Por José Sarney
A sociedade se organizou como Estado para enfrentar o medo da morte violenta, diz a velha fórmula de Hobbes. Se não evita a morte, todo o Estado desmorona, como um castelo de cartas. E, infelizmente, há muito tempo o Brasil tem falhado nesta tarefa.
Tenho escrito aqui repetidamente contra a violência, que
nos cobra preço maior do que o de muitas guerras, atingindo os que morrem e
suas famílias, também vítimas irremediavelmente marcadas. Os episódios recentes
no Rio de Janeiro acentuam uma das faces mais terríveis desse massacre: o
aspecto racial das mortes.
As estatísticas mostram que as vítimas são principalmente
os negros, e os negros jovens; e como é grande essa preferência. Os que
defendem as armas dizem que armas não matam, que as pessoas matam. A verdade é
que as armas matam porque estão na mão de pessoas que querem matar.
O caso de Moïse Kabogambe, o refugiado congolês, que foi
morto a pauladas, mostra que as pessoas matam com as mais diversas armas. A
brutalidade do ato, longo e prolongado pela agonia, não pode esconder sua
causa. Moïse não era suspeito de nada, mas culpado de ser negro e estrangeiro
em terra de milicianos. Sua morte ignominiosa, crudelíssima, a pauladas e
pontapés, põe de joelhos o Brasil.
Também gratuito foi o assassinato de Durval Teófilo
Filho, que, sendo negro, era vizinho de brancos preconceituosos. Seu assassino,
ao entrar no condomínio em que ambos moravam, viu aproximar-se um negro com a
mão numa mochila e, tendo um revólver — não é por ser sargento que ele tinha a
arma, mas pela leniência da regulamentação da lei —, achou que devia atirar em
“legítima defesa”.
Há quem pense, portanto, que a presunção de ameaça
legitima o crime. A extensão desse raciocínio absurdo é que o diferente — e o
diferente no Brasil nem sempre é minoria numérica, pois são maioria de nossa
população os descendentes de africanos e as mulheres — é uma ameaça para os que
se pensam superiores. Essa ideia desintegra não somente o Estado, como também a
sociedade, nos aproximando do que os Estados Unidos têm de pior, que nunca
jamais, em tempo algum, deveria ser copiado.
Uma continuação desse raciocínio de legitimidade da
intolerância e da violência é o espetáculo da defesa do direito ao nazismo e dos
nazistas fazerem o que quiserem, debate que 2/3 dominou as mídias sociais essa
semana. Eu exagero ao dizer que é esta a síntese do que se discutiu nos últimos
dias? Creio que não.
O nazismo, como outras intolerâncias, pouco se importa
com o argumento dos outros. O seu argumento é ação, e a sua ação é a destruição
do outro. A intolerância foi sempre fonte de violência. Não podemos esquecer
que a intolerância religiosa causou as terríveis guerras de religião e ainda
hoje alimenta o terrorismo. Não podemos esquecer que a intolerância está na
origem dos genocídios que envergonham a Humanidade. Estes crimes são uma ameaça
à sobrevivência do Estado e das pessoas. Por isso é preciso dizer não à
violência.
José Sarney, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Foi Presidente da República. Publicado originalmente n'O Estado do Maranhão, edição online, em 12.02.22.
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