoxa como um meio de controle. É quase a religião oficial. Os bispos agem como parte do governo russo", analisa Domingues.

Uma nostalgia reacionária

Na política, o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversas biografias sobre personalidades do antigo império brasileiro e do recém-lançado Os Últimos Czares - Uma Breve História Não Contada dos Romanov, observa que "as simpatias monarquias em ambos os países nunca morreram".

"Acabaram se metamorfoseando com o tempo", pontua ele. "A extrema-direita, em ambos os países, é anticomunista e tradicionalista, autoritária e nacionalista. O que une muitos dentro desse espectro político é o tradicionalismo, representado pela monarquia, tanto que diversos políticos brasileiros não tiveram o menor escrúpulo em surfar na onda o movimento, sem saber o mínimo sobre nossa história e seus personagens e ainda tentando emplacar fake news a respeito deles."

"Aqui no Brasil, a bandeira do Império brasileiro retornou em alguns gabinetes políticos e até chegou a ser hasteada em algumas cidades", lembra Rezzutti. "Na Rússia, houve ameaças de bombas em cinemas e uma crítica feroz ao filme Mathilde, de 2017, sobre uma bailarina que foi amante do czar Nicolau 2º."

Nesse sentido, a religiosidade também permeia os discursos. Se entre parcela dos monarquistas brasileiros há um movimento que pede a canonização da princesa Isabel, os Romanov já gozam dessa prerrogativa dos altares.

"Nicolau, Alexandra e os cinco filhos foram canonizados em 1981 como neomártires pela Igreja Ortodoxa Russa no exterior. Para esse ramo, por ter sido chefe espiritual da Igreja Ortodoxa, Nicolau fora sacrificado por causa de sua fé, e isso era prova de sua santidade", contextualiza o pesquisador.

"A Igreja Ortodoxa Russa, depois de muito debate, também canonizou posteriormente Nicolau, Alexandra e os filhos, mas como portadores da paixão, ou seja, pessoas que encararam a morte com resignação. A evidência disso seria o sinal da cruz feito por Alexandra e Olga antes de morrerem", completa.

Vícios

Bebe-se muito em ambos os países, é verdade. Nos dois casos, acima da média global — em torno de 6,2 litros por pessoa ao ano. Mas entre cachaças e vodcas, os russos são muito mais exagerados do que os brasileiros: 15,2 litros anuais per capita, contra 8,7.

"O risco de morte violenta entre os homens […], em geral causada pelo abuso de álcool ou drogas, é de três a quatro vezes superior ao de outros países da Europa e das Américas", pontua Oswald, em seu livro sobre a Rússia. "O álcool, o tabaco e, mais recentemente, as drogas estão entre os principais responsáveis pela morte precoce dos locais, sobretudo dos homens."

Segundo a autora, o álcool é visto como um dos maiores vilões da nação. "Chama a atenção do estrangeiro a relação dos russos com a bebida. Homens e mulheres podem ser vistos a qualquer carregando garrafas graúdas de cerveja pela rua", frisa ela.

"Uma das imagens clássicas do inverno é a de garrafas de vodca enterradas parcialmente na neve", conta. "Alguns dos seus donos acabam na mesma situação. Reza a lenda que se a nevasca for muito intensa e o gelo durar por muito tempo, só são encontrados depois de passado o inverno."

E se no Brasil cigarro é algo visto como fora de moda, e principalmente os jovens não demonstram interesse pelo tabagismo, na Rússia o cenário é preocupante. De acordo com dados do livro Com Vista para o Kremlin, 75% dos homens fumam e 70% dos estudantes na faixa entre os 13 e 18 anos também alimentam o vício. Além disso, o tabagismo faz parte do cotidiano de metade das grávidas.


No prato

De um lado, delícias como a feijoada. De outro, pratos famosos como estrogonofe.

Que, vale ressaltar, ganhou também suas versões brasileiras e caiu no gosto popular. A jornalista Vivian Oswald conta, em seu livro, que os russos "surpreendem-se ao descobrir que o brasileiro come seu aportuguesado estrogonofe sempre, desde criança".

Estrogonofe, um prato russo, caiu no gosto popular brasileiro (Getty Images)

Mas as diferenças estão nos ingredientes. Na Rússia, não vai tomate. E o creme de leite é uma versão um pouco diferente, chamada de smetana, comum aliás aos países de cultura eslava. "O prato costuma ser servido com batatas cozidas ou purê de batatas", detalha a jornalista. "Arroz, muito de vez em quando. E não é lenda: as russas, de fato, têm a receita na ponta da língua."

O mais importante, contudo, é a carne. Ao contrário das invenções brasileiras — com versões de frango e até camarão —, para um russo não é admissível estrogonofe que não seja feito de carne de boi.

Na alta gastronomia os russos também têm seus expoentes. No mesmo estilo do brasileiro Alex Atala — ou seja, com a ideia de fazer um mergulho nas tradições culinárias e reinventá-las com pose contemporânea e preços exorbitantes — o White Rabbit faz sucesso em Moscou. Em comum, ambos são há anos figurinhas fáceis nos rankings dos melhores restaurantes do mundo e estrelam episódios da cultuada série Chef's Table, da plataforma Netflix.

A nostalgia pelo passado

São dois lados opostos, mas muito provavelmente da mesma moeda: a nostalgia russa e a saudade brasileira tem bem aquele espírito que jocosamente costuma ser chamado de "viúvo da ditadura".

Assim como no Brasil muitos celebram com "bons tempos" aquele período de regime militar opressor, muito provavelmente pela memória embaçada pelo passar do tempo, pela censura que não permitia saber das corrupções e das violência impostas pelas instituições, na Rússia não são poucos os que lamentam pelo passado glorioso — no caso, o período socialista soviético.

"[A nostalgia] está na maneira como idealizam o passado da potência que querem ressuscitar com o capitalismo e velhos sonhos prometidos pela propaganda soviética que alguns juram ter sido realizados", comenta Oswald, em seu livro.

"Fala-se com saudade dos tempos em que a vida era mais dura, mas em que os aposentados não precisavam arranjar bicos ou pedir esmolas para viver os anos que lhes restavam depois de uma vida inteira de trabalho", exemplifica ela.

Como brincam os memes, são as "saudades do que não vivi". Quem nunca?

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 14.02.22.

O Crime e a ameaça

 Por José Sarney

A sociedade se organizou como Estado para enfrentar o medo da morte violenta, diz a velha fórmula de Hobbes. Se não evita a morte, todo o Estado desmorona, como um castelo de cartas. E, infelizmente, há muito tempo o Brasil tem falhado nesta tarefa.

Tenho escrito aqui repetidamente contra a violência, que nos cobra preço maior do que o de muitas guerras, atingindo os que morrem e suas famílias, também vítimas irremediavelmente marcadas. Os episódios recentes no Rio de Janeiro acentuam uma das faces mais terríveis desse massacre: o aspecto racial das mortes.

As estatísticas mostram que as vítimas são principalmente os negros, e os negros jovens; e como é grande essa preferência. Os que defendem as armas dizem que armas não matam, que as pessoas matam. A verdade é que as armas matam porque estão na mão de pessoas que querem matar.

O caso de Moïse Kabogambe, o refugiado congolês, que foi morto a pauladas, mostra que as pessoas matam com as mais diversas armas. A brutalidade do ato, longo e prolongado pela agonia, não pode esconder sua causa. Moïse não era suspeito de nada, mas culpado de ser negro e estrangeiro em terra de milicianos. Sua morte ignominiosa, crudelíssima, a pauladas e pontapés, põe de joelhos o Brasil.

Também gratuito foi o assassinato de Durval Teófilo Filho, que, sendo negro, era vizinho de brancos preconceituosos. Seu assassino, ao entrar no condomínio em que ambos moravam, viu aproximar-se um negro com a mão numa mochila e, tendo um revólver — não é por ser sargento que ele tinha a arma, mas pela leniência da regulamentação da lei —, achou que devia atirar em “legítima defesa”.

Há quem pense, portanto, que a presunção de ameaça legitima o crime. A extensão desse raciocínio absurdo é que o diferente — e o diferente no Brasil nem sempre é minoria numérica, pois são maioria de nossa população os descendentes de africanos e as mulheres — é uma ameaça para os que se pensam superiores. Essa ideia desintegra não somente o Estado, como também a sociedade, nos aproximando do que os Estados Unidos têm de pior, que nunca jamais, em tempo algum, deveria ser copiado.

Uma continuação desse raciocínio de legitimidade da intolerância e da violência é o espetáculo da defesa do direito ao nazismo e dos nazistas fazerem o que quiserem, debate que 2/3 dominou as mídias sociais essa semana. Eu exagero ao dizer que é esta a síntese do que se discutiu nos últimos dias? Creio que não.

O nazismo, como outras intolerâncias, pouco se importa com o argumento dos outros. O seu argumento é ação, e a sua ação é a destruição do outro. A intolerância foi sempre fonte de violência. Não podemos esquecer que a intolerância religiosa causou as terríveis guerras de religião e ainda hoje alimenta o terrorismo. Não podemos esquecer que a intolerância está na origem dos genocídios que envergonham a Humanidade. Estes crimes são uma ameaça à sobrevivência do Estado e das pessoas. Por isso é preciso dizer não à violência.

José Sarney, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Foi Presidente da República. Publicado originalmente n'O Estado do Maranhão, edição online, em 12.02.22.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

"Simetria entre comunismo e nazismo é indevida"

Para especialista, Bolsonaro erra ao equiparar as duas ideologias. Cientista político diz que enquanto há partidos comunistas que aceitam a democracia, não há nazistas que respeitem direitos humanos.

Na quarta-feira, o presidente Jair Bolsonaro declarou, em uma manifestação em redes sociais, que "a ideologia nazista deve ser repudiada de forma irrestrita e permanente". No texto, que aparenta ser uma reação ao caso do Flow Podcast sobre a possibilidade da criação de um partido nazista no Brasil, o chefe de governo afirma que a ideologia nazista deve ser repudiada "sem ressalvas", assim como qualquer ideologia totalitária. Nisso, ele inclui explicitamente o comunismo

"A ideologia nazista deve ser repudiada de forma irrestrita e permanente, sem ressalvas que permitam seu florescimento, assim como toda e QUALQUER ideologia totalitária que coloque em risco os direitos fundamentais dos povos e dos indivíduos, como o direito à vida e à liberdade", escreveu. 

"É de nosso desejo, inclusive, que outras organizações que promovem ideologias que pregam o antissemitismo, a divisão de pessoas em raças ou classes, e que também dizimaram milhões de inocentes ao redor do mundo, como o comunismo, sejam alcançadas e combatidas por nossas leis”, prosseguiu.

Em entrevista à DW Brasil, o jurista e cientista político Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito de São Paulo, diz ser um erro o paralelo entre comunismo e nazismo feito por Bolsonaro. "A simetria me parece absolutamente indevida", avalia, acrescentando que ninguém negaria que ambos os regimes cometeram crimes graves contra a humanidade, "Mas há também partidos comunistas que abdicaram do uso da força e de uma ideologia anti-democrática", pondera. "O que não se tem é um movimento nazista aceitando os direitos humanos e as premissas de um regime constitucional, o que ocorreu por partes de diversos partidos de esquerda ao redor do mundo."

Mas a manifestação veemente contra o nazismo feita por Bolsonaro surpreendeu o especialista. Vilhena sublinha que "o histórico do presidente não respalda uma posição tão contundente", devido aos constantes elogios do chefe de governo a regimes autoritários. O especialista atribui a declaração à pressão de aliados. "Ele a faz certamente impulsionado por sua base de apoio no Congresso, que hoje é o Centrão Que não é uma base de direita radical, mas um grupo muito pragmático"

No Brasil, discute-se a possibilidade de se ter um partido nazista. Falar desse assunto em pleno 2022 é uma surpresa?

Não chega a me surpreender, pois evidentemente estamos vivendo um período em que temos um presidente de extrema direita, que é apoiado por grupos muito radicais, entre eles, simpatizantes do nazismo. Me parece que é uma decorrência da própria radicalização da política brasileira por um presidente de extrema direita.

Para muitos, ouvir Bolsonaro repudiar o nazismo de forma tão clara foi uma surpresa. O que o senhor achou da declaração presidencial?

É uma reação positiva. Ainda que o histórico do presidente não respalde uma posição tão contundente. O presidente sempre foi um apoiador dos regimes autoritários, não só no Brasil, como em outros países. Sempre fez muitas homenagens a ditadores como (o ditador chileno Augusto) Pinochet. O presidente sempre esteve ao lado de regimes autoritários.

Evidente que nós devemos reconhecer a distinção entre regimes autoritários e regimes totalitários como o nazismo. Há uma distinção relevante, inclusive em função de uma ideologia de supremacia racial, o que não necessariamente regimes autoritários têm.

O presidente navegou, ao longo de todo a sua história, ao lado de movimentos de direita, movimentos autoritários e simpáticos a causas de discriminação. Então, a manifestação dele me surpreendeu.

Ele a faz certamente impulsionado por sua base de apoio no Congresso, que hoje é o Centrão. Que não é uma base de direita radical, mas um grupo muito pragmático. E que tem, nos últimos meses, pressionado o presidente quando ele faz ameaças ao Supremo e ao Congresso. Agora, com essa questão, o Centrão certamente contribuiu para que ele fosse pressionado a repudiar esse tipo de manifestação.

Bolsonaro também falou em combater, com leis, o comunismo. Já havia, no passado, várias falas de Bolsonaro contra o comunismo e a China. Isso não prejudica a relação do Brasil com seu maior parceiro comercial?

A ação internacional do governo Bolsonaro é absolutamente temerária e medíocre. É um governo que não tem uma capacidade de pensar estrategicamente, que não se comporta em conformidade aos dispositivos da Constituição brasileira, que regula a ação do poder do governo nas relações internacionais.

O governo brasileiro conduziu a política externa de forma equivocada e, eu diria até, de forma contrária aos princípios constitucionais. As nações que têm políticas externas mais consistentes reconhecem essa irresponsabilidade do presidente. Portanto, acho que hoje poucos levam a sério esses movimentos que ele faz.

Certamente, essa forma conflitiva com que ele agiu em relação à China gera prejuízos à política brasileira. O governo Bolsonaro tem uma politica externa errática, e isso já foi percebido pelos governantes. No final do governo dele, o modo como ele se comporta não terá grandes consequências (para o Brasil).

Na sua declaração, Bolsonaro equipara o comunismo ao nazismo, provavelmente já preparando o campo da batalha eleitoral. Mas equipar os dois movimentos faz sentido?

É uma tentativa de criar uma simetria entre dois movimentos que têm distinções e nuances muito fortes. Ninguém sério negaria que tanto regimes comunistas quanto regimes nazistas cometeram crimes gravíssimos contra a humanidade. O stalinismo cometeu tais crimes.

Então, dentro dos regimes comunistas houve violações brutais aos direitos humanos, assim como ocorreu dentro dos regimes fascistas e do regime nazista. Mas há também partidos comunistas que se democratizaram e abdicaram do uso da força e de uma ideologia anti-democrática, como o PCdoB.

O que não se tem é um movimento nazista aceitando os direitos humanos e as premissas de um regime constitucional, o que ocorreu por partes de diversos partidos de esquerda ao redor do mundo. Então, a simetria (entre o comunismo e o nazismo) me parece absolutamente indevida.

No Flow Podcast, o apresentador Monark tinha defendido que no Brasil deveria haver um partido nazista "reconhecido pela lei". Isso faz sentido?

Alguém que está propondo um partido que tenha uma ideologia baseada na supremacia racial, que nega o pluralismo, que nega a democracia, num pais que tem uma Constituição que diz que não pode haver um partido que seja contrário à democracia e ao pluralismo, evidentemente está propondo algo inconstitucional. Não há espaço dentro da Constituição brasileira para se criar um partido com ideologia nazista. Isso está vedado pelo artigo 17 de maneira expressa.

Estranho ainda ter de falar destas coisas hoje em dia…

Que tema danado para ressurgir assim! É um atraso. Mas é assim quando você tem pessoas da extrema direita no governo e um presidente o tempo todo achincalhando as instituições. Aí, os grupos mais radicais começam a sentir-se à vontade para falar.

Publicado originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 11.02.22

Dias Toffoli suspende condenação de jornalista a indenizar Luciano Hang

A crítica que os meios de comunicação social e as redes digitais dirigem às pessoas públicas, por mais dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos de personalidade.

Assim entendeu o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli ao suspender os efeitos de uma decisão que condenou o jornalista Luís Nassif a indenizar em R$ 20 mil o dono da Havan, Luciano Hang.

Nassif havia sido condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo pela publicação de uma reportagem, no site GGN, em que acusou Hang de coagir e ameaçar funcionários da Havan para que votassem em Jair Bolsonaro na eleição de 2018. 

Ao acolher o pedido do jornalista, defendido pelos advogados Marco Riechmann, Aroldo Joaquim Camillo Filho, Alfredo Ermírio de Araújo Andrade e Vinícius Dino de Menezes, para derrubar a indenização, Toffoli citou precedentes do STF no contexto específico da crítica jornalística a figuras públicas, como é o caso de Luciano Hang, e concluiu não haver violação a direitos de personalidade do empresário no texto publicado por Luís Nassif.

"Não induz responsabilidade civil a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgue observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicule opiniões em tom de crítica severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura pública", diz a decisão.

Toffoli também lembrou que, no julgamento do ADPF 130, o Supremo, mais do que proceder ao juízo de recepção, ou não, de dispositivos da Lei 5.250/1967 pela Constituição Federal de 1988, "procedeu a um juízo abstrato de constitucionalidade acerca do exercício do poder de polícia estatal (em sentido amplo) sobre as manifestações intelectuais, artísticas, científicas, de crença religiosa, de convicção filosófica e de comunicação".

Publicado originalmente pelo Consulor Jurídico, em 11.02.22

TSE nega que Forças Armadas tenham apontado vulnerabilidade nas urnas

O Superior Tribunal Eleitoral informou que ainda não finalizou o pedido do representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência Eleitoral, pois foi protocolado próximo ao recesso, quando os profissionais das áreas técnicas fazem uma pausa.

Após este período, o conteúdo começou a ser elaborado e as respostas serão encaminhadas nos próximos dias.

"São dezenas de perguntas de natureza técnica, com certo grau de complexidade. Tudo está sendo respondido, como foi devidamente comunicado ao referido representante", esclarece a nota.

O TSE destaca que são apenas pedidos de informações, para compreender o funcionamento do sistema eletrônico de votação, sem qualquer comentário ou juízo de valor sobre segurança ou vulnerabilidades. As declarações que têm sido veiculadas não correspondem aos fatos nem fazem qualquer sentido.

A nota do TSE rebate afirmações feitas pelo presidente Jair Bolsonaro, em transmissão ao vivo em suas redes sociais. De acordo com Bolsonaro, as Forças Armadas teriam levantado "dezenas de vulnerabilidades" no sistema de votação, voltando seu discurso novamente a colocar em dúvida as urnas eletrônicas.

Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 11.02.22

Como era o Brasil do 1º centenário da Independência, há 100 anos

Como não poderia deixar de ser, o Brasil de 2022, quando se comemora o bicentenário da Independência, é diferente do de 1922, ano do centenário do Grito do Ipiranga. O país mudou bastante nesses 100 anos, mas não tanto como se poderia esperar ou imaginar.


Muitas situações existentes em 1922 e questões que eram debatidas naquele momento permanecem atuais ou pouco avançaram (Biblioteca Nacional)

Nesse período, é verdade, a indústria e a economia cresceram e se modernizaram, as mulheres (1932) e os analfabetos (1985) conquistaram o direito de voto, a produção agropecuária se tornou uma das maiores do mundo, a taxa de analfabetismo caiu de 65% para cerca de 7% e as comunicações (imprensa, rádio, TV, telefonia, internet) se expandiram, interligando todo o país e sua população — para citar apenas alguns exemplos de avanços.

Em contrapartida, muitas situações existentes naquela época e questões que eram debatidas então ainda permanecem atuais ou pouco avançaram. Assim como em 2022, em 1922 o Brasil sofria os efeitos de uma pandemia, no caso, a de gripe espanhola, que varreu o país entre 1918 e 1919, causando cerca de 35 mil mortes — um número grande para época, em um país que tinha 30 milhões de habitantes —, inclusive a do presidente eleito em 1918, Rodrigues Alves. As desigualdades sociais, a pobreza e o racismo também são questões da época, que perduram com poucas alterações até hoje.

A historiadora Claudia Wasserman, professora titular do Departamento de História, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), contextualiza o momento histórico do centenário da Independência.

Ela lembra que 1922 foi o último ano do mandato do presidente Epitácio Pessoa, marcado por revoltas contra as oligarquias mineira e paulista que eram dominantes na primeira república (1889-1930).

"O desenvolvimento do país dependia basicamente das exportações de café, por isso, a economia não ia bem, já que durante a Primeira Guerra Mundial a demanda pela exportação do produto havia decaído", conta.

Ainda de acordo com Claudia, a industrialização existia, mas era ainda incipiente, e as oligarquias regionais controlavam as eleições que eram frequentemente fraudadas.

"Neste período, a dependência econômica acentuou-se e perpetuou a posição dos países da América Latina como periferia do sistema capitalista, fato esse aceito e aplaudido pelas elites locais e que nos traz, até hoje, consequências nefastas", diz.

O colega de Claudia, o também historiador Luiz Alberto Grijó, coordenador de curso de História da UFRGS, acrescenta que a industrialização do Brasil traçou um arco a partir da década de 1920 até os dias de hoje. Primeiro houve um incremento muito grande, acompanhado por enormes deslocamentos populacionais internos no país, principalmente de nordestinos para o sudeste.


Luiz Alberto Grijó: 'Brasil está passando por uma desindustrialização e se transformando novamente num grande agroexportador' (Luiz Alberto Grijó / Arquivo Pessoal)

"Isso ocorreu com mais intensidade nas décadas de 40, 50, 60, com as pessoas se mudando para trabalhar como mão de obra nessa industrialização toda e nos serviços, que também se desenvolveram", explica.

Nos últimos 20 ou 30 anos, está havendo, no entanto, segundo Grijó, uma reversão desse processo de industrialização.

"O Brasil, como aconteceu com a Argentina e com outros países, está passando por uma desindustrialização e se transformando novamente num grande agroexportador", diz.

"Além disso, ao mesmo tempo, está se tornando também um exportador de produtos de origem extrativa, como minérios e recursos naturais, por exemplo. Estamos numa fase neoliberal do capitalismo. O que se tem observado, é que, nessa fase, o Brasil tem perdido espaço na produção industrial, cada vez mais e mais acentuadamente."

A consequência mais direta disso é a expulsão de uma quantidade enorme de mão de obra do mercado de trabalho, ou seja, de trabalhadores que deixam de ser operários e têm que buscar emprego em outros tipos de empreendimento.

"Essas pessoas acabam se alocando ou se ocupando no mundo dos serviços, eventualmente como subempregados, sem emprego fixo, sem carteira assinada e sem outros direitos trabalhistas", diz Grijó.


Entre principais acontecimentos de 1922, estão Revolta Tenentista (os 18 do Forte de Copacabana e desdobramentos como a formação da Coluna Prestes), fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), filiado à Terceira Internacional, Semana de Arte Moderna, e acirramento das lutas operárias com eclosão de greves em vários setores (Augusto Malta / Biblioteca Nacional)

'Desenvolvimento agroexportador'

O doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), dá mais informações para contextualizar o ano de 1922 e como o Brasil chegou ao que é hoje, principalmente na questão da industrialização.

"O país vivia o começo do esgotamento da República Velha, que tinha a hegemonia das oligarquias agrárias regionais e com mais de 80% de sua população vivendo no meio rural", explica. "Havia pelo menos duas grandes contradições na estrutura econômico-social do país."

A primeira, diz ele, era o padrão de desenvolvimento agroexportador, voltado para o mercado externo, o que tornava secundária a expansão do interno.

Com baixíssima produtividade, a redução de custos de produção para a obtenção de preços competitivos para o café e outros produtos aconteceu com pesado arrocho salarial e a quase inexistência de direitos trabalhistas.

"No entanto, havia, ao mesmo tempo, um diminuto e florescente setor industrial, em especial no sudeste, nascido a partir dos lucros de latifundiários que decidiram diversificar seus investimentos", conta Maringoni.

Essa indústria, voltada para o mercado interno, tinha dificuldades para se expandir justamente pelo baixo poder aquisitivo da população, resultante do modelo agroexportador, prossegue o professor da UFABC.

"Ao mesmo tempo, as grandes cidades, em especial São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife, com alta concentração de trabalhadores pobres, desempregados e ex-escravos, em sua maioria analfabetos e famintos, eram cada vez mais caldeirões sociais em ebulição, prestes a explodir", diz.

Com isso, havia uma latência de revoltas sociais, que não raro aconteciam de fato.

"Há evidentes diferenças com o Brasil de hoje, mas a desindustrialização acelerada, o fim de vários direitos trabalhistas consagrados na CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] e a preponderância do agronegócio são pontos de contato com aquele Brasil atrasado", explica Maringoni.

"Não nos esqueçamos que nos últimos anos demos um passo atrás na civilização ao voltarmos ao mapa da fome."

Voltando à época do centenário, o pedagogo e historiador da Educação, Luciano Faria Filho, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra que no fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, o Brasil era, assim como hoje, um país em busca de si mesmo.

"Era um país que se perguntava o que era, quem éramos nós e o que poderíamos vir a ser", explica.

"Do ponto de vista político, a grande questão era como se tornar realmente uma república, um país republicano, no sentido de que as práticas de respeito à coisa pública pudessem de fato se estabelecer."

Segundo Faria Filho, essas preocupações eram basicamente de grupos mais liberais, além dos anarquistas e socialistas. Era um contexto que levou à criação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), por exemplo.

"Em contraposição, havia as forças da ordem, que queriam manter aquela relação patrimonialista, autoritária, de benefícios, digamos assim, de usufruto pelo mundo privado das benesses públicas", explica.

"O momento do centenário foi de síntese dessas grandes questões."


Praça Marechal Floriano no Rio de Janeiro (Augusto Malta / Biblioteca Nacional)

Para ele, ainda que se possa dizer que o significado das questões naquele momento e hoje nem sempre seja o mesmo, há desafios que permanecem.

"A construção de um sistema nacional de educação, de uma escola pública laica, é exemplo disso", diz.

"No caso, dos direitos da mulher e do combate ao racismo, houve avanços, é verdade, embora, neste último caso, permaneça o estrutural. Esse racismo institucional nos ajuda a compreender nossas desigualdades sociais. Aliás, elas são outro elemento fundamental para percebermos a continuidade entre 1922 e 2022. Nós continuamos a ser um dos países mais desiguais do mundo. É um traço fundamental que herdamos e atualizamos continuamente. Nisso não há diferença em relação ao ano do centenário."

Outra semelhança entre os dois anos, é que, assim como em 1922, em 2022 haverá eleições para a presidente da República e, no passado e hoje, há um país dividido.

"Era uma disputa que pouco tinha de democrática, a começar pelo fato de, numa população de cerca de 30 milhões de brasileiros, pouco mais de 800 mil (pouco mais de 3,5%) ter direito a voto", diz Maringoni.

De acordo com ele, a de 1922 foi talvez a campanha mais suja da República Velha. Não faltaram nem as fake news.

"Houve farta disseminação de informações falsas, que hoje são chamadas de fake news, por parte de Arthur Bernardes, rico fazendeiro de Minas Gerais, que se saiu vencedor", explica.

"O regime, mesmo com a mudança de governo no ano seguinte, era incapaz de resolver qualquer problema social."


Comemoração do centenário da Independência; governo quis aproveitar comemoração da Independência para reverter a imagem de um país pouco desenvolvido (Biblioteca Nacional)

Nesse cenário, o governo quis aproveitar a ocasião da comemoração da Independência para reverter a imagem de um país pouco desenvolvido.

"Epitácio Pessoa não mediu esforços para mostrar um país moderno", diz Claudia.

"O principal evento foi a Exposição Universal do Rio de Janeiro, que começou em setembro de 1922 e foi até abril de 1923. Para a monumentalidade pretendida, uma obra extraordinária teve que ser feita na zona central da cidade, com a derrubada do Morro do Castelo, discutida à exaustão."

Havia tanto ferrenhos defensores como opositores da medida, mas finalmente o morro foi parcialmente derrubado.

Em seu lugar, foram construídos 2.500 metros quadrados de pavilhões, sendo 15 estrangeiros.

"Com cerca de 10 mil expositores, o evento ainda contava com palácios de festas, dos estados, da música, das diversões, da caça e pesca e muitos outros", conta Claudia.

"Alguns desses prédios ainda podem ser vistos nos dias de hoje. Importante frisar que a exposição de 1922 apresentava o tipo brasileiro como branco e europeizado, e o país como desenvolvido e ligado à cultura da modernidade." Pode se considerar uma fake news de 100 anos.


Demolição do Morro do Castelo - em seu lugar, foram construídos 2.500 metros quadrados de pavilhões (Biblioteca Nacional)

Em relação às comemorações do bicentenário da Independência, Claudia é pessimista. "O que celebrar?", indaga. "Independências masculinas, colonial, europeias, militares, que tiveram como protagonistas as elites coloniais racistas e autoritárias, escravagistas e senhoriais, que forjaram Estados Nacionais, excluindo negros e índios da condição cidadã, que continuaram o trabalho genocida iniciado pelos espanhóis e portugueses, eliminando populações originárias para aumentar as áreas de cultivo e atender demanda internacional por alimentos e matérias-primas", revolta-se.

Foi neste contexto, continua ela, oligárquico, senhorial, que ocorreram as celebrações do Primeiro Centenário. "Reivindicavam o desenvolvimento econômico, a modernização dos países à custa da miséria das classes populares e da eliminação dos povos originários", critica.

"A pergunta que se faz é: 100 anos depois dessas primeiras comemorações, o que vamos celebrar? Países da América Latina, incluindo o Brasil, continuam profundamente desiguais, alguns miseráveis."


Comemoração do centenário da Independência do Brasil (Biblioteca Nacional)

Para Claudia, a pandemia comprovou o que já se sabia, "que as classes populares seriam as primeiras e mais fortemente atingidas por qualquer tipo de crise, econômica, política ou sanitária e que os países latino-americanos, por mais modernizados que tenham sido desde as últimas celebrações, seriam os mais duramente afetados".

"Mesmo assim, os Estados se preparam para celebrar sociedades harmônicas e maduras que, na verdade não existem", lamenta.

Assim, prossegue, "quando surgem vozes a contestar essas celebrações, como aquelas que quebraram os relógios instalados no Brasil no ano 2000, em homenagem aos 500 anos do descobrimento, ao invés de serem tratadas como porta-vozes de uma perspectiva descolonial, são apontadas como de vândalos".

"De verdade, tivemos uma abolição sem cidadania, uma república sem democracia e uma independência sem soberania", acredita. "Então, o que comemorar?".

A também historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, professora sênior do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, também conhecido como Museu do Ipiranga, chama a atenção para outras questões relativas ao bicentenário da Independência.

"Passados 200 anos da proclamação da Independência, o debate se volta, com certeza, para os processos de inclusão social e para o cumprimento das bases da Constituição de 1988", diz.


Comemoração do centenário da Independência, em foto de arquivo (Biblioteca Nacional)

Para ela, apesar dos avanços tecnológicos e econômicos, é preciso debater a democratização do conhecimento, a formação dos cidadãos e a democratização política.

"E isso começa com a compreensão dos processos históricos de formação da nacionalidade brasileira", defende. "Ou seja, uma compreensão abrangente do passado para que ele não se repita em termos das desigualdades e das diferenças sociais e raciais."

Evanildo da Silveira, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 11.02.22

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Depois de Moïse: imigrante venezuelano é morto em SP por dívida de R$ 100 de aluguel

Acusado do crime é preso; Movimentos sociais citam xenofobia e cobram punição para homicídio ocorrido em Mauá

O venezuelano Marcelo Caraballo, de 21 anos, foi morto por uma dívida de aluguel em Mauá (SP) Foto: Reprodução

Um imigrante venezuelano foi assassinado na Grande São Paulo por causa de R$ 100. Esse era o valor que Marcelo Antonio Larez Gonzalez, de 21 anos, devia do aluguel da casa onde morava com a família em Mauá, a 40 minutos da capital paulista.

Segundo informações da família à polícia, o locatário teria cobrado o atraso no pagamento. Ele e Marcelo discutiram na porta da casa, o locatário saiu e voltou minutos depois, armado, e disparou contra o jovem venezuelano.

Movimentos sociais pedem Justiça e citam o caso como mais um exemplo de xenofobia, depois que o refugiado congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi morto por espancamento no Rio de Janeiro, no mês passado.

Marcelo tinha quatro filhos e morava com a esposa, a mãe e um irmão, todos venezuelanos. Eles viviam no mesmo terreno do locatário, que fugiu depois de atirar, na noite da última quinta-feira (3). O Samu foi acionado para prestar socorro, mas já era tarde.

Com medo, a família deixou o local e foi acolhida por um vizinho, que teria cedido um salão ainda em construção para que ficassem temporariamente. Sem renda, eles dependem de doações.

Segundo o coletivo Dandara Quilombo, a família conseguiu alguns móveis e alimentos. Mas precisam ainda de fraldas, carrinho de bebê, guarda-roupa e máquina de lavar, entre outros itens.

A família morava há oito meses no Jardim Oratório, em Mauá, em um local do bairro que teve expansão recente com ocupações, e pagava R$ 500 de aluguel. No último mês, só conseguiram pagar R$ 400. A diferença de R$ 100 motivou o desentendimento entre o jovem venezuelano e o locatário.

Prisão temporária

Segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, investigações da Polícia Civil de Mauá levaram à identificação do  autor dos disparos, que teve a prisão temporária decretada e foi detido na terça (8). Ainda segundo a pasta, agentes do 1º DP de Mauá trabalham agora para finalizar o inquérito e relatá-lo ao Poder Judiciário. 

A proximidade do caso com o assassinato de Moïse tornou inevitáveis as comparações.

Histórias de quem fugiu para o Brasil: As leis brasileiras são generosas com os refugiados. A realidade, não

"No passado final de semana, enquanto nos mobilizávamos pela morte do Moïse, aconteceu outro crime de xenofobia e racismo que acabou com a vida de Marcelo, migrante venezuelano que morava em Mauá (SP). Uma e outra vez gritamos: BASTA DE XENOFOBIA, BASTA DE RACISMO! Exigimos justiça para o Marcelo e para todas as pessoas migrantes e refugiadas que perdem a vida nesse país por causa da intolerância e a falta de respeito à diversidade!", publicou a Equipe Base Warmis, grupo de mulheres voluntárias que atua na defesa dos direitos humanos e no combate à violência e discriminação.

Segundo integrantes do movimento, uma rede de coletivos está acompanhando o caso com a família e organiza uma campanha de doações, além de uma vigília.

A articulação na rede #VidasImigrantesNegrasImportam foi formada a partir do assassinato do imigrante angolano João Manuel, em 2020. O frentista de 47 anos foi esfaqueado em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, depois de uma discussão sobre o pagamento para imigrantes do auxílio emergencial do governo federal. Além da Equipe Base Warmis, acompanham o caso os coletivos Dandara Quilombo e Fronteiras Cruzadas.

Em comunicado conjunto, os movimentos lembram que o caso de Moïse mobilizou a sociedade civil, "mas infelizmente esses casos não são isolados. O racismo e a xenofobia já ceifaram as vidas de muitos migrantes e refugiados que escolhem o Brasil para viver".

No mesmo texto, os coletivos reforçam a exigência de regularização da documentação para os migrantes, "para que a documentação não seja mais um motivo de vulnerabilidade para essas populações".

Venezuelanos são a nacionalidade com maior número de pessoas refugiadas reconhecidas no Brasil (46.412) entre 2011 e 2020. O número aumentou significativamente com a decisão de 2019 do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça, de reconhecer a situação de “grave e generalizada violação de direitos humanos” na Venezuela.  

Elisa Martins / O Globo, em 10/02/2022 - 09:00 / Atualizado em 10/02/2022 - 16:12

O sujo e o mal lavado

Nem Bolsonaro nem Lula sabem montar e gerenciar coalizões  

Por Carlos Pereira

Lula criticou as relações de Bolsonaro com o Congresso classificando-o como “subserviente aos interesses dos parlamentares”. “Criaram o orçamento secreto que é tão secreto que não podemos nem saber o nome de quem recebe uma emenda”, complementou o ex-presidente.

De fato, as relações de Bolsonaro com o Legislativo têm sido um desastre. Uma combinação predatória de falta de transparência, baixo sucesso legislativo e alto custo de governabilidade. Inicialmente ignorou e desenvolveu uma relação adversarial com o Legislativo. Mas, diante de vertiginosa perda de popularidade e de crescentes riscos de ver seu mandato abreviado, se aproximou do Centrão e montou uma coalizão minoritária, mas que lhe garante sobrevivência.

Se observarmos as escolhas de Lula e dos outros governos do PT na montagem e na gerência das suas coalizões, vamos perceber desempenhos igualmente desastrosos. Lula montou coalizões com um número muito grande de partidos e heterogêneos entre si, o que dificultou a coordenação e aumentou os custos de governabilidade.

Ao tomar posse em 2003, Lula expandiu o número de ministérios de 23 postos para 35. Diferentemente de FHC, cujo partido (PSDB) ocupava apenas 26% dos cargos ministeriais, as novas posições criadas por Lula foram ocupadas por integrantes do PT que, mesmo com uma bancada de apenas 18% das cadeiras (91 deputados), ocupou 60% dos ministérios (21 postos). Por outro lado, o PMDB, com 15% das cadeiras (78 deputados), ocupou apenas 6%; ou seja, 2 ministérios.

O governo Lula preferiu alocar os espaços do seu gabinete para várias tendências internas do PT em vez de parceiros de coalizão. Naturalmente que tais parceiros se sentiram excluídos do jogo. Para tentar compensar a progressiva frustração e animosidade decorrente da desproporcionalidade da coalizão, o governo Lula recompensou os aliados por meio de pagamentos ilegais, escândalo que ficou conhecido como mensalão.

O STF, muito antes da atuação do “vilão” Sérgio Moro, condenou 25 dos integrantes do que o PGR da época chamou de uma “sofisticada organização criminosa”, incluindo lideranças do PT como o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu; o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha; o ex-presidente do PT José Genoino; e seu tesoureiro, Delúbio Soares. Curiosamente, Lula foi implicado apenas indiretamente no escândalo, sendo acusado de omissão.

A narrativa de que Lula se relacionou bem com o Legislativo e que soube montar e gerenciar suas coalizões é simplesmente falsa. É o sujo falando do mal lavado.

Carlos Pereira, o autor deste artigo, é Cientista Político e Professor Tiular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas. Publicado originalmnete n'O Estado de S. Paulo, em 10.02.22

Briga de irmãos

   Centrão e setores do mercado não enxergam diferenças entre Bolsonaro e Lula   

Por William Waack

Há setores do mercado que vivem no curtíssimo prazo e que pulam de Bolsonaro para Lula e vice-versa com a rapidez com que se especula por resultados imediatos. Os setores com horizontes mais distantes não enxergam diferenças significativas entre os dois líderes das pesquisas.

Mais de um grande fundo já disse isso aos cotistas. O mais recente foi o respeitado Verde, para o qual Lula e Bolsonaro “são irmãos gêmeos, separados no nascimento”. Ambos, diz carta redigida pelo fundo, recorrem ao mesmo “populismo eleitoreiro barato totalmente irresponsável”.

Há setores do mercado que vivem no curtíssimo prazo e que pulam de Bolsonaro para Lula e vice-versa com a rapidez com que se especula por resultados imediatos. 

Essa afirmação resultou da análise “técnica” (levando em conta apenas modelos econômicos) dos instrumentos pelos quais o governo Bolsonaro pensa conseguir baixar preços de energia em geral e combustíveis em particular. Conclusão similar ao alerta feito pelo próprio Banco Central, segundo o qual a maneira pela qual o Planalto quer baixar preços e inflação arrisca a produzir o resultado contrário – obrigando o BC a subir mais ainda os juros.

Populismo eleitoreiro não é fenômeno restrito a personagens como Lula e Bolsonaro nem ao sistema político brasileiro. É generalizado mesmo em democracias liberais “estáveis” por toda a Europa. A questão para o Brasil, porém, é muito mais abrangente por causa do consenso amplo na sociedade brasileira de que a prioridade não é combater desigualdade, mas, sim, promover o crescimento dos gastos públicos, dos quais grupos privados e corporativistas extraem renda.

Esse tipo de “escolha” não é racional nem deliberada, e resulta de longo processo histórico e cultural – portanto, político. A composição do Parlamento brasileiro, com suas atuais inéditas prerrogativas de poder, espelha exatamente esse consenso. Uma amorfa massa “central” de deputados e senadores luta apenas por seus interesses paroquiais ou setoriais, acomodando-os à custa dos cofres públicos, sem diferenças ideológicas significativas.

O que mais impressiona quando se olha para o Brasil de uma perspectiva ampla é o longo tempo em que está preso à armadilha de renda média. Situação agravada de forma dramática pelas severas perdas sociais causadas pela pandemia na saúde, educação e renda. Esse “plano geral” – o das verdadeiras questões de fundo – não transparece no atual debate político-partidário.

Que se concentra em quem vai apoiar quem em troca de quê. O Centrão segue a lógica do sistema e tem como prioridade formar bancadas. Muito antes dos fundos sofisticados de investimento já havia demonstrado não ver diferenças significativas entre Lula e Bolsonaro. O resto é briga de irmãos.

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista e Apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 10.02.22.

Pastor admite intermediar emenda para favorecer filhos políticos: ‘Quer dinheiro?’; veja vídeo

Líder da Assembleia de Deus no Brasil, José Wellington Bezerra da Costa afirma que recurso só chega ao prefeito com aval da igreja 

O pastor José Wellington Bezerra da Costa, um dos líderes mais influentes da Assembleia de Deus no Brasil, admitiu que a igreja tem feito a intermediação do pagamento de emendas parlamentares para eleger três de seus filhos em São Paulo, maior colégio eleitoral do País. José Wellington também proibiu o apoio de pastores a candidatos que não sejam “ungidos” pela denominação evangélica.

Os filhos do pastor – o deputado federal Paulo Freire Costa (PL-SP), a deputada estadual Marta Costa (PSD-SP) e a vereadora Rute Costa (PSDB-SP) – tiveram acesso a R$ 25 milhões em recursos públicos, no ano passado. Nas eleições que disputaram, os três foram abertamente apoiados pela igreja durante as campanhas.

“A emenda só vai para o prefeito por intermédio do pedido do pastor da Assembleia de Deus”, disse José Wellington durante reunião de obreiros, realizada na última segunda-feira, em São Paulo. “O eleitorado que ali está, irmãos, não é do prefeito, mas são irmãos em Cristo que estão nos apoiando para que os nossos candidatos continuem trabalhando.”

José Wellington controla a Convenção-Geral das Assembleias de Deus no Brasil, a mais antiga do segmento, há três décadas. Em São Paulo, é líder do Ministério do Belém, vertente mais tradicional da denominação no Sudeste, e apoiou a campanha de Jair Bolsonaro em 2018. No culto, ele afirmou que os filhos são livres para escolher os beneficiados, mas revelou como abordam os prefeitos: “Você quer dinheiro? Quer, mas chame então o pastor da Assembleia de Deus”.

No ano passado, o deputado Paulo Freire Costa teve acesso a R$ 16 milhões em emendas, valor destinado a cada um dos congressistas. Ele indicou verbas para 26 beneficiários, incluindo R$ 395 mil para Campinas, onde é pastor, e R$ 600 mil para dois municípios (Bilac e Santópolis do Aguapeí) na modalidade transferência especial, apelidada de “pix orçamentário” por repassar um “cheque em branco” para prefeituras sem fiscalização federal.

Templo

Apesar do apoio a Bolsonaro, José Wellington já foi próximo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje favorito nas pesquisas de intenção de voto para a disputa ao Planalto. Na reunião em que discorreu sobre as emendas estavam presentes pré-candidatos em outubro, incluindo o deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), aliado de Bolsonaro. Aos subordinados, José Wellington costuma dizer que ora por todos e dá espaço a concorrentes de diferentes partidos no púlpito do templo.

Nos últimos anos, a Assembleia de Deus do Belém, uma das vertentes da denominação no Brasil, viu outras alas ocuparem espaços políticos no Congresso. A presidência da bancada evangélica na Câmara passou ontem das mãos do deputado Cezinha de Madureira para as de Sóstenes Cavalcante, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (mais informações nesta página). As duas igrejas são consideradas “irmãs” do Belém, mas disputam poder onde estão instaladas.

Aos líderes, José Wellington expôs a preocupação com o apoio de pastores a candidatos que não são da Assembleia de Deus e apontou o pagamento de emendas como forma de dar força aos nomes escolhidos para representar os fiéis no Legislativo. “Meus irmãos, trabalhem para eleger os nossos irmãos na fé, procurem eleger os nossos irmãos na fé. Glória! Seja fiel a este nome: Assembleia de Deus no Brasil.”

A chancela dos recursos pelos pastores serve, nas palavras do patriarca assembleiano, “para evitar qualquer nuvem negra sobre o comportamento dos nossos companheiros”. José Wellington fez um alerta para que os pastores não aceitem emendas diretamente para as igrejas, ou seja, a intermediação tem de ser feita para destinar recursos às prefeituras ou a outras instituições. “A igreja não precisa de dinheiro do Estado”, insistiu.

Procurado pela reportagem, o pastor confirmou que põe líderes da igreja em contato com prefeitos beneficiados por emendas de seus filhos parlamentares, mas negou troca de favores. “Quando o prefeito de uma cidade precisa de uma verba, é evidente que nós mandamos o pastor da nossa igreja para que ele tenha conhecimento com o prefeito. O nosso deputado vai entender, naturalmente, se a verba for coisa lícita, for necessária, mas pelos canais oficiais”, disse ele. “A igreja não tem qualquer compromisso político.”

Ao admitir que a igreja lança candidatos e pede voto para os fiéis, José Wellington disse ser preciso manter a doutrina. “O candidato da minha igreja, eu ponho ele no púlpito, eu ponho ele na minha casa, eu ponho ele no meu carro, eu ponho ele onde eu quiser. Outros candidatos de fora, não”, afirmou. “Quem trouxe a política para o ministério da Assembleia de Deus fui eu porque entendi que existem interesses da igreja, especialmente legais. Alguns deputados estão fazendo coisas meio marotas contra nossa doutrina pública, que precisamos manter.” 

Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo, em 10 de fevereiro de 2022 | 05h00

Bolsonaro deixa o Brasil de joelhos diante de Putin

A visita ao seu homólogo russo em um momento de máxima tensão global é a enésima loucura de um presidente que até seus ministros tentam impedir. Comentário de Juan Árias, do EL PAÍS.

Os presidentes da Rússia e do Brasil, durante a reunião de economias emergentes do BRICS, em 2019, em Brasília. (Sérgio Lima)

O anúncio de uma visita do presidente Bolsonaro a Vladimir Putin na próxima semana gerou polêmica dentro e fora do governo brasileiro. Pensa-se que o encontro em Moscovo, num momento de tensão em que pode eclodir a qualquer momento uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia envolvendo a Europa e o mundo, escapa a qualquer prudência diplomática. Ainda mais quando não há motivos para o Brasil participar desse encontro, que só servirá para colocar o país de joelhos diante de Putin.

O único motivo da visita é pessoal: Bolsonaro quer a fotografia com o presidente russo para usá-la em sua campanha presidencial e esfregá-la na cara do presidente dos EUA, Joe Biden, enquanto agradece a Putin pelo elogio pessoal que lhe deu no último Cúpula do BRICS .

Segundo especialistas em política externa, a visita de Bolsonaro a Moscou é uma das muitas loucuras a que o presidente brasileiro se acostumou no país. A tal ponto que não só a oposição, mas também seus ministros mais políticos, estão tentando convencê-lo a desistir da viagem.

Quando perguntado a Bolsonaro se ele discutiria a questão candente da crise na Ucrânia com Putin, o presidente respondeu que o faria "somente se ele pedir". O que Bolsonaro está tentando mostrar – especialmente para os Estados Unidos, onde perdeu seu grande amigo Donald Trump – é que mantém um vínculo forte com a Rússia e tem aliados no exterior. Durante a viagem, ele aproveitará para conhecer o líder da Hungria, o ultradireitista Víktor Orbán, com quem mantém relações próximas. O Brasil precisará de anos para consertar a bagunça de sua diplomacia atual, dizem os especialistas.

A imprensa brasileira intitulou a viagem de Bolsonaro a Moscou neste momento de tensão como alguém caindo “de joelhos diante do Kremlin”. E o pior da polêmica visita é que o presidente pretende usá-la para fortalecer sua campanha de reeleição para o próximo mês de outubro. Suas chances se esgotam todos os dias. De acordo com as últimas pesquisas, o presidente perderia as eleições presidenciais no primeiro turno .

Nesse contexto, Bolsonaro quer agradecer a Putin os elogios que lhe deu como “exemplo” de gestão da pandemia, que parece uma zombaria da realidade dos fatos , bem como os elogios relacionados à sua “masculinidade”. “Você mostrou as melhores qualidades masculinas como coragem e vontade”, disse Putin ao brasileiro. Nada poderia soar melhor aos ouvidos de Bolsonaro, cuja homofobia não é apenas conhecida, mas incentivada por ele mesmo. No pior da pandemia, o presidente afirmou que quem ficou em casa por medo de se infectar eram "bichas".

A homofobia e a misoginia do capitão são conhecidas desde que ele era um deputado obscuro. Na época, ele disse que sua quinta filha acabou sendo uma mulher porque ele “se distraiu”, e que teria preferido que ela fosse um menino também. Às vezes me pergunto o que aquela menina de 11 anos pensará sobre seu pai no futuro. Em relação à sua homofobia, basta lembrar o dia em que admitiu que antes de ver o filho chegar "no braço de um bigodudo" preferiria vê-lo morto sob as rodas de um caminhão.

O mais triste para o Brasil, país que em algum momento teve um papel importante no xadrez global, é ter um presidente que se encolhe na política externa a um ponto grotesco que ofende o país. Não adianta a Bolsonaro que até os seus estejam tentando convencê-lo do perigo de visitar Putin.

Em três anos de governo, Bolsonaro ignorou totalmente a Europa , cujos países ele nem visitou. O presidente brasileiro vive preso em seu mundo estreito, criado a partir de seu ódio e de seu sonho de que um golpe militar lhe permita permanecer no poder para sempre. Ele gostaria de ser um Trump, a quem ama; ou ser um novo Putin, cujo mito de masculinidade ele inveja.

A palavra que Bolsonaro mais usou quando era deputado é “macho”. Chegou a afirmar que sua esposa o considera "o macho dos machos" e sem a menor vergonha revelou que ele é imbroxavel , ou seja, que nunca falha sexualmente.

Se Bolsonaro se encontrar com Putin nos próximos dias, será interessante saber sobre o que eles vão conversar, já que o drama de uma possível guerra com a Ucrânia deixa o mundo no limite, mas eles parecem pouco se importar. Embora Bolsonaro tenha afirmado mais de uma vez que as armas com as quais ele diz que dorme ao lado dele foram seu melhor talismã. Ele os ama com tanta paixão que legislou que hoje todos os brasileiros podem possuir até seis armas para legítima defesa . Um assunto sobre o qual, sem dúvida, você poderá conversar livremente com o líder russo.

Juan Árias, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS no Brasil. Publicado originalmente em 10.02.22.