segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Antecipando o Hidrogênio Verde

 Por Luiz Raimundo Carneiro de Azevedo

Tenho lido e ouvido falar muito bem da futura implantação de Usinas produtoras de Hidrogênio Verde no Nordeste, Maranhão incluso . 

Porque VERDE se existem tantas outras cores? Explicam os doutos 

- “verdes porque produzidos por fontes “ limpas” do tipo eolica, solar e hidráulica .Aceito o argumento. 

Penso então , como antecipar a vinda do tal do Hidrogênio combustível verde? 

A resposta parece óbvia : 

1- Investindo “de com força “nas fontes renováveis ; a Empresa de Planejamento de Energia -EPE sinaliza que até 2035 as fontes eolicas e solar podem responder por 45 % da matriz elétrica brasileira - 

O Nordeste é muito bom de sol e vento e o Maranhão tem tudo para ser bem sucedido nesse mister e também na produção de ETANOL, diz um estudo ( de capa verde) produzido pela ESALQ .                  

2-Os governos , estadual e municipais devem dar o bom exemplo dando prioridade a eficiência energética dentro de padrões internacionais, nos seus novos prédios públicos, principalmente nos itens de Ar condicionado, geladeira e outros que utilizam energia elétrica devem aderir ao padrão PROCEL, evitando-se compras governamentais  fora dos padrões aceitáveis.  

Por outro lado o projeto das instalações elétricas e sanitárias desses próprios deverá obedecer as normas que conduzam a eficiência energética desejada, todos esses expressos com clareza e rigor técnico nos Editais de Licitação A economia nas faturas de energia será relevante.                    

3- De máxima importância o fortalecer do Sistema de gestão integrada dos recursos hídricos, dotando os Comitês de bacias hidrográficas com pessoal técnico e recursos da tecnologia aplicável.  Agora com o 5G e o uso da Inteligência Artificial e da Internet das Coisas ficará mais eficiente e de pronta resposta essa integração racional das bacias hidrográficas, com um bom monitoramento das séries de chuvas, das estatísticas mais confiáveis das vazões dos rios, da poluição dos mananciais e do controle do resfriamento das usinas térmicas. O Agribusiness e a Agricultura familiar serão grandes participes e beneficiários           

4- O Ceará começou muito bem essa trajetória de controle de seus recursos hídricos, lembro das palestras do Engenheiro Ariosto Holanda, no entanto parece agora que vem arrefecendo isto. Soube que as Usinas térmicas PECEM I e II consomem água suficiente para abastecer uma cidade de 600 mil habitantes e é crítica a escassez de água na Bacia do Rio Jaguaribe no Ceará (como o é no Rio São Francisco) fato que gera elevados custos, estes repassados aos consumidores .  

O governo e a indústria do Maranhão devme insistir quanto a : 

1- dotar o Estado de um mapa solar e outro eólico e com essa ferramenta ir a EPE e cooptar empresas do setor a vir até aqui e instalar seus projetos com segurança Jurídica e estabilidade fiscal 

2- Estabelecer uma política de compras amigável com relação a eficiência energética e ao controle das emissões de CO2 , desde o projeto ,no acompanhamento da execução destes e do uso da água nos prédios Públicos  O exemplo vindo de cima   

3- fortalecer os comitês de bacia hidrográfica dotando-os de recursos técnicos e aprimorando seus bancos de dados e monitoramento / controle cada vez mais eficientes   

4- Imitar as experiências exitosas de controle dos usos dos recursos hídricos e aprender com o erro dos outros , por vezes oculta dos e que geraram danos apreciáveis por falta de planejamento e contumaz uso de “soluções emergenciais “  Espero que os próximos dirigentes pensem e ajam nesse senso.

Luiz Raimundo Carneiro de Azevedo é Engenheiro Civl, conselheiro do Brasil Export e consultor da Universidade Ceuma.

Entre a inflação e o marasmo

Baixo dinamismo e inflação elevada deverão marcar 2022, segundo o BC

Juros altos, crédito apertado, economia fraca e inflação elevada durante a maior parte do ano compõem o cenário de 2022 projetado pelo Banco Central (BC). As novas estimativas incluem crescimento econômico de 4,7% neste ano e de 2,1% no próximo. Mas até esse resultado medíocre dependerá, segundo a análise, de condições ainda duvidosas: arrefecimento da crise sanitária, diminuição da incerteza econômica, manutenção do regime fiscal e consumo de eletricidade sem “restrições diretas”. Falta combinar com o presidente Jair Bolsonaro, principal fonte de insegurança econômica e de risco fiscal, isto é, de ameaça à boa gestão das finanças públicas. As projeções aparecem no Relatório de Inflação publicado trimestralmente pelo BC.

Com a retomada econômica neste ano, sobrará em 2022, segundo o relatório, menos espaço para a recuperação cíclica. Além disso, o crescimento será dificultado pelo aperto monetário já em curso – crédito mais curto e mais caro usado como terapia contra a inflação. Ao assinalar esse ponto, os autores do boletim reafirmam, implicitamente, o compromisso de dar prioridade à ação anti-inflacionária, deixando em segundo plano, se necessário, a preocupação com o ritmo dos negócios.

Já iniciado, o aperto deverá continuar nos próximos meses. Os juros básicos, elevados em setembro para 6,25% ao ano, poderão chegar a 8,25% em dezembro e a 8,5% em 2022, segundo projeção do setor privado. Os cenários apresentados no relatório confirmam de forma indireta esse roteiro. Uma previsão de 9% no primeiro trimestre do novo ano circulou no mercado nos últimos dias.

Mesmo com o aperto, a inflação acumulada em 12 meses continuará muito alta durante a maior parte de 2022. Pela projeção central do relatório, a inflação em período anual chegará a 8,5% em dezembro, cairá para 7,3% no primeiro trimestre do próximo ano e ainda estará em 6% no trimestre seguinte. Até o fim do ano a alta dos preços ao consumidor será contida, segundo os cálculos do BC, em 3,7%, pouco acima da meta oficial, fixada em 3,5%.

Também essa trajetória vai depender de algumas condições ainda incertas, como o custo da eletricidade, uma reversão pelo menos parcial dos aumentos de preços internacionais das commodities, uma evolução razoável do dólar, sem novos choques, e menor insegurança quanto à evolução das contas oficiais e, especialmente, da dívida pública.

Se der tudo certo e nenhum choque impedir as condições apontadas no relatório, o Produto Interno Bruto (PIB) terá um crescimento maior que aquele indicado pela mediana das projeções do mercado, de 1,57%, de acordo com o boletim Focus do dia 27, mas ainda muito abaixo dos padrões dos grandes emergentes.

Mas esse crescimento na faixa de 2% a 2,5% corresponde ao potencial brasileiro estimado por instituições internacionais e por muitos analistas brasileiros. Há quem considere mais provável um potencial inferior a 2%, porque há muitos anos o investimento produtivo, no Brasil, tem ficado muito abaixo do necessário para um crescimento sustentável em torno de 4% ao ano.

Pelas estimativas do BC, o investimento em capital fixo – máquinas, equipamentos e construções – diminuiu 0,8% no ano passado, deve crescer 16% neste ano e encolher 0,5% em 2022. Não se espera, portanto, um aumento de capacidade produtiva capaz de permitir uma expansão econômica mais veloz nos anos seguintes.

O baixo potencial produtivo fica ainda mais visível quando se levam em conta as deficiências educacionais, o escasso esforço de formação de mão de obra e o baixo investimento em inovação e em pesquisa científica e tecnológica. Há esforços notáveis de treinamento realizados pelo Sistema S e respeitáveis trabalhos científicos em universidades, mas com reflexos muito limitados no conjunto da produção. O agronegócio permanece como exceção notável, quando se trata de inovação e de ganhos de produtividade.

Não há como esperar mudanças enquanto perdurar um governo desastroso para a educação, para a ciência e para a definição de rumos para o sistema produtivo.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de outubro de 2021 

Representatividade de verdade

As distorções representativas exigirão uma ampla reforma política

O Congresso promulgou uma nova regra para o cálculo de distribuição dos recursos dos Fundos Partidário e Eleitoral. A partir de 2023, os votos a mulheres e negros serão contados em dobro. Segundo parlamentares que apoiaram o projeto, a medida será mais eficaz do que as atuais cotas de candidatos para aumentar a representação de mulheres e negros no Legislativo. O tempo dirá se estão certos. De todo modo, trata-se de uma iniciativa engenhosa que de pronto tem o mérito de focar em uma grave distorção, que exigirá uma ampla reforma política e, mais profundamente, uma transformação cultural para ser definitivamente vencida.

Uma democracia sem a participação de mulheres e negros é uma democracia pela metade. No caso do Brasil, até menos: 53% da população é de mulheres e 55% se declaram pretos ou pardos. Mas no Congresso os pretos e pardos ocupam apenas 17,8% das vagas e as mulheres, 15% – menos da metade da representação feminina média nos países da América Latina (31%), segundo o Programa para o Desenvolvimento da ONU.

Essa democracia mutilada e deformada não pode perdurar. O prêmio para os partidos pelos votos a mulheres e negros é um incentivo à busca de candidaturas entre minorias marginalizadas. O mérito desse propósito é indisputável. Mas, como todo experimento social, este está sujeito à checagem e revisão. Que, possivelmente, será esse o caso é algo que se depreende de certos vícios de origem.

Ações afirmativas forjam instrumentos para corrigir distorções representativas. Pela sua natureza, esses instrumentos deveriam ser provisórios. Quanto mais eficientes forem na correção das sub-representações, mais rápido se tornam obsoletos. Assim, sua própria eficácia deveria levar a reduções graduais e, idealmente, à sua extinção. A nova regra, contudo, foi constitucionalizada a partir de uma emenda, o que torna mais difícil alterá-la ou revogá-la.

Além disso, ela visa a um fim justo a ser atingido com meios impróprios. Os Fundos Eleitoral e Partidário não deveriam existir. Partidos políticos são entidades privadas e devem ser sustentados com recursos captados com seus correligionários. A garantia de que serão abastecidos pelos cofres públicos é uma das razões que distanciam os líderes das bases e os próprios partidos dos cidadãos. Em outras palavras, os fundos estão entre as maiores causas da má qualidade representativa no Legislativo. 

A nova regra de distribuição não legitima esses fundos, mas, ao utilizá-los para remediar um problema do qual eles são causa, ao menos os torna menos nocivos.

Mas a necessidade de uma reforma política que corrija as distorções representativas vai além da inclusão de minorias nos Parlamentos. A rigor, os mecanismos legais para corrigir esse tipo de sub-representação são subsidiários. As raízes dessas disparidades são sociais e culturais e elas só serão definitivamente erradicadas por uma transformação social e cultural. A normatização de ações afirmativas – considerando que não sirvam a propósitos sectários – pode incentivar a renovação da cultura política e do ideário cívico, mas, por si só, não é suficiente para consumá-la. E, se for consumada, a proporcionalidade representativa será, como deve ser, parte natural do processo democrático, sem necessidade de anteparos legais para estimulá-la ou forçá-la.

Mas há distorções diretamente causadas pela lei que só serão sanadas pela lei. A Constituição prevê que o número de deputados de cada Estado seja revisto periodicamente para garantir que sejam proporcionais à população. Mas essa distribuição não é atualizada desde 1994. Hoje, um deputado de Roraima representa 72 mil habitantes, enquanto um de São Paulo representa 650 mil, ou seja, um voto de Roraima vale nove vezes o de São Paulo.

Não surpreende que, segundo recentes pesquisas, o Congresso só perca para os partidos políticos como a instituição menos confiável para a população. A representatividade, por si só, não será suficiente para resgatar sua credibilidade. Mas é uma condição absolutamente necessária.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de outubro de 2021 

Um projeto para o País

Mais do que ser anti-Lula ou anti-Bolsonaro, o que faz falta é ter um projeto para o País. Essa é a melhor resposta contra as forças do atraso

Com recorde de desaprovação popular e sem ter o que apresentar como realização de seu governo, Jair Bolsonaro repete, com frequência crescente, o seu mantra: não fosse ele, o PT teria voltado ao poder. Na lógica bolsonarista, o governo não precisa apresentar nenhum resultado. O dever de Bolsonaro na Presidência da República se resumiria apenas e tão somente a manter Lula longe do Palácio do Planalto.

Essa tática, que parece tão resolutamente antipetista, é uma farsa, já que atende perfeitamente aos interesses do PT. A quase completa ausência de resultados do governo Bolsonaro é o cenário dos sonhos de Lula. Não há como negar. O desgoverno de Bolsonaro é caminho muito favorável para Lula voltar ao poder.

Mas o mantra bolsonarista – não fosse Bolsonaro, o PT teria voltado ao poder – tem ainda outra evidente contradição. Nenhum candidato é eleito apenas para ocupar um espaço vazio. Jair Bolsonaro não foi eleito para impedir que Lula, diretamente ou por meio de algum de seus postes, voltasse ao poder. Bolsonaro foi eleito – eis a verdade que o bolsonarismo tenta esconder – para governar.

É acintoso o desconforto de Bolsonaro e de seus apoiadores com essa realidade tão básica: um presidente da República é eleito para governar. Quando confrontados com a ausência de resultados do governo Bolsonaro, seus apoiadores logo revidam com a subespécie do mantra bolsonarista: apesar de tudo, em 2022, no segundo turno com Lula, voto é em Bolsonaro.

Deve-se ressaltar que a manobra também é comum entre os lulistas. Quando confrontados com o legado de corrupção, incompetência e negacionismo do PT, os lulistas logo revidam: mas, num segundo turno entre Lula e Bolsonaro, em quem você vota? E ficam indignados se o interlocutor mostra que o exercício dos direitos políticos numa democracia é necessariamente mais amplo do que essa asfixiante disjuntiva.

A transformação da política em mero embate de negativos é profundamente perniciosa ao País. A rigor, não se pode nem mesmo dizer que se trata de luta entre forças políticas antagônicas. É mero choque de rejeições: o anti-Lula versus o anti-Bolsonaro.

Nesse cenário – e ainda tendo um longo tempo até as eleições de 2022 –, é muito oportuna a observação feita por Alfredo Setubal, presidente da Itaúsa, ao tratar da relação entre o empresariado e as administrações petistas, em entrevista ao jornal O Globo. “Ele (Lula) gastou muito para eleger a Dilma, o déficit fiscal foi enorme. As consequências foram muito ruins e culminaram na recessão a partir de 2014 e no impeachment da Dilma. Mas, mais que anti-Lula, os empresários querem alguma coisa pró-Brasil. Eu não acho que é um sentimento anti-Lula, eu acho que é um sentimento de mudança. Esse modelo não está dando certo. Por isso se fala da terceira via”, disse Alfredo Setubal.

Lula e Bolsonaro almejam o mero choque de rejeições. Mas tal embate é rigorosamente insuficiente para o País superar a crise econômica, política, social e moral na qual foi mergulhado. A experiência de 2018 é bastante pedagógica. Elegeu-se um presidente da República cuja única proposta consistiu – e ainda consiste – em ser o anti-Lula, e ele vai entregar um Brasil em piores condições do que recebeu.

O bolsonarismo é terreno fértil para o lulopetismo, e vice-versa, porque os dois não vivem de governar, mas de vencer eleições a qualquer custo. É urgente, portanto, que as lideranças políticas, em sintonia com a sociedade civil organizada, apresentem propostas consistentes, aptas a enfrentar com responsabilidade os problemas do País.

Uma campanha nessas bases, protagonizada por candidatos genuinamente interessados em revigorar a democracia e unir os brasileiros em torno de ideias sólidas para tirar o Brasil do atraso, terá o condão de deixar evidente que Lula e Bolsonaro pouco têm a oferecer ao País além de cizânia e impostura. Nunca é demais lembrar que, nas duas disputas pela Presidência da República com Fernando Henrique Cardoso, Lula perdeu no primeiro turno.

Mais do que ser anti-Lula ou anti-Bolsonaro, o que faz falta é ter um projeto para o País. Essa é a melhor resposta contra as forças do atraso.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de outubro de 2021 

'Falar em socialismo e comunismo no Brasil é ignorância e paranoia', diz ex-preso político que resistiu com Brizola

O jornalista, advogado e escritor gaúcho Flávio Tavares sofreu na própria pele a virulência da tortura durante a ditadura militar no Brasil e no Uruguai.

Tavares: 'Ficam ressuscitando a paranoia do comunismo como se os comunistas tivessem governado o país'. (Getty Images)

Em 1969, foram choques elétricos num quartel do Exército do Rio de Janeiro. Mais tarde, naquele ano, ele fez parte do grupo de presos políticos enviados ao México em troca da libertação do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick, que tinha sido sequestrado. Menos de dez anos depois, em 1977, Tavares foi sequestrado pelo Exército uruguaio em Montevidéu. Naquela época, o regime ditatorial dominava em quase todos os países da América do Sul.

Antes de ser preso no Rio de Janeiro e exilado, tendo morado na Cidade do México, em Buenos Aires e em Lisboa, Flávio Tavares já havia participado, no Brasil, de um outro episodio histórico. Em 1961, ele resistiu, armado, a convite do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, contra a ameaça de golpe militar. Aquela resistência, opina, acabou adiando o golpe, que ocorreu em 1964.

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No Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, o jornalista, que era editor e repórter do jornal Última Hora, participou da iniciativa de Brizola de fazer uma campanha armada - conhecida como "Campanha da Legalidade" - em defesa da posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros.

Hoje, Tavares acha que a situação é diferente em relação àquela época. Mas diz estar preocupado.

Com vários livros publicados, entre eles, Memórias do Esquecimento e O dia que Getúlio matou Allende, Flávio Tavares participou da luta armada durante o regime militar brasileiro (1964-1985). Em entrevista à BBC News Brasil, aos 87 anos, ele disse que seu grupo não soube atrair o apoio popular: "Ficamos isolados e militarmente fomos derrotados. Mas não fomos derrotados historicamente. Acho que historicamente nós vencemos. Até porque hoje a ditadura é um cadáver insepulto. Mas é um cadáver."

De Porto Alegre, onde voltou a morar, Flávio Tavares fez críticas ao presidente Jair Bolsonaro mas também ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT.

Tavares chamou de "paranoia" e "ignorância" falar em socialismo e comunismo no Brasil, como setores do governo Bolsonaro e bolsonaristas argumentam ao condenar o possível retorno de Lula à Presidência.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Seu recente relato à Folha de S.Paulo traz detalhes pouco conhecidos, de que você era um dos cinco repórteres que estavam com o então governador Leonel Brizola quando houve resistência em defesa da democracia, em 1961. Você chegou a estar com uma arma e o próprio governador Brizola com uma metralhadora. Pode contar um pouco mais?

Flávio Tavares - Jânio Quadros renunciou numa sexta-feira, o sábado foi de muita expectativa. No domingo, Brizola anunciou pelo rádio que resistiria, (porque) houve o veto dos ministros militares, dizendo que Jango, o vice-presidente, era simpático ao comunismo e estava na China e não poderia assumir o posto.

Brizola se rebelou e disse que o Rio Grande do Sul iria resistir. E no domingo, sendo o segundo dia após a renúncia, nós esperamos o ataque do Exército à sede do palácio para calar o governador Brizola. E resistimos de arma na mão, com revólveres, e com esses revólveres nós iríamos enfrentar os tanques e as metralhadoras. Só o Brizola tinha uma metralhadora lá em cima, na residência dele no palácio. A Brigada militar do Rio Grande do Sul, com arma na mão no terraço do palácio e a própria população que começou a se alistar no recrutamento voluntário, os chamados comitês de resistência democrática que se estenderam por todo o Rio Grande do Sul e receberam a adesão de pelo menos dez mil pessoas.

Foi o grande movimento de mobilizações de massa contra o golpe. Foi a primeira vez que as massas, que o movimento popular derrotou um golpe de Estado armado, armado com armas, não pleonasmo. Houve uma rebelião para garantir a aplicação da Constituição. Algo insólito. As rebeliões são para quebrar o status quo (mas) essa foi uma rebelião para manter aCconstituição.

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Tavares: 'A pretendida reforma agrária foi usada como pretexto para o golpe de 1964' (Getty Images)

BBC News Brasil - Quem entregou as armas para vocês, cinco jornalistas?

Tavares - Aí já éramos mais de 50 pessoas, na tarde de domingo, quando esperávamos o ataque do Exército, que ainda obedecia às ordens de Brasília. Quem distribuiu (as armas)...foi a mando do governador Leonel Brizola por (parte dos) oficiais da Policia Militar do Rio Grande do Sul, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul. E a população inteira, homens e mulheres, andava armada nas ruas, o que mostrava a disposição de resistir. Retratava a realidade em si. E os sindicatos faziam treinamento corpo a corpo num campo de futebol aqui perto.

BBC News Brasil - Um Brasil bem diferente.

Tavares - Um Brasil bem diferente, politizado. Todas as forças políticas se uniram e houve um repúdio absoluto, total contra o golpe. O governo continuou insistindo de Brasília, os ministros militares replicaram e mandaram bombardear o palácio de governo que era a sede de todo o movimento. Havia um movimento dos sargentos, que na época era muito forte, que desarmou os aviões, furou os pneus e escondeu as bombas. Os aviões não podiam decolar e só por isso o palácio não foi bombardeado.


BBC News Brasil - No seu relato, você diz que essa atitude coletiva impediu que o golpe ocorresse em 1961 e acabou ocorrendo em 1964. Mas esse período de 1961 e 1964 foi muito turbulento…

Tavares - Sim, porque era um Brasil muito atrasado em termos de compreensão da realidade social. Se formavam cinturões de miséria nos grandes centros urbanos, fruto da concentração da propriedade das zonas rurais do país inteiro e sem que o país percebesse que era necessária uma reforma agrária urgente. A pretendida reforma agrária foi usada como pretexto para o golpe de 1964. (...) Hoje essa situação se repete de outra forma. Hoje há um atraso de certos setores que se incrustaram no governo pelo golpe popular e que ameaçam, diariamente, com a não realização das eleições em 2022. E sob qualquer pretexto e dirigidos pelo próprio presidente da República. Isso é gravíssimo.

BBC News Brasil - No dia Sete de Setembro passado chegou-se a temer a ruptura democrática, incluindo golpe militar. Como você viveu essa data?

Tavares - Vivi com muito pesar. Porque é incompreensível que o presidente da República saia de Brasília, no avião presidencial, e vá a São Paulo para participar de uma concentração, que já tinha começado na própria capital, Brasília. É uma manifestação afrontosa à Constituição e à democracia em si.

Tavares: 'Manifestações de Bolsonaro foram a semente para uma tentativa de golpe' (Getty Images)

BBC News Brasil - No seu livro Memórias do Esquecimento, você conta a experiência de ter sido torturado no Uruguai. Como você vê hoje que nas manifestações de apoio ao presidente há quem peça a volta do regime militar e até o AI5? Por que isso acontece?

Tavares - Antes (do AI5) era uma ditadura envergonhada, de 1964 a 1968. Uma ditadura que tinha vergonha de ser ditadura. E com o Ato 5, de 1968, ela já se instaura em sua plenitude, com torturas, assassinatos, censura à imprensa, o fim do habeas corpus. Só defende (a volta do AI5) quem não conhece a ditadura. A ditadura no Brasil não chegou a assanha da ditadura da Argentina ou do Chile. Mas foi um simulacro de democracia. Havia eleições para vereadores, para os prefeitos das pequenas cidades. Era uma ditadura que fazia eleições e simulava, principalmente para a opinião pública dos Estados Unidos, que tinha sido o grande patrocinador do golpe de 1964. E só quem não conhece aqueles anos terríveis é que defende a volta da ditadura.

BBC News Brasil - Você citou a Argentina, que realizou julgamento das 'juntas militares' no governo do presidente Raúl Alfonsín (1983-1989). Essa diferença (pelo fato de o Brasil não ter tido julgamento semelhante) pode, de certa forma, ter aberto o caminho para a chegada de Bolsonaro à Presidência, já que, por exemplo, quando ele era deputado defendeu torturador, no Congresso, e aquela cena seria difícil na Argentina. Qual é sua visão?

Tavares - A anistia que ocorreu no Brasil abrangeu a todos os setores, incluindo os torturadores, e abriu caminho para que as pessoas esquecessem o que aconteceu. A sua pergunta em si já é uma resposta. Os torturadores jamais foram julgados no Brasil, ao contrário do que ocorreu na Argentina onde até hoje, até um ano atrás, havia comandantes militares condenados à prisão, inclusive perpétua, pelas torturas e assassinatos que cometeram. (...)

O Brasil tem essa mania de tapar as coisas, como se a realidade do passado não existisse. Acho que esse é um hábito bem brasileiro. Até hoje não sabemos o que fizeram os bandeirantes, que são tratados como heróis quando foram também criminosos. Desbravaram os sertões brasileiros, cometeram atrocidades contra as populações indígenas, contra populações locais. Então, isso é uma mania viciosa brasileira, de tapar o sol com a peneira.

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BBC News Brasil - No relato à Folha você diz que a ditadura nos deixou um legado que perdura até hoje, que nos faz confundir democracia com eleição direta. Como você vê a democracia hoje no Brasil?

Tavares - Acho que por um lado se diz que a democracia está consolidada porque as instituições são fortes. Mas as instituições não são uma rocha, uma pedra. As instituições são as pessoas que as compõem. E as pessoas estão cada vez mais desconectadas da realidade brasileira. Até hoje o governo não fez nenhum plano, nenhum programa, nenhum planejamento para vencer as dificuldades. A fome continua se alastrando no Nordeste e também no Sudeste e no Sul do Brasil… Cada vez mais as cidades brasileiras têm mais pessoas dormindo nas ruas. Nas grandes e até pequenas e médias cidades. E não há planos para educação e para empregos para as pessoas que dormem na rua, comem na rua e 'descomem' na rua.

Tavares: 'Só quem não conhece aqueles anos terríveis é que defende a volta da ditadura' (Getty Images)

BBC News Brasil - Por que você foi da luta armada? Hoje, aos 87 anos, o que você pensa daquela época em que você tinha vinte ou trinta e poucos anos?

Tavares - Bom, naquela época a luta armada nos parecia uma solução para nos opormos às armas que nos tinham calado. Hoje eu tenho uma outra concepção. Acho que nós ficamos isolados. A realidade mostrou que nós não soubemos nos comunicar com a população. Nós ficamos combatendo a ditadura de forma isolada. Por isso, a ditadura, com o suporte tecnológico que tinha... E nós não tínhamos nada.

(...) Mas nos parecia, de uma ótica que eu acho hoje que foi equivocada, que só podíamos nos opor às armas do poder militar pelas armas do poder popular. Mas não soubemos, não tivemos condições de nos fazer entender pelas grandes massas. Ficamos isolados e militarmente fomos derrotados. Mas não fomos derrotados historicamente. Acho que historicamente nós vencemos. Até porque hoje a ditadura é um cadáver insepulto. Mas é um cadáver.

BBC News Brasil - Pode explicar melhor?

Tavares - Hoje sabemos que a ditadura não venceu. Venceu em termos militares, pelo horror das prisões, da tortura e pela censura à imprensa. Nesse sentido, a ditadura venceu (durante o período ditatorial). Mas hoje temos uma grande imprensa livre e em defesa da Constituição.

BBC News Brasil - Como você vê a declaração do presidente que entre o feijão e o fuzil, o fuzil seria mais importante?

Tavares - Isso é um absurdo porque é a negação da própria vida, da própria existência. Mas esses disparates estão muito comuns no presidente da República neste momento. Encaram o país como se fosse uma vassoura no quintal, que se varre e está tudo solucionado. (...) O país está sem saída neste momento, em termos políticos. Os partidos estão desacreditados, as esperanças (oferecidas) se transformaram em um grande embuste. Uma roubalheira enorme durante o governo de Lula, durante o chamado governo do Partido dos Trabalhadores...

Tavares: 'Lula implantou a desfaçatez' (Getty Images)

BBC News Brasil - Naquele episódio de 1961, quando Brizola tomou a iniciativa da 'Campanha da Legalidade', era uma defesa contra um possível avanço do Exército. Qual a diferença, na sua visão, do Exército daquela época e de hoje?

Tavares - Naquela época, o Exército, do meu ponto de vista pessoal, era muito mais aberto do que hoje é. Não tinha sofrido ainda os 21 anos da ditadura militar em que as escolas militares adotaram o sistema norte-americano de educação, na caserna e fora da caserna.

Vou citar um exemplo. No Rio Grande do Sul (em 1961), o chamado Exército pelas forças dos Estados do Sul, cuja sede é em Porto Alegre, ficou a favor da Legalidade. Mas a pressão veio debaixo. Em Porto Alegre, os capitães que comandavam as chamadas companhias, jargão militar, foram ao gabinete do comandante e disseram que estavam a favor do respeito à Constituição e da posse do vice-presidente Joao Goulart. Isso foi um motivo fundamental para que o Exército, que hoje se chama Comando Militar do Sul, ficasse a favor da Legalidade de 1961.

E hoje a educação militar não mudou. Ao contrário do que houve na Argentina, por exemplo, onde as academias militares foram modificadas a partir do governo Alfonsín. Não sei como estará hoje. Mas aqui não, não houve isso. Continuou a educação imposta durante os 21 anos da ditadura militar. Isso é fundamental, mas as pessoas não dão muita importância.

BBC News Brasil - Você entende que aquela união da população em defesa da democracia, que ocorreu em 1961, e que na sua visão contribuiu para adiar o golpe de 1964, não ocorre hoje. No entanto, as manifestações têm sido frequentes no Brasil, ou a favor ou contra o governo Bolsonaro. Qual é a diferença entre os dois períodos - 1961 e agora?

Tavares - A diferença é que as manifestações contra o Bolsonaro, por exemplo, continuam divididas. A chamada esquerda, capitaneada pelo PT, e que eu acho que não tem nada de esquerda, não participou das manifestações agora, semanas atrás em São Paulo, e que foram feitas pelos dissidentes do bolsonarismo.

(...) Para mim, o PT tem características de divisionismos. O que não for uma iniciativa dele, PT, 'não vale'. Então, ficaram setores (de ex-)bolsonaristas reunindo dez mil pessoas nas ruas de São Paulo e contra o Bolsonaro. E o PT desdenhou.

BBC News Brasil - Você é crítico de Bolsonaro e também de Lula?

Tavares - Sou sim, muito crítico. Acho que Lula implantou a desfaçatez. Lula disse, textualmente, 'nunca os bancos lucraram tanto quanto na minha gestão como presidente'. Os bancos representam o setor financeiro. As instituições bancárias são o tem de mais maligno no capitalismo...

BBC News Brasil - Como você fará na eleição de 2022, se a disputa for entre Bolsonaro e Lula?

Tavares - Mas há um movimento muito grande, que começa a crescer no Brasil, pela terceira via. (...) Eu, pessoalmente, acho que o grande candidato seria o (ex-governador e ex-presidenciável) Ciro Gomes. Ele é um homem lúcido que tem plano de governo e uma visão do que seria o país tanto nas áreas econômica como a social.

BBC News Brasil - Você diz que o Brasil busca reinventar uma espécie de nova Guerra Fria (de oposição entre capitalismo e comunismo). No Sete de Setembro, o ministro-chefe do Gabinete Institucional da Presidência, general Augusto Heleno, disse, nas redes sociais, que eles, bolsonaristas, estão tentando evitar a volta da socialismo. Qual é a sua opinião?

Tavares - Pois é. A volta do socialismo, a volta do comunismo.... Mas o Brasil nunca foi socialista. Tentou reformas sociais muito tênues, necessárias para a estabilidade do próprio país e da própria população. As reformas sociais implementadas a partir do governo (José) Sarney... E nunca foi estabelecido o socialismo. Isso é um absurdo. Reflete, inclusive, a ignorância do setor governamental atual do Brasil. O general ressuscitando a paranoia do comunismo, como se os comunistas tivessem governado o país, tivessem implementado o socialismo. Isso nunca ocorreu.

(...) Eu vejo o Brasil muito confuso, sem que as pessoas saibam para onde ir. Os partidos políticos não têm significado nenhum. Ninguém morre por qualquer partido político aí, nem põe o corpo para defender qualquer partido político. Viraram aglomerados de pessoas em busca do poder.

Tavares: 'Eu vejo o Brasil muito confuso, sem que as pessoas saibam para onde ir' (Getty Images)

BBC News Brasil - Essa situação que você descreve hoje é resultado da própria trajetória brasileira? A situação em 1961, o golpe de 1964, os 21 anos de ditadura militar, o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff...

Tavares - Eu acho que é. É uma decepção geral e que criou a confusão. O Brasil hoje não está em guerra, em luta, mas está confuso. E a confusão é o detalhe mais perigoso da história. As pessoas não saberem para onde ir. O povo chegou em uma encruzilhada em que há vários rumos e não sabe para qual seguir porque todos levam ao mesmo desengano. É a situação atual que eu vejo hoje no Brasil, pelo menos em termos muito pessoais.

BBC News Brasil - Você ficou com alguma sequela daqueles anos de tortura?

Tavares - Sequelas aparentes, não. Mas eu fui pendurado, torturado, no Uruguai, onde nunca morei. Estava em Montevidéu numa missão humanitária para libertar um jornalista que tinha sido preso por uma matéria que tinha escrito no meu jornal e fui sequestrado e sofri muita tortura no Uruguai.

A única sequela visível com que fiquei foi da 'penduração'. Tenho meu lado esquerdo permanentemente dolorido. Até já me habituei à dor em si. Consigo suportá-la. Faço pilates e fisioterapia e isso atenua. Agora, a grande sequela com que eu fiquei foi desaparecendo aos poucos. Quando eu ouvia um carro da polícia eu ficava nervoso. Mas eu tenho uma força de vontade bastante grande. No Uruguai, fiquei 26 dias algemado e de olhos vendados. Eu comia de olhos vendados e algemado. Dormia de olhos vendados e algemado. Foram 26 dias. E depois mais cinco meses e meio preso.

BBC News Brasil - O que você diria às pessoas que defendem o AI-5 e a volta da ditadura?

Tavares - Eu diria que só se defende a volta da ditadura quem desconhece a ditadura. Desconhece o horror da ditadura, seja de esquerda, de direita. A ditadura em si é uma afronta à condição humana. O torturador é um psicopata.

Marcia Carmo, de Buenos Aires para a BBC News Brasil, em 2 outubro 2021

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Merval: Bolsonaro já não governa mais, é pato manco

O presidente Bolsonaro já não governa mais. Os vetos derrubados nos últimos dias o consolidam na posição de presidente mais derrotado pelo Congresso nos últimos 20 anos. 

Na questão dos preços da Petrobras para gasolina, óleo diesel e gás, Bolsonaro tenta há meses encontrar uma maneira de reduzir os aumentos constantes. 

E agora tem de enfrentar o general Silva e Luna, colocado por ele na presidência da estatal no lugar de Roberto Castello Branco justamente para estancar a alta dos preços.

O general interventor assumiu completamente a tese técnica da Petrobras e, apesar das reclamações de Bolsonaro, anunciou nos últimos dias mais aumentos, na mesma direção da diretoria anterior. A autonomia do Banco Central foi outra “derrota” do governo, embora tenha sido dele a proposta. O presidente Roberto Campos Neto, usando a liberdade que lhe deu a legislação, ficou mais à vontade para criticar a política econômica do governo. Como quando, recentemente, disse que se percebe “o aumento da incerteza do momento presente”, referindo-se à crise deflagrada pelo presidente nos atos de 7 de setembro.

O acordo feito pelo presidente Bolsonaro com o Centrão, se lhe trouxe a segurança de que os pedidos de impeachment continuarão na gaveta do presidente da Câmara, Arthur Lira, também tirou-lhe o controle do Congresso, que passou integralmente para os partidos que formam a maioria. A base governista está disposta a superar a impopularidade crescente de Bolsonaro em ano eleitoral aprovando medidas que desarranjam o equilíbrio fiscal ou o jogo eleitoral. O valor e a abrangência do novo Bolsa Família deverão ser bem maiores do que o equilíbrio fiscal recomenda, mas os efeitos eleitorais serão grandes.

Não há ideologia predominante na derrubada de vetos, tanto quando os congressistas votam a seu favor, como no caso das federações partidárias que preservarão pequenos partidos diante da cláusula de barreiras, quanto no caso da Lei de Abuso de Autoridade, em que o Congresso recuperou medidas importantes que haviam sido cortadas pelo presidente, como “constranger presos a produzir provas contrárias a si mesmo” ou “negar acesso aos autos da investigação ou ao inquérito”.

Nos dois casos, houve ideologia por parte do presidente Bolsonaro, que vetou as federações “para derrotar os comunistas”, como explicou o deputado Eduardo Bolsonaro, e trechos da Lei de Abuso de Autoridade a pedido de policiais.

A indicação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça para a vaga de Marco Aurélio Mello no Supremo Tribunal Federal (STF) é outro exemplo de como Bolsonaro está enfraquecido no Congresso. Apenas um senador, Davi Alcolumbre, presidente da Comissão de Constituição e Justiça, trava a sabatina há meses, fazendo campanha aberta contra o nomeado.

A tentativa é fazer com que Bolsonaro retire a indicação de Mendonça para escolher outro nome, do agrado de seu grupo político, como o procurador-geral da República, Augusto Aras — cuja sabatina Alcolumbre foi rápido em marcar —, ou o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, que, aliás, é evangélico. Ao afirmar, dias atrás, que nomearia outro evangélico se Mendonça fosse recusado, o presidente fortaleceu a esperança de que possa nomear Martins para a vaga, o que só reforçou a manobra de Alcolumbre.

Além das dificuldades normais da indicação, Martins tem uma que pode ser definitiva: teria de ser indicado e sabatinado até 7 de outubro, quando faz 65 anos, idade-limite para assumir o cargo. Alcolumbre, aliás, está sofrendo um desgaste pessoal grande por não ter nenhum motivo relevante para adiar a sabatina, apenas seu desejo pessoal.

A situação está tão confusa que um dos argumentos mais usados contra André Mendonça é que ele levará de volta ao plenário do Supremo a maioria de apoiadores da Operação Lava-Jato, pois teria boa relação com os procuradores de Curitiba. Bolsonaro, que é mais de falar que de trabalhar, tornou-se um “pato manco” em exercício, como se chama, em linguagem política, quem tem a expectativa cada vez menor de poder futuro.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é comentarista de política na GloboNews e no jornal O Globo. Publicado originalmente em 30/09/2021 • 04:32 hs.

Anticomunismo, Pinochet, fake news e homofobia: veja o que Jair Bolsonaro compartilhou pelo WhatsApp na última semana

O GLOBO teve acesso a mensagens enviadas nos últimos dias pelo presidente a seus contatos no aplicativo, que incluem notícias falsas sobre vacinação de jovens, vídeo elogioso ao ditador chileno, piadas preconceituosas e ataques a adversários

Vídeo compartilhado pelo presidente Jair Bolsonaro no WhatsApp Foto: Reprodução

Vídeos com elogios ao ditador chileno Augusto Pinochet, disseminação de fake news sobre a vacinação de jovens, além de piadas homofóbicas e um interminável arsenal de sua já conhecida sanha anticomunista. O GLOBO teve acesso a mensagens de WhatsApp remetidas pelo número pessoal de Jair Bolsonaro a pessoas próximas que expõem como o presidente da República tem usado o aplicativo de mensagens ao longo dos últimos dias.

O material foi enviado por Bolsonaro entre quinta-feira da semana passada e ontem por meio de um número adquirido recentemente. Diferentes pessoas do círculo do presidente receberam o mesmo conteúdo, inclusive outras importantes autoridades da República, o que indica o uso de uma lista de transmissão.

Em uma mensagem de anteontem, às 20h50m, Bolsonaro usou o aplicativo para espalhar fake news e desincentivar a vacinação ao escrever: “Jovens morrendo com a Pfizer.” No mesmo momento, ele compartilhou um vídeo com os dizeres: “Riscos — Precisam investigar! Jovens morr3ndo de parada card1aca (sic)”. No vídeo, também há a inscrição “Bolsonaro tem razão”. O material reproduz uma fala da comentarista Cristina Graeml, do programa “Os Pingos nos Is”, da rádio “Jovem Pan”, na qual ela cita cinco casos de adolescentes que faleceram recentemente, lançando dúvidas sobre a aplicação de doses da Pfizer. Duas das mortes citadas, no entanto, eram de adolescentes que sequer haviam sido vacinados. O texto foi disparado por Bolsonaro justamente no dia em que o governo voltou atrás e decidiu liberar a imunização de adolescentes, desaconselhada pelo Ministério da Saúde na semana anterior .

Uma das principais linhas de investigação da CPI da Covid é a demora na compra pelo governo federal da vacina da Pfizer. No total, 86 e-mails enviados pela farmacêutica ficaram sem resposta do Ministério da Saúde.

Em outra mensagem, disparada na última quinta-feira, Bolsonaro postou vídeo elogioso ao ditador chileno Augusto Pinochet e deu a entender que, se a esquerda voltar ao poder, o Brasil terá um destino preocupante.

“Quando os chilenos verem (sic) o que é o comunismo, quando entenderem as trapaças, as falácias, como estão enganando, vão se dar conta de que este governo tem razão”, diz a legenda em português do discurso de Pinochet compartilhado por Bolsonaro. Em seguida, aparecem imagens de protestos recentes no Chile, antes de o filmete retornar a Pinochet, que finaliza: “Isso nunca foi uma ditadura, senhores. Esta é uma ditabranda (ditadura branda). Mas, se necessário, teremos que apertar a mão, porque temos que salvar primeiro o país e depois olharemos para trás”.

O vídeo de Pinochet compartilhado por Bolsonaro vem acompanhado da seguinte mensagem, que leva o selo de “encaminhada”: “Pinochet/ Chile/ 1982. Cuba, Venezuela, Argentina, B...(?)”.

O presidente da República também disseminou homofobia. Na segunda-feira, ele compartilhou um conteúdo que mostra pessoas aparentemente num protesto por direitos da comunidade LGBT queimando uma bandeira do Brasil, acompanhado da legenda: “Essa turma toda quer ‘o cara’ voltando ao poder”.

Não foi a única mensagem preconceituosa. Na madrugada do último domingo, Bolsonaro remeteu um vídeo no qual o músico Rogério Skylab diz ter tido relações homossexuais sem, no entanto, considerar-se gay: “Já dei três vezes, mas sou hétero”. Logo depois, Bolsonaro completa: “Até três vezes pode.”

Bolsonaro também fez, em uma mesma postagem, críticas a Lula e à China. O presidente mandou ontem aos seus contatos um vídeo com a inscrição: “Lula, (sic) corrompeu-se para mentir ao mundo que a China é um ‘exemplo’”. Nesse vídeo, ao mesmo tempo em que Lula diz na parte superior da tela que a China é “um exemplo de desenvolvimento para o mundo”, a metade de baixo mostra cachorros mortos sendo comercializados como alimentos, além de uma criança levando uma surra de um suposto professor chinês dentro de sala de aula.

— Constataram coisas absurdas. Anteontem à noite, o presidente usou o aplicativo para espalhar fake news e desincentivar a vacinação. Vejam o que escreveu: "jovens morrendo com a Pfizer" — disse Humberto Costa.Ele também fez um referência à carta de recuo assinada em 8 de setembro por Bolsonaro, com a ajuda do ex-presidente Michel Temer, após ter feito ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) nas manifestações do Sete de Setembro.— É a demonstração de que toda aquela encenação com o ex-presidente Michel Temer é para enganar a população. O velho Bolsonaro está de volta — afirmou Humberto Costa.

Paulo Cappelli, em 30/09/2021 - 04:30 / Atualizado em 30/09/2021 - 11:11 hs

CPI da Covid: e-mails revelam que governo fechou compra da Covaxin após laboratório avisar que não cumpriria prazo

Empresa descumpriu o contrato, a vacina nunca conseguiu a aprovação da Anvisa e a CGU recomendou que o negócio fosse cancelado

Laboratório indiano Bharat Biontech que fabrica a vacina Covaxin Foto: Divulgação

E-mails apreendidos pela CPI da Covid na sede da Precisa Medicamentos e obtidos pelo GLOBO mostram que o laboratório indiano Bharat Biotech, fornecedor da Covaxin, alertou a empresa brasileira de que não teria como cumprir o cronograma de entregas oferecido ao Ministério da Saúde. Ainda assim, o contrato foi fechado em 25 de fevereiro com um compromisso além da capacidade da Bharat.

A Precisa descumpriu o contrato, a vacina nunca conseguiu a aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a CGU (Controladoria-Geral da União) recomendou que o negócio, investigado na CPI da Covid, fosse cancelado, o que acabou acontecendo. O órgão encontrou indícios de falsificação em documentos apresentados pela Precisa, o que a empresa atribui aos parceiros indianos.

Procurada, a Precisa Medicamentos não comentou até a publicação desta reportagem.

Em 4 de fevereiro, a diretora da Precisa Medicamentos Emanuela Medrades mandou um e-mail aos indianos prevendo a entrega de 20 milhões de doses em 90 dias após a assinatura do contrato. No dia seguinte, veio a resposta: "Estamos abertos a aumentar a quantia de 12 para 20 milhões de doses. Mas o cronograma de entrega que foi pedido não é viável para nós", diz Apoorv Kumar, funcionário da Bharat. Depois, ele pede para atrasar a entrega em "alguns meses".

Em 25 de fevereiro, o contrato entre a Precisa Medicamentos e o governo brasileiro é assinado com um cronograma muito mais veloz do que aquele que a Bharat dizia ser viável em seus e-mails. O prazo contratado pela Saúde foi de 20 milhões de doses em 70 dias após a assinatura do contrato, em 5 parcelas de 4 milhões de doses. Ou seja, pouco mais de dois meses de prazo.

Mesmo após a Precisa Medicamentos firmar um compromisso com o governo em um contrato de R$ 1,6 bilhão, a Bharat seguia frisando que não conseguiria cumprir o calendário. "A proposta indica um cronograma de entrega que não está alinhado com o nosso compromisso com o governo do Brasil. Se puder esclarecer, nós agradecemos", escreveu Apoorv Kumar em 26 de fevereiro.

O prazo não foi cumprido, nenhuma vacina foi importada e, hoje, o contrato está cancelado.

Documentos apreendidos pela Polícia Federal na sede da Precisa Medicamentos em São Paulo mostram ainda que a compra foi fechada pelo governo brasileiro sem um contrato formal entre a Precisa Medicamentos e o laboratório indiano Bharat Biotech, como mostrou o "Jornal Nacional" na semana passada.

Nos materiais apreendidos pela PF, foi encontrado apenas um rascunho de um contrato de distribuição da vacina. A comissão prevista inicialmente para a Precisa era ficar com US$ 2,25 dos US$ 15 que custavam cada dose do imunizante. Ou seja, a intermediária receberia R$ 240 milhões do R$ 1,6 bilhão que o Ministério da Saúde se comprometeu a pagar.

Natália Portinari para O Globo, em 30/09/2021 - 09:08 / Atualizado em 30/09/2021 às 09:55

Inflação desorienta mercado e preço do mesmo item chega a variar mais de 500%

Levantamento das cotações de 15 produtos de consumo básico revela diferenças de até 578%; especialistas atribuem essa disparidade à incerteza dos estabelecimentos quanto à economia e reforçam a importância de comparar concorrentes.

A disparada da inflação, que bateu 10% em 12 meses até setembro, segundo o IPCA-15, trouxe um problema adicional para os brasileiros na hora de ir às compras: uma grande variação de preço de um mesmo produto entre estabelecimentos diferentes.

Levantamento das cotações de 15 itens de consumo básico, entre alimentos e produtos de higiene e limpeza, revela diferença de até 578% no preço do mesmo creme dental. A embalagem do produto com 90 gramas, da mesma marca, foi encontrada pelo menor preço de R$ 1,18 e o maior, de R$ 8.

Discrepâncias na casa de três dígitos entre a maior e a menor cotação de um mesmo produto – algo que não era incomum encontrar antes do Plano Real – também foram constatadas no leite de caixinha (408,3%), sabonete (328,3%), macarrão (184,3%), sal (155,2%), feijão (126,8%), café (106,7%) e detergente líquido (104,7%). O óleo de soja e o arroz apareceram na pesquisa com variações de 69,5% e 70,7%, respectivamente.

Assaí

Grande variação nos preços é resultado das estratégias escolhidas pelos varejistas, aponta especialista. Foto: Ari Ferreira/Estadão

O levantamento, feito a pedido do Estadão pelo economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Fábio Bentes, mostra que todos os 15 itens registraram variações significativas. A diferença mais modesta, de 20,8%, apareceu no pão de forma industrializado, cujo maior preço foi R$ 7,20 e o menor, de R$ 5,96.

Os preços foram pesquisados na última sexta-feira, por meio da ferramenta do Google Shopping Brasil. Entre os critérios usados para fazer o levantamento, de âmbito nacional e que incluiu grandes varejistas, estão o fato de o produto ser representativo do consumo básico do brasileiro e estar disponível em pelo menos dez lojas físicas ou virtuais.

Inflação alta amplia as diferenças

Variação entre o maior e o menor preço de produtos básicos*

Valores em reais

Produto Menor preço Maior preço variação

Creme dental Colgate Máxima Proteção 90 gramas 1,18 8,00

578,0%578,0%

Leite integral UHT Piracanjuba 1 litro 1,09 5,54

408,3%408,3%

Sabonete Phebo Toque de Lavanda 90 gramas 2,89 9,20

218,3%218,3%

Macarrão de arroz espaguete sem glúten Urbano 500 gramas 2,67 7,59

184,3%184,3%

Sal Lebre refinado 1  quilo 1,45 3,70

155,2%155,2%

Feijão carioca Camil 1 quilo 6,39 14,49

126,8%126,8%

Café Pilão Tradicional 500 gramas 10,69 22,10

106,7%106,7%

Detergente Limpol neutro 500 mililitros 1,49 3,05

104,7%104,7%

Farinha de trigo Renata 1 quilo 5,49 9,49

72,9%72,9%

Sabão em pó Omo Lavagem Perfeita 800 gramas 7,99 13,69

71,3%71,3%

Arroz Tio João Tipo 1 1 quilo 5,29 9,03

70,7%70,7%

Óleo de soja Liza 900 mililitros 6,99 11,85

69,5%69,5%

Margarina Qualy com sal 500 gramas 6,01 9,99

66,2%66,2%

Açúcar refinado Da Barra 1 quilo 3,79 5,77

52,2%52,2%

Pão de forma Bauducco Tradicional 400 gramas 5,96 7,20

20,8%20,8%

*Produtos idênticos, com o mesmo código de barras, marca, embalagem e especificações

Tabela: Estadão  Fonte: pesquisa realizada pela CNC em 24/09/2021,  com base nos dados da Google Shopping Brasil  Obter dados  Criado com Datawrapper

“As variações entre o maior e o menor preço de um mesmo produto tendem a aumentar geralmente quando as expectativas de inflação são divergentes”, afirma Bentes.

No momento atual, em que a inflação em 12 meses passa de 10%, e as expectativas de inflação, segundo o Boletim Focus do Banco Central, são crescentes por 25 semanas seguidas (cerca de seis meses), estabelecer um preço é uma tarefa bastante complexa, diz Bentes.

“A dispersão entre o maior e o menor preço é alimentada pelas expectativas de inflação maior, porque, quando os agentes econômicos vão formar preço, eles têm de levar em consideração o custo da energia, a negociação com o fabricante e também a expectativa de inflação futura para poder resguardar a sua margem”, argumenta.

Essa grande variação de preços é resultado das estratégias escolhidas pelos varejistas. “Não são todos os varejistas que vão colocar gordura nos preços, há aqueles que vão manter preço baixo para tentar ganhar no volume de venda.” O resultado dessas estratégias é uma grande dispersão de preços.

Pandemia

Além da grande volatilidade nas expectativas de inflação, o economista Fábio Silveira, sócio da consultoria MacroSector, atribui essa grande dispersão entre preços à desorganização das cadeias de produção por conta da pandemia.

“Desde março do ano passado, o processo de produção está volátil e desorientado”, lembra o economista. Nesse período, as linhas de produção foram interrompidas e depois retomadas, com insumos comprados por diferentes preços no mercado doméstico e internacional. “Há uma descoordenação imensa não só por causa dos ciclos de produção, mas também por custos de matérias-primas, variação de câmbio e giro de estoques”, observa Silveira.

Na sua avaliação, a economia mundial enfrenta uma grande irracionalidade nas cadeias produtivas e nos processos de formação de preços, sendo pior o quadro no Brasil. Silveira acredita que serão necessários até dois anos para que o equilíbrio seja restabelecido e os preços de um produto comecem a convergir para um mesmo patamar.

A partir do levantamento da CNC, a reportagem escolheu seis itens – arroz, feijão, açúcar, café, leite e óleo de soja – e calculou qual seria o custo dessa cesta pelo maior e pelo menor preço. As contas do valor da cesta foram feitas considerando a quantidade consumida por uma família de quatro pessoas, critério seguido pela Fundação Procon de São Paulo.

A cesta com os produtos mais caros custaria R$ 428,98, mais do que o dobro do valor da mesma cesta com os produtos mais baratos (R$ 204,92).

Bentes lembra que a alimentação no domicílio representa 25% do orçamento do brasileiro comum, segundo Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE. 

Hoje, a internet é uma ferramenta importante para pesquisar preços. “Ficou mais fácil para quem tem acesso à informação”, afirma o economista.

Márcia De Chiara, O Estado de S.Paulo, em 30 de setembro de 2021 

Combustível para a demagogia

Pretender que problemas como o do preço dos combustíveis sejam resolvidos com passes de mágica fajuta é típico de quem vive de vender terrenos na Lua.      

O presidente Jair Bolsonaro ganhou um reforço de peso em sua campanha para confundir a opinião pública a respeito dos preços dos combustíveis e atribuir a terceiros uma responsabilidade que é parcialmente sua e de seu governo. Trata-se do presidente da Câmara, Arthur Lira, que, na terça-feira passada, sem nenhum pudor, disse que “ninguém aguenta mais” a alta da gasolina e anunciou que vai colocar em debate um projeto para fixar o valor do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) incidente sobre os combustíveis.

“Sabe o que faz o combustível ficar caro? São os impostos estaduais”, declarou o deputado, acrescentando que os governadores têm arrecadado muito na pandemia – sugerindo haver interesse dos Estados na carestia.

Trata-se de uma farsa em múltiplas dimensões, a começar por uma inexistente relação de causalidade. De fato, os Estados estão aumentando expressivamente sua arrecadação, graças em parte ao aumento dos preços dos combustíveis e da tarifa da energia elétrica, principais fontes de cobrança de ICMS. Mas, no caso dos combustíveis, o ICMS é cobrado sobre o preço médio ponderado ao consumidor final – ou seja, mesmo na hipótese maluca de que o ICMS fosse zero (o que, diga-se, o presidente Bolsonaro já teve a audácia de propor, ignorando a enorme importância desse imposto para os Estados), o preço provavelmente seria pouco afetado. 

Por isso, não é o aumento da arrecadação do ICMS que faz subir o preço do combustível, como dizem os bolsonaristas; é, ao contrário, o aumento do preço dos derivados de petróleo que faz crescer a arrecadação, porque a base de cálculo sobre a qual incide o tributo é o preço final do combustível; se essa base aumenta, necessariamente aumentará a arrecadação sobre esse produto, sem que tenha havido mudança nas regras de cálculo ou aumento da alíquota.

Na segunda-feira passada, o presidente da República queixou-se de novo do alto preço dos combustíveis. De maneira elegante, o presidente da Petrobras, general da reserva Joaquim Silva e Luna – escolhido por Bolsonaro com a intenção óbvia de interferir na estatal para frear os preços dos combustíveis –, disse que a empresa não alteraria sua política de preços, que procura acompanhar as alterações do mercado internacional. Ato contínuo, a Petrobras aumentou o preço do diesel, o que afetará os fretes rodoviários, num país cuja matriz de transporte é predominantemente rodoviária.

Em favor de Bolsonaro e Arthur Lira, é preciso reconhecer que os dois não são os únicos demagogos a oferecer aos incautos a ilusão de que o preço dos combustíveis sobe ou desce por ato de vontade, e não por força das circunstâncias de mercado. A política da Petrobras foi criticada também pelo antípoda de Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para o chefão petista, “o que está acontecendo é que a Petrobras está acumulando verba para pagar acionista americano”. É o estado da arte da vigarice lulopetista – a mesma que, sob o infausto governo de Dilma Rousseff, obrigou a Petrobras a subsidiar gasolina barata para segurar a inflação, o que quase quebrou a estatal. 

A explicação para a alta dos preços dos combustíveis é bem mais complexa do que pretendem fazer crer os populistas irresponsáveis. O cenário econômico difícil e uma conjuntura política tensa, graças à incompetência e à truculência de Bolsonaro, tiveram como uma de suas consequências a disparada do dólar – e, por tabela, dos derivados de petróleo.

Ademais, a desvalorização do real potencializa, no caso dos combustíveis, um problema mundial, que é o crescimento muito rápido da demanda. O alívio proporcionado pelo avanço da vacinação estimula a procura por muitos bens, inclusive os da área energética. O resultado é o aumento dos preços – o petróleo alcançou, nesta semana, sua cotação mais alta em três anos – e, agora, o temor de sua escassez.

Pretender que problemas dessa extensão sejam resolvidos com passes de mágica fajuta é típico de quem, como Bolsonaro, Lula, Arthur Lira e companhia bela, vive de vender terrenos na Lua.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 30 de setembro de 2021 

Justiça francesa condena Sarkozy por financiamento ilegal de campanha

É a 2ª condenação do ex-presidente francês, que em março foi sentenciado por corrupção e tráfico de influência e é alvo de outras acusações e investigações.

Nicolas Sarkozy, ex-presidente da França, participa de cerimônia no Arco do Triunfo, em Paris, em 11 de novembro de 2019 — Foto: Ludovic Marin/Pool via AP

A Justiça da França declarou nesta quinta-feira (30) o ex-presidente Nicolas Sarkozy culpado por financiamento ilegal de campanha, por ter excedido o limite de gastos autorizados nas eleições presidenciais de 2012. A pena ainda não foi divulgada.

A Promotoria pediu um ano de prisão para o ex-presidente, incluindo seis meses em regime fechado, e multa. Foram gastos € 42,8 milhões na eleição de 2012 (cerca de R$ 270 milhões na cotação atual), quase o dobro do limite legal.

É a segunda condenação de Sarkozy, que em março foi sentenciado à prisão por corrupção tráfico de influência. Ele não compareceu ao julgamento.

O político de 66 anos, que governou o país entre 2007 e 2012 e foi derrotado pelo socialista François Hollande, é o primeiro ex-presidente da Quinta República (regime iniciado em 1958) a ser condenado.

Outras 13 pessoas também foram condenadas. "Gostaria que explicassem o que fiz a mais na campanha em 2012 do que 2007", afirmou Sarkozy.

Outros processos

O ex-presidente conservador é réu em outros processos, inclusive pela eleição de 2007, em que é acusado de corrupção passiva e associação criminosa, entre outros delitos, na campanha que o levou ao Palácio de Eliseu.

A Promotoria também o investiga por tráfico de influência e lavagem de dinheiro por suas atividades de consultoria na Rússia.

Fonte: AFP / Agência France Press. Publicado no Brasil por g1, em 30.09.21.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Direitos Humanos no Brasil necessitam de uma construção coletiva de política nacional

Matheus de Carvalho Hernandez e Marrielle Maia falam sobre o desmonte e a necessidade de construção de um novo horizonte para os direitos humanos no Brasil

Uma das principais missões da Constituição brasileira é dar vigência aos direitos humanos – Foto: Freepik

Na próxima sexta-feira (1º), a partir das 14h, acontecerá o evento Construção e Desmonte das Políticas Nacionais de Direitos Humanos no Brasil, que compõe o Ciclo de Memórias da Política Institucional Brasileira de Direitos Humanos, do grupo de pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto de Estudos Avançados da USP (GPDH-IEA), do qual Matheus de Carvalho Hernandez e Marrielle Maia fazem parte. Como coordenadores do evento, eles contam um pouco mais sobre o projeto ao Jornal da USP no Ar 1° Edição.

De acordo com Marrielle, o encontro reunirá 11 ex-ministros e ex-secretários dos governos FHC, Lula e Dilma. “O objetivo é reconstruir a memória institucional e advogar pela reconstrução da política nacional de direitos humanos”, destaca. Ela também ressalta que o atual momento é de desmonte das políticas públicas de direitos humanos, momento que está sendo marcado por ataques às instituições democráticas e ao Estado de Direito, pela apologia aos crimes cometidos durante a ditadura militar e por medidas de apagamento de memórias. “É resultado também especialmente de ações do governo atual, com claro objetivo de desconstruir, mas também de redefinir os direitos humanos de forma unilateral, sem a participação social, sem respeito às diversidades e às conquistas desde a redemocratização”, avalia Marrielle.

“Esse grupo de pesquisa existe desde 2016 e foi criado para dar continuidade às atividades da Cátedra Unesco de Educação para Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, mas também para aprofundar as pesquisas sobre temas de interesse com uma abordagem transdisciplinar”, explica Marrielle. Ela também destaca que o projeto Ciclo de Memórias da Política Institucional Brasileira de Direitos Humanos é motivado pelos estudos da memória social e política, que estão relacionados às reflexões sobre os direitos humanos e preocupados com o desmonte pelo qual as políticas públicas de direitos humanos enfrentam nesse governo. “Os expositores são convidados a falar sobre as lutas, os avanços, os obstáculos, a promoção dos direitos humanos, mas também a institucionalização e a implementação dessas políticas e abordar as ameaças e ataques que colocam em risco as conquistas alcançadas”, diz Marrielle.

Para Hernandez, uma das principais missões da Constituição brasileira é dar vigência aos direitos humanos. “Justamente por isso, é uma construção coletiva que depende de políticas públicas que devem atravessar governos de diferentes colorações políticas. É preciso que haja uma política de direitos humanos que seja contínua, perene, ou uma política de Estado”, analisa. Ainda de acordo com Hernandez, é preciso que se siga o preceito constitucional de construção coletiva para que os diagnósticos também sejam realizados de maneira coletiva, de modo que agentes sociais e políticos se comprometam com os valores dos direitos humanos, independentemente das suas diferenças políticas. “A ideia do nosso evento é justamente isso: evidenciar os direitos humanos como um projeto coletivo de Estado e, ao mesmo tempo, compartilhar um diagnóstico conjunto dessas pessoas que passaram pela pasta para demonstrar a situação de desmonte e enxergar um horizonte de reconstrução dos direitos humanos”, finaliza Hernandez.

O encontro é gratuito, não necessita de inscrição prévia e será transmitido pelo canal no YouTube do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

Publicado originalmente pelo Jornal da USP, em 28.09.21.

Um Poeta

Bonfim Tobias

MORDAÇA

Vivo em um país bem impossível,

Tornado inviável e estranho!

Povo bom mas agora impassível,

De orgulhoso, tornou-se tão bisonho!


E o Brasil no mundo não é crível,

(Alguns até chamados de rebanho),

Virou uma colônia, sem nível,

Perdendo a esperança e o sonho!


E a gente brasileira, em pouco tempo,

Ficando obtusa, sem alento,

Não houve, não reage, nem diz nada,

Vai perdendo assim a dignidade,

Perde até das conquistas a saudade

Como árvore em pé mas calcinada!

Mariliz: Bolsonaro, mil dias de pesadelo

Um assunto que bomba mais no meu WhatsApp do que política são as drogas. Aquelas vendidas em farmácia, teoricamente controladas, para o sistema nervoso central. Que está todo mundo meio mal, não há dúvida. E parece uma óbvia vitória que doenças mentais deixem aos poucos de ser tabu, mas o lado sinistro dessas discussões é que não há pudor em trocar impressões sobre tratamentos, medicamentos, efeitos colaterais.

Reportagem da jornalista Claudia Collucci, nesta Folha, mostra que a venda de antidepressivos e estabilizadores de humor tem aumentado sem parar. Em 2019, 12%. No ano seguinte, 17%. Nos primeiros cinco meses de 2021 a alta já foi de 13%.

Uma luz vermelha acendeu por aqui quando uma amiga, adepta de namastê, lavanda e banho de mar, trocou a meditação por um coquetel de tarjas preta e vermelha. Um conhecido contou que compra tudo pelo celular numa farmácia que vende sem receita. Engorda? Tira libido? Dá taquicardia? Deixa feliz? São os questionamentos nos grupos. É mais fácil a indicação de um ansiolítico do que uma receita de pão que dê certo.

Quem sou eu para julgar? Num país com um presidente que faz propaganda de cloroquina no palanque da ONU e seu governo, ao que tudo indica, andou de conchavo com um plano de saúde para atochar "kit covid" em gente idosa, quem consegue atravessar o dia com a cara limpa só pode estar distraído.

Especialistas discutem os custos psicológicos do isolamento, da perda de laços afetivos, do home office, do luto, das sequelas. Qual é a conta da devastação mental causada por este governo? Sua gestão é um pesadelo que já dura mil dias, e o efeito Bolsonaro é desemprego, fome, má gestão da crise sanitária, economia em frangalhos, ataques à democracia, polarização política. O brasileiro vive duas pandemias, uma de doenças mentais causada por um verme. Para isso já há remédio na Constituição.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é Jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 29.09.2021.

CPI da Covid: Hang confirma morte da mãe por Covid e fala que Prevent Senior errou em atestado de óbito

Dono da Havan soube que na certidão da mãe não constava informação sobre coronavírus; mais cedo, empresário bolsonarista se recusou a assinar compromisso de dizer a verdade à comissão.


Luciano Hang passeia sem capacete na garupa do presidente Bolsonaro em Porto Velho, capital de Rondônia Foto: Anderson Riedel / Agência O Globo - 07/05/2021

O empresário bolsonarista Luciano Hang, que presta depoimento na CPI da Covid nesta quarta-feira, confirmou que no atestado de óbito da mãe dele —  morta por Covid-19 em fevereiro — não consta a informação sobre a doença, o que segundo ele foi um erro do plantonista. O empresário negou ter pedido para omitir esse dado no documento e afirmou ter procurado a Prevent Senior para entender o ocorrido. Ele também confirmou que a mãe recebeu remédios do tratamento precoce, comprovadamente ineficazes no combate à doença, e apenas solicitou aos médicos que fizessem todo o possível por ela.

Hang é investigado pela CPI em diferentes linhas de apuração. Uma delas é a respeito da omissão d causa da morte no atestado de óbito da mãe dele, que morreu vítima do coronavírus após ser medicada com remédios do chamado kit-Covid em hospital da Prevent Senior. A operadora de plano de saúde foi acusado por médicos que trabalharam na empresa de omitir a causa da morte por covid-19 durante estudo com medicamentos sem comprovação científica contra a doença.

Hang exibiu um papel que, segundo ele, é um outro documento da Prevent Senior mostrando que ela entrou no hospital com Covid-19 e morreu com a doença. O vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), perguntou então se ele tinha também o atestado de óbito. Hang disse que não. Randolfe afirmou que o atestado não contém a informação da morte por Covid-19, ao contrário do documento exibido pelo empresário.

— Achei estranho de não estar no óbito, mas eu sou leigo. Segundo eles, quem preencheu o atestado de óbito foi o plantonista. No dia seguinte, existe uma Comissão de Controle de Infecção Hospitalar, essa comissão viu o erro do plantonista.

À CPI, Hang dissera, mas cedo, que soube da omissão da Covid-19 no atestado de óbito da mãe pela CPI. Omar Aziz leu, então em outro momento da sessão, trecho de reportagem do G1 segundo a qual a equipe de Hang sabia desde abril que o atestado não continha esse dado. O presidente da CPI também lembrou que Hang disse à CPI que não sabia disso. O empresário então deu outra versão.

— Não. Sabia. Quando eu perguntei ao Pedro [Pedro Benedito Batista Júnior, diretor da Prevent Senior] "no atestado não está marcado", ele disse: "é normal" — disse Hang.

O empresário rebateu a acusação do relator da comissão, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), de que teria negado que a mãe recebeu esse tipo de tratamento. Hang explicou que, na verdade, ele lamentou não ter sido oferecido tratamento preventivo, que é diferente de tratamento precoce, em vídeo exibido pela comissão.

Renan Calheiros rebateu a resposta dada pelo empresário.

— Nós temos muitos documentos comprobatórios — disse Renan.

— Não, vocês têm narrativa. Vocês não têm provas — reagiu o empresário.

Segundo Hang, sua mãe fez o tratamento precoce, que se dá no momento inicial da enfermidade, e não o preventivo, que ocorre antes de contrair a doença.

— A minha mãe não fez tratamento preventivo. Fez tratamento inicial [precoce]. São coisas diferentes — afirmou o empresário que ressaltou também ter contraído a doença e ter sido tratado no mesmo hospital e ficado curado.

Questionado novamente pelo relator se fez algum pedido aos médicos, como o uso de remédios do tratamento precoce, para salvar a mãe, Hang disse que apenas solicitou que fizesse todo o possível por ela. Questionado se autorizou a mãe a receber tratamentos experimentais, como a ozonioterapia, ele disse que sim.

— Autorizei a Prevent Senior a fazer tudo que fosse possível para salvar a minha mãe — afirmou Hang

Durante o interrogatório, Renan citou o vídeo em que o empresário aparece de algema e provoca CPI da Covid dizendo que isso é para caso os senadores não aceitem o que ele falar no depoimento. O relator perguntou se as mortes por Covid-19 eram uma brincadeira. Hang afirmou que fez apenas uso do humor e não quis afrontar a CPI. Omar Aziz disse então que essa era uma desculpa esfarrapada.

O dono da Havan também foi confrontado com inquérito do Ministério Público do Trabalho que investiga se o empresário pressionou funcionários para que votassem em Bolsonaro na eleição de 2018. Hang disse que jamais forçou seus funcionários para votar em qualque candidato. No entanto, há um vídeo dele mostrando o oposto; a gravação foi o que originou o inquérito no MPT.

No depoimento à CPI, Hang também negou ter participado de reuniões com o presidente Jair Bolsonaro para tratar da pandemia da Covid-19. Em uma transmissão ao vivo pela internet no início do ano, o empresário pressionou o governo a liberar a aquisição de vacinas para a iniciativa privada. Hang Ele também afirmou não ter levado demandas do setor empresarial ao presidente.

Em postagem em abril deste ano nas redes sociais, entretanto, Hang escreveu que estava em Brasília com outros empresários e o presidente "em uma visita ao gabinete de crise no combate ao coronavírus".

Depois de ser confrontado com a publicação, o empresário disse que foi ao gabinete em que há uma sala para monitorar dados da pandemia em todo o país. Hang disse ainda que a visita "não tinha nada da Covid", e sim preocupação com economia para que o país voltasse a crescer.

Bate-bocas e pedido de desculpas

O depoimento do empresário bolsonarista foi marcado por bate-bocas e constantes interrupções por parte dos senadores governistas e da oposição. Por causa das discussões frequentes, o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), suspendeu a oitiva por cerca de 40 minutos na parte da manhã até que o advogado de Hang, Beno Brandao, deixasse a sala por ter ofendido o senador Rogério Carvalho (PT-SE).

O senador Rogério Carvalho reclamou do comportamento de Hang e disse que ele deveria se ater às perguntas. Ao reclamar novamente do empresário, o senador foi rebatido pelo advogado de Hang. Rogério Carvalho se irritou e pediu sua retirada por entender que ele estava desrespeitando um parlamentar.

Em razão das divergências sobre a ocorrência de ofensa ou não do advogado, o depoente ironizou:

— Chama o VAR. Foi gravado. Volta o vídeo.

Depoimento de Luciano Hand na CPI da Covid foi interropido várias vezes por bate-boca e discussões Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Na volta da sessão, o advogado Beno Brandão pediu desculpas e disse que não houve intenção de ofender Carvalho. Com isso, foi permitido que ele continuasse no local. Logo no início da sessão, o advogado lembrou que, apesar de ter sido convocado como testemunha, Hang foi  incluído na lista de investigados na comissão. Assim, exerceu o direito de se recusar a assinar o termo em que se comprometeria a dizer a verdade.

Após o início do tumulto, Luciano Hang também mostrou alguns cartazes, como um que diz "não me deixam falar". Omar ordenou que ele os entregasse para a segurança da comissão. O presidente da CPI também determinou que apenas um advogado poderia ficar ao lado de Hang.

Antes, Omar Aziz já tinha reclamado de Hang:

— Eu na sua condição, que fica aqui cantando de bom galo, e alguns aqui pegando corda, eu levava minha mãe à lua. Não era à Prevent Senior não. Não venha aqui dar uma de mais honesto. O senhor não é mais honesto do que ninguém aqui. E não é mais trabalhador do que nenhum brasileiro. O senhor gera emprego, mas ganha dinheiro. Agora, quando foi acusado lá atrás de ser sócio dos filhos da Dilma, do Lula, coloca a estátua da liberdade na frente da loja. Esse é o patriota.

Senadores governistas disseram que ele tem liberdade para fazer isso. Em seguida, houve novo bate-boca em razão da atuação do advogado de Hang.

O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) reclamou da presença de um homem que estava gravando vídeo atrás dele falando mal da CPI e atrapalhando que ele pudesse acompanhar o depoimento. O homem foi identificado como sendo o deputado federal Daniel Freitas (PSL-SC).

Mais tarde, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) criticava Luciano Hang, quando o empresário o interrompeu. Isso levou a um novo bate-boca, em que senadores governistas saíram em defesa de Hang. Depois disso, o senador Humberto Costa (PT-PE) disse que Luciano Hang é um réu confesso, por ter confirmado tudo. Flávio Bolsonaro interveio, irritando Humberto. Em outro ponto, Humberto disparou para Hang:

— Não pense o senhor que estamos falando sem ter documento — disse Humberto.

Após o discurso do senador petista, que não fez perguntas, Hang reagiu.

— Fico muito triste por não fazer perguntas para mim, e ficar dez minutos de narrativas, de mentiras — disse o empresário, que, depois de ser repreendido pelo vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), retirou a palavra "mentiras" e manteve apenas "narrativas".

A estratégia de Hang foi usar o holofote proporcionado pela CPI para antagonizar principalmente com o relator da comissão, Renan Calheiros, um dos principais inimigos do presidente Jair Bolsonaro hoje. Isso foi visto logo na chegada do depoente ao Senado, rodeado de senadores governistas. Ele deu uma declaração de poucos minutos antes do começo da sessão e afirmou que chegou à comissão sem um habeas corpus e pediu para que o deixem falar.

— Com muita tranquilidade, com muita serenidade, com paz e amor no coração, com o peito aberto, sem habeas corpus. É muito importante. Eu acho que quase todo mundo que veio à CPI trouxe um habeas corpus. Desde o princípio eu avisava aos meus advogados: eu não preciso de habeas corpus. Nada melhor do que estar sentado na frente de um delegado, de um juiz, de um promotor, e ter a verdade ao seu lado — disse Hang.

O senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, esteve presente na CPI, uma demonstração da importância que o governo dá a este depoimento. O parlamentar costuma aparecer apenas a sessões consideradas relevantes para o Planalto e costuma incitar confusões para atrapalhar o andamento do colegiado.

No começo do depoimento do empresário bolsonarista, Renan Calheiros reclamou da figura do "bobo da corte" que bajula o rei e desvia a atenção dos reais problemas. Flávio, entre outros senadores governistas, reclamaram que o relator estava ofendendo Hang. A fala gerou outro bate-boca entre os presentes.

— Em todas as eras do nosso país, houve a figura do bobo da corte, independentemente dos trajes usados ao longo dos tempos, são úteis para bajular o rei e criar cortinas de fumaça para desviar a atenção dos dramáticos e reais problemas — disse Renan. Relator da CPI da Covid chama Luciano Hang de 'bobo da corte', e Flávio Bolsonaro reage:

— Que cinismo. Tenha respeito — reagiu Flávio.

Contas no exterior

Em resposta ao relator da CPI, Hang disse que tem três contas no exterior, mas todas foram declaradas à Receita e são auditadas. O presidente da comissão explicou o motivo da pergunta: a CPI tem indícios de que ele usa tais contas para financiar fake news. Renan também questionou se a empresa já recebeu benefício fiscal dos governos federal, estaduais e municipais. Hang rodeou o assunto, mas ao fim disse que sim.

Ele também negou que a empresa tenha sido financiada pela BNDES, com exceção da compra de máquinas pelo Finame, uma linha de financiamento do banco de fomento. Ele afirmou que no ano passado, em razão da crise provocada pela pandemia, pegou empréstimos de bancos privados, como Bradesco, Itaú e Santander, mas não de bancos estatais.


Luciano Hang com Omar Aziz e Renan Calheiros Foto: Leopoldo Silva / Agência Senado

Posteriormente, questionado de novo se a empresa já recebeu subsídios do poder público, ele disse não se lembrar. Em seguida, afirmou que deve ter recebido alguma coisa. Renan se irritou com a demora de Hang em responder a questão.

— Nós não estamos aqui para bater palma para doido. Estamos aqui para fazer perguntas — afirmou Renan.

O empresário também afirmou que, em 35 anos de empresa, trabalhou com bancos estatais. Perguntado se já operou com bitcoin, ele respondeu que nem sabia o que era isso.

Omar Aziz disse que ele já fez 57 operações com o BNDES. Hang contra-argumentou:

— A maioria delas para comprar equipamentos e máquinas e o terreno que comprei [em Franca-SP] — disse Hang.

Segundo a versão dele, a Havan livrou o BNDES de um abacaxi ao adquirir o terreno em Franca. Segundo Hang, uma outra empresa tinha comprado o terreno financiado, mas quebrou. Em passagem pela cidade, o empresário disse ter gostado do imóvel e fechou negócio para adquiri-lo.

'Não sou negacionista'

O empresário disse não ser negacionista.

— Eu não sou negacionista. Nunca neguei ou duvidei da doença. Tanto que minhas ações pró-saúde não ficaram só no discurso. Mandei 200 cilindros de oxigênio para Manaus, no valor de R$ 1 milhão, respiradores, máscaras, camas, utensílios, ajudamos na reforma de UTI, e destinamos R$ 5 milhões para a área da saúde. Nunca fui contra a vacina. Tanto que disponibilizamos os estacionamentos das nossas megalojas como pontos de vacinação — disse Hang, acrescentando:

— Nunca fiz parte de gabinete paralelo. Nunca financiei fake news.

Nas redes: Hang diz ser alvo de fake news, mas cita mentira compartilhada por sua aliada Carla Zambelli

Ele disse que, até cinco anos atrás, era uma pessoa desconhecida, mas teve que se manifestar para negar boatos de que suas lojas seriam na verdade de filhos dos ex-presidentes petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Para aumentar a ironia, uma das pessoas que propagaram tais boatos na época é a hoje deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP).

O empresário disse também, em outro momento, que não tomou vacina de Covid-19. Questionado sobre o motivo, ele afirmou:

— Eu tenho neutralizante natural — disse o empresário.

Defesa do presidente

O líder do governo, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), entregou nesta quarta-feira a Renan Calheiros um parecer jurídico feito pelo pelo advogado Ives Gandra Martins e outros juristas para que eles opinassem se o presidente Jair Bolsonaro cometeu crimes no enfrentamento à pandemia. Ele afirmou que o teor do texto ainda será divulgado à imprensa.

Na terça-feira, Fernando Bezerra já havia dito que, entre outras coisas, o documento aborda questões como os limites da atuação do governo federal no enfrentamento da pandemia, em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que garantiu a autonomia de estados e municípios para adotar medidas no combate à doença. Bolsonaro já disse várias vezes, de forma incorreta, que teve seus poderes limitados pelo STF. O que a Corte fez foi permitir que os estados e municípios possam enfrentar a pandemia dentro do âmbito de seus poderes sem sofrerem restrições do governo federal.

A lista de possíveis crimes que podem ser atribuídos ao presidente é extensa. A consulta aborda tanto crimes de responsabilidade, quanto os comuns, como, por exemplo, charlatanismo, exercício ilegal da medicina, estelionato, corrupção passiva, advocacia administrativa, e exposição de outras pessoas ao risco em razão de sua participação em eventos públicos com aglomeração. A consulta também trata da responsabilidade de Bolsonaro no colapso do sistema de saúde de Manaus no começo do ano, de negligência ou inoperância na aquisição de vacinas da Pfizer, de atos de improbidade administrativa, e de crimes contra humanidade.

André de Souza, de Brasília para O Globo, em 29/09/2021 - 09:44 / Atualizado em 29/09/2021 - 17:43