terça-feira, 14 de maio de 2024

Barganha imoral


PL quer usar o tamanho de suas bancadas para arrancar dos candidatos à presidência da Câmara e do Senado o apoio a uma proposta de anistia a Bolsonaro e aos golpistas do 8 de Janeiro

Cioso da influência que exerce pelo tamanho de suas bancadas no Congresso Nacional – 95 deputados e 13 senadores –, o Partido Liberal (PL) pretende explorar esse ativo nada desprezível como um instrumento de barganha. Porém, a motivação da legenda do notório Valdemar Costa Neto não poderia ser mais inaceitável – e moralmente repugnante – para uma agremiação política na democracia representativa. O que o PL quer obter com a barganha é a normalização da delinquência política, simbolizada pelas inúmeras tentativas de Jair Bolsonaro de perturbar o processo eleitoral de 2022 e pela tentativa de golpe de Estado no 8 de Janeiro, que o ex-presidente no mínimo inspirou.

É forçoso reconhecer que o PL pode ter muitos defeitos, mas entre eles, definitivamente, não está a incoerência. Sendo um partido orgulhoso de ter em seus quadros os principais políticos liberticidas hoje em atividade no País, atua deliberadamente para desmoralizar as leis e a democracia.

Segundo consta, o PL condicionará o apoio aos parlamentares que pretendem suceder a Arthur Lira e Rodrigo Pacheco na presidência da Câmara e do Senado, respectivamente, ao compromisso dos candidatos de levar adiante uma proposta de anistia a Bolsonaro e aos golpistas implicados no infame 8 de Janeiro. Chama a atenção nesse movimento a admissão do partido de que crimes, ora vejam, de fato foram cometidos – ou, por óbvio, não se estaria falando em anistia alguma.

Desde aquele domingo fatídico de 2023, o PL parece ter abraçado como principal agenda política não só a defesa dos golpistas, como a própria negação da tentativa de golpe, como se tudo aquilo a que o País assistiu não passasse de “baderna”, “vandalismo” ou coisa que o valha. É de crimes gravíssimos que se trata. E seja por falta de convicção democrática, seja por oportunismo – afinal, Bolsonaro ainda é apoiado por uma parcela significativa dos eleitores a despeito da miríade de acusações que pesam sobre ele –, o movimento para acobertá-los diz muito sobre o PL e seu mandachuva.

O PL está tão fechado em seus objetivos – e nisso, é de justiça reconhecer, a legenda não está sozinha – que nem a tragédia climática e humanitária sem precedentes que se abateu sobre o Rio Grande do Sul comoveu o partido a abrir mão de ao menos uma parte do milionário Fundo Eleitoral em socorro aos gaúchos. No afã de eleger prefeitos Brasil afora neste ano, o partido vai alugar dois jatinhos para que seus principais cabos eleitorais, Michelle Bolsonaro e o deputado Nikolas Ferreira, cruzem os céus do País em campanha para a prefeitura de oito capitais. Poucas situações retratam tão bem como os partidos políticos são capazes de virar as costas para a sociedade, como se fossem representantes de si mesmos.

Dado o tamanho de sua representação no Congresso, o PL teria legitimidade para apoiar candidatos às Mesas Diretoras que se mostrassem dispostos a abraçar projetos caros ao partido. Estranho seria se não o fizesse. Mas não é disso que se trata. O PL defende a anistia para Bolsonaro, de resto rigorosamente descabida e imoral, por puro interesse eleitoreiro. Nada há de programático nessa barganha delinquente. O que se pretende é (i) proceder ao apagamento do golpismo bolsonarista por meio da anistia e (ii) pavimentar o caminho para uma eventual volta de Bolsonaro à corrida eleitoral de 2026, malgrado sua condenação à inelegibilidade pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Portanto, está-se diante de uma malandragem. Aqui e ali, haverá movimentos cada vez menos sutis para fazer o golpismo que ditou os rumos da política nacional durante os quatro anos do trevoso mandato de Bolsonaro – e que culminou no 8 de Janeiro – parecer menos grave do que de fato foi. E de malandragens, convenhamos, o sr. Valdemar Costa Neto entende. Basta lembrar que o capo do PL chegou a patrocinar um “laudo” criminoso para lançar dúvidas sobre a higidez do sistema eleitoral brasileiro – o que gerou uma multa de R$ 22,9 milhões ao partido imposta pelo TSE. Saiu barato.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.05.24

Vão enlouquecer Lula

Não só uma das maiores riquezas do Brasil está concentrada no Rio Grande do Sul, mas também a extrema direita do país, centro de inimigos de tudo que soa de esquerda.

Lula da Silva, presidente do Brasil, durante evento no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 3 de maio. (Adriano Machado / Reuters)

O presidente Lula enfrenta um dos problemas mais delicados do seu novo governo devido à tragédia climática na rica região do Rio Grande do Sul, repleta de cadáveres e com mais de um milhão de pessoas afetadas, sem luz e sem água. .

O Governo tem sido rápido a mover todos os botões para aliviar tanta dor e tantas mortes precisamente na região que lhe é mais adversa politicamente. É aquela parte rica do país onde se concentra o maior contingente de fiéis seguidores da extrema-direita Bolsonaro .

Não só uma das maiores riquezas do país está concentrada no Rio Grande do Sul graças à força do agronegócio, mas também a extrema direita do país, centro de inimigos de tudo que soa de esquerda. Entre eles está uma grande massa de evangélicos, que sempre resiste a Lula. É a religião que melhor representa o lema da direita de Deus, da pátria e da família.

E mais uma vez Lula se viu entre a espada e a espada: esquecer os cálculos puramente políticos e dedicar-se a ajudar as vítimas da tragédia, mobilizando todas as forças do Governo ou deixá-las entregues à sua sorte.

O momento é duplamente difícil porque Lula é pressionado pelo seu povo a tomar decisões que nem sempre respondem à sua idiossincrasia, a do político de esquerda, que já no seu primeiro Governo trocou o traje sindical “barbudo” pelas gravatas Armani e. cunhou a frase histórica “Lula: paz e amor”. Foi isso que o levou a dizer um dia que era uma “metamorfose ambulante”. E foi. Em todos os seus governos soube adaptar-se ao clima político do momento: com o braço dos grandes líderes da política de direita e dos movimentos mais de esquerda.

Agora, em seu terceiro mandato, Lula se encontra numa encruzilhada e para sair dela precisará tirar a poeira de suas habilidades de metamorfose. O problema não é fácil e em alguns aspectos ele parece sofrer uma certa confusão, já que os problemas vêm de dentro do seu partido, o Partido dos Trabalhadores (PT), e do seu assessor oficial de imagem, Sidônio Palmeira. Isso pode acabar desconcertando você.

A ala mais à esquerda, a começar pela presidente do partido, Gleisi Hoffmann, preferiria um confronto frontal com a oposição sem meias medidas. Preferem a guerra aberta contra a direita e o confronto destemido com Bolsonaro que continua, embora inelegível, a ser o centro indiscutível da extrema-direita golpista e até da simples direita. E ele ainda está livre e bem, mobilizando milhares de seguidores em seus comícios de rua.

O problema, segundo os assessores de imagem de Lula, é que, como revelam todas as pesquisas, não é possível que o Governo seja melhor em todos os índices econômicos e sociais em comparação com a forma como a sociedade o percebe. E estão pressionando-o a esquecer Bolsonaro, chamando-o de “covarde” e tentando arrancar do bolsonarismo fascista suas bandeiras de Deus, da pátria e da família.

Lula está de alguma forma entre a espada e a espada. Por um lado, ele odeia e despreza Bolsonaro como personagem e gostaria de vê-lo preso o mais rápido possível , e ao mesmo tempo tem que enfrentar uma sociedade que o tornou famoso e bem sucedido com seu slogan de “paz e amor", de ser uma espécie de pai dos pobres, mas ao mesmo tempo próximo dos ricos. E agora seu desejo é conquistar aquela classe média que nunca o tolerou.

Não se sabe se é por influência de sua esposa, Janja , uma grande ativista e feminista que não se contenta em ser a simples primeira-dama da Presidência. Ou porque Lula não se contenta com o paradoxo de que tudo está a melhorar no país e continua a cair em todas as sondagens que não parecem reflectir o que realmente está a fazer o seu novo e terceiro Governo, onde já pensa em concorrer a um quarto mandato em 2026. A verdade é que o ex-sindicalista está se esforçando para mudar.

Um exemplo que se notou durante a tragédia que aflige o Estado mais bolsonarista, mais evangélico e mais distante foi sua atitude terna revelada na dor causada pela notícia de que um cavalo havia ficado preso em um telhado durante as tempestades, sem condições de sair. .

“Fui dormir inquieto com a imagem de um cavalo no telhado. “Começo a imaginar o que aquele pobre cavalo estava passando sozinho naquele telhado”, comentou. E acrescentou: “Espero que durante algum tempo ninguém monte esse cavalo porque ele merece um bom descanso”. Enquanto isso, sua esposa Janja, que mobilizou o Exército para salvar o cavalo Caramelo , apareceu nas redes sociais emocionada com um cachorro perdido na tragédia que ela e o marido acabavam de adotar.

Fora da política mesquinha, às vezes nos perguntamos por que é precisamente nas tragédias que revelamos o que há de melhor em nós mesmos. Como está acontecendo nesta nova desgraça do Brasil onde está sendo exemplar a ajuda aos necessitados por parte de tantos voluntários que não se perguntam se são bolsonaristas ou lulistas. Como escreveu Preto Zezé em sua coluna O Globo : “Não precisamos de heróis, salvadores da pátria. “Precisamos de líderes e de paz para nos sentirmos próximos uns dos outros.”

Juan Arias, o autor deste artigo, é comentarista de assuntos internacionais do EL PAÍS. Publicado originalmente em 14.05.24

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Temos muito mais riqueza, mas somos seres piores, diz Pepe Mujica à Folha

Poucos dias após anunciar descoberta de tumor no esôfago, ex-presidente do Uruguai e referência da esquerda fala sobre como entende a vida e a morte e analisa a América Latina

José 'Pepe' Mujica concede entrevista à Folha em sua chácara na região de Rincón del Cerro, em Montevidéu Nicolás Garrido Monestier/Folhapress

É um típico dia de outono em Montevidéu. As rajadas de vento, o céu nublado e as intercaladas pancadas de chuva mudam o humor de José "Pepe" Mujica, 88, que não pode sair para trabalhar a terra de sua chácara em Rincón del Cerro, área rural da capital.

Há duas semanas ele anunciou a descoberta de um tumor no esôfago. Na data em que recebeu a Folha, quarta-feira (8), estava no segundo dia de radioterapia. Ainda não sentia os efeitos colaterais que, disseram os médicos, devem aparecer por volta do 15º ou 20º dia de tratamento. Era preciso se proteger das condições climáticas devido à imunidade.

Seus seguranças pareciam mais atentos a isso do que o próprio Mujica ou sua esposa, a ex-vice-presidente e ex-senadora Lucía Topolansky, 79. "Não se aproximem. Não quero ficar doente e nem que o adoeçam", diz um deles quando a reportagem chega à propriedade.

Às vésperas de seu aniversário, no próximo dia 20, quando completará 89 anos —ou 90, pois diz que há um possível erro em seu registro de nascimento—, Mujica está sentado e lê um jornal com o livro "Ética para Amador", do espanhol Fernando Savater, aberto ao seu lado. Está à vontade, usa pantufas e calça de moletom.

Nas paredes repletas de pequenos objetos da simples cozinha de teto baixo, várias conservas de tomate e fotos de Manuela, cadela que o acompanhou por mais de 20 anos antes de morrer, em 2018.

Na minúscula sala adjacente, ao lado da varanda com caixotes cheios de espigas de milho, há uma porção de livros amontoados. "Venha, isso aqui você nunca mais terá a chance de ver", diz ele, retirando de uma maleta uma réplica do diário de Che Guevara com suas últimas anotações em letra miúda numa agenda de um vermelho desbotado.

No varal ao lado de fora, as roupas seguiam expostas à garoa.

Nove anos após deixar a Presidência do Uruguai e quase quatro anos após renunciar ao Senado, Pepe Mujica fala sobre sua interpretação da vida e da morte, os desafios da esquerda na América Latina, o papel de Lula (PT), a ditadura da Venezuela e a saúde mental dos jovens.

Ainda dirige o trator, Pepe?

"Sim, ele dirige" [responde Lucía Topolansky antes do marido].

Como está sua rotina?

Agora tenho que me tratar. A única opção que tenho é um tratamento com radioterapia, que tenho que cumprir todos os dias durante umas 30 sessões consecutivas. Estou na segunda. Amanhã, a terceira.

Como foram as duas primeiras?

Não sinto nada. Me dizem que quando chegar a 15 ou 20 [dias] posso sentir algo. Mas, por enquanto, nada. Dentro da desgraça tive relativamente sorte, porque a análise celular mostra que há duas variáveis de tecido, e a que me afetou é a mais sensível à radiação. Não tenho metástase. [O tumor] está localizado em um lugar que não atravessou a parede do esôfago, e, bem, segundo eles é controlável e até erradicável. Veremos.

Dos problemas que tive na juventude, perdi um pulmão. Isso criou mais espaço para o coração, que está inclinado para a esquerda, o que favorece o tratamento.

É verdade ou é uma metáfora muito boa?

Não, é verdade, é incrível. Está um pouco desviado, os médicos riam.

O sr. tem compartilhado muitas mensagens sobre a vida, especialmente para os mais jovens.

É que isso me desespera. Eles se suicidam com frequência. Hoje chegou a mim o boato de um de 18 anos que queria se suicidar. Me dá vontade de matá-lo a pauladas. Porque o único milagre que existe é ter nascido.

Havia 40 milhões de probabilidades de nascer outro e foi você. Esse é o único milagre que existe lá em cima. Provavelmente viemos do nada e vamos para o nada. É preciso se comprometer com a vida. De repente eu pertenço a outra época.

Senadora, posso? Como a sra. tem lidado com a saúde de Mujica?

"Acredito que nesse tipo de doenças é preciso lutar. Já dizem os médicos que o doente que se desmoraliza é o que vai embora rapidamente. O doente que luta é o que perdura em qualquer situação. Então é preciso lutar. É isso que se deve fazer. E não ficar pensando, porque senão é horrível."

Como referência política da região, como avalia a situação da esquerda na América Latina?

Em geral, há uma visão muito de curto prazo no uso desses termos. Esquerda e direita são termos cunhados com a história da Revolução Francesa, simplesmente por onde se sentavam no banco. Mas eu tenho uma interpretação muito mais antropológica.

São tendências que existiram sempre ao longo da história humana. Sempre houve uma face renovadora e progressista e uma face conservadora, como as faces de uma moeda. Talvez o gênero humano em seu devir precise das duas coisas. E ambas têm problemas: a progressista tende a confundir seus desejos com a realidade, e a isso chamamos de infantilismo. E a face conservadora tende a cair no reacionário (que não é o mesmo que conservador).

Agora, contemporaneamente, a esquerda está em uma crise de ideias porque esteve muito nutrida de 1950 a 1960 por um modelo racional que inventou um homem ideológico. E não teve em conta que os seres humanos são animais emocionais. E hoje está precisando recriar um novo arsenal de ideias que se encaixem mais com uma visão mais biológica do que é o homem. Agora estamos com outro desafio.

Nós somos animais sociais, não podemos viver sozinhos. E esse caráter gregário foi o que nos fez progredir. Aprendemos a caçar em grupo, nos movemos em grupo. A tal ponto que, em toda aldeia primitiva, depois da pena de morte, a pena mais grave era ser expulso da comunidade. Somos humanamente dependentes dos outros, e então andamos com essa contradição: precisamos da sociedade, mas somos indivíduos e temos essa cota de egoísmo. Este é o papel da política: tem que lutar para sobreviver na sociedade.

Como as gerações que vêm resolverão isso? Não sei.

Quais ideias fazem parte dessa nova visão da esquerda?

Acredito que agora estejamos em um tempo meio de impasse. Com um progresso técnico fantástico e com muita gente infeliz. Há muitos com problemas com angústia, com a necessidade de ir a um psicólogo. Qual é o sentido do progresso econômico se não sentimos felicidade em viver? Este é o desafio que temos pela frente. Estou prestes a completar 90 anos...

Oitenta e nove, não?

Oitenta e nove, mas na verdade são 90, porque 1 ano não foi registrado.

Meu pai morreu quando eu tinha 8 anos. E eu me lembro de ter ido três vezes para assistir aos dois maiores times do Uruguai, Nacional e Peñarol. As torcidas estavam misturadas na mesma arquibancada, e cada um gritava seu gol e não acontecia nada. Agora nós nos matamos. E estou falando de 80 e poucos anos atrás.

Não progredimos moralmente em nada. Pelo contrário, regredimos. Mas temos muito mais carros, telefones, conforto. Mas moralmente? Como sociedade? Estamos piores do que antes.

E temo que isso esteja acontecendo em todo o mundo. Muito mais riqueza, mas nós somos piores. E também somos mais débeis. Somos infinitamente mais débeis do que os homens primitivos.

Sei que já te perguntaram isso, mas há algum arrependimento por não ter tido filhos?

Eu me dediquei a consertar o mundo e não pude ter filhos porque estava ocupado. Mas digo como aquele poeta Atahualpa Yupanqui [argentino; 1908-1992]: Tenho tantos irmãos que nem posso contá-los.

Sobre o Brasil, como o sr. avalia o governo Lula?

Acredito que ele tenha ganhado as eleições porque era o Lula. Senão, Bolsonaro teria continuado. Lula teve que fazer concessões e uma aliança para o centro, muito forte, para tentar unir tudo o que era um espaço mais ou menos democrático para frear a extrema direita. Naturalmente isso vai ter efeitos. Não acredito que Lula possa fazer um governo muito radical à esquerda. Este será um governo moderado. E ele sempre foi muito moderado. Ele propunha uma revolução...

Propunha uma revolução?

Sim, que as pessoas pudessem comer três vezes ao dia. Para quem não tem comida, isso é uma revolução. Para quem sonha com a revolução, é pouco.

O Brasil assumiu responsabilidades no mundo. É evidente que no cenário internacional é respeitado. E não se surpreenda se, no segundo semestre, quando houver uma reunião em Nova York convocada pelo secretário-geral da ONU para reformá-la, uma dessas mudanças for a proposta de que o Brasil entre no Conselho de Segurança como membro permanente.

Como o sr. vê a dificuldade da esquerda no Brasil de renovar seus quadros?

Tenho a mesma preocupação. E depois de Lula? Este é um desafio que o Brasil e toda a nossa América têm, dada a importância do Brasil.

Recentemente, em mais um aniversário do golpe militar no Brasil, Lula não permitiu que os ministros fizessem atos para relembrar este episódio. Como interpreta a relação da esquerda na América Latina com os militares?

A justiça historicamente é conhecer a verdade. Mais do que prender pessoas, é conhecer nossa verdadeira história. Há uma época sepultada que não será eliminada por decreto, por vontade dos governos, estará sempre latente. Eu pensava há alguns anos: até que todos os atores [da ditadura] morram, isso continuará. E então estive na Espanha, onde todos os atores morreram e estão procurando ossos [das vítimas]. Isso significa que as coisas permanecem. Portanto, é melhor tentar esclarecer a verdade. Que a verdade resplandeça. Também não posso comprometer o hoje das pessoas para salvar uma conta do passado. Mas não se pode encobrir a vergonha.

É uma mensagem para o governo Lula?

Acontece que eu entendo [a situação]. Lula tem o acampamento de Bolsonaro ali, que está propondo exatamente o oposto. Tem um desafio na história recente do Brasil, houve até uma tentativa de golpe. Eu entendo a ambivalência.

Vamos falar de Argentina. Qual sua opinião sobre o governo Milei?

Uma loucura. É consequência da desesperança que pode gerar em uma sociedade o fenômeno da hiperinflação. Foi o que aconteceu com a República de Weimar na década de 1930. O povo mais culto, mais desenvolvido da Europa, acabou votando em Hitler. Uma loucura total. Os povos podem errar, porque a hiperinflação desespera as pessoas. E então eles são capazes de apostar em qualquer coisa que seja contra.

A hiperinflação de alguma forma é resultado dos governos Kirchner.

Sim. E eles não assumem a responsabilidade. O pior é que não há uma visão autocrítica porque isso não aconteceu por ordem dos deuses, aconteceu por erros humanos.

Bolsonaro também foi uma consequência de erros dos governos de esquerda?

É provável que sim. Há uma tendência contemporânea, consequência da macrocultura consumista na qual estamos imersos: sempre temos uma necessidade de ter mais, de comprar mais. Esse é o triunfo cultural do capitalismo que controla nosso capital subliminar. E então as pessoas se sentem frustradas e tendem a votar contra o que está aí sem ter clareza do que estão votando a favor. Votam em qualquer coisa.

Tenho que mencionar o que aconteceu no México, de como os antigos partidos mexicanos foram esquecidos, e López Obrador ganhou com 53% dos votos [em 2018]. E o México se tornou de esquerda? Não seja tolo. Não. As pessoas estavam pensando que fosse um perigo latente. Há uma grande instabilidade política no mundo ocidental, isso é evidente.

Em algumas semanas teremos eleições no México. É provável que Claudia Sheinbaum, a candidata de López Obrador, vença. O que achou desses seis anos de governo dele?

Ele trouxe algo. Esse espaço que ele tem todas as manhãs falando [as mañaneras] marcou a agenda de todo o sistema. Ele é um militante ferrenho.

Mas é um democrata?

Para o México, ele é um democrata. O problema do México é o que dizem: tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.

Mas nas mañaneras ele ataca a imprensa quase todos os dias. Além disso, está muito próximo dos militares.

O México é complicado. Tem um problema de tráfico de drogas brutal. Mas ele vai sair e é muito provável que o partido dele vença. Depois não sei o que vai acontecer.

Recentemente, o presidente uruguaio, Lacalle Pou, e Milei estiveram juntos em um evento de economia. Lacalle disse que, para a população ter dignidade, é necessário um Estado. Isso vai contra o discurso de Milei. Qual é o papel do Estado?

Eu não sei qual é o papel ideal, mas posso dizer que o Estado no Uruguai tem historicamente um peso. Nós tivemos primeiro o Estado e depois a nacionalidade. Tivemos governos peculiares para a história da América Latina, muitos deles sociais-democratas. Governos que concederam o divórcio à mulher por sua própria vontade, que reconheceram as 8 horas de trabalho nos anos 1910. Tivemos um presidente que escrevia "Deus" com minúscula, Don José Batlle y Ordóñez, que separou a igreja do Estado, tornando o país laico. Mudou todos os nomes: aqui não se fala Semana Santa, é semana de turismo. O dia da Virgem é o dia das praias.

Lacalle não pode escapar da importância do Estado. Ele vai para a Argentina e tem um pensamento em algumas coisas alinhado com Milei, mas não pode cair na barbaridade de Milei. Jamais. A história do Uruguai não permitiria isso.

Houve uma certa surpresa quando o sr. fez críticas ao processo eleitoral na Venezuela por causa do impedimento de candidaturas opositoras. Acha que haverá um pleito justo?

A Venezuela tem a tragédia do excesso de recursos naturais. É um país deformado pelo petróleo. Os Estados Unidos sempre precisam de petróleo porque é mais barato para o transporte. Sempre se intrometeram na Venezuela. E essa luta tem sido venenosa.

Como a democracia vai sobreviver com um governo cercado, agredido por todos os lados? Sabe por que Maduro perdura? Porque não há democracia. Em uma praça sitiada, qualquer um que discorde é um traidor. E a democracia precisa de liberdade. O regime de Maduro é consequência do cerco que veio de fora. É um desastre.

Quando se diz que é uma consequência de um processo de bloqueio, parece que está se tirando a culpa do regime.

É verdade, mas eu sou muito velho. E tenho experiência. Há um costume, do qual discordo, de que o bloqueio pune os governos. Não, pune os povos. É um crime contra os povos, porque os governos não sofrem nada, continuam comendo e bebendo. Maduro está gordinho.

Claro que Maduro tem responsabilidade. [Hugo] Chávez é muito diferente de Maduro. Ele perdeu as eleições [Chávez foi derrotado em um referendo em 2007 no qual propunha, entre outros pontos, a reeleição ilimitada; ele a obteve dois anos depois, em nova consulta popular] e aceitou. É diferente da Revolução Cubana, que assumiu uma decisão da qual se pode discordar, mas foi definitiva: partido único, ditadura do proletariado. Agora, no caso da Nicarágua, no caso da Venezuela, eles brincam com a democracia, dizem que haverá eleições, depois colocam as pessoas na cadeia. Ou é uma coisa ou outra. É dizer a verdade e assumir.

A democracia tem defeitos, não é perfeita. Como Churchill disse: é a pior forma de governo, exceto por todas as outras que tentaram. Mas de qualquer forma, para conviver, é muito superior. Eu também não concordo com a ideia de que a democracia representativa que temos é a última história da humanidade. Não, não posso pensar tão mal da humanidade. Acredito que a humanidade vá buscar algo melhor. Porque, se nos tirarem a esperança, para que vivemos?

Queria voltar um pouco ao nível pessoal. O sr. gosta de ser uma referência para os líderes, militantes, jovens de esquerda?

Na sociedade moderna, há uma crise de avô. O avô é uma figura antropológica que desapareceu porque a família diminuiu. Na história humana, os avós desempenharam um papel. Na história dos povos antigos, a instituição mais antiga do ponto de vista político é o conselho dos anciãos. Não é o governo. É aquele que aconselha e tem duas missões: dizer o que deve ser feito e educar as crianças.

No mundo antigo, a única maneira de aprender algo era vivendo. Então os mais velhos transmitiam a herança do conhecimento. Tive a sorte de ter vivido muito e sou velho, então a única ferramenta que tenho é a palavra para dizer algo, ajudar a pensar.

Como o sr. pensa o tema da morte?

A morte é talvez o que dá valor à vida. Tudo o que é vivo está condenado a morrer. Qual é a diferença que a vida tem das pedras? A vida pode sentir dor, alegria, tristeza, desejo. Parece que temos a função de emprestar uma inteligência ao mundo da vida. Às vezes acreditamos ser donos. Não, somos parte. Mas queremos continuar vivendo. Nossa maneira de lutar contra a morte é uma luta impossível que sempre perderemos, mas lutamos com amor.

Não podemos escapar, porque somos um programa biológico para isso. Aí está a nossa grandeza e nossa tragédia. E fazemos perguntas eternas que não têm resposta. Se a vida tem um sentido. Se há um além. Mas certamente desempenhamos um papel na natureza. Pelo menos, estragamos tudo. Complicamos a vida dos outros bichos.

RAIO-X | JOSÉ "PEPE" MUJICA, 88

Presidiu o Uruguai de 2010 a 2015, após ser ministro da Agricultura e da Pecuária e deputado. Em 2020, durante a pandemia, renunciou a sua vaga no Senado. Ex-guerrilheiro e líder tupamaro, ficou preso de 1972 a 1985. Um dos principais nomes da Frente Ampla, lidera o MPP (Movimento de Participação Popular), um dos partidos da coalizão.

Mayara Paixão, Jornalista, de Montevidéu (Uruguai)  para a Folha de S.Paulo. Publicado originalmente na edição impressa, em 12.05.24, às 23h15

Para 55% da população, Lula não merece ser reeleito em 2026

A primeira edição da pesquisa Genial/Quaest sobre a eleição presidencial de 2026 mostra que, se a eleição fosse hoje, 55% da população não daria nova chance ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A pesquisa mostra que 47% dos eleitores poderiam votar para reeleger Lula, mas 49% rejeitam o atual chefe do Executivo - (crédito: Rafa Neddermeyer/Agencia Brasil)

E, assim como na eleição de 2022, Lula tem maior apoio no Nordeste, onde o percentual dos entrevistados que dariam nova chance ao petista é de 60%. Entre os mais pobres, o atual presidente mantém a popularidade, pois entre os que ganham até dois salários mínimos 54% votariam no petista contra 43% que responderam o contrário. E, entre os que estudaram até o Ensino Fundamental, 54% disseram que votariam em Lula.

No grupo das mulheres, que tradicionalmente apoia o petista, a maioria — 52% — são contra a reeleição do presidente, opinião compartilhada por 23% dos que lhe deram voto no segundo turno de 2022, segundo a pesquisa da Quaest em parceria com a Genial Investimentos.

"Embora ainda esteja distante, a eleição de 2026 já começa a se desenhar. Lula terá que ganhar a confiança da maioria para merecer mais uma chance. Os nomes da oposição trabalham para ganhar conhecimento", destacou o cientista político Felipe Nunes, diretor e fundador da Quaest.

Conforme os dados da pesquisa, entre os candidatos elegíveis da oposição, já que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi confirmado inelegível, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) é apontada como o nome mais indicado para enfrentar Lula por 28% dos eleitores entrevistados. Contudo, ela tem rejeição bastante elevada do eleitorado, de 50%.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem 24% da preferência e 30% de rejeição. Em um eventual segundo turno entre Lula e Tarcisio, o petista venceria o governador paulista em 2026 com placar de 46% contra 40%, apesar de perder em três grupos regionais. Lula venceria no Nordeste com 66% contra 25% do candidato bolsonarista. Na região Sudeste, Tarcísio Freitas venceria por 45% a 39%; e, na região Sul, o candidato bolsonarista teria uma vantagem de 46% a 41%. E, no grupo regional Centro-Oeste/Norte, o placar favorável a Tarcísio seria de 43% a 40%.

Outros três governadores que disputam a herança eleitoral de Bolsonaro aparecem bem atrás de Tarcísio de Freitas. Ratinho Júnior (PSD), do Paraná, tem 10% das intenções de votos dos entrevistados; Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, tem 7%; e Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás, 5%. Pouco mais de um quarto do eleitorado (26%) não sabem ou não responderam.

De acordo com a Quaest, outros nomes do PT têm potencial baixo de votos. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem 32% da preferência dos eleitores. E a presidente da legenda, a deputada Gleisi Hoffmann (PR), apenas 10% da intenção de voto.

A pesquisa foi realizada entre os dias 2 e 6 de maio, entrevistando presencialmente 2.045 eleitores em todos os estados. A margem de erro é de 2,2 pontos percentuais.

Publicado originalmente no Correio Brasiliense, em 13.05.24

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Um governo que atira a esmo

Lula já cumpriu um terço do mandato, mas seu governo ainda prepara ‘projetos’ para a segurança pública. Enquanto isso, renova a ineficaz operação militar em portos e aeroportos

Passado um terço do mandato, o governo do presidente Lula da Silva coleciona uma constrangedora soma de erros e fragilidades na segurança pública. Numa área especialmente sensível para a população e historicamente desprezada pelo PT, até se abriu uma boa janela de oportunidade com a transferência do então ministro da Justiça e Segurança Pública – o animador de auditório Flávio Dino – para uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, e sua substituição pelo discreto Ricardo Lewandowski. A mudança nesse caso teria sido uma chance notável para a pasta, trocando o histrionismo populista de um para a desejada qualificação técnica e o comedimento de outro. O estilo do titular pode ter mudado, mas o governo continua errático no enfrentamento daquele que é hoje, segundo pesquisas, o principal problema nacional na opinião da população.

Tome-se o exemplo da prorrogação da operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Anunciada há seis meses com a convicção entre especialistas de que seria uma medida ineficaz, a GLO acaba de ser renovada por 30 dias – e depois se sabe lá até quando, conforme as conveniências pirotécnicas da gestão lulopetista. No papel, o objetivo da operação é promover uma “asfixia” de organizações criminosas que usam os principais terminais aeroportuários, ou seja, os portos de Santos, do Rio de Janeiro e de Itaguaí e os aeroportos do Galeão e de Guarulhos. Na prática, confirmaram-se os prognósticos mais desabonadores: alto custo financeiro, uso indevido das Forças Armadas, volume e qualidade de apreensões questionáveis e uma descabida teatralidade para a tal “asfixia”, enquanto o crime se mostra muito mais preparado para driblar as autoridades do que faz crer a fiscalização com local e hora marcados.

Como este jornal já afirmou, a GLO de Lula é uma demonstração das razões pelas quais a situação de segurança pública está do jeito que está: tudo parece resumir-se a uma grande farsa. Seria pedir, por decreto, para dar errado. Como, afinal, o crime organizado pode ser enfrentado com uma força-tarefa em três portos e dois aeroportos, e que por sua natureza precisa ter prazo temporário? Ademais, trata-se não só de uma medida inútil, mas também de um equívoco institucional e funcional por envolver as Forças Armadas na segurança pública. Militares não têm essa atribuição nem foram treinados para isso, lição aprendida na intervenção federal do Rio de Janeiro, em 2018. Mas o espalhafato na segurança pública costuma ser um atalho providencial para lideranças movidas por mero cálculo político-eleitoral. Rende boas imagens, produz barulho e gera a falsa sensação de que o governo está trabalhando contra o crime.

Nesta semana, o secretário Nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, disse ao Estadão que o combate ao crime organizado deve ser prioridade número um. A partir de sua experiência como procurador-geral de Justiça de São Paulo, Sarrubbo demonstrou apostar na estratégia de asfixia financeira das facções, no reforço das equipes de investigação de crimes e no aumento dos efetivos das polícias estaduais. Para ele, isso exige inteligência, melhora nos índices de esclarecimento de crimes e baixa letalidade policial. Difícil discordar. É um bom cardápio de ideias, especialmente num governo que costuma acreditar que a prevenção e o combate à criminalidade são sinônimos de truculência a serviço das elites nacionais. É também um freio de contenção em quem acredita em operações espetaculosas, violentas e ostensivas como forma de garantir resultados na segurança.

Ocorre que a entrevista do secretário oferece uma inquietante sensação de recomeço. Sarrubbo anunciou que está com “vários projetos saindo do forno”, que serão apresentados nas próximas semanas. Ora, e que fim levou o programa de Enfrentamento às Organizações Criminosas, anunciado com pompa por Flávio Dino? Era, decerto, uma peça genérica de intenções, o que fica evidente quando Sarrubbo nem sequer o menciona. Vê-se que o governo perdeu tempo em demasia, ora desfazendo os erros do governo anterior, ora ocupado com sua performance cênica. Ainda está para mostrar do que se ocupará daqui para a frente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo,  em 09.05.24

Falta preparo para lidar com desastres no país

Enfrentamento eficiente de calamidades como a que atinge o RS precisa entrar para rotina do poder público e da sociedade

Ruas inundadas em São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre (RS) - Pedro Ladeira/Folhapress

Dos debates despertados pela catástrofe das chuvas no Rio Grande do Sul, o sobre como liberar verba pública emergencial preocupa menos. Há longa tradição nos regimes orçamentários governamentais para facilitar, muitas vezes sem o devido controle, despesas urgentes e inesperadas.

O que deveria mobilizar as atenções é a falta de preparo e organização do poder público e da sociedade para salvar vidas e mitigar os estragos materiais nesses episódios frequentes no Brasil.

Não seria preciso mudança climática nem variações cíclicas na temperatura das águas do oceano Pacífico para declarar o Sul do país como uma área de risco de inundações e deslizamentos. A história natural do planeta escavou ali uma gigantesca calha de escoamento hídrico exposta a tempestades.

Sobretudo Rio Grande do Sul e Santa Catarina deveriam ter o mesmo nível de organização para lidar com dilúvios que Japão, Chile e Califórnia desenvolveram em relação aos riscos de sismos e maremotos.

Regras de ocupação do solo e métodos construtivos, sistemas de alerta e evacuação, simulações periódicas das reações a desastres, protocolos que centralizam, disponibilizam e disparam informações, núcleos de gestão que estabelecem prioridades e coordenam as diversas burocracias envolvidas.

Pouco disso transparece na resposta das autoridades municipais, estaduais e federais à elevação das águas no Rio Grande do Sul, o que não é problema apenas gaúcho. O improviso, o excesso de confiança no voluntarismo e a falta de informações tempestivas caracterizam a reação a desastres no país.

O objetivo nas primeiras horas após uma catástrofe é reduzir danos, evitar mortes e internações, abrigar desalojados e preservar a infraestrutura de abastecimento de bens e serviços essenciais.

Para cumprir bem essa tarefa, é preciso organização. Os recursos físicos e os humanos devem chegar no volume adequado aos locais mais necessitados no menor tempo possível. A informação tem de ser precisa e circular depressa.

Trata-se de uma operação análoga à de uma guerra, e quem vai despreparado para uma guerra no mínimo terá mais perdas do que teria caso houvesse se precavido.

É preciso melhorar rapidamente a efetividade das ações no Rio Grande do Sul, pois é provável que outros temporais e ondas de frio se abatam sobre regiões gaúchas.

A lição que fica, para o estado e o país, é que não é mais tolerável que autoridades e sociedade esperem os desastres acontecerem para tomar medidas óbvias de planejamento e cautela para situações emergenciais. Pois é certo como o nascer do Sol que elas voltarão a ocorrer em breve.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 09.05.24 (editoriais@grupofolha.com.br)

Ministério Público Eleitoral no TSE contra cassação de Moro

Vice-procurador-geral eleitoral afirma que não existe comprovação de desvio ou omissão de recursos por senador

O senador Sergio Moro (União Brasil-PR) - Pedro Ladeira - 1º.abr.24/Folhapress

A Procuradoria-Geral Eleitoral se manifestou ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) pela rejeição de ações do PT e PL que pedem a cassação do senador Sergio Moro (União Brasil-PR) sob alegação de abuso de poder econômico, uso indevido dos meios de comunicação e caixa dois nas eleições de 2022.

Moro é ex-juiz e ficou conhecido por ser o responsável pela vara federal na qual tramitavam os processos da Operação Lava Jato. Ele também é ex-ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro (PL).

O documento do Ministério Público foi juntado nesta terça-feira (7) à ação, que é relatada pelo ministro Floriano de Azevedo Marques. Floriano é próximo ao presidente da corte, Alexandre de Moraes.

Moro foi absolvido em abril pelo TRE-PR (Tribunal Regional Eleitoral do Paraná) por 5 votos a 2. A maioria entendeu que não houve abuso de poder econômico durante a pré-campanha eleitoral do ex-juiz da Lava Jato, em 2021 e 2022.

Além disso, todos os sete juízes rejeitaram a acusação de uso indevido dos meios de comunicação social e também não reconheceram indícios de caixa dois e triangulação de recursos.

As acusações contra Moro tratam, principalmente, de temas relacionados aos gastos no período que antecedeu a campanha oficial ao Senado.

PT e PL argumentaram que os gastos do ex-juiz na pré-campanha, justamente porque ele almejava a Presidência da República, foram desproporcionais, gerando desequilíbrio entre os concorrentes.

As duas siglas começam a somar os gastos de Moro desde novembro de 2021, quando Moro se filiou ao Podemos, de olho na cadeira de presidente.

Ao TSE o Ministério Público disse que "não há indicativos seguros de que houve desvio ou omissão de recursos e tampouco intencional simulação de lançamento de candidatura ao cargo de presidente com pretensão de disputa senatorial no Paraná".

"Também inexiste comprovação de excesso ao teto de gastos na pré-campanha (fase sequer regulamentada), inclusive se adotado o precedente de 10% do teto de campanha", afirma a manifestação, assinada pelo vice-procurador-geral eleitoral, Alexandre Espinosa.

Espinosa nega semelhanças em relação ao caso da ex-senadora Selma Arruda, de Mato Grosso, que foi juíza e teve atuação comparada a Moro.

O TSE cassou por 6 a 1 o mandato de Arruda ao entender que houve abuso de poder econômico e captação ilícita de recursos ligados à campanha eleitoral de 2018.

A Justiça Eleitoral concluiu que ela e seu primeiro suplente omitiram quantias expressivas usadas para pagar despesas de campanha no período pré-eleitoral.

O Ministério Público Eleitoral afirma que "não há similitude fática entre o caso analisado e o precedente 'Selma Arruda', fundamentalmente porque no julgamento já realizado pelo TSE a imputação em desfavor da então senadora se deu por irregularidades no autofinanciamento da sua campanha eleitoral (por meio de um mútuo realizado com seu suplente) e pela constatação de que a pré-candidata realizou antecipadamente gastos tipicamente eleitorais –o que não é a hipótese dos autos".

Ainda não há data marcada para o julgamento de Moro no TSE.

Moro se filiou ao Podemos no final de 2021 de olho na cadeira do Planalto. Em abril de 2022, migrou para a União Brasil, mas não conseguiu viabilizar uma pré-candidatura a presidente.

Optou por se lançar a senador por São Paulo, mas a Justiça Eleitoral vetou a troca de domicílio eleitoral. Em função das mudanças de planos, Moro se volta ao eleitorado paranaense somente a partir de 8 de junho de 2022. A campanha oficial começou em agosto, seguindo até outubro.

PT e PL entraram com propostas de Aije (Ação de Investigação Judicial Eleitoral) contra Moro no final de 2022, mas as duas representações acabaram tramitando em conjunto no TRE em função das semelhanças das acusações.

O julgamento do caso no TRE durou quatro sessões e, em 9 de abril, terminou com um placar de 5 a 2 a favor de Moro. Em 22 de abril, os partidos recorreram ao TSE contra a decisão da corte regional.

José Marques,Jornalista, de Brasília - DF para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente  na edição impressa em 08.05.24

‘Tragédia no RS é responsabilidade também de senadores e deputados que desmontam legislação ambiental’, diz secretário do Observatório do Clima

“A gente pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder do Observatório do Clima.

253 municípios foram afetados por chuvas no Sul  (EPA - EFE/REX/SHUTTERSTOCK)

As fortes chuvas que atingem o Rio Grande do Sul, as mais intensas registradas em território gaúcho em décadas, já deixaram dezenas de mortos, causaram estragos em 300 municípios, romperam uma barragem e desalojaram milhares de pessoas. Há ainda mais mais de uma centena de pessoas desaparecidas.

Os governos federal e estadual criaram uma força-tarefa e tentam evitar mais mortes promovendo evacuações e retirando pessoas de áreas de risco.

Mas a responsabilidade não é apenas dos governos estaduais e federal, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), mas também do Congresso — pois as tragédias são resultado da falta de adaptação e de combate às mudanças climáticas, duas áreas onde os Executivos precisam fazer mais e onde o Legislativo têm promovido ativamente retrocessos, na opinião dele.

"A maioria conservadora tem aprovado diversos projetos considerados nocivos para o meio ambiente. Nunca tivemos um Congresso tão dedicado a desmontar", afirma o especialista em políticas públicas à frente do Observatório do Clima, rede de entidades que monitora a questão climática no Brasil.

Além disso, segundo Astrini, ações que se limitam às respostas de emergência em situações de crise não são suficientes. Eventos extremos como esse — cada vez mais comuns por causa das mudanças climáticas — não podem mais ser tratados como “imprevistos”.

Embora nem sempre seja possível prever com precisão a intensidade de um evento extremo, já sabemos que eles se tornarão mais frequentes — e quais as medidas que precisam ser tomadas para nos adaptarmos a eles, afirma o especialista.

Modelos climáticos preveem há décadas um aumento de chuvas extremas no sul da América do Sul, incluindo toda a bacia do Prata (formada pelos rios Paraná e Uruguai), lembra Astrini.

“O maior problema que a gente enfrenta neste momento não é a previsão, é a aceitação”, afirma Astrini. “A gente precisa aceitar que, infelizmente, esse é o novo normal. Mas não basta aceitar pacificamente, é preciso aceitar e tomar atitudes.”

“Todo ano o governo do Rio Grande do Sul fica extremamente espantado que as chuvas são intensas. O governo do Rio de Janeiro fica super surpreso quando acontece em Petrópolis. É uma surpresa em São Sebastião (SP), no norte de Minas Gerais, em Recife (PE), no sul da Bahia. Só que acontece que já faz nove anos consecutivos que as médias de temperatura do planeta são as mais quentes já registradas. Não tem mais surpresa. A gente precisa se preparar para isso”, afirma Astrini.

Dinheiro investido em prevenção evita tragédias, diz Astrini (Diego Vara / Reuters)

Mitigação, adaptação e redução de danos

Astrini explica que existem três tipos de resposta possíveis diante da crise climática: a mitigação das causas, a adaptação em preparação para as consequências e a redução de danos diante das tragédias.

“Mitigação é quando você ataca o problema: é quando você interrompe o desmatamento, quando você tira uma termoelétrica de operação, quando substitui uma fonte poluente por uma fonte renovável”, afirma o especialista.

“A adaptação é quando o problema vai acontecer e você começa a adaptar principalmente as populações mais vulneráveis ao problema. Por exemplo, quando tira as populações da área de risco, quando dá mais assistência para um pequeno agricultor lidar com uma seca.”

As ações também são necessárias contra problemas que não necessariamente são causados pelo aquecimento global, embora agravados por ele, explica Astrini.

“Adaptação é também quando você reforça a rede de saúde, porque vão aumentar os casos de dengue, porque o ciclo de reprodução do mosquito vai ficar mais longo por causa de chuvas desproporcionais e do calor prolongado.”

Já lidar com as perdas e reduzir os danos é promover as respostas emergenciais às tragédias.

“Perdas e danos é o que se faz normalmente: desbarrancou, você vai procurar sobreviventes, vai construir casas”, diz Astrini. O problema, na visão do especialista, é que as ações tomadas por autoridades federais, estaduais e municípais tendem a se concentrar apenas nesse terceiro estágio de resposta.

“O pessoal só age quando já está no nível da desgraça”, diz Astrini.

“O dinheiro investido na primeira camada vale muito mais, porque ele evita a adaptação e evita o desastre.”

Ações que estão sendo tomadas tanto pelo governo federal quanto pelo governo estadual e pelos municípios no caso das chuvas no Rio Grande do Sul — alertas da Defesa Civil, evacuação de pessoas de áreas de emergência, restabelecimento de serviços etc — se encaixam no terceiro tipo.

Após a região ser atingida por um ciclone em setembro do ano passado, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional repassou R$ 82 milhões para o governo do Estado e outros R$ 243 milhões aos municípios gaúchos para lidar com a crise. Segundo reportagem da CNN Brasil, a maior parte do dinheiro foi usada em ações emergenciais, como compra de mantimentos e desobstrução de estradas.

“A gente pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder do Observatório do Clima.

Embora o aquecimento global seja um problema em escala mundial, ações de mitigação não são responsabilidade apenas de entidades internacionais e governos nacionais. Elas podem — e precisam — ser alvo também dos governos locais, diz Astrini.

“A mitigação é uma agenda de responsabilidade, não de ganho político. Vou pegar um exemplo aqui no Cerrado, que bateu o recorde de desmatamento nesse último período: mais de 60% de aumento de agosto do ano passado para cá. E quem dá as autorizações de desmatamento são os governos estaduais”, diz ele.

“E há vários outros exemplos, como legislações de licenciamento ambiental mais frouxas nos Estados, a responsabilidade com o saneamento básico, com a transição energética.”

O governo do Rio Grande do Sul não respondeu inicialmente ao pedido de informações sobre ações de mitigação e adaptação da BBC News Brasil. O governador Eduardo Leite (PSDB) tem dado atualizações diárias sobre as medidas emergenciais tomadas no Estado, que incluem alertas e remoção das pessoas das áreas de risco.

Após a publicação desta reportagem, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado enviou nota em que "reforça a necessidade de adaptação para garantir a sobrevivência na Terra" e afirma que as ações de mitigação, adaptação e resiliência são parte do programa ProClima2050, lançado em 2023.

O programa, diz a pasta, criou o Gabinete de Crise Climática, "que tem como principal função conectar as secretarias de Estado, instituições e pesquisadores no monitoramento e implementação de ações práticas de resposta à crise do clima".

Segundo a secretaria, entre as medidas em andamento estão "a contratação de serviço de radar meteorológico pela Defesa Civil; melhorias na Sala de Situação, responsável pelo monitoramento das chuvas e dos níveis dos rios; e a implementação do roadmap climático dos municípios, que mapeará as ações relacionadas ao clima em esfera municipal".

Chuvas foram as piores já registradas no Estado (Reuters)

‘Deputados e senadores também são responsáveis’

Astrini diz ainda que é preciso lembrar da responsabilidade do Congresso em relação à situação climática que leva à tragédias como a sofrida pelo RS neste momento.

"Deputados trabalham dia e noite para destruir a legislação ambiental do Brasil com afinco. Neste momento estão querendo acabar com a Lei de Licenciamento Ambiental, querem acabar com a reserva legal na Amazônia, querem acabar com as reservas indígenas”, diz Astrini.

Ele se refere a um um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, permitindo que Estados e Municípios determinem os projetos que precisam ou não fazer uma análise de impacto, entre outras medidas.

Os defensores do PL argumentam que ele “diminuirá a burocracia” e por isso facilitaria o desenvolvimento econômico.

Mas Astrini diz que o projeto não só não resolve o problema da burocracia como pode comprometer metas de desenvolvimento sustentável.

“A gente nunca teve um Congresso tão agressivo nesse esforço para desmontar a legislação ambiental no Brasil”, afirma.

Deputados e senadores contrários a pautas importantes para ambientalistas argumentam que a legislação ambiental atrapalha o desenvolvimento econômico e, em alguns casos, negam dados científicos sobre o aquecimento global ou sobre desmatamento no Brasil.

“Tem dois momentos em que o Congresso ajuda o Brasil na área ambiental: no recesso do meio do ano e no recesso do final”, diz Astrini.

Para Astrini, o governo federal vem falhando na disputa com os deputados e senadores pelas pautas ambientais, embora tenha um bom projeto para a área.

Ele cita, por exemplo, o fato de a bancada governista ter sido liberada para votar em qualquer sentido (em vez de receber a orientação para votar contra) o marco temporal para as terras indígenas.

“A gente nunca teve um Ministério do Meio Ambiente com tanto apoio no governo. É a primeira vez que um presidente fala em desmatamento zero e tolerância zero para desmatadores. Você tem um ministro da Economia que faz conversas sobre o meio ambiente, um Ministério dos Povos Indígenas... Mas mesmo assim as coisas não estão andando como deveriam”, afirma.

Além na tragédia no Sul, há outras notícias negativas na área. O Norte registra número recorde de queimadas de janeiro a maio deste enquanto a greve de servidores dos dois principais órgãos de fiscalização ambiental do país —Ibama e ICMBio— já dura mais de 100 dias.

Para o especialista, não se trata apenas de uma questão de orçamento mais robusto para ministérios da área —que também é importante — mas da capacidade de integrar essa visão em todos os setores.

“Quem causa o problema de emissões do Brasil? São os atores no setor do Ministério da Agricultura. E no Ministério das Minas e Energia. São esses ministérios que têm que ter programas e investimentos para diminuir as emissões de seus setores”, afirma Astrini. “O Ministério do Ambiente pode multar uma área que já foi desmatada, mas para as ações de mitigação você precisa da ação de todos os agentes.”

A BBC procurou o governo federal para falar sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

O governo, que apesar de não ter maioria no Congresso conseguiu aprovar agendas suas como o novo arcabouço fiscal, não tem “comprado a briga” nas pautas ambientais, opina Astrini.

No caso do marco temporal para as terras indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até tentou barrar a aprovação da lei que limita a demarcação, mas seu veto foi derrubado pelo Congresso.

A tese do marco temporal é de que apenas áreas ocupadas por indígenas em outubro de 1988, momento em que a Constituição Federal foi promulgada, poderiam ser demarcadas.

Movimentos indígenas questionam a tese porque havia terras que, naquele momento, não eram ocupadas porque seus habitantes originários haviam sido expulsos por invasores. Já os ruralistas alegam que não estabelecer um marco temporal criava insegurança jurídica.

Além de um direito dos povos originários, a demarcação de terras indígenas é considerada por ambientalistas e pesquisadores uma das principais formas de preservação da mata nativa brasileira — hoje as reservas impedem o desmatamento de diversas áreas cujo entorno foi devastado.

Astrini também critica o fato de pautas ambientais terem entrado no cabo de guerra entre o Supremo e o Legislativo, virando parte de uma disputa de poder mais do que uma discussão sobre políticas públicas.

O Senado e Câmara têm entrado em rota de colisão com o STF em diversos temas, em uma disputa sobre os limites de cada poder.

A questão do marco temporal, inclusive, só teve a sua votação acelerada como resposta da bancada ruralista a uma decisão do STF de 2023.

Na época, a Corte rejeitou a tese do marco, que era baseada em uma situação jurídica ambígua. Logo em seguida o Congresso aprovou uma nova legislação determinando a existência de um marco temporal.

“Em algumas áreas, como essa do marco temporal, o Congresso tem usado a questão para atacar os indígenas e o Supremo.”

Além das decisões recentes tomadas pela maioria conservadora do Congresso e de projetos em tramitação, Astrini critica a postura pública de deputados e senadores em relação a temas ambientais.

“São os homens privilegiados, com espaço, que falam com seus eleitores e formam opinião pública. Eles não cansam de repetir que essa coisa de meio ambiente, de regra ambiental, é uma besteira”, diz Astrini. “Mas aí as consequências chegam e a responsabilidade é de quem?”

Para o secretário-executico do OC, esses parlamentares "incentivam quem quer desrespeitar a leis ambientais e prejudicam quem quer fazer certo”. “Então eles têm enorme responsabilidade por situações como essa (no Rio Grande do Sul) e têm que ser cobrados por isso.”

Letícia Mori, Jornalista, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 07.05.24

quarta-feira, 8 de maio de 2024

“Pomposo” e “arrogante”, disse a atriz pornô que Trump subornou em troca de silêncio, depõe no julgamento criminal contra o ex-presidente

Stormy Daniels descreveu detalhadamente o encontro sexual com o republicano, ocorrido em 2006, embora o pagamento pelo seu silêncio tenha ocorrido uma década depois, no final da campanha eleitoral que levou o conservador à presidência.

Donald Trump cumprimenta jornalistas com o punho erguido no corredor que dá acesso à sala, esta terça-feira em Nova Iorque. (David Dee Delgado (Reuters)

Stormy Daniels, cuja história de um encontro sexual com Donald Trump em 2006 está na origem do primeiro julgamento criminal contra um ex-presidente dos EUA , investigou esta terça-feira, perante um tribunal de Manhattan, detalhes obscenos sobre uma alegada relação extraconjugal que o republicano sempre negou. . O depoimento da atriz pornográfica, que nas vésperas das eleições de 2016 recebeu 130 mil dólares (121 mil euros) de Michael Cohen, advogado pessoal de Trump, em troca do seu silêncio, é o ponto alto da terceira semana de julgamento, depois de um dia, Segunda-feira, marcada pela apresentação de uma dezena de cheques relativos ao pagamento e pela nova multa por desacato aplicada ao arguido .

Sob juramento, Daniels descreveu o relacionamento detalhadamente: como o sexo com Trump a deixou confusa, como se o quarto estivesse girando, enquanto ela se perguntava como havia acabado seminua em um hotel em Lake Tahoe, Nevada, com quem estava então uma estrela de reality show. Trump olhou para frente quando a testemunha entrou na sala, depois sussurrou para seus advogados e desviou a cabeça do depoimento enquanto ela testemunhava. Sem que a defesa tivesse oportunidade de interrogá-la, a sessão foi suspensa para o intervalo para almoço após o depoimento apressado, por vezes tenso, da mulher.

Daniels também contou como Trump sugeriu que ela participasse de seu reality show, O Aprendiz —seu trampolim para dar o salto para a política— , e a impressão que o então magnata lhe causou: um ser “pomposo” e “arrogante”. O encontro teria ocorrido em 2006, mas só 10 anos depois, na reta final da campanha eleitoral que o levou à Casa Branca, é que, diante da ameaça da mulher de contar a história, a máquina da censura - orquestrada desde o início - menos de um ano antes por Trump, Cohen e o editor do tablóide David Pecker para silenciar qualquer informação potencialmente prejudicial contra os interesses eleitorais do Republicano - foi novamente posta em acção. Isto, além de pagar a Stormy Daniels pelo seu silêncio, também silenciou duas outras mulheres.

Daniels afirmou que não foi motivado por dinheiro e por isso não negociou o acordo de pagamento. Finalmente, recebeu 130 mil dólares, cujo registo irregular nas contas da Organização Trump é o verdadeiro cerne do caso. As mensagens de texto entre seu representante na época e o editor Pecker demonstram o contrário, pois ambos entraram em uma negociação semelhante a um leilão para aumentar o valor. Quando o editor do National Enquirer , amigo de Trump, não quis licitar mais, Cohen acabou se encarregando da negociação e do pagamento. A falsificação de registros comerciais para encobrir o reembolso de dinheiro de Trump a Cohen – ele devolveu um total de US$ 420 mil: o valor pago a Daniels, mais impostos e um extra generoso – também é fundamental para o caso, já que foi registrado como “despesas legais ”. Os procuradores consideram que ele violou completamente as leis de financiamento eleitoral, uma vez que o objetivo não era outro senão evitar um escândalo prejudicial aos interesses políticos do republicano .

Depois de ter sido avisado pelo juiz de que será enviado para a prisão se continuar a criticar juízes e testemunhas, Trump, que aproveita as suas entradas e saídas do tribunal criminal de Manhattan para fazer proclamações, dirigiu-se esta terça-feira aos jornalistas a partir do corralito metálico vedado. grades - quase uma metáfora para grades - habilitadas como corredor de entrada da sala, para não responder o que lhe perguntavam e, em vez disso, descrever o julgamento do caso Stormy Daniels , o primeiro dos quatro processos criminais que enfrenta, como “injusto, muito injusto”, como vem fazendo desde que foi acusado. Por menos de três minutos – em outros dias ele prolonga seus discursos por muito mais tempo – ele não respondeu às perguntas dos jornalistas sobre por que ele havia excluído uma mensagem de sua plataforma Truth Social esta manhã.

De manhã cedo, Trump publicou uma mensagem na sua rede social num tom marcadamente irritado, dizendo que tinha acabado de saber da chegada de uma testemunha – Stormy Daniels? – e que os seus advogados “não tiveram tempo” para se prepararem. Em 30 minutos, ele excluiu a postagem, provavelmente porque arriscou que os promotores dissessem que ele violou novamente a ordem de silêncio, que o proíbe de atacar testemunhas e outras pessoas ligadas ao julgamento. O candidato republicano à reeleição foi multado duas vezes, num total de US$ 10 mil, por violar a ordem de silêncio imposta pelo juiz Juan Merchan para impedi-lo de criticar as pessoas envolvidas no processo. Apenas o próprio juiz e o promotor de Manhattan, Alvin Bragg, que investigou o caso, estão expostos às suas injúrias.

Depois de um dia, segunda-feira, concentrado na análise das dezenas de cheques para reembolso do dinheiro adiantado por Cohen a Daniels, Trump, fiel ao seu costume, lançou bolas ao ar em vez de responder às perguntas dos informadores no animado passeio que forma cada momento em que você entra e sai da sala. “O país está em chamas. Há protestos em todo o país. Eu nunca vi nada assim. “Muitas cerimónias de formatura estão a ser canceladas, como sabem, a Columbia está a cancelar muitas delas, e temos um presidente que simplesmente se recusa a falar porque não pode falar”, trovejou o republicano, que já se manifestou a favor da repressão dos protestos. . dos campi em solidariedade com Gaza .

Trump também rejeitou a hipotética falsificação de lançamentos contábeis para encobrir o pagamento irregular à atriz. “Algumas das declarações feitas sobre isso são notícias falsas. Ouvimos dizer que os pagamentos de despesas a advogados são despesas legais. Você paga pagamentos de despesas de advogado. Não colocamos como despesas de construção. A compra de gesso, as despesas elétricas... As despesas legais que pagamos foram registradas como despesas legais. Você não pode dizer mais nada. Acho que você não precisa escrever nada. Mas incorremos em despesas legais”, explicou ele com sua eloquência muito limitada.

Em relação à ordem de silêncio imposta pelo juiz, o réu aproveitou um comentário da rede ultraconservadora Fox: “Então a Fox News… disse que a ordem de silêncio é inconstitucional, o que é claro que é. A ordem de silêncio é inconstitucional. Então, com tudo isso, eles não têm sentido. Todos os juristas que vejo – talvez haja alguém por aí, algum maluco [que pensa o contrário] – mas praticamente todos que vejo disseram que não há absolutamente nenhum caso, é um caso que não deveria ter sido arquivado.”

Trump voltou a acusar o seu rival democrata em Novembro próximo, o presidente Joe Biden, de instigar uma acção judicial contra ele . “Porque sou o número um da turma. Tudo isso vem da Casa Branca e do corrupto Joe Biden; É um ataque ao seu adversário político que não ocorreu neste país. Acontece em países do terceiro mundo, mas não neste país. “É uma pena”, concluiu.

Maria Antonia Sánchez Vallejo,  Jornalista, de Nova York (NY), em 07.05.24 para o EL PAÍS. 

O juiz avisa Trump que pode prendê-lo se continuar a descumprir suas ordens

O ex-presidente cometeu desacato pela décima vez ao questionar em entrevista a imparcialidade do júri no ‘caso Stormy Daniels’

Donald Trump aguardando o início da sua sessão de julgamento em Nova Iorque. (Júlia Nikhinson - Reuters)

Silenciar Donald Trump não é fácil e menos ainda com multas de mil dólares. O ex-presidente dos Estados Unidos tem uma fortuna de vários bilhões de dólares, por isso as sanções financeiras por desacato o afetam pouco. Trump desobedeceu repetidamente às ordens do juiz Juan Merchan de não insultar ou questionar as partes no julgamento criminal que está a sofrer em Nova Iorque. Esta segunda-feira, depois de cometer desacato pela décima vez, o juiz fez um forte alerta: se continuar a descumprir as suas ordens, ele pode mandá-lo para a cadeia, mesmo que seja “a última coisa” que ele gostaria de fazer .

“O réu fica avisado que, se apropriado e justificado, futuras violações de suas ordens legais serão puníveis com prisão”, diz uma decisão de cinco páginas divulgada pelo juiz.

Na sua resolução, Merchan lembra que o desacato é punível com multa não superior a 1.000 dólares, prisão não superior a 30 dias, ou ambas as penas, a critério do tribunal. “No entanto, dado que esta é agora a décima vez que este tribunal considera o réu por desacato criminal”, continua, “é evidente que as multas pecuniárias não foram e não serão suficientes para dissuadir o réu de violar as ordens legais deste tribunal. tribunal".

Durante a sessão de julgamento, Merchan emitiu o aviso diretamente a Trump – sentado no banco dos réus – que abanou a cabeça e cruzou os braços. “Parece que multas de US$ 1.000 não servem como dissuasão. Portanto, a partir de agora, este tribunal terá de considerar uma pena de prisão”, disse o juiz antes de os jurados entrarem na sala, segundo a Associated Press. As declarações de Trump, acrescentou o juiz, “ameaçam interferir na administração adequada da justiça e constituem um ataque direto ao Estado de direito”, argumentou. “Não posso permitir que isso continue”, disse ele, mesmo reconhecendo que é a última coisa que gostaria de fazer.

“Sr. Trump, é importante que você entenda que a última coisa que quero fazer é colocá-lo na prisão. “Você é o ex-presidente dos Estados Unidos e possivelmente também o próximo presidente”, disse-lhe o juiz esta segunda-feira.

“A magnitude desta decisão não passou despercebida para mim, mas no final das contas tenho um trabalho a fazer. Por isso, por mais que não queira impor uma pena de prisão, quero que compreendam que o farei se for necessário e apropriado", continuou, salientando que parte do seu trabalho é "proteger a dignidade" do poder judicial. sistema.

O juiz já fez um primeiro alerta sobre a possibilidade de prender Trump na semana passada, quando lhe impôs nove multas de mil dólares por desacato a nove comentários nas redes sociais que, na sua opinião, violaram as suas ordens de silêncio ou silêncio para evitar criticar jurados, testemunhas. e funcionários judiciais. Trump teve que excluir sete comentários em sua plataforma, Truth Social, e dois em seu site de campanha.

Nesta ocasião, os procuradores acusaram Trump de quatro novas violações das ordens de silêncio emitidas pelo juiz, mas a resolução indica que o desacato só é provado “além de qualquer dúvida razoável” numa das declarações, relativamente ao júri e à forma como foi selecionado. . “O arguido não só pôs em causa a integridade e, portanto, a legitimidade deste processo, mas mais uma vez levantou receios pela segurança dos jurados e dos seus entes queridos”, diz a resolução.

A violação ocorreu numa entrevista concedida em 22 de abril ao canal de televisão Real America's Voice, na qual Trump criticou a rapidez com que o júri foi escolhido e afirmou que este estava repleto de democratas. “Esse júri foi escolhido muito rapidamente: 95% democratas”, disse Trump então. “A área é de maioria democrata. Você pensa nisso como uma área puramente democrática. “É uma situação muito injusta”, disse ele.

Trump é acusado de 34 acusações de falsificação de registos comerciais relacionadas com pagamentos feitos para abafar histórias potencialmente embaraçosas. Os promotores dizem que a empresa de Trump, a Trump Organization, reembolsou Michael Cohen, ex-advogado do ex-presidente, por pagamentos à atriz pornô Stormy Daniels e deu a Cohen bônus e pagamentos adicionais. Os promotores alegam que essas transações foram falsamente registradas nos registros da empresa como despesas legais.

Cohen, que se declarou culpado de crimes relacionados com os pagamentos, é agora a principal testemunha da acusação, numa altura em que o julgamento entra na sua terceira semana de depoimentos. Resta saber também se o próprio Trump, que afirma ser inocente, finalmente se declara, como garantiu que faria.

Entre as testemunhas que testemunharam até agora está um editor de tablóide e amigo de Trump que comprou os direitos de várias histórias sórdidas sobre o então candidato presidencial para evitar que viessem à luz. Também um advogado de Los Angeles que negociou acordos para silenciar Daniels e a modelo da Playboy Karen McDougal.

Miguel Jiménez,  jornalista, de Washington (DC), em 06. 05.24 para o EL PAÍS

Paz, uma palavra em declínio na Rússia

Os líderes russos não querem o fim do conflito, como um compromisso, mas a vitória na Ucrânia como a imposição da sua própria agenda

Soldados russos, durante o ensaio geral do desfile militar do Dia da Vitória na Praça Vermelha de Moscou, neste domingo. (Maxim Shipenkov - EFE)

A palavra paz foi um elemento-chave no discurso oficial da União Soviética e respondeu a um sentimento sincero entre os habitantes daquele país, que havia perdido dezenas de milhões de vidas após ser invadido por Hitler em 1941. A palavra paz estava no na vida privada e na vida pública dos cidadãos soviéticos que, nos feriados, a brindavam nas suas casas com os seus familiares e amigos e que, por ocasião do Dia Internacional do Trabalho, Primeiro de Maio, saíam às ruas após o slogan de “ Paz, Trabalho, Maio” (nessa ordem).

Mesmo após a desintegração da URSS em 1991 , ao discutir acontecimentos negativos com um russo, um ucraniano ou um bielorrusso, aqueles eslavos que carregavam a memória ou a história da guerra provavelmente cortariam o seu interlocutor com a exclamação: "Com para que haja não há guerra!”, indicando assim que esta era a pior coisa que poderia acontecer a alguém, muito pior que qualquer infortúnio.

No uso soviético da palavra paz houve certamente nuances e os representantes oficiais acrescentaram uma dose de oportunismo à rejeição do horror deixado pela guerra. Oficializado em instituições como o Comitê de Paz – em slogans e retóricas – serviu para justificar a participação da URSS na corrida armamentista com os Estados Unidos, que foi apresentada como um instrumento para alcançar um estado de paz, entendido como meta indiscutível . O desarmamento promovido pelos presidentes da Rússia, Mikhail Gorbachev , e dos Estados Unidos, Ronald Reagan, na década de oitenta, foi precedido por massivas manifestações pacifistas internacionais contra a instalação de mísseis na Europa e os acordos alcançados por esses líderes foram passos em direção à paz .

Hoje a situação é diferente. A palavra paz e o seu conteúdo têm sido desvalorizados num processo de degradação global que não afecta apenas a Rússia, país onde o fenómeno tem características particulares relacionadas com a guerra na Ucrânia. Os líderes russos não querem a paz, como um compromisso, mas a vitória, como a imposição da sua própria agenda. A partir de 2022, os russos poderão ser presos e condenados a penas até sete anos por “desacreditarem o exército” , um crime de interpretação ambígua em que podem incorrer aqueles que se declaram a favor da paz. Por este conceito, 4.440 pessoas foram multadas em 2022 e outras 2.361 em 2023, segundo estatísticas judiciais. Nesse segundo ano de guerra, 50 pessoas foram julgadas criminalmente e nove delas foram condenadas a dois anos de prisão.

O medo da paz chega ao absurdo. O ativista Konstantin Goldman foi preso em abril de 2022 por permanecer nos jardins anexos ao Kremlin com um volume de Guerra e Paz, de Leo Tolstoy, e em dezembro de 2023 a polícia pediu a uma livraria de São Petersburgo que retirasse uma inscrição com a palavra paz preso na janela por mais de um ano. Portanto, não é surpreendente que, depois de aumentar a consciência sobre os riscos da palavra paz, nas marchas populares por ocasião do Primeiro de Maio deste ano na Rússia, o termo tenha desaparecido do slogan clássico, “Paz, Trabalho, Maio”, que foi reduzido para “Trabalho, maio”. Em diferentes locais, em vez de paz, apareceu a palavra krut (traduzida nesse contexto como cool, super ou cool), segundo jornalistas e espectadores que acompanharam o dia ou publicaram fotografias de acontecimentos em declínio. Desde 2022, as autoridades russas têm sido evasivas ao receber mensagens de desejo de paz, por exemplo, para o Ano Novo. Um amigo russo diz que quando um funcionário com quem ele mantinha um relacionamento o parabenizou pelo seu aniversário, ele respondeu: “É melhor você me desejar paz”. Depois de um silêncio, o oficial acrescentou secamente: “Paz, só depois da vitória!”

Mesmo nas igrejas ortodoxas da Rússia hoje eles oram pela vitória, o que aparece em uma nova oração divulgada pelo Patriarca Kirill em homenagem à Santa Rússia. E os sacerdotes que ousaram substituir a palavra vitória pela paz sofrem represálias e são afastados dos serviços religiosos. Pouco depois da invasão da Ucrânia, o Presidente Vladimir Putin deixou claro que não quer a paz, mesmo como conselho. Isto foi vivido por quatro altos funcionários de vários institutos de política internacional da Academia Russa de Ciências, que estavam entre os 126 especialistas nacionais e estrangeiros que assinaram uma carta pública a favor da cessação das hostilidades, ou seja, a favor da paz. Pela sua assinatura, Alexei Gromiko, diretor do Instituto Europa; Alexandr Panov, ex-vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia; Sergei Rogov, diretor acadêmico do Instituto EUA-Canadá; e Alexandr Nikitin, diretor do Centro de Segurança Euro-Atlântico do MGIMO [Instituto Estatal de Relações Internacionais], foram excluídos de um órgão consultivo, o Conselho de Segurança da Rússia, por decreto de Putin.

Os quatro respeitados especialistas não eram dissidentes, mas o seu instinto natural era procurar uma solução pacífica para o conflito ucraniano; Ou seja, agiram no espírito que emergiu da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, o Kremlin permanece impassível face à atroz agressividade verbal de pessoas como o empresário Konstantin Maloféev e o filósofo Alexandr Dugin, ou face à retórica incendiária dos propagandistas televisivos que exigem a aniquilação do inimigo. A guerra na Ucrânia continua a gozar de amplo apoio social na Rússia. Em janeiro deste ano, 77% dos russos apoiavam (total ou parcialmente) a ação das suas Forças Armadas e apenas 16% eram contra, segundo um inquérito do centro Levada. 52% eram a favor de conversações de paz e 40% eram a favor da continuação da acção militar. Dados anteriores indicavam que, a grande maioria, partidária da paz, a desejava sem abrir mão das conquistas territoriais.

Agora que se comemora o 79º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, seria desejável voltar às lições dessa guerra sem esperar novos horrores e que a paz não fosse sinónimo de vitória a qualquer preço, como encenam os líderes russos após deformando e privatizando a dor e os sacrifícios que a Rússia partilhou com a Ucrânia e outras repúblicas da União Soviética.

Pilar Bonet, a  autora deste artigo, é jornalista e analista. Durante 34 anos foi correspondente do EL PAÍS na URSS, na Rússia e no espaço pós-soviético. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 08.05.24

Enchentes mergulham Porto Alegre no caos: “Tem famílias que estão há três dias no telhado”

As equipes de resgate, que já contabilizam 95 mortos e 131 desaparecidos, temem que tudo se complique com a chegada de mais chuva e frio esta semana



Aeroporto de Porto Alegre, neste dia 7 de maio. (Wesley Santos / Reuters)

A tempestade de chuvas fortes e persistentes que atinge o estado brasileiro do Rio Grande do Sul deixou um panorama devastador em sua capital, Porto Alegre, uma cidade próspera de 1,3 milhão de habitantes que nunca viu nada parecido. O rio Guaíba inundou alguns bairros mais centrais, obrigando ao corte de pontes e estradas e ao encerramento do aeroporto pelo menos até ao final de maio. Dezenas de milhares de moradores deste estado brasileiro que faz fronteira com Argentina e Uruguai não têm eletricidade nem água potável. Existe até o risco de escassez de alimentos. “O que você vê na televisão não é nem metade do que está acontecendo. “Este é o nosso Katrina, o nosso tsunami , uma catástrofe enorme”, Fernanda de Carvalho, uma jovem que, como muitos outros moradores da capital, tem passado dias sem pregar o olho, ajudando no trabalho de socorro, diz Fernanda de Carvalho, à beira das lágrimas, do resgate de Porto Alegre.


Segundo o último balanço oficial da Defesa Civil, até a tarde desta terça-feira, em todo o estado do Rio Grande do Sul havia 95 mortos, 131 desaparecidos e 372 feridos. Além disso, há 207 mil pessoas fora de casa. Não chove há dois dias, mas a situação não melhora. O caudal dos rios mantém-se estável ou continua a subir ligeiramente e agora o temor é a chegada de uma nova frente fria que previsivelmente trará mais chuvas e uma descida drástica das temperaturas.


De Carvalho, analista de comunicação, mora num bairro que não é dos mais afetados, por isso aproveitou a sua situação relativamente segura para arregaçar as mangas e ajudar. Participe de um grupo de WhatsApp em que 400 pessoas trocam informações sobre pessoas isoladas que precisam ser resgatadas. “Tem famílias que estão dois ou três dias abrigadas no telhado, sem comida, sem remédio (…) num bairro de Canoas [cidade próxima] temos uma casa com 13 pessoas sem água potável”, diz. A sua missão é contrastar a informação que chega – lamenta que abunde a desinformação – e movimentar contactos, porque há sempre alguém que conhece alguém, desde um militar com botes salva-vidas até indivíduos com pequenas embarcações. Recentemente ela e seus amigos conseguiram trazer 15 jet skis de uma cidade costeira.


As equipes de Defesa Civil do Governo do Rio Grande do Sul fazem o que podem, mas não conseguem dar conta. Em Porto Alegre a situação começou a ficar dramática a partir de sexta-feira, com a enchente do rio Guaíba, a pior desde 1941. O rio atingiu 5,33 metros de altura, bem acima dos três metros que marcam o limite a partir do qual a cidade pode inundar. A tradução é visível a partir de uma vista aérea, como mostram as imagens aéreas: boa parte da cidade literalmente submersa, incluindo edifícios simbólicos como o Mercado Municipal ou os seus estádios de futebol.


Na segunda-feira, as autoridades locais evacuaram os bairros Menino Deus e Cidade Baixa, adjacentes ao centro histórico. De Carvalho estava no local ajudando nos resgates com sua motocicleta, mas teve que deixar o local com medo de ficar preso.


Só na cidade de Porto Alegre são 9,8 mil pessoas abrigadas em escolas, centros esportivos ou shopping centers. Muitos outros procuraram abrigo temporário em casas de amigos ou familiares. Longe de melhorar com o passar dos dias, o número de pessoas despejadas continua a aumentar. Nesta terça-feira, o prefeito de Eldorado do Sul, cidade vizinha a Porto Alegre, afirmou que toda a sua população deve ser evacuada: mais de 40 mil pessoas que não têm para onde ir.


A situação não é apenas desesperadora para aqueles que perderam a sua casa ou tiveram que abandoná-la temporariamente, mas também para os milhares de vizinhos que permanecem nas suas casas sem electricidade ou água, a grande maioria. Embora haja água por toda parte, paradoxalmente, em 85% da cidade não sai uma gota das torneiras porque as estações de bombeamento estão danificadas.


Um porta-aviões da Marinha do Brasil (o maior da América Latina) carregado com duas estações móveis de tratamento de água, com capacidade para produzir 20 mil litros de água potável por hora, deverá chegar a Porto Alegre na quarta-feira.


As comunicações em todo o Rio Grande do Sul são muito precárias e a gota d’água foi o fechamento do aeroporto de Porto Alegre. As companhias começaram a cancelar voos na sexta-feira, dia 3, quando a pista começou a inundar, mas a empresa que administra o aeroporto jogou a toalha definitivamente na segunda-feira, com o terminal totalmente inundado. Numa primeira fase, o aeródromo estará encerrado “por tempo indeterminado”, embora a concessionária espere poder reabri-lo por volta de 30 de maio. Enquanto isso, a pequena base aérea de Canoas, próxima à capital, é utilizada para receber ajudas que chegam de todo o Brasil.


Os moradores de Porto Alegre estão com um olho na água marrom que inunda suas ruas e outro no céu. A chuva deu uma trégua nos últimos dois dias, mas no meio da semana a instabilidade deverá voltar e um novo inimigo aparecerá: o frio. As temperaturas podem cair entre quatro e oito graus no sudoeste do estado e ficar em torno de 12 graus Celsius em Porto Alegre. As autoridades temem que as pessoas despejadas que perderam as suas casas e mal têm comida e água sofram de hipotermia.

Publicado originalmente po EL PAÍS

Como justificar 53 bilhões em emendas parlamentares?

O presidencialismo é vulnerável à chantagem parlamentar – um problema não apenas brasileiro. Que tal mudar para o parlamentarismo, em que o chefe do Executivo tem a maioria necessária para governar?

Presidente da Câmara, Arthur Lira, teve um Carnaval especial no Rio, com contribuição de verba de emenda parlamentar (Foto: Wilson Dias/Agência Brasil)

Arthur Lira, o todo-poderoso chefão da Câmara dos Deputados, teve um Carnaval mais do que especial. No Sambódromo do Rio de Janeiro, ele desfilou pela Beija-Flor, que homenageou a cidade de Maceió, parte do "reino de Lira”. Para isso, o prefeito maceioense, João Henrique Caldas, conhecido como JHC, um amigo político de Lira, mandou 8 milhões de reais para a escola de samba carioca. Parte dessa grana, segundo comunicado da prefeitura, viria de emendas parlamentares.

As emendas parlamentares são recursos aplicados conforme a vontade de cada parlamentar, privilegiando suas bases eleitorais. E tais emendas fazem a festa no "reino de Lira”. Para o atual ano de 2024, o Congresso aprovou o valor recorde de 53 bilhões de reais em emendas parlamentares, um grande aumento sobre os já bem gordos 37,3 bilhões de reais do ano passado. O aumento do valor reflete o poder cada vez maior do Congresso sobre o orçamento. Em nenhum outro país do mundo, os parlamentares conseguem interferir tanto no orçamento como aqui no Brasil.

As emendas se fortaleceram em 2015, quando a fraqueza do governo Dilma acordou a fome dos congressistas. Desde então, tal fome dos parlamentares só aumentou. Eles sabem que o presidente Lula precisa da cooperação do Congresso para conseguir realizar suas políticas – fato inerente do presidencialismo brasileiro. O que culminou no mensalão do governo Lula (2005) uma mesada paga a deputados para votarem a favor de projetos de interesse do Poder Executivo. Hoje, o governo procura garantir os votos de forma mais institucionalizada e legalizada.

Mas o problema, no fundo, continua o mesmo. Tanto o presidente quanto os parlamentares foram eleitos de forma direta pelo povo. A ideia era aplicar o sistema de freios e contrapesos, quer dizer: em uma divisão dos poderes, um poder fiscaliza o outro. Mas, na realidade, deixa o sistema vulnerável a bloqueios, que só se resolvem através de barganhas. Pois o partido do presidente não tem maioria no Congresso.

Vemos um cenário semelhante atualmente na Argentina, onde o novo presidente Javier Milei não tem uma maioria para transformar suas ideias libertárias em leis. Partiu, portanto, para a fase 2, que é o xingamento dos parlamentares como "traidores da pátria". E ameaça governar por plebiscitos. Só que eles não são vinculativos quando a iniciativa vem do presidente e não do Congresso. Assim, Milei pode logo virar um "pato manco".

Impasse semelhante se vê nos Estados Unidos, onde partes do Partido Republicano no Congresso bloqueiam os pacotes de ajuda financeira do governo de Joe Biden à Ucrania, Israel, Palestina e Taiwan. Resta ao presidente Biden apenas fazer apelos. Brasil, Argentina e Estados Unidos – três exemplos que mostram como o presidencialismo dificulta a capacidade do Executivo de botar em prática suas políticas.

Diferente do parlamentarismo, em que a maioria do Parlamento elege o chefe do Executivo. Para manter o governo vivo, a maioria parlamentar precisa prevalecer. Pois quando ela se perde, o governo cai. Assim, garante-se que o governo tenha a maioria necessária para tocar o barco da governabilidade. 

Sei que a ideia de trocar o presidencialismo pelo parlamentarismo é um tema antigo no Brasil, discutido e votado há trinta anos, quando uma maioria optou pelo presidencialismo. Escuto muitas vezes que o parlamentarismo não funcionaria no Brasil, devido à má qualidade dos partidos, que, muitas vezes, não têm ideologia, mas seguem os lemas do fisiologismo. Quero dizer: as trocas de favores em detrimento do bem comum. 

 Se isso é verdade, me parece mais um argumento para o parlamentarismo. Pois só a disciplina exigida para manter a base governamental neste sistema pode enfraquecer o fisiologismo – que, no sistema do presidencialismo, corre solto. Ou, melhor dizendo: nestes tempos de Carnaval, samba solto na cara dos brasileiros.

Thomas Milz,  o autor deste artigo, saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos. Publicado originalmente por Deustche Welle Brasil, em 14.02.24

sexta-feira, 26 de abril de 2024

A nova batalha da reforma tributária

Com a alíquota de referência do novo imposto sobre bens e serviços enfim divulgada, parlamentares terão de ter ainda mais cuidado para impedir um aumento da carga tributária

O governo finalmente enviou ao Congresso o primeiro dos três projetos de lei que regulamentarão a reforma tributária sobre o consumo, promulgada no ano passado. Com a apresentação das regras gerais sobre o funcionamento dos impostos que incidirão sobre bens e serviços, o contribuinte finalmente saberá quanto, efetivamente, paga em impostos por cada item que adquire, tarefa impossível dado o cipoal de normas que caracterizam o atual sistema tributário.

Muitas das críticas que a iniciativa tem recebido são descabidas, a começar pela alíquota final do novo Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Da forma como o governo elaborou a proposta, ela ficará entre 25,7% e 27,3%, com média de 26,5%, o que renderia ao Brasil uma das alíquotas mais altas entre os países que adotam o modelo do IVA.

Ora, em primeiro lugar, a carga tributária sobre bens e serviços atual já é, em média, de 34,4%, considerando impostos federais, estaduais e municipais. A diferença é que o novo sistema vai proporcionar a recuperação de créditos ao longo da cadeia, o fim das cobranças “por dentro” e a não cumulatividade de impostos, fundamental para garantir competitividade à indústria nacional.

Tampouco são justas as reclamações sobre o tamanho do texto, que soma 360 páginas e 499 artigos. Uma mudança tão profunda quanto a proposta da reforma tributária aprovada pelo Congresso no ano passado não poderia ter um resultado diferente, considerando a necessidade de regulamentar os novos tributos e os regimes específicos para diversos setores econômicos.

Algo a ser elogiado é a reduzida lista de itens da cesta básica que terão direito à isenção de impostos federais. Pela proposta do governo, serão apenas 15 produtos – arroz, feijão, leite, café e açúcar, entre outros – que refletem o consumo dos mais pobres. Outros itens terão desconto de 60% no valor dos tributos, como carnes, peixes, massas e sucos.

Fato é que não há motivo razoável para manter a isenção da lista atual, com mais 700 produtos, entre eles bacalhau, salmão e nozes. A forma de devolução dos impostos pagos pelas famílias de baixa renda, por meio de descontos automáticos nas faturas de água, esgoto e energia elétrica, é uma medida acertada, que coloca o foco nos mais necessitados e desestimula furtos e ligações clandestinas.

Há, no entanto, muitos temas com potencial de gerar controvérsias e travar as discussões no Congresso. Um dos principais é o Imposto Seletivo, que incidirá sobre itens supostamente danosos à saúde e emissores de poluentes. Segundo propôs o governo, o tributo incidirá sobre cigarros, bebidas alcoólicas, refrigerantes, embarcações, aeronaves, veículos e bens minerais extraídos. O Executivo terá trabalho para manter a lista intacta, uma vez que muitos desses setores são conhecidos pelas excelentes relações que mantêm com os parlamentares.

Há pouco tempo para discutir a reforma no Congresso, e o governo terá de reforçar sua articulação política para garantir sua aprovação ainda neste ano, encurtado em razão das eleições municipais. Embora a proposta entre em vigor apenas em 2033, o período de transição será iniciado em 2026. Em 2025, no entanto, será preciso estabelecer normas infralegais que dependem deste e de outros dois projetos, ainda a serem enviados, que tratarão dos fundos regionais e do comitê gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a ser administrado por Estados e municípios.

Agora que a alíquota de referência do novo imposto foi finalmente divulgada, deputados e senadores terão de ter ainda mais cuidado na análise do texto. Como a reforma é neutra sob o ponto de vista arrecadatório, qualquer benesse adicional para um segmento específico, como a inclusão de novos alimentos na lista de itens isentos da cesta básica, aumentará o imposto pago pelos demais.

A diferença é que, na fase atual, o custo político dessas decisões recairá sobre os parlamentares, e não mais sobre o governo. Será um verdadeiro teste de fogo ao discurso oficial do Legislativo, que se diz contrário a qualquer medida de aumento de impostos.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.04.26