quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Câmara aprova PEC que abre orçamento para o Auxílio Brasil e rompe com bandeira da austeridade

PEC dos Precatórios, aprovada na madrugada desta quinta, libera mais de 90 bilhões de reais para 2022. Governo afirma que recursos são necessários para financiar novo programa soci

O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente Jair Bolsonaro participam de cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 25 de outubro. (Sérgio Lima, AFP

A Câmara dos Deputados aprovou com aperto na madrugada desta quinta-feira, 4 de novembro, a PEC dos Precatórios (Proposta de Emenda à Constituição 23/21), vista por analistas como um “calote” do presidente Jair Bolsonaro no pagamento das dívidas judiciais do Governo e uma forma de furar o teto de gastos do ano que vem. A proposta conseguiu 312 votos, somente quatro a mais que o necessário para a aprovação. A medida também promove outras manobras para furar o teto de gastos, abrindo no total um espaço de 91,6 bilhões de reais no Orçamento de 2022 —ano de eleições presidenciais e um momento crucial para que Bolsonaro alavanque sua popularidade. Desde o início da tramitação o Ministério da Economia usou a PEC como justificativa para a necessidade de criar o Auxílio Brasil, programa temporário que substitui o Bolsa Família, e o Auxílio Emergencial a partir deste mês. Os valores da nova política pública ainda são incertos, mas o objetivo é o de conceder um benefício de cerca de 400 reais para famílias vulneráveis ao longo do ano que vem. Falta agora votar os destaques e aprovar a PEC em segundo turno na Câmara. Em seguida, ela será analisada no Senado.

O Governo chegou ao final deste ano precisando pagar em 2022 cerca de 90 bilhões de reais em precatórios, nome dado a dívidas judiciais acima de 60 salários mínimos com empresas, Estados e municípios, e cidadãos —sobretudo aposentados. A maior parte dos precatórios a serem pagos no ano que vem se refere a dívidas com Estados por causa de erros no repasse do Fundef, fundo destinado para a educação básica que vigorou até 2006. O Governo tinha duas opções: rever gastos para acomodar o pagamento dos precatórios no Orçamento e não furar o teto ou promover mudanças constitucionais para não respeitar nenhum dos dois. Escolheu a segunda opção.

Em uma sessão acalorada que durou até duas da manhã, Bolsonaro contou com manobras regimentais do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para que fosse feita sua vontade. A principal delas foi a de autorizar que deputados de licença em missões no exterior pudessem votar remotamente, apesar da retomada integral dos trabalhos presenciais. Além disso, foi incluída uma emenda aglutinativa de última hora no texto para abordar uma questão relativa ao Fundef, mas a oposição argumenta que não havia antes uma emenda com o mesmo teor que pudesse ser aglutinada, como prevê o regimento. Lira nega irregularidades, mas opositores afirmam que irão contestar o resultado no Supremo.

Apesar dessas manobras, o caminho do Governo e de Lira não foi fácil. Para aprovar uma PEC, era necessário ter a maioria absoluta do plenário, o que não era certo até momentos antes da votação. Foram essenciais os votos a favor de integrantes do PSB e sobretudo do PDT. O partido de Ciro Gomes, pré-candidato à Presidência da República, fechou questão a favor a PEC dos Precatórios e deu 15 de seus 21 votos depois de negociar com Lira e o relator da Hugo Motta (Republicanos-PB) o parcelamento em três anos das dívidas relativas ao Fundef: 40% do total da dívida será pago no primeiro ano; no segundo, 30%; e no último, mais 30%. A negociação foi tida como essencial para conquistar os votos de parlamentares ligados à educação. O PSB, apesar de ser contrário à PEC, entregou 10 de seus 31 votos.

De acordo com o texto aprovado previamente na comissão especial, que promoveu mudanças no projeto enviado pelo Ministério da Economia, a PEC também cria um teto anual de 40 bilhões de reais a serem pagos em precatórios —com base no que foi pago em 2016, corrigido pela inflação. Terão prioridade de pagamento as dívidas de menor valor, até 600.000 reais. Aquelas que ficarem fora do limite imposto pelo novo teto serão postergadas, mas terão prioridade nos anos seguintes, reajustados pela taxa Selic —acumulada mensalmente. Especialistas consultados pelo EL PAÍS tratam a medida como “calote” ou “pedalada”. Além disso, cria um problema para as gestões seguintes, que terão dívidas acumuladas a serem pagas.

Além dessas questões, a PEC dos Precatórios mudou a forma como o teto de gastos é calculado. O teto define que o Governo só pode aumentar os gastos com base na inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior. Com a mudança, será a considerada a inflação de janeiro a dezembro do ano anterior. Como até setembro de 2021 o IPCA acumulado ficou em 10,25%, o Ministério da Economia poderá aumentar ainda mais o Orçamento de 2022. O Tesouro Nacional calcula que essa folga será de 47 bilhões de reais.

A PEC também permite que o Governo desrespeite a chamada “regra de ouro” —que impede o Executivo de se endividar para pagar despesas correntes— sem a necessidade de passar pelo Congresso. Além disso, a medida traz a possibilidade de que Estados e municípios parcelem suas dívidas com a União caso reformem suas previdências locais.

O Auxílio Brasil esteve no centro das discussões ao longo de toda a sessão, apesar de o novo programa de Bolsonaro, tido como eleitoreiro, não constar na PEC —cuja função, segundo o Governo, é a de liberar os recursos para o novo programa. “Quem vota contra o nosso relatório vota contra 17 milhões de famílias e 50 milhões de pessoas”, discursou Hugo Motta (Republicanos-PB). PT, MDB, PSB, Podemos, PSOL, Novo, PCdoB, Cidadania e PV foram contrários à PEC por considerarem um calote nas dívidas do Governo que traria insegurança jurídica. Parlamentares da esquerda se disseram a favor de um novo auxílio ou do aumento do Bolsa Família, mas argumentam de que não é preciso deixar de pagar os precatórios e promover um “calote”. Apesar da fama de fiscalmente responsáveis, partidos como o PSDB e o DEM votaram a favor da medida, que fura o teto de gastos.

Além disso, a oposição afirma que os 91,6 bilhões de reais liberados para o ano que vem é muito mais que o necessário para tirar o Auxílio Brasil do papel. De acordo com o Tesouro Nacional, o programa custará 84,7 bilhões de reais em 2022, dos quais 34,7 bilhões já estão previstos. Portanto, o Governo contará com cerca de 50 bilhões viabilizados pela PEC dos Precatórios para a nova política pública. O Governo afirma que o restante seria gasto ajustando benefícios vinculados ao salário mínimo, com a vacinação contra a covid-19, entre outras despesas, mas a oposição enxerga uma oportunidade para que deputados se beneficiem ainda mais de emendas parlamentares.

Auxílio Brasil

Em 9 de agosto, Bolsonaro entregou à Câmara dos Deputados a Medida Provisória 1.061/21 que cria o programa Auxílio Brasil, um substituto do Bolsa Família que é a esperança do ultradireitista para aumentar sua popularidade às vésperas das eleições de 2022. O Congresso tinha até o início outubro para fazer alterações na medida e transformá-la em lei, mas acabou prorrogando o prazo. Como a MP tem validade imediata, o Auxílio Brasil já começa a valer neste mês, resultando no fim do Bolsa Família. O próprio Governo afirma que o programa terá um caráter “transitório” em 2022, criando uma insegurança aos que eram beneficiados pelo Bolsa Família, que funcionou por 18 anos. O Congresso, que já vem discutindo a criação de uma renda básica universal, deverá fazer alterações no novo programa.

O Bolsa Família pagava uma média de 190 reais a cerca de 14 milhões de famílias, mas o Governo espera que o novo programa pague ao menos o dobro. A MP não estabelece valores nem critérios de pobreza, deixando a cargo do Governo decidir, a cada ano, quanto pagará de benefício. De acordo com a Rede Brasileira de Renda Básica, a MP também cria uma série de benefícios auxiliares —“penduricalhos”, segundo especialistas— que geram ainda mais condicionantes para que as famílias tenham acesso ao programa. Por exemplo, prevê um voucher creche para famílias que comprovem ter atividade remunerada ou emprego, ao invés de focalizar justamente nas que estão desempregas, subvertendo a lógica do Bolsa Família de combater a extrema pobreza.

O programa proposto por Bolsonaro também prevê um benefício de Inclusão Produtiva Rural e de Inclusão Produtiva Urbana, direcionados para trabalhadores rurais e das grandes cidades em atividade. Também traz um auxílio Esporte Escolar, para famílias de atletas, e uma Bolsa de Iniciação Científica Júnior. “A MP é cruel por criar categorias de benefícios que dependem de desempenho científico e esportivo que crianças e adolescentes não podem vislumbrar na rede escolar atual”, escreveu a Rede Brasileira de Renda Básica. A entidade também observa que a medida impõe “às famílias, majoritariamente chefiadas por mulheres, a responsabilidade de aumentar sua renda para receber o auxílio destinado à contratação de creches particulares, vinculando o direito de crianças às condições profissionais encontradas por seus pais”.

Felipe Betim, de São Paulo para o EL PAÍS, em 04.11.21

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