segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Os desempregados 'desesperados para ter algo no currículo' que tentam a sorte em cursos profissionais

Em sua maioria, os alunos estão "parados" há vários meses (alguns, há anos). São moradores de bairros das periferias da cidade ou da região metropolitana, tem baixa escolaridade e pouca perspectiva de mobilidade no mercado de trabalho.

Depois de uma década como vigilante, Soraya Ribeiro, 55, concluiu o curso de portaria

O professor Carlos Quiroga aconselha: "Vocês colocam e-mail no currículo? Muita gente não coloca, não, viu? Erro fatal. E vocês atendem o telefone? Tem que atender, gente. Vocês acham que é só telemarketing com cobrança? Mas e aí, se a empresa quer contratar vocês, como ela faz se não tem e-mail e vocês não atendem ligação?"

Manhã de segunda-feira, quarto andar do Edifício Claudina, rua Barão de Itapetininga, centro de São Paulo. Esse é só o começo da aula. Seis pessoas desempregadas iniciam o curso de portaria, controlador de acessos, recepção e fiscal de piso - carga de oito horas em um dia - na escola Discimus ("aprendemos", em latim).

Todos os meses, centenas de pessoas procuram escolas como essa em busca de cursos profissionalizantes de um único dia, a chamada "reciclagem profissional", no centro de São Paulo. Em outubro, a BBC News Brasil acompanhou duas aulas em duas escolas na região.

Em sua maioria, os alunos estão "parados" há vários meses (alguns, há anos). São moradores de bairros das periferias da cidade ou da região metropolitana, tem baixa escolaridade e pouca perspectiva de mobilidade no mercado de trabalho.

Alguns culpam a crise econômica pela situação difícil. Segundo o IBGE, o Brasil tinha 14,1 milhões de desempregados em julho, taxa de 13,7% da população. Esse índice vem caindo lentamente, mas os economistas não acreditam em uma ampla retomada do mercado nos próximos meses.

Já outros alunos reclamam das empresas por não darem oportunidades a quem tem mais de 40 anos. Por outro lado, os mais jovens dizem que a falta de experiência também pesa na hora da seleção.

Para ir ao centro da cidade, muitas vezes eles gastam o pouco dinheiro que sobrou do mês, ou pegam emprestado de parentes. Tudo válido pela busca do certificado de conclusão da "reciclagem". Veem na profissão de porteiro (ou controlador de acessos, ou recepcionista), uma chance de reencontrar um salário novo no fim do túnel.

E quem sabe agora, com o currículo um pouco mais recheado, algum empregador não se convença de que chegou a hora de dar uma oportunidade?

No início da aula, o professor Carlos Quiroga explica aos alunos como se faz um currículo

'Ninguém me chama'

A rua Barão de Itapetininga ganhou a fama de Meca dos desempregados paulistanos por causa das dezenas de agências de recrutamento, lan houses que escrevem e imprimem currículos, empresas terceirizadas de serviços gerais, escritórios de advogados trabalhistas e centenas de anúncios de emprego colados nos postes do calçadão de pedras portuguesas.

No quarto andar do edifício Claudina, número 273 da Barão, fica a escola Discimus Cursos e Treinamentos, um dos locais procurados por desempregados todos os dias.

Em média, ela vende cursos a 200 pessoas por mês: tem de zelador, portaria virtual, gerente de condomínio, monitoramento por vídeo, controlador de acessos, informática básica. As aulas, em duas salas, duram no máximo dois dias e custam de R$ 40 a R$ 270, a depender do curso.

Antes de falar sobre questões técnicas de cada profissão, o professor Carlos Quiroga sempre ensina como fazer um currículo e dá dicas de boas maneiras para se portar em uma entrevista.

Segundo ele, no dia do embate final: 1) "Esteja descansado, não beba na noite anterior"; 2) "Evite gírias, tenha postura, vá bem vestido, nada de boné"; 3) "não fale mal de sua ex-empresa nem de seus antigos colegas"; 4) "seja verdadeiro, não venha com textos prontos"; 5) "explique como você será útil para aumentar os lucros da empresa".

Para Aldo Amaro dos Santos, de 54 anos, o problema é que as entrevistas ainda parecem distantes. "Para mim, a dificuldade mesmo é ser chamado. Ninguém me chama. Nem para a entrevista", conta ele, desempregado desde março.

Foram 20 anos organizando um arquivo até que... "A empresa fechou na pandemia, fui o último funcionário. No final eu não não era nem mais registrado", diz, num dos intervalos da aula. "Acho que conta muito a idade, desistem de me chamar quando veem 54 anos..."

Nos últimos meses, tem vivido do pé de meia que construiu com seu emprego anterior, onde ganhava R$ 1.600 por mês. "Minha sorte é que desde jovem sempre guardei um pouquinho aqui, outro ali. Mas uma hora o dinheiro acaba: eu tinha para um ano, mas já são sete meses parado", conta ele, que mora no Jardim Monte Azul (periferia da zona sul paulistana).

Então Aldo dos Santos decidiu que era melhor mudar de área para ter mais chances de receber um salário de novo - um porteiro ganha por volta de R$ 1.500 em São Paulo. "Acho que essa área de segurança e de portaria tem mais vagas e não se importam tanto com a idade", diz.

Na Barão de Itapetininga, em São Paulo, vagas de emprego são expostas na rua e em postes (imagem de 2019)

Para Tailane de Almeida, 24, o empecilho não é a idade, mas a falta de experiência. "Se você tenta entrar numa área nova, pedem experiência. Mas como a gente vai ter isso se ninguém te dá uma chance de entrar? Não dão oportunidade de você aprender...", diz ela, desempregada desde o início do ano.

De família pobre, Tailane parou de estudar no 6º ano do ensino fundamental. Trabalhou como operadora de telemarketing e, mais recentemente, em uma lanchonete de São João do Miriti, na Baixada Fluminense, onde vivia com a família. Mas o comércio fechou na pandemia de covid-19. "Vim para São Paulo pra tentar alguma coisa. No Rio estava muito difícil", diz.

Hoje ela mora no Tremembé (periferia da zona norte), onde divide a casa com outros familiares. Soube do curso de fiscal de piso por uma prima, que também emprestou os R$ 170 da inscrição. "Acho que é uma área que posso deslanchar, porque tem bastante vaga. A gente só coloca a mão onde consegue alcançar", diz.

Sem emprego garantido

Um dos sócios da escola Discimus é Fábio de Oliveira, de 50, que por duas décadas trabalhou na área de segurança. Em 2018, juntou-se a um primo e abriu a empresa de cursos no Edifício Claudina.

"Somos procurados por pessoas desesperadas por colocar alguma coisa no currículo. Eu diria que a maioria tem ensino médio incompleto, ou parou de estudar no fundamental", diz ele, que anota os dados dos alunos em uma planilha.

Segundo Oliveira, a procura pelos cursos aumentou durante a pandemia, principalmente depois que o governo Bolsonaro instituiu o auxílio emergencial de R$ 600, em abril do ano passado. "Muita gente pegou o dinheiro e pensou: 'preciso melhorar, fazer um curso, me atualizar", diz. Depois da diminuição do benefício para valores abaixo dos R$ 400, o movimento caiu um pouco, afirma.

Na escola Discimus há cursos de portaria e monitoramento eletrônico

"A maioria das empresas não exige experiência na área de portaria, mas só contrata se tiver certificado", explica Oliveira.

Porém, o diploma não significa emprego garantido, ressalta. "Um médico consegue emprego só com a faculdade? Eu acho que não. Mas é o que sempre digo para os alunos: a qualificação é o que vai te diferenciar, ou, pelo menos, é o que vai colocar você na média", explica.

Segundo Oliveira, embora algumas empresas terceirizadas procurem a Discimus em busca de candidatos, a escola não promete emprego certo para ninguém.

Empresas e escolas que condicionam uma vaga à compra de um curso, por exemplo, podem ser alvo de operações da polícia por fraude. Há diversos vídeos na internet sobre desempregados que caíram em golpes de empresas que garantiam trabalho se elas fizessem um curso em determinado local - ao final, a vaga não existia.

Produção de currículos

Embora menos procurado, o curso de informática básica (R$ 40 por quatro horas de aula) também reúne alguns desempregados ao longo do mês.

"Muita gente não tem computador em casa, às vezes não sabe nem ligá-lo. Mas, quando chega na empresa, os chefes pedem para a pessoa fazer uma planilha de Excel com nome dos visitantes do condomínio. A gente ensina o básico: abrir o Word, o Excel, fazer uma planilha", diz Oliveira.

Na aula, o professor Quiroga pergunta se Aldo dos Santos é quem faz o próprio currículo. "Minha irmã me ajuda", responde. "Sua irmã deve saber disso, mas, se não souber, explica que nunca colocamos um idioma estrangeiro se a pessoa estiver um nível abaixo do intermediário. Inglês básico, não. Melhor não colocar", explica.

Fazer o currículo dos desempregados é uma atividade que movimenta o comércio da Barão de Itapetininga. Algumas lan houses escrevem e imprimem o documento por R$ 2. Uma delas fica na "sala F" do próprio Edifício Claudina, três andares abaixo da Discimus.

Quem produz o resumo é Robson Silva, 60, que há 22 anos trabalha no prédio. Na verdade, a principal atuação dele é tocar uma empresa de contabilidade na mesma sala, mas aproveita o espaço para escrever e imprimir currículos aos desempregados - às vezes até de graça.

"O pessoal até tem acesso (a computadores), mas não sabe fazer. Hoje em dia, aparece pouca gente aqui, o pessoal da periferia não tem dinheiro para vir até o centro. Precisa de pelo menos uns R$ 30 pra condução e alimentação. Muita gente não tem. Faço muito currículo de graça aqui... O cara não tem dinheiro, eu pego e faço, e Deus ajude...", diz.

No edifício Claudina é possível fazer e imprimir um currículo por R$ 2

Silva também arrisca algumas dicas para um bom currículo. "O objetivo tem que ser claro: 'estou à disposição'. O que tiver, você pega", brinca.

"Se você tiver mais de 35 anos, coloca a data de nascimento, nunca a idade. O recrutador tem que ler vários currículos por dia. Ele bate o olho e vê '40 anos', já exclui... Se tiver a data de nascimento, ele vai ficar com preguiça de fazer a conta", diz.

'Futuro melhor'

Outra escola que oferece cursos de reciclagem profissional, o Instituto Educacional 6 de Maio, fica no primeiro andar da Galeria Boulevard, na rua 24 de Maio, paralela à Barão de Itapetininga.

Ali, o curso de porteiro e fiscal de piso custa R$ 70 por oito horas de aula. No período, o estudante aprende, por exemplo, os códigos repassados pelo rádio dos condomínios (QAP: na escuta; QRV: estou à disposição; QSM: repita a mensagem).

Depois de uma aula no início de outubro, a ex-vigilante Soraya Ribeiro, 55, desempregada desde fevereiro, exibiu orgulhosa à reportagem seu certificado de conclusão dos quatro cursos dos quais participou na manhã de um sábado.

Antes, ela já trabalhou de faxineira, ajudante geral, assistente de produção, vendedora de roupas e, no último emprego, foi segurança particular.

"Fiquei dez anos na empresa. Terminou o contrato, eles não renovaram e me dispensaram. Estou tentando uma nova área agora, na portaria, porque acho que nesse setor é mais fácil de conseguir emprego com minha idade. Parece que mulher não serve mais depois dos 40", diz.

Soraya mora em São Caetano, e hoje vive da ajuda de uma das filhas e do seguro-desemprego. Mas as parcelas do benefício estão chegando ao fim. "A gente se vira como pode, esperando um futuro melhor, dependendo da mão de Deus", afirma.

Renan Batista está desempregado desde 2014

Já Renan Batista, 38, foi ascensorista, telefonista, assistente administrativo e, nos últimos meses, detetive particular - até nessa área o serviço anda escasso.

Ele não tem um trabalho regular desde 2014, sobrevivendo de bicos e do salário mínimo que recebe como pensão por ser cadeirante. O custo de vida e o aluguel de sua casa no Capão Redondo (periferia da zona sul) estão pesando no bolso. As conta se avolumam, diz. Se a situação apertar, ele pretende voltar para a Bahia para viver com a família que tem por lá.

Então ele decidiu tentar a vida como porteiro ou controlador de acessos. "Estou investindo nessa área, porque tem mais vagas. Sou otimista: uma hora o emprego vai aparecer, tenho certeza", diz, segurando o certificado do curso.

Agora é a atualizar o currículo.

Leandro Machado, de S. Paulo para a BBC News Brasil em 6 novembro 2021

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Rebatizar e dobrar Bolsa Família é como recomendar que pobre continue pobre, diz 'pai' do programa no México

Foi em parte pelas mãos do economista mexicano Santiago Levy que o programa Bolsa-Família nasceu, há 18 anos. Em 2003, Levy foi à Granja do Torto, casa de campo presidencial em Brasília, para uma reunião com o então recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outros sete ministros da gestão petista. 

Ali, explicou as bases do seu Progresa (mais tarde rebatizado como Oportunidades), programa de transferência de renda condicionada implantado por ele no México seis anos antes e cujos princípios serviriam de base para o Bolsa Família.


"Lula optou pelo Bolsa Família e achei uma decisão muito boa. Mas, depois disso, tudo o mais que precisava ter sido feito não foi feito", diz Levy (Jefferson Rudy / Ag, Senado)

Naquele momento, Lula ainda nutria dúvidas entre apostar no Fome Zero, compêndio de políticas públicas contra a pobreza que se mostrariam pouco eficientes, ou unificar sob um único cartão, com escala nacional, benefícios como o vale-gás e o bolsa-escola.

"No fim ele optou pelo Bolsa Família e achei uma decisão muito boa. Fiquei feliz, claro. Mas, infelizmente, depois disso, tudo o mais que precisava ter sido feito em termos de rede de seguridade social no Brasil não foi feito. E o mesmo aconteceu no México, na Colômbia. Os políticos perceberam que o programa era muito eficaz e disseram a si mesmos: OK, é isso, e ponto", disse Levy à BBC News Brasil.

Poucos dias após o último pagamento feito aos beneficiários do Bolsa-Família, na última sexta-feira (29/10) Levy afirmou à BBC News Brasil que o maior problema na questão do combate à pobreza não está necessariamente no fim ou renomeamento do programa — já que o governo Bolsonaro trabalha para lançar o Auxílio Brasil —, mas no fato de que o país não tem respondido à questão central para compreender as raízes da pobreza não só internamente como em toda a América Latina: por que os pobres seguem sem conseguir emprego formal, que lhes daria acesso aos benefícios de seguridade social?

O economista mexicano Santiago Levy, criador do programa Progresa e estudioso de pobreza (Divulgação)

O economista, que foi vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) entre 2008 e 2018 e é referência no assunto, afirma que o Brasil e seus vizinhos de continente passam muito tempo discutindo programas de baixo custo, como o Bolsa-Família, e deixam de focar na informalidade do mercado de trabalho para os mais pobres, "o grande responsável pela pobreza na América Latina hoje".

Diferente do que afirmou o presidente Jair Bolsonaro na semana passada, para quem os 17 milhões de beneficiários "não sabem fazer quase nada e estão fora do mercado", Levy afirma que os pobres que recebem o auxílio trabalham, sim.

O ponto é que aqueles que se enquadram no corte de linha da pobreza do programa (renda per capita de até R$ 178 por mês) não conseguem ou não podem assumir um emprego formal. Ficam presos no que ele chama de "armadilha da pobreza" e "armadilha da informalidade" já que seus rendimentos informais somados ao valor do benefício tendem a ser superiores ao que conseguiriam de renda em um emprego formal.

Para exemplificar o que diz Levy cita uma pesquisa dos economistas Sérgio Firpo e Alysson Portella, do Insper, publicada em março de 2021 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. No trabalho, Firpo e Portella mostram que 37% da força de trabalho brasileira são hoje trabahadores informais e por isso estão excluídos dos sistemas de pensão e seguridade garantidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas. Muitos enfrentam subempregos.

"Se apenas rebatizar o programa e dobrar o benefício, o governo só vai aumentar a armadilha da pobreza", argumenta Levy, já que fica ainda mais difícil que o salário de um emprego consiga fazer frente ao rendimento obtido com trabalho informal e benefício.

O escopo do novo Auxílio Brasil, proposto pelo governo Bolsonaro, deve ser apresentado ainda esta semana. Preliminarmente e sem valores, o programa pretende dobrar o valor médio do Bolsa Família, que passaria a ser de R$ 400 e dar benefícios adicionais para crianças que pratiquem esportes, para jovens no fim do ensino médio e para quem consiga um emprego formal, entre outros.

Valores e condições, no entanto, seguem sendo dúvida, o que é criticado por quem estuda a área.

"É inacreditável, mas praticamente não se discutiu nada sobre o programa em si, tudo o que interessava era chegar a um número de beneficiários e o valor do benefício", disse à BBC News Brasil Fernando Veloso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, que se dedicou a dissecar os termos da Medida Provisória 1061/2021, que criou o Auxílio Brasil.

Presidente Jair Bolsonaro rodeado por parlamentares durante entrega da MP do Auxílio Brasil, em agosto; ainda não há clareza sobre regras do novo benefício (Cleia Viana / Câmara dos Deputados)

Nas próximas semanas, o Congresso e o governo precisam viabilizar os pagamentos do Auxílio Brasil aos beneficiários desassistidos pelo fim do Bolsa Família. Na visão de Levy, o esforço pode acabar sendo uma perda de tempo em termos de combate à pobreza.

Para ele, mexer no Bolsa Família para resolver a questão da informalidade e da pobreza é como tentar curar uma dor de estômago com remédio hipertensivo. Ele afirma que o país precisaria enfrentar uma reforma da previdência que tornasse o sistema menos regressivo, por exemplo, e uma reforma das leis trabalhistas que aumentassem o acesso à população ao mercado de trabalho formal.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Santiago Levy à BBC News Brasil, editada por clareza e concisão.

BBC News Brasil - O Bolsa família foi extinto ao completar 18 anos, seu último pagamento foi na sexta-feira da semana passada. O governo aparentemente criou um programa apenas para gastar mais, dobrar o recurso para a população atendida. O senhor tem dito que só o aumento do gasto não gera resultado inclusivo. Poderia explicar então o que deveria ser feito?

Santiago Levy - Todo programa que é direcionado, não só o Bolsa Família, mas todo programa com alvo claro tem que ser muito cuidadoso para que não vire uma armadilha. E isso tem a ver com o desenho do programa e também com os valores das transferências do programa. Suponha que você seja pobre e ganhe US$ 100 (R$ 560) de renda. Suponha que por isso o programa lhe dê um benefício de US$ 50 (R$ 280) por mês. Portanto, sua renda total é US$ 150 (R$ 840).

Se você conseguir um emprego que lhe pague US$ 130 (R$ 730) em vez de US$ 100, mas por isso você perca o benefício, você aceita o emprego? Não. Portanto, o governo deve ter cuidado, porque do ponto de vista social, você gostaria que essa pessoa conseguisse um emprego que pague à ela US$ 130 em vez de US$ 100, porque provavelmente é um emprego mais produtivo. Mas se você disser: "eu sei agora que você ganha US$ 130, não vou lhe dar mais o benefício", isso cria incentivos contra essa pessoa aceitar o emprego. A isso chamamos de armadilha da pobreza.

A mesma lógica também funciona pra questão da informalidade. Enquanto você for informal, você receberá o benefício. Mas se você conseguir um emprego formal, não terá mais essa transferência. Suponha que você tenha um emprego informal que pague US$ 100. E agora você consegue um emprego formal que paga US$ 140 (R$ 790). Mas se você for informal, receberá US$ 150: US$ 100 de sua própria renda e mais US$ 50 do benefício. Se você conseguir um emprego formal, sua renda total cai. Isso é chamado de armadilha da informalidade.

São dois exemplos de incentivos errados dos programas de transferência de renda. Em um caso, você não quer mudar porque, independentemente de ser formal ou informal, uma renda mais alta implica a perda do benefício. No segundo exemplo, mudar de informal para formal implica perda de renda. E quanto maior for a transferência do programa, maior será o risco de que você crie uma armadilha da pobreza ou armadilha da informalidade.

Portanto, se o governo dobrar as transferências do Bolsa Família para o Auxílio Brasil, ele estará aumentando os riscos de que os brasileiros pobres sejam pegos na armadilha da pobreza ou na armadilha da informalidade. Então não sei qual é a análise que o governo fez e não sei quais são as condições do novo programa, mas, em princípio, se você dobrar a transferência e não fizer mais nada, estará criando uma armadilha maior da pobreza para os pobres.

Você está dizendo a eles: "É melhor você continuar sendo pobre". Isso é exatamente o oposto do que os programas de transferência condicionada de renda deveriam fazer.

Santiago Levy critica o fato de o Brasil e seus vizinhos deixarem de focar na informalidade do mercado de trabalho para os mais pobres (Getty Images)

BBC News Brasil - Recentemente, Bolsonaro justificou a necessidade de dobrar o benefício do Bolsa Família porque os 17 milhões de beneficiários "não sabem fazer quase nada, eles nunca vão entrar no mercado de trabalho". É isso o que as pesquisas mostram?

Levy - Vamos separar as coisas aqui. Há evidências de que esses programas estão fazendo as pessoas não trabalharem? Muito pouca ou nenhuma. Esta é uma pergunta muito diferente de: esses programas estão impedindo as pessoas de conseguir empregos melhores? Existem duas questões distintas. Sim, os pobres estão trabalhando. Portanto, não é uma questão de trabalho. É uma questão de que tipo de trabalho. Quando falei sobre as armadilhas da pobreza e da informalidade, não estava dizendo que as pessoas não vão mais trabalhar, porque elas estão, sim, trabalhando. Mas os programas como Progresa e Bolsa Família não estão facilitando que as pessoas a consigam empregos melhores.

No caso particular do Brasil, como mostra o economista Sergio Firpo, o programa Bolsa Família tem uma regra que diz o seguinte: se a renda per capita da família for maior que um quarto de um salário mínimo, a família não pode se qualificar para o benefício. Suponha que haja uma família com três pessoas e uma das pessoas da família consiga um emprego formal.

O que acontece? Porque para conseguir um emprego com carteira assinada, paga-se pelo menos o salário mínimo. Você divide um salário mínimo por três e a renda domiciliar per capita é de um para três, maior do que um para quatro. Essa regra específica do programa Bolsa Família faz com que seja muito difícil para famílias pequenas, de três ou quatro pessoas, conseguirem empregos formais, porque se conseguirem um emprego formal, perdem o Bolsa Família. Não é impossível que elas consigam, claro. O trabalho supostamente informal paga US$ 100, o bolsa paga US$ 50. Se o emprego formal paga US$ 200 (R$ 1,1 mil), o beneficiário ainda vai optar por ele. Mas se pagar menos de US$ 150, já não vale a pena.

Então a regra importa muito, as regras do Bolsa Família eram discriminatórias contra o trabalho formal, e não contra o trabalho em si. A taxa de informalidade entre os pobres realmente aumentou. Não sei como esse Auxílio Brasil vai lidar com isso e por isso não quero emitir uma opinião específica sobre ele. Mas, em princípio, se o que governo fez foi mudar o nome do programa e depois dobrar a quantia, é claro que essa não é uma boa ideia.

BBC News Brasil - Você falou sobre o desafio da informalidade dos pobres. Embora não saibamos valores ou regras com exatidão, sabemos que o Auxílio Brasil vai oferecer um benefício adicional ao beneficiário que conseguir um emprego formal. Isso faz sentido?

Levy - Eu teria que saber os detalhes para analisá-los, mas do ponto de vista conceitual, esta é a melhor maneira de incentivar a formalidade? Minha resposta é não. Antes de mudar ou não o Bolsa Família ou Auxilio Brasil, você tem que responder a uma pergunta: por que trabalhadores pobres não conseguem um emprego formal? Não fizemos essa pergunta.

É muito improvável que sem essa resposta, mudar um programa social vá resolver [o problema da pobreza], porque o motivo pelo qual as pessoas não têm empregos formais não está relacionado ao Bolsa Família exclusivamente. Então, mexer no Bolsa Família pra fazer as pessoas arrumarem empregos formais nunca vai funcionar.

Informalidade entre os pobres aumentou e impulsiona pobreza ( Camila Domingues / Palácio Piratini)

BBC News Brasil - A informalidade é o maior motor de pobreza na América Latina hoje?

Levy - Sim, e esse desafio não vai ser respondido via Bolsa Família.

BBC News Brasil - O que deveríamos estar fazendo, então?

Levy - Esta é uma pergunta que tem uma resposta diferente em diferentes países, mas em geral, o problema é que o desenho das instituições que regulam o mercado de trabalho: previdência social, salários mínimos, regras de demissão, regras de contratação, todas as instituições estão na verdade muito mal planejadas.

O verdadeiro problema no Brasil é que a forma como a seguridade social funciona no Brasil é muito ineficaz porque seu sistema de pensões, seu sistema de seguro social é extremamente caro, porque o salário mínimo é muito alto e porque as regulamentações que as empresas enfrentam para contratar trabalhadores são muito complexas.

E então, além disso, você diz às pessoas: OK, se você não conseguir um emprego formal e não contribuir pro sistema de pensão, ainda assim nós lhe daremos uma pensão mínima gratuita. Portanto, é muito fácil. Você diz: vou colocar muitas barreiras para as pessoas entrarem na formalidade e vou dar benefícios gratuitos quando as pessoas são informais.

O que você acha que vai acontecer?

“Sistema de pensões é extremamente caro, porque o salário mínimo é muito alto e porque as regulamentações que as empresas enfrentam para contratar são muito complexas“, diz Levi

BBC News Brasil - Políticos e economistas progressistas e de esquerda dizem que a rede de seguridade social do Brasil deve ser mantida como uma defesa contra a pobreza para idosos, crianças, os mais necessitados. Mas o que você está dizendo é que de maneira geral isso também é uma armadilha?

Levy - Como projetado hoje, sim. O que a esquerda diz é certo no seguinte sentido: você precisa de uma rede de segurança social muito forte pra proteger as pessoas, os idosos, as crianças. Mas você escolheu o modelo errado pra fazer isso. As pessoas confundem uma crítica à rede previdenciária social com uma defesa de que ela deve ser abolida.

BBC News Brasil - E isso tem obstruído o debate sobre o que deveria ser feito?

Levy - Você tem que reformar esse sistema, mantendo os objetivos de proteção aos mais vulneráveis. Mas é preciso que funcione melhor. Vou dar um exemplo do problema: as empresas têm de pagar mais de 50% do valor do salário em impostos e encargos para contratar funcionários formais. Cerca de 25% disso vai para a previdência. Por outro lado, há a regra de que para receber uma pensão ou aposentadoria via sistema, é preciso contribuir por pelo menos 15 anos. Algumas pessoas não podem contribuir por 15 anos.

Você sabe o que acontece no Brasil com as pessoas que contribuem por 13 anos? Eles recebem uma pensão não-contributiva. Agora pense no dinheiro. Os trabalhadores que contribuíram por 8 anos, por 3 anos ou que não contribuíram nada, recebem o mesmo que quem contribuiu por 13 anos. Então, por que alguém deveria contribuir (especialmente pensando nos custos da contribuição)? Alguém acha que o trabalhador pobre do Brasil é burro? As pessoas são inteligentes, aprendem as regras e se ajustam às regras. Portanto, as regras estão erradas, não os objetivos.

BBC News Brasil - Como diferentes presidentes mexicanos lidaram com o Progresa/ Oportunidades e o que isso deveria ensinar ao Brasil?

Levy - O México foi pioneiro com o Progresa, mas o México não mudou o resto do sistema de proteção social, a forma como funciona a seguridade social, a calibragem do salário mínimo, as regulamentações sobre demissões, a forma como todos esses outros programas funcionam. Infelizmente, muitas pessoas confundem proteção social com um programa individual. A proteção social é muito maior do que um programa individual.

O Bolsa Família é um componente muito pequeno do sistema de proteção social brasileiro. As pessoas falam muito sobre isso, mas em termos de dinheiro é pouco. O mesmo acontece com o México. O Progresa é um pequeno componente do sistema de proteção social mexicano. E o que os governos não fizeram na América Latina foi dar uma olhada em todo o sistema de proteção social. Eles têm discutido programas individuais, não têm discutido todo o sistema.

Em 2003, bem no início do governo Lula, ele e seu gabinete ministerial me convidaram para conversar com eles sobre a experiência do Progresa. E então eu tive uma reunião com o presidente Lula e os ministros, expliquei para eles o que tinha acontecido com o Progresa, que começou seis anos antes, em 1997. No fim, ele optou pelo Bolsa Família e achei uma decisão muito boa. Fiquei feliz, claro.

Mas, infelizmente, depois disso, tudo o mais que precisava ter sido feito em termos de rede de seguridade social no Brasil não foi feito. E o mesmo aconteceu no México, na Colômbia. Os políticos perceberam que o programa era muito eficaz e disseram a si mesmos: 'OK, é isso, e ponto'.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington-DC, em 04.11.21 para a BBC News Brasil.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Bolsonaro envergonha o Brasil, de novo

No exterior, presidente é motivo de zombaria, descaso e vergonha. No Brasil, ele é ainda uma constante fonte de incerteza e angústia

O presidente Jair Bolsonaro foi a Roma a pretexto de participar da cúpula do G-20, grupo formado pelas 20 maiores economias do mundo. A viagem pode ter sido boa para ele e para os membros de sua comitiva. Para o Brasil e para os brasileiros, no entanto, foi péssima. Jamais um chefe de Estado havia envergonhado tão profundamente o País em uma agenda internacional. Mais uma vez, restou evidente que Bolsonaro não está à altura da Presidência da República.

O roteiro da viagem de Bolsonaro pela Itália retratou com exatidão o deserto programático de seu governo, a total ausência de uma agenda do presidente para o País e sua incompreensão do lugar do Brasil no mundo. Como não sabe o que fazer e tampouco separa interesses de Estado e de governo de seus objetivos particulares, Bolsonaro passou longe de reuniões bilaterais produtivas, alinhamento de acordos diplomáticos e comerciais ou simplesmente conversas de alto nível com outros dignitários que pudessem ao menos estreitar laços entre o Brasil e os outros países do G-20. Enquanto chefes de Estado e de governo conversavam entre si sobre temas de interesse comum como vacinação, mudanças climáticas e taxação global para grandes empresas, Bolsonaro se entretinha entabulando conversas sobre futebol com alguns garçons.

O presidente brasileiro se reuniu apenas com o anfitrião da cúpula do G-20, o presidente italiano Sergio Mattarella, encontro meramente protocolar, e com o secretário-geral da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Mathias Cormann. Como foi noticiado, o encontro entre Bolsonaro e Cormann foi “rápido e inconclusivo”. Bolsonaro reafirmou a pretensão do Brasil de ingressar na OCDE, mas ouviu do secretário-geral da organização que, embora o País seja “grandioso”, “há um processo e o Brasil é um dos seis países candidatos (a ingressar na OCDE)”.

Em resumo, Bolsonaro cruzou o Atlântico para fazer campanha eleitoral antecipada em solo estrangeiro e, como ninguém é de ferro, algum turismo afetivo. Além das andanças por Roma, nas quais provocou aglomerações e ensejou ataques violentos contra jornalistas no exercício da profissão, Bolsonaro visitou a cidade de seus antepassados e foi ao santuário de Pádua. Em Pistoia, ao lado de Matteo Salvini, líder da extrema direita italiana, Bolsonaro homenageou os 467 soldados brasileiros que morreram em solo italiano durante a 2.ª Guerra, justamente combatendo o populismo autoritário que tanto Bolsonaro como Salvini hoje representam.

Em mais um ato de campanha, durante conversa de corredor arranjada com o presidente da Turquia, Recep Erdogan, Bolsonaro mentiu descaradamente sobre a situação econômica do País, vituperou contra a Petrobras, reclamou de obstáculos imaginários para sua governança e se jactou de um apoio popular que, na realidade, ele não tem. Foi um ensaio do que dirá no decorrer da campanha eleitoral oficial no ano que vem. A um constrangido diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, Bolsonaro houve por bem tripudiar do fato de ser o único chefe de Estado no mundo acusado de ter cometido crimes contra a humanidade durante a pandemia de covid-19, o que provocou risos no ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em um misto de bazófia e subserviência. 

Ficou claro que Bolsonaro usou a cúpula do G-20 para reforçar entre seus apoiadores no Brasil a imagem de um presidente que é pária por ser “antissistema”, alguém que luta praticamente sozinho contra forças muito poderosas de um mundo em degeneração, forças estas que só ele, qual um super-herói, é capaz de impedir que prejudiquem o Brasil. Acredite quem quiser.

No mundo real, aquele que deveria preocupar um presidente digno do cargo, milhões de brasileiros em insegurança alimentar não sabem se serão contemplados pelo programa social que substituirá o Bolsa Família. Como mostrou o Estado, 5,3 milhões de famílias que não atendiam aos critérios para receber o Bolsa Família deixaram de receber o auxílio emergencial e até ontem ainda não sabiam se seriam elegíveis ao Auxílio Brasil.

No exterior, Bolsonaro é motivo de zombaria, descaso e vergonha. No Brasil, o presidente é ainda uma constante fonte de incerteza e angústia.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de novembro de 2021 

Decisão de Ciro provoca crise e autoflagelo no PDT

Ex-ministro pode jogar a toalha se bancada do PDT não voltar atrás no segundo turno de votação da PEC dos Precatórios.

O ex-ministro Ciro Gomes anunciou a suspensão de sua pré-candidatura ao Palácio do Planalto Foto: Taba Benedicto/Estadão

A decisão de Ciro Gomes de suspender a candidatura à Presidência depois que a maioria da bancada do PDT votou a favor da PEC dos precatórios foi interpretada no meio político como uma estratégia para fugir do desgaste ou até mesmo jogar a toalha. O fato, porém, é que o ultimato estabelecido por Ciro provocou uma crise nas fileiras do partido, que já fala em “autoflagelo”, e pode obrigar integrantes da bancada do PDT a mudar de rumo no segundo turno de votação da proposta, marcada para a próxima terça-feira, 9.

Se a guinada não ocorrer, no entanto, Ciro ameaça mesmo desistir da disputa. Nos bastidores, há uma ala do PDT querendo se aliar à campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e avalia que a candidatura de Ciro está espremida entre o petista, o presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que vai se filiar ao Podemos no próximo dia 10.

Ciro vinha dizendo há tempos que a PEC era uma “aberração” porque, para prorrogar o auxílio emergencial ou mesmo pôr de pé o novo Auxílio Brasil – nome inventado por Bolsonaro para ter uma marca social na campanha de 2022 –, não seria necessário quebrar o teto de gastos públicos. Até então, a oposição parecia concordar com isso. Mas a mão pesada do Palácio do Planalto, que ameaçou cortar emendas parlamentares e deixar deputados a pão e água nas eleições, fez não apenas o PDT como também bancadas de outros partidos se dividirem. E o que se assistiu na madrugada foi a capitulação da chamada terceira via aos “encantos” do Centrão.

Na prática, muitos partidos que têm anunciado horror à polarização entre Bolsonaro e Lula, como o Podemos, escancararam o racha. Só que Moro, no comando da montagem da equipe de campanha ao Planalto, não quis entrar a fundo nesse imbróglio de PEC dos precatórios, mais conhecida como PEC do calote. Embora não tenha anunciado oficialmente sua candidatura, o ex-juiz da Lava Jato somente não estará no páreo presidencial se houver um imprevisto no meio do caminho.

O PSD do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (MG) – outro nome que deve entrar na corrida ao Planalto –, o MDB, o PSDB, o DEM e o PSL também mostraram cisão no plenário. As grandes surpresas, no entanto, foram debitadas na conta do PDT de Ciro e do PSB.

“Não podemos compactuar com a farsa e os erros bolsonaristas”, escreveu Ciro logo cedo no Twitter ao anunciar a suspensão de sua candidatura até que a bancada do PDT mudasse de posição. O presidente do PDT, Carlos Lupi, procurou jogar água na fervura e foi ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a “manobra” do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), para permitir que deputados em viagem votassem de forma remota.

“Essa crise virou um autoflagelo e estamos tirando o chicote do armário”, disse o deputado Gustavo Fruet (PDT-PR), ex-prefeito de Curitiba e um dos seis integrantes da bancada que votaram contra a PEC dos precatórios. “Precisamos superar rapidamente isso porque outras crises virão. Isso é uma maratona, não é uma corrida de cem metros.”

Presidente do PDT da Bahia, o deputado Félix Mendonça Júnior cravou “sim” para a proposta do governo, mas, diante da reação de Ciro, admitiu recuar. “Foi uma votação difícil, já que tem a questão do auxílio emergencial atrelada. Mas isso pode mudar com uma nova discussão”, argumentou ele.

Apresentada pelo governo como única forma de abrir espaço de R$ 91,6 bilhões no Orçamento de 2022 para o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 400, a PEC foi aprovada na madrugada desta quinta-feira, 4, no primeiro turno, em votação bastante apertada. O Planalto precisava de 308 votos e conseguiu 312. Houve 144 deputados que se posicionaram contra e outros 57 se ausentaram. Além da segunda votação na Câmara, a proposta ainda necessita passar duas vezes pelo Senado.

O que está em jogo nesse artifício para dar calote nas despesas obrigatórias, porém, não é o Bolsa Família nem o turbinado Auxílio Brasil, mas, sim, o dinheiro para a campanha de 2022. Motivo: as emendas destinadas por políticos a seus redutos, consideradas fundamentais em um ano eleitoral, crescem com o furo no teto de gastos. Além disso,  o governo ameaçou os parlamentares até mesmo com o não-pagamento do Fundo Eleitoral ao alegar que não haverá dinheiro para esse repasse na campanha se o teto não for rompido.

O Estadão apurou que deputados se preparam para derrubar o veto de Bolsonaro ao aumento do Fundo Eleitoral nos próximos dias. No projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2022, os recursos destinados a financiar as campanhas passaram de R$ 2 bilhões para R$ 5,7 bilhões, mas o presidente barrou esse reajuste. Parlamentares vão tentar agora aprovar um fundo de aproximadamente R$ 5 bilhões. Tudo foi planejado para ocorrer após a votação da PEC dos precatórios.

“A PEC abre, na verdade, espaço muito maior do que o necessário para o gasto social. A motivação é ampliar despesas pulverizadas e, no fim das contas, de baixa qualidade. O auxílio poderia ser pago dentro do teto”, disse o economista Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI).

Para o ex-deputado Paulo Delgado, Ciro tem razão em dar um piti. “Não é o Auxílio Brasil que está em votação. É o auxílio basista, da base aliada, e o cano nos credores”, comparou Delgado, que já foi filiado ao PT e hoje está sem partido. Resta saber se o ex-ministro, até agora um dos poucos que aparecia como irremovível na disputa, vai ou não engolir esse sapo com nome difícil.

Vera Rosa, a autora deste artigo, é Repórter Especial d'O Estado de São Paulo em Brasilia. Publicado originalmente em 04.11.21

Câmara aprova PEC que abre orçamento para o Auxílio Brasil e rompe com bandeira da austeridade

PEC dos Precatórios, aprovada na madrugada desta quinta, libera mais de 90 bilhões de reais para 2022. Governo afirma que recursos são necessários para financiar novo programa soci

O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente Jair Bolsonaro participam de cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 25 de outubro. (Sérgio Lima, AFP

A Câmara dos Deputados aprovou com aperto na madrugada desta quinta-feira, 4 de novembro, a PEC dos Precatórios (Proposta de Emenda à Constituição 23/21), vista por analistas como um “calote” do presidente Jair Bolsonaro no pagamento das dívidas judiciais do Governo e uma forma de furar o teto de gastos do ano que vem. A proposta conseguiu 312 votos, somente quatro a mais que o necessário para a aprovação. A medida também promove outras manobras para furar o teto de gastos, abrindo no total um espaço de 91,6 bilhões de reais no Orçamento de 2022 —ano de eleições presidenciais e um momento crucial para que Bolsonaro alavanque sua popularidade. Desde o início da tramitação o Ministério da Economia usou a PEC como justificativa para a necessidade de criar o Auxílio Brasil, programa temporário que substitui o Bolsa Família, e o Auxílio Emergencial a partir deste mês. Os valores da nova política pública ainda são incertos, mas o objetivo é o de conceder um benefício de cerca de 400 reais para famílias vulneráveis ao longo do ano que vem. Falta agora votar os destaques e aprovar a PEC em segundo turno na Câmara. Em seguida, ela será analisada no Senado.

O Governo chegou ao final deste ano precisando pagar em 2022 cerca de 90 bilhões de reais em precatórios, nome dado a dívidas judiciais acima de 60 salários mínimos com empresas, Estados e municípios, e cidadãos —sobretudo aposentados. A maior parte dos precatórios a serem pagos no ano que vem se refere a dívidas com Estados por causa de erros no repasse do Fundef, fundo destinado para a educação básica que vigorou até 2006. O Governo tinha duas opções: rever gastos para acomodar o pagamento dos precatórios no Orçamento e não furar o teto ou promover mudanças constitucionais para não respeitar nenhum dos dois. Escolheu a segunda opção.

Em uma sessão acalorada que durou até duas da manhã, Bolsonaro contou com manobras regimentais do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para que fosse feita sua vontade. A principal delas foi a de autorizar que deputados de licença em missões no exterior pudessem votar remotamente, apesar da retomada integral dos trabalhos presenciais. Além disso, foi incluída uma emenda aglutinativa de última hora no texto para abordar uma questão relativa ao Fundef, mas a oposição argumenta que não havia antes uma emenda com o mesmo teor que pudesse ser aglutinada, como prevê o regimento. Lira nega irregularidades, mas opositores afirmam que irão contestar o resultado no Supremo.

Apesar dessas manobras, o caminho do Governo e de Lira não foi fácil. Para aprovar uma PEC, era necessário ter a maioria absoluta do plenário, o que não era certo até momentos antes da votação. Foram essenciais os votos a favor de integrantes do PSB e sobretudo do PDT. O partido de Ciro Gomes, pré-candidato à Presidência da República, fechou questão a favor a PEC dos Precatórios e deu 15 de seus 21 votos depois de negociar com Lira e o relator da Hugo Motta (Republicanos-PB) o parcelamento em três anos das dívidas relativas ao Fundef: 40% do total da dívida será pago no primeiro ano; no segundo, 30%; e no último, mais 30%. A negociação foi tida como essencial para conquistar os votos de parlamentares ligados à educação. O PSB, apesar de ser contrário à PEC, entregou 10 de seus 31 votos.

De acordo com o texto aprovado previamente na comissão especial, que promoveu mudanças no projeto enviado pelo Ministério da Economia, a PEC também cria um teto anual de 40 bilhões de reais a serem pagos em precatórios —com base no que foi pago em 2016, corrigido pela inflação. Terão prioridade de pagamento as dívidas de menor valor, até 600.000 reais. Aquelas que ficarem fora do limite imposto pelo novo teto serão postergadas, mas terão prioridade nos anos seguintes, reajustados pela taxa Selic —acumulada mensalmente. Especialistas consultados pelo EL PAÍS tratam a medida como “calote” ou “pedalada”. Além disso, cria um problema para as gestões seguintes, que terão dívidas acumuladas a serem pagas.

Além dessas questões, a PEC dos Precatórios mudou a forma como o teto de gastos é calculado. O teto define que o Governo só pode aumentar os gastos com base na inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior. Com a mudança, será a considerada a inflação de janeiro a dezembro do ano anterior. Como até setembro de 2021 o IPCA acumulado ficou em 10,25%, o Ministério da Economia poderá aumentar ainda mais o Orçamento de 2022. O Tesouro Nacional calcula que essa folga será de 47 bilhões de reais.

A PEC também permite que o Governo desrespeite a chamada “regra de ouro” —que impede o Executivo de se endividar para pagar despesas correntes— sem a necessidade de passar pelo Congresso. Além disso, a medida traz a possibilidade de que Estados e municípios parcelem suas dívidas com a União caso reformem suas previdências locais.

O Auxílio Brasil esteve no centro das discussões ao longo de toda a sessão, apesar de o novo programa de Bolsonaro, tido como eleitoreiro, não constar na PEC —cuja função, segundo o Governo, é a de liberar os recursos para o novo programa. “Quem vota contra o nosso relatório vota contra 17 milhões de famílias e 50 milhões de pessoas”, discursou Hugo Motta (Republicanos-PB). PT, MDB, PSB, Podemos, PSOL, Novo, PCdoB, Cidadania e PV foram contrários à PEC por considerarem um calote nas dívidas do Governo que traria insegurança jurídica. Parlamentares da esquerda se disseram a favor de um novo auxílio ou do aumento do Bolsa Família, mas argumentam de que não é preciso deixar de pagar os precatórios e promover um “calote”. Apesar da fama de fiscalmente responsáveis, partidos como o PSDB e o DEM votaram a favor da medida, que fura o teto de gastos.

Além disso, a oposição afirma que os 91,6 bilhões de reais liberados para o ano que vem é muito mais que o necessário para tirar o Auxílio Brasil do papel. De acordo com o Tesouro Nacional, o programa custará 84,7 bilhões de reais em 2022, dos quais 34,7 bilhões já estão previstos. Portanto, o Governo contará com cerca de 50 bilhões viabilizados pela PEC dos Precatórios para a nova política pública. O Governo afirma que o restante seria gasto ajustando benefícios vinculados ao salário mínimo, com a vacinação contra a covid-19, entre outras despesas, mas a oposição enxerga uma oportunidade para que deputados se beneficiem ainda mais de emendas parlamentares.

Auxílio Brasil

Em 9 de agosto, Bolsonaro entregou à Câmara dos Deputados a Medida Provisória 1.061/21 que cria o programa Auxílio Brasil, um substituto do Bolsa Família que é a esperança do ultradireitista para aumentar sua popularidade às vésperas das eleições de 2022. O Congresso tinha até o início outubro para fazer alterações na medida e transformá-la em lei, mas acabou prorrogando o prazo. Como a MP tem validade imediata, o Auxílio Brasil já começa a valer neste mês, resultando no fim do Bolsa Família. O próprio Governo afirma que o programa terá um caráter “transitório” em 2022, criando uma insegurança aos que eram beneficiados pelo Bolsa Família, que funcionou por 18 anos. O Congresso, que já vem discutindo a criação de uma renda básica universal, deverá fazer alterações no novo programa.

O Bolsa Família pagava uma média de 190 reais a cerca de 14 milhões de famílias, mas o Governo espera que o novo programa pague ao menos o dobro. A MP não estabelece valores nem critérios de pobreza, deixando a cargo do Governo decidir, a cada ano, quanto pagará de benefício. De acordo com a Rede Brasileira de Renda Básica, a MP também cria uma série de benefícios auxiliares —“penduricalhos”, segundo especialistas— que geram ainda mais condicionantes para que as famílias tenham acesso ao programa. Por exemplo, prevê um voucher creche para famílias que comprovem ter atividade remunerada ou emprego, ao invés de focalizar justamente nas que estão desempregas, subvertendo a lógica do Bolsa Família de combater a extrema pobreza.

O programa proposto por Bolsonaro também prevê um benefício de Inclusão Produtiva Rural e de Inclusão Produtiva Urbana, direcionados para trabalhadores rurais e das grandes cidades em atividade. Também traz um auxílio Esporte Escolar, para famílias de atletas, e uma Bolsa de Iniciação Científica Júnior. “A MP é cruel por criar categorias de benefícios que dependem de desempenho científico e esportivo que crianças e adolescentes não podem vislumbrar na rede escolar atual”, escreveu a Rede Brasileira de Renda Básica. A entidade também observa que a medida impõe “às famílias, majoritariamente chefiadas por mulheres, a responsabilidade de aumentar sua renda para receber o auxílio destinado à contratação de creches particulares, vinculando o direito de crianças às condições profissionais encontradas por seus pais”.

Felipe Betim, de São Paulo para o EL PAÍS, em 04.11.21

Guedes está perto de furar o teto de gastos e dar um ‘cavalo de pau’ na economia

O desejo de Bolsonaro de se reeleger e a pandemia levam o ultraliberal ministro da Economia a anunciar que vai ultrapassar o limite orçamentário

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes durante entrevista coletiva no dia 22 de outubro sobre o teto de gastos. (Ueslei Marcelino / Reuters)

O banqueiro de investimentos Paulo Guedes (72 anos), a quem Jair Bolsonaro confiou a economia brasileira quando chegou ao poder, parece firme a seu lado, mesmo deixando de lado sua ambiciosa agenda ultraliberal, ao romper a bandeira da austeridade fiscal após três anos no cargo e uma pandemia pelo meio. O homem que pretendia reduzir o Estado ao mínimo, simplificar o complexo sistema tributário e arrecadar bilhões de dólares com privatizações, está à frente de uma política econômica que está indo na direção oposta à inicialmente vendida. Sai vitorioso no primeiro round para aprovar o fim do teto de gastos, com a aprovação na Câmara do projeto de lei dos precatórios na madrugada desta quinta. Se passar pelo Senado, o Congresso lhe dará a carta branca que procura para gastar mais do que o Orçamento do ano que vem permite.

Um cavalo de pau do homem que chancelou a candidatura de Bolsonaro, afastando os temores de empresários e das classes média-alta em relação ao passado do deputado, um saudosista da ditadura, que se alinhava a projetos mais estatistas na economia. O coronavírus fragilizou os planos do czar da economia, assim como o de seus pares no mundo todo, mas ele continua lá. Faz lembrar a frase atribuída a Groucho Marx: “Estes são os meus princípios. Se você não gosta, tenho outros”.

A percepção é que o Governo acaba de contratar problemas extras ao Brasil, além daqueles que teria de enfrentar neste período de final de pandemia. O país compartilha com boa parte do mundo gargalos na produção, como a falta de componentes para a indústria, ou de fertilizantes para a agricultura. Agora, Guedes aumentou as incertezas, ao ceder a pressões políticas de Bolsonaro, e colocar a economia no ritmo que mais convém ao presidente, e não ao interesse coletivo, observam economistas. Essa percepção já não é restrita ao Brasil. Nesta segunda, o jornal Financial Times escreveu num editorial desfavorável a Bolsonaro, afirmando que o ministro Paulo Guedes, “que já foi um guru da ortodoxia fiscal, foi persuadido a liberar 14 bilhões de dólares extras [ou 80 bilhões de reais] no próximo ano para ajudar a financiar a farra de gastos pré-eleitorais”.

Bolsonaro quer chegar às eleições, daqui a um ano, com um auxílio contra a pobreza de 400 reais para 17 milhões de famílias, que não cabe no Orçamento. Seria um Bolsa Família vitaminado e ampliado porque o programa contra a pobreza, emblema dos Governos do Partido dos Trabalhadores (PT), hoje implica um pagamento de 190 reais para mais de 14 milhões de famílias. A questão é que o auxílio está previsto para durar até dezembro de 2022, o que gera a incerteza na outra ponta, dos beneficiários do Bolsa Família, que tinham a segurança de um programa consolidado..

O ataque frontal à política de austeridade do Brasil, um consenso estabelecido em 2017, para atender ao sonho eleitoral do presidente foi um sapo difícil de digerir no mundo financeiro. No dia em que anunciou a manobra, a Bolsa afundou e houve uma onda de demissões em sua equipe, além de rumores de que ele também poderia sair. Ficou e garantiu que “isso não altera os fundamentos fiscais da economia brasileira”. Mas já alterou as projeções de 2022 para a economia —que vive justamente de expectativas. O banco Itaú, por exemplo, que projetava crescimento de 0,5% no ano que vem, agora prevê recessão com queda de 0,5% no PIB. Nesta quinta, horas depois da aprovação do PL na Câmara, a Bolsa operava em queda e o dólar sobe 0,31%.

Guedes até tentou dissipar o mau humor, ao lado do presidente, nos dias seguintes. “Todos sabem eu defendo o teto”, garantiu ele, alegando que estava focando nos brasileiros mais vulneráveis e que o Brasil estava crescendo mais que a América Latina e que o mundo. Mas nem uma coisa nem outra. A economia brasileira deve fechar este ano com crescimento de 5%, abaixo da mediana mundial (5,9%, segundo o FMI) e da América Latina (6,3%).

O professor de economia Nelson Marconi explica que “o teto de gastos não era viável e isso já era tema de discussão. O problema é a forma como foi feita a mudança”. E completa: “Tem impacto no câmbio e pode voltar a pressionar a inflação. E o Banco Central terá que aumentar ainda mais as taxas de juros”. Os juros são o remédio amargo para segurar os preços. Eles impactam a economia à medida que encarecem o crédito e o custo, por exemplo, das compras parceladas. Isso seria um desestímulo para comprar, o que obrigaria as empresas e o varejo a ajustarem preços para não perder vendas.

Os juros já subiram de 2% em janeiro para 7,75% na semana passada, na tentativa de controlar a inflação, que pode fechar o ano em dois dígitos. “O mundo todo tem problemas de inflação e desemprego, mas o nosso é maior”, ressalta o economista Eduardo Moreira, apontando para o ‘fator Guedes’. As incertezas geradas pelo Governo elevam o câmbio e impactam o preço do dólar. Ao mesmo tempo, adiam investimentos de empresas, que preferem esperar um novo Governo a apostar em novos projetos num cenário em que o próprio ministro da Economia ajuda a complicar ao criar incertezas sobre os compromissos que assume.

Os dados mais recentes mostram que o nível do emprego está se recuperando, mas principalmente no setor informal. Mais de 13 milhões de brasileiros estão sem trabalho (13,2% no último trimestre) e 25 milhões trabalham por conta própria (desde o motorista do Uber ao entregador de comida, etc.). A renda do trabalhador despencou 10% no último ano, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Só o agronegócio tem se saído bem, impulsionado pela alta das matérias-primas. A Associação Brasileira de Comércio Exterior (AEB) prevê exportações de 270 bilhões de dólares (1,53 bilhão de reais), garantida pela China, maior parceiro comercial do Brasil.

“É um setor que operou sem maiores complicações”, explica José Augusto Castro, presidente-executivo da AEB. Nem a seca no Sudoeste (a pior em um século) afetou os resultados das exportações de commodities. No entanto, incrementou um pouco as importações. O Brasil teve que importar mais derivados de petróleo para usinas termelétricas porque gera a maior parte de sua energia em hidrelétricas. Castro alerta que as boas novas não se repetirão em 2022 porque a China crescerá menos. “Venderemos o mesmo, mas com preços menores”, avalia.

O economista Eduardo Moreira avalia que os problemas do Governo agora são um fruto que foi semeado durante a gestão da pandemia. Foi rápido em dar ajuda aos bancos no início da pandemia e lento, por outro lado, às pequenas e médias empresas, o que levou a uma quebradeira de empresas. Também distribuiu ajuda social de forma descontinuada, embora fosse um dos maiores programas de ajuda direta no mundo. “Paulo Guedes tem cabeça de dono de empresa privada, ele não pensa como gestor público, em questões coletivas”, enfatiza o economista. Moreira recorda que o Governo foi contra o confinamento e o presidente fazia campanha para que as pessoas saíssem para trabalhar. “Enquanto os países levavam a sério as restrições para entender melhor como lidar com o vírus, o Brasil prorrogou os efeitos da pandemia”, diz. O ministro Guedes chegou a reduzir o montante destinado ao combate ao coronavírus no Orçamento de 2021 porque não acreditava que haveria uma segunda onda. Veio e foi brutal. O Brasil teve 4.000 mortes diárias de março a abril. “O mundo tem um problema de inflação e desemprego, mas o nosso é maior”, ressalta.

Pressionado pelas acusações da CPI da Pandemia, e pelo seu pífio desempenho no G-20, além da ausência na Cúpula do Clima, Bolsonaro e seu ministro voltaram a falar em privatizar a Petrobras, mais um aceno pouco crível para o mercado, após o cavalo de pau com o teto de gastos. O Governo se aproxima do final do ano com um cenário de estagflação (inflação alta e crescimento estagnado) que deve seguir no ano que vem, pouco interessante para quem pretende se reeleger em 2022. Conjuntura semelhante à de 2002, último ano do mandato de Fernando Henrique Cardoso, quando a economia estava à míngua, e a inflação não cedia. O então candidato apoiado por FHC, José Serra, perdeu para Luiz Inácio Lula da Silva, o mesmo que ameaça agora o reinado de Bolsonaro.

Carla Jimenez e Naiara Galarraga Cortázar, de São Paulo para o EL PAÍS, em 04.11.21

Às vezes simplificar as coisas ajuda a entendê-las melhor

Era uma vez um vilarejo atingido por uma doença. Os sábios sabiam o que fazer para frear o vírus. A maioria do vilarejo seguiu as orientações. Só o prefeito e seus seguidores trabalharam contra.

"O prefeito não tem noção de ciência, mas diz que é melhor ignorar o vírus e continuar agindo como antes"

Às vezes imagino que vivemos num vilarejo com cerca de 500 habitantes. Um dia, chega a esse vilarejo uma nova doença viral, contra a qual não há medicamentos. O vírus ainda não foi estudado e se espalha pela localidade. Algumas pessoas ficam tão gravemente doentes que o pequeno hospital do vilarejo logo fica lotado, e cada vez mais pessoas morrem. Outros também adoecem, mas apresentam apenas sintomas leves. Somente com o tempo se percebe que eles também podem sofrer consequências de longo prazo.

Logo fica claro que existem métodos para desacelerar a disseminação do vírus. Assim, é possível ganhar tempo para desenvolver uma vacina. Quando as pessoas usam máscaras e mantêm distância umas das outras, o vírus tem menos chance de se espalhar, afirmam os sábios no vilarejo. Algo que para a maioria dos moradores faz sentido, e eles se atêm a isso.

Por algum motivo, somente o prefeito e seus apoiadores não estão satisfeitos. Embora não sejam a maioria no vilarejo, eles são capazes de fazer muito barulho e gostam de ser arruaceiros.

Eles reclamam que as novas regras restringem sua liberdade, e que o vilarejo caminharia para uma ditadura se todos usassem máscaras e mantivessem distância. Na visão dos sábios as medidas têm mais a ver com bom senso do que com ditadura, mas o prefeito e seus apoiadores desconfiam naturalmente da sabedoria e do bom senso.

Embora nada saiba sobre epidemiologia (é mais um especialista em armas de fogo, insultos e anticomunismo), sugere que seria melhor para todos ignorar o vírus e continuar como antes. E quanto aos mortos, não seria algo tão ruim, afinal, todos terão de morrer um dia. Isso faz sentido para seus apoiadores, pois, como em todos os lugares no mundo, também no nosso vilarejo há pessoas inteligentes e menos inteligentes. E em detrimento do mundo e também do vilarejo, vale a regra de que os inteligentes costumam ser os quietos, e os burros, os barulhentos.

Assim, o prefeito consegue dividir o vilarejo. Os moradores brigam cada vez mais entre si sobre o que se deve fazer, enquanto a doença se espalha e causa cada vez mais mortes. Mas o prefeito não gosta de falar sobre os mortos, em vez disso, ele reage com irritação ou faz piadas de mau gosto.

De repente, ele ouve falar que o prefeito do grande vilarejo vizinho supostamente tem uma cura milagrosa contra a doença. Todos os pesquisadores o contradizem, mas isso não importa ao nosso prefeito. Ele admira seu colega mais poderoso, que lhe mostrou como se vence uma eleição com mentiras e insultos. Ambos sabem como despertar os piores instintos nas pessoas, o que funciona brilhantemente com seus apoiadores. Também mentem, alegam tolices o dia todo e intimidam os outros moradores do vilarejo.

O vírus não parece se impressionar com tudo isso e continua a se espalhar. Cada vez mais pessoas vão parar no hospital, e o cemitério do vilarejo vai se enchendo

Em algum momento, depois de vários meses de agonia, pesquisadores finalmente desenvolveram uma vacina contra o vírus. Mas o prefeito mais uma vez não está convencido e afirma que a vacina é perigosa. Por que ele faz isso, não está totalmente claro. Pode ser que tenha a ver com o fato de que, durante toda a sua vida, o prefeito tenha gostado do papel de sabotador o progresso. Outra razão pode ser que ele navega muito na internet e acredita em tudo o que vê ali.

E assim o prefeito simplesmente não compra vacina nenhuma para o vilarejo, apesar de receber ofertas. É realmente muito confuso. Pois, no começo, o prefeito tinha afirmado que o vilarejo não poderia parar. Mas agora que existe um meio para fazer as coisas andarem de novo, ele também não o quer e prolonga a paralisação e o sofrimento.

Felizmente, outras lideranças do vilarejo não entram mais nesse jogo e adquirem vacinas. A grande maioria dos moradores compreendeu que o imunizante é a melhor proteção contra o vírus e vai se vacinar. Cada vez menos pessoas ficam doentes, cada vez menos pessoas morrem.

Mas, como um pequeno menino chorão, o prefeito não está satisfeito. Ele continua a insistir que sua cura milagrosa é muito melhor do que a vacina. E inventa histórias fantasiosas de doenças que as pessoas contrairiam se fossem vacinadas. Mais uma vez não está bem claro por que ele faz isso, mas já não importa.

O que está claro é que o prefeito dividiu o vilarejo; que pessoas adoeceram e morreram devido à sabotagem dele; que ele só diz a verdade quando se cala; que ele pensa somente nele mesmo e não está nem aí para outras pessoas; que ele não está interessado em soluções, mas em conflitos.

Em última análise, o maior problema do vilarejo não era o vírus. O maior problema era e é o seu prefeito. O que se deve fazer com ele?

Philipp Lichterbeck, o autor deste artigo, queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 04.11.21

Brasil registra 463 mortes por covid-19 em 24 horas

País soma 608,671 mil óbitos associados ao coronavírus. Autoridades estaduais confirmam 13.352 novos casos, e total de infectados vai a 21,849 milhões.

    

Funcionária prepara vacina para ser aplicada em centro de Brasília. Taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 289,6 no Brasil

Taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 289,6 no Brasil

O Brasil registrou oficialmente nesta quinta-feira (04/11) 436 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 13.352 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções reportadas no país chega a 21.849.137, e os óbitos oficialmente identificados somam 608.671.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 748 mil óbitos, mas têm uma população bem maior. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (46,3 milhões) e Índia (34,2 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 289,6 no Brasil, a 8ª mais alta do mundo, atrás apenas de alguns pequenos países europeus e do Peru.

Ao todo, mais de 248,4 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 5 milhões de mortes associadas à doença, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

O Conass não divulga o número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 21.035.263 pacientes no Brasil haviam se recuperado da doença até esta quarta-feira.

No entanto, o governo não específica quantos desses recuperados ficaram com sequelas ou outros efeitos de longo prazo. A forma como o governo propagandeia o número de "recuperados" já foi criticada por cientistas, que classificaram o número como enganador ao sugerir que os infectados estão completamente curados da doença após a fase aguda ou alta hospitalar.

Estudos no exterior estimaram que entre 10% e 38% dos infectados sofrem efeitos da "covid longa" meses após o vírus ter deixado o organismo.

Um estudo alemão apontou que sequelas podem surgir até mesmo meses depois da fase aguda da doença. Já uma pesquisa da University College London em pacientes de 56 países listou mais de 200 sintomas observados em pacientes com sequelas pós-covid.

Deutsche Welle Brasil, em 04.11.21

Reino Unido aprova pílula antiviral contra covid-19

Medicamento Molnupiravir recebe autorização condicional para adultos com covid-19 e ao menos um fator de risco. Droga da farmacêutica americana MSD é a primeira pílula comprovadamente eficaz no tratamento anticovid-19.

Pacientes com sintomas leves a moderados devem tomar quatro comprimidos, duas vezes ao dia e durante cinco dias

O Reino Unido concedeu autorização condicional à primeira pílula comprovadamente eficaz no tratamento contra a covid-19, nesta quinta-feira (04/11). O governo britânico é assim a primeira autoridade nacional a aprovar o tratamento da farmacêutica americana MSD (Merck nos Estados Unidos e Canadá). No entanto não divulgou detalhes sobre quando a pílula estaria disponível no mercado

O Molnupiravir foi licenciado para adultos a partir de 18 anos que testaram positivo para covid-19 e que tenham pelo menos um fator de risco para desenvolver doenças graves, como obesidade ou problemas cardíacos. Pacientes com sintomas leves a moderados de covid-19 tomariam quatro comprimidos duas vezes ao dia, durante cinco dias.

"Hoje é um dia histórico para o nosso país, pois o Reino Unido é agora o primeiro do mundo a aprovar um antiviral contra a covid-19 que pode ser levado para casa", disse o secretário da Saúde britânico, Sajid Javid.

"Estamos trabalhando em ritmo acelerado em todo o governo e com o NHS [Serviço Nacional de Saúde] a fim de definir planos para aplicar o Molnupiravir em pacientes, por meio de um estudo nacional, o mais rápido possível", afirmou Javid.

Um antiviral capaz de reduzir sintomas e acelerar a recuperação pode ser um marco inovador no combate ao coronavírus, diminuindo o número de casos em hospitais e ajudando a conter surtos em países mais pobres, com sistemas de saúde frágeis. Também reforçaria a abordagem da pandemia em duas frentes: tratamento, por meio de medicamentos, e prevenção, especialmente por meio de imunizações.

Médicos afirmaram que o tratamento com o Molnupiravir seria particularmente significativo para quem não responde bem à vacinação.

Produção limitada e muitos interessados

No entanto os suprimentos iniciais serão limitados. A farmacêutica MSD informou que pode produzir 10 milhões de tratamentos – ou seja, 400 milhões de pílulas – até o fim de 2021, mas grande parte desse fornecimento já foi comprado por governos de todo o mundo.

Em outubro, autoridades do Reino Unido anunciaram que garantiram 480 mil complexos de tratamento do Molnupiravir, e estimavam que no inverno milhares de britânicos vulneráveis deveriam ter acesso a eles, através de um estudo nacional.  

O Molnupiravir aguarda a conclusão de análises de reguladores sanitários nos Estados Unidos e na União Europeia (UE), entre outros. O órgão americano Food and Drug Administration (FDA) anunciou que organizara para novembro um painel de especialistas independentes incumbidos de examinar a segurança e eficácia da pílula da MSD.

Menos 50% hospitalizações e mortes

A MSD e o laboratório parceiro Ridgeback Biotherapeutics solicitaram a reguladores de todo o mundo a autorização para o Molnupiravir para adultos com casos iniciais de covid-19, que estejam em riso de desenvolver doenças graves ou hospitalização. Este é aproximadamente o mesmo grupo-alvo para o tratamento com drogas com anticorpos injetáveis, padrão de tratamento em muitos países para os pacientes com covid-19 que ainda não necessitem ser hospitalizados.

Em setembro, a MSD dvulgou resultados preliminares, segundo os quais a pílula cortou pela metade as hospitalizações e mortes entre pacientes com sintomas iniciais de covid-19. Os resultados ainda não foram revisados por pares ou publicados numa revista científica.

A farmacêutica tampouco divulgou detalhes sobre os efeitos colaterais do Molnupiravir, comentando apenas que as taxas de sintomas subsequentes foram semelhantes entre os que receberam a pílula e os que receberam um placebo.

Debate sobre alterações genéticas

O Molnupiravir ataca uma enzima que o novo coronavírus usa para se reproduzir e distorce seu código genético, o que diminui sua capacidade de se propagar e dominar mais células. Essa atividade genética levou alguns especialistas independentes a questionarem se a droga poderia causar mutações que levassem a defeitos de nascença ou tumores.

A Agência Reguladora de Medicamento e Produtos de Saúde do Reino Unido afirmou que a capacidade do Molnupiravir de interagir com o DNA e causar mutações foi estudada "extensivamente", não tendo sido considerada um risco para os humanos.

"Estudos em ratos mostraram que [o Molnupiravir] pode causar efeitos prejudiciais à prole não nascida, embora em doses maiores do que as que serão administradas a humanos, e esses efeitos não foram observados em outros animais", afirmou a agência britânica.

No estudo da MSD, tanto homens quanto mulheres foram instruídos a usarem anticoncepcionais ou a se abster de relações sexuais. Mulheres grávidas foram excluídas do estudo. A farmacêutica sustenta que o medicamento é seguro se usado conforme as instruções.

O Molnupiravir foi inicialmente estudado como potencial terapia para a gripe, num projeto financiado pelo governo dos EUA. Em 2020, pesquisadores da Emory University decidiram redirecionar a droga como potencial tratamento para a covid-19, e a licenciaram para a Ridgeback Biotherapeutics e MSD.

Deutsche Welle Brasil, 04.11.21

Os argumentos da Justiça para liberar reabertura de investigação sobre facada em Bolsonaro

A investigação, que apura se o autor da facada, Adélio Bispo, teve algum tipo de apoio ou financiamento, estava parada desde 2019 por causa de uma liminar (decisão provisória) concedida pelo próprio TRF-1 a pedido da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) nacional e da OAB de Minas Gerais.

Bolsonaro estava sendo carregado por apoiadores quando levou uma facada na barriga em 2018 (AFP)

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) autorizou na quarta (3/11) a reabertura de uma investigação sobre as circunstâncias da facada que o presidente Jair Bolsonaro, então candidato, sofreu durante a campanha eleitoral de 2018.

As entidades haviam entrado com um mandado de segurança contra uma decisão da 3ª Vara Federal de Juiz de Fora que autorizou, no âmbito da investigação, a quebra do sigilo bancário do advogado Zanone Manuel de Oliveira Júnior, defensor de Adélio, além de busca e apreensão de documentos do advogado, como livros-caixa, recibos, comprovantes de pagamentos de honorários e seu telefone celular.

A OAB defende que a quebra do sigilo violava a prerrogativa de sigilo profissional da advocacia, ou seja, o sigilo necessário para o advogado exercer sua profissão. A entidade afirma também que "foi pega de surpresa" pela quebra de sigilo e que deveria ter sido "previamente comunicada para acompanhar a diligência".

A liminar (decisão provisória) do TRF-1 de 2019 acatou o pedido. No entanto, na quarta, dois anos depois, o julgamento do mandado de segurança pela 2ª seção do tribunal derrubou a liminar por 3 votos a 1 e autorizou a continuação das investigações. Entenda os argumentos da decisão.

Advogado e cliente

O TFR-1 entendeu que a quebra de sigilo do advogado não fere a prerrogativa de sigilo profissional porque a investigação não é sobre a relação entre Oliveira Junior e Adélio, ou seja, entre o advogado e seu cliente.

Investigação, que apura se Adélio Bispo teve algum tipo de apoio ou financiamento (EPA)

Os desembargadores afirmam que o que está sendo investigado é se existe alguma relação com supostos patrocinadores.

Ou seja, os desembargadores entenderam que o que a investigação quer descobrir é se houve algum financiamento da tentativa de homicídio, e não uma devassa na relação entre o advogado e seu cliente - essa sim protegida pelo sigilo profissional.

O desembargador Ney Bello ressaltou que a proteção entre cliente e advogado não pode de nenhuma maneira" ser escrutinada porque se trata "da garantia fundamental" do direito de defesa. Ele lembrou que essa prerrogativa é protegida inclusive por jurisprudência do STF.

"Mas a questão que se discute aqui não é a relação entre o réu Adélio e o advogado que foi contratado. É a relação porventura existente entre uma terceira pessoa e aquele que também atuou como advogado", disse Bello no julgamento.

O desembargador Saulo José Casali Bahia concordou com esse entendimento e afirmou que a relação de Oliveira Junior com terceiros que tenham eventualmente pago a defesa de Adélio não é protegida por sigilo.

"Não se pode falar entre proteção de sigilo profissional quando a relação entre advogado e financiador não envolve prática de advocacia, mas mero pagamento de serviço advocatício em favor de outro", disse Casali Bahia.

A desembargadora Maria do Carmo Cardoso também votou pela continuação da investigação, formando maioria.

O voto contra foi do relator do caso, o desembargador Néviton Guedes, que entendeu que a investigação fere sim a prerrogativa da advocacia

Ele já havia concedido liminar em favor da OAB com o argumento de que era incorreta a premissa de que a investigação não tem ligação com a relação entre advogado e cliente. Guedes defendeu também que há outros caminhos para se fazer a investigação sem violar o sigilo do advogado.

O Conselho Federal da OAB afirma que " atua em defesa das prerrogativas do advogado, do sigilo garantido, pela Constituição, entre advogado e cliente".

Um eventual recurso no caso, diz a entidade, "será oportunamente analisado após a disponibilização da decisão".

BBC Brasil News, em 04.11.21

Fome no Maranhão persegue mais de 60% das famílias

O Maranhão, quem diria, é o Estado do Brasil em último lugar no ranking de desenvolvimento e onde mais de 60% das famílias já sabem o que é passar fome.


quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Eric Adams, que foi de menor infrator a policial, é eleito prefeito de Nova York

Democrata da ala centrista do partido era favorito na disputa e chega ao governo como o candidato 'da lei e da ordem'; em Boston, cidade será comandada pela primeira mulher de origem asiática

Prefeito eleito de Nova York, Eric Adams, durante discurso de vitória na noite de terça-feira Foto: ANGELA WEISS / AFP

 Em uma noite de eleições regionais marcada por derrotas amargas para aliados do presidente Joe Biden, Nova York escolheu o democrata Eric Adams, um ex-policial da ala centrista do partido, como seu novo prefeito. Ele será o segundo homem negro a comandar a maior cidade dos EUA.

Na disputa contra o republicano Curtis Sliwa — hoje um dos poucos nomes no partido que não apoia o ex-presidente Donald Trump — Adams obteve cerca de 66,5% dos votos, de acordo com os resultados preliminares. As agências de notícias, contudo, projetaram sua vitória pouco mais de dez minutos depois do fechamento das urnas, confirmando o domínio do Partido Democrata na cidade desde 2013.

— Esta noite eu realizei meu sonho e de todo o coração vou remover as barreiras que estão impedindo vocês de realizar os seus — disse o eleito a apoiadores diante de um hotel do Brooklyn, onde celebrou a vitória.

Adams substituirá na prefeitura Bill de Blasio, da ala esquerda do Partido Democrata, que termina seu segundo mandato e ficou conhecido no Brasil pelas críticas públicas ao presidente Jair Bolsonaro.

Nascido em uma área pobre do Brooklyn, Adams se envolveu com uma gangue na adolescência, e chegou a ser detido aos 15 anos, acusado de roubar uma TV e dinheiro com o irmão. Na delegacia, foi agredido pelos policiais e desenvolveu transtorno de estresse pós-traumático após o incidente — contudo, acabou decidindo se juntar à polícia de Nova York anos depois, em parte incentivado por um pastor local. Ao longo de 22 anos na corporação, fez duras críticas a medidas vistas como discriminatórias, mesmo indo contra a posição de seus superiores.

Em 2006, deixou a polícia e entrou para a política, sendo eleito para o Senado estadual de Nova York. Sete anos depois, em 2013, foi eleito administrador do Brooklyn, uma das cinco regiões de Nova York, justamente aquela onde nasceu.

Antes da eleição desta terça-feira, Adams enfrentou as duras primárias democratas, que tiveram, pela primeira vez, um sistema de votação por ranqueamento, com os eleitores escolhendo até cinco candidatos nas cédulas, um modelo visto como favorável a nomes mais centristas, como o novo prefeito.

Logo nos primeiros movimentos de campanha, elese colocou como o candidato da lei e da ordem, prometendo ações concretas para combater a violência armada, que deu um salto no último ano, e defendendo o fortalecimento da polícia. Ao mesmo tempo, seus críticos afirmavam que isso levaria ao retorno de práticas como o perfilamento racial e as revistas aleatórias, conhecidas em inglês como "stop-and-frisk", que eram apontadas como racistas.

Adams ainda se apresentava como o candidato da classe trabalhadora, citando seu passado pobre no Brooklyn e no Queens, o que lhe deu vantagem entre eleitores negros e latinos — ao mesmo tempo, suas posições mais ao centro lhe garantiram sua vitória nas primárias, em julho, e, nesta terça-feira, na eleição principal. O novo prefeito venceu em quatro das cinco regiões da cidade, sendo derrotado apenas em Staten Island, área que não vota em um nome do Partido Democrata desde Ed Koch, em 1985.

Publicado originalmente por O Globo online, às 11:31, em 03/11/2021

2022 pode ser diferente de 2018

É um erro transformar as eleições em disputa de quem grita mais alto contra a corrupção. Que os bons nomes apresentem boas propostas de governo

Segundo mostrou o Estado, ao menos onze pré-candidatos já se apresentaram para as eleições presidenciais do ano que vem. Excetuando Lula da Silva e Jair Bolsonaro – cuja nociva passagem pelo poder deveria bastar para que a perspectiva de vitória de um ou de outro no ano que vem cause apreensão –, há nomes bastante razoáveis, com passagens muito positivas pela administração pública, à disposição do eleitorado.

Ainda há tempo para que surjam outros candidatos honestos e competentes, além dos que já lançaram sua pré-candidatura. De toda forma, é alvissareiro constatar que não será por falta de bons postulantes que o País será impedido de ter, a partir de 2023, um presidente da República responsável, equilibrado e com espírito democrático.

Deve-se reconhecer, no entanto, que isso não basta. Em 2018, havia bons nomes na disputa presidencial e, mesmo assim, o segundo turno das eleições foi entre aquele que fazia às vezes de Lula da Silva – então preso, em razão de condenação criminal – e Jair Bolsonaro – deputado medíocre, conhecido pela renitente falta de decoro parlamentar. Com três décadas de vida política, o ex-capitão não tinha nenhuma realização ou legado a apresentar. Vale notar que a mudança para o Palácio da Alvorada não alterou o quadro. A incivilidade e a incompetência continuam sendo características de sua atuação.

A experiência de 2018 é categórica. Para uma escolha responsável nas eleições presidenciais, ter bons candidatos é condição necessária, mas não suficiente. A campanha eleitoral precisa ser um espaço efetivo de diálogo e debate sobre as propostas de governo dos candidatos. Tal requisito envolve diretamente partidos, candidatos e também a chamada sociedade civil organizada.

Trata-se de ponto fundamental da democracia. O eleitor deve saber o que de fato está escolhendo com o seu voto para presidente da República. Por exemplo, ele não decide na urna nada a respeito de combate à corrupção. A investigação e a punição dos crimes cometidos contra a administração pública não dependem do presidente da República. Tais atividades não são decorrência de escolhas políticas, mas do cumprimento da lei.

Esta é uma das grandes qualidades do Estado Democrático de Direito. A aplicação da lei não depende da política. Ela é feita pelo Poder Judiciário, que dispõe de prerrogativas para exercer com independência suas funções. Nessa tarefa, é auxiliado pelo Ministério Público, que também dispõe de autonomia funcional. Isso não é mera teoria, como se pode ver na história recente do País. Grandes investigações de corrupção ocorreram durante as administrações petistas, a despeito do óbvio desinteresse do partido em promovê-las.

É um grave equívoco transformar as eleições presidenciais em disputa de quem grita mais alto contra a corrupção. Além de despistar o eleitor das reais questões que ele terá de escolher com seu voto na urna, isso contribui para que candidatos desprovidos de um mínimo programa de governo – que não deveriam ter nenhuma relevância no cenário eleitoral – apareçam aos olhos do público como nomes viáveis politicamente.

É de perguntar por que será que os candidatos populistas falam tão pouco de políticas públicas de saúde, educação e economia, por exemplo, e falam tanto de combate à corrupção e de moralidade e bons costumes? Infelizmente, a velha tática diversionista tem funcionado, como mostram as eleições de 2018.

A imperiosa necessidade de eleger em 2022 um presidente da República honesto e competente deve ir além, portanto, da existência de candidatos responsáveis, com experiência na gestão pública. É preciso oferecer ao eleitor um debate sincero sobre as políticas públicas que se pretende implementar durante o próximo mandato presidencial. Assim, a urna poderá proporcionar, em vez de seguidas decepções, o grande fruto da democracia: a população de um país escolher de fato os rumos de seu governo. Mais do que promessas, em uma eleição presidencial é imprescindível discutir os meios, os caminhos. Que os bons nomes apresentem boas propostas de governo, com políticas públicas convincentes e entusiasmantes.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 03 de novembro de 2021

Bolsonaro tem motivos para estar em pânico com a possível candidatura de Moro

O ex-juiz está politicamente mais próximo do bolsonarismo e de uma política neoliberal, além de ser duro em questões de segurança. Poderia arrancar votos dos desiludidos com o capitão, sobretudo os do mundo das finanças e das classes mais altas

O ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro. (SERVICIO ILUSTRADO (AUTOMÁTICO) (EUROPA PRESS)

Sergio Moro voltou dos Estados Unidos decidido a entrar na política e certamente como candidato à presidência da República. O fato criou certa incerteza entre as forças políticas. A primeira coisa que se deveria perguntar sobre a decisão do controvertido ex-juiz da Lava Jato é quem teria mais medo de sua candidatura entre os dois grandes favoritos das próximas eleições, Lula ou Bolsonaro. E isso porque a chamada terceira via, um candidato que possa se opor com força aos dois favoritos, ainda está pulverizada com quase uma dúzia de nomes, por enquanto com pouca força nas pesquisas.

Quem Lula prefere enfrentar nas eleições, Bolsonaro ou Moro?

Essa terceira via hoje está pulverizada e tudo faz crer que dificilmente encontrará um candidato de consenso que possa competir com os dois mitos já consolidados. De qualquer forma, a candidatura de Moro chega para desorganizar as eleições. A prova é que ainda não disse a última palavra e todos os outros candidatos já estão alarmados.

Quem, porém, mais deveria temer a chegada de Moro, o terrível, não é certamente Lula e a esquerda, já que seus seguidores jamais votariam em quem levou Lula à prisão. O grande perdedor, aquele que pode estar em pânico, é justamente Bolsonaro, já que o ex-juiz está politicamente mais próximo do bolsonarismo e de uma política neoliberal e é duro em questões de segurança. Não foi um acaso que quem o levou até Bolsonaro, recomendando-o como ministro da Justiça, foi o hoje enfraquecido ministro da Economia, o ultraliberal da escola de Chicago Paulo Guedes.

Moro hoje poderia arrancar votos dos desiludidos com o capitão, principalmente os do mundo das finanças e das classes mais altas que votaram nele e hoje se sentem decepcionados com as excentricidades do mito bolsonarista, que revelou sua incapacidade de governar, seu desequilíbrio psíquico. O Brasil está semeando uma imagem desastrosa no mundo e tornando-se motivo de chacota de seus mandatários, como acabamos de ver no disparate acontecido na Itália, onde até para entrar no santuário de Santo Antônio de Pádua Bolsonaro teve de fazê-lo por uma porta traseira, assediado por aqueles que protestavam contra ele.

Bolsonaro e seus assessores sabem que a chegada de Moro à disputa eleitoral poderá tirar votos do bolsonarismo menos radical, que atualmente está descontente com seu líder, mas que nunca votaria na esquerda. Entre eles, como aponta a imprensa, estariam muitos militares desiludidos com o radicalismo golpista de Bolsonaro e os policiais aos quais não desagrada a doutrina radical de Moro de combate à violência.

Talvez por isso, desde que se deu como certa a chegada de Moro à política, Bolsonaro começou a falar na possibilidade de não se candidatar à reeleição. Acaba de anunciar que só em março decidirá se disputa ou não as eleições. E talvez seja por isso que seus fiéis seguidores do Congresso tiraram a poeira do velho projeto de conceder a condição de senador vitalício a ex-presidentes da República. Desta forma, se renunciasse à reeleição ou a perdesse, Bolsonaro ficaria, como senador vitalício, blindado para sempre pelo foro privilegiado contra as graves acusações da CPI da covid-19 que poderiam acarretar-lhe muitos anos de prisão.

Se parece claro que não é Lula quem deve temer a candidatura de Moro, que roubaria votos do bolsonarismo, caberia perguntar quais efeitos a chegada de Moro poderia produzir na chamada terceira via, entre aqueles que não querem nem o capitão nem Lula. Entre eles está o famoso centrão do Congresso, que teme Moro por suas lembranças do açoite implacável e discutível da corrupção. O centrão já está tentando desmantelar com novas leis a doutrina da Lava Jato, que pela primeira vez levou políticos à cadeia.

Por todas essas razões se deveria perguntar onde Moro, além dos desiludidos com o bolsonarismo, em quem muitos votaram para encurralar a esquerda, pode encontrar votos. Sobre o que não há dúvida é que a entrada de Moro na política ativa e partidária poderá servir principalmente para turvar ainda mais as águas já agitadas pelo bolsonarismo, que empobreceu o país econômica e moralmente e sujou ainda mais, se é que isso é possível, a já desprestigiada política perante a opinião pública.

O triste é que, aparentemente, o Brasil não é capaz de prescindir de um mito para ser governado democraticamente, condição da qual hoje gozam justamente os países chamados “normais”, que lidam mais facilmente com as crises mundiais. Se um dia se disse que o Brasil era o país do futuro, hoje bastaria, para sair do obscurantismo em que o afundou a extrema direita radical e golpista, além de grotesca, ser um país simplesmente normal e do presente onde todos tenham o suficiente para viver com dignidade e liberdade, sem fome ou absurdas ameaças ditatoriais que assustam até a opinião pública mundial.

As próximas eleições poderão resolver muitas das incógnitas que hoje pesam sobre o presente e o futuro deste país, cada vez mais acuado pelo obscurantismo e pelas incógnitas sobre o seu futuro. Incógnitas criadas por seu líder, que hoje virou motivo de chacota dos mandatários mais importantes do mundo, dos quais o Brasil não pode prescindir e muito menos menosprezar.

Juan Arias, o autor deste artigo, é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente. Publicado originalmente por EL PAÍS, 02.11.21