quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Bolsonaro agora evita falar em relatório das Forças Armadas sobre urnas e questiona repórter: 'Está botando na minha boca?'

Após falar, no dia da votação do primeiro turno, que aguardaria um relatório das Forças Armadas para se posicionar sobre a eficácia das urnas eletrônicas, o presidente Jair Bolsonaro (PL) agora disse nesta quarta-feira (19) que não tem auditoria feita pelos militares. Questionado por jornalistas sobre relatório, Bolsonaro ainda rebateu: "Está botando [palavra] na minha boca agora?"


Na noite do dia 2 de outubro, após a definição de que Bolsonaro iria para o segundo turno com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o presidente falou com jornalistas na porta da residência oficial do Palácio da Alvorada.

Na ocasião, Bolsonaro, questionado sobre como viu o desempenho do sistema eleitoral na votação, disse:

"Vou aguardar o parecer aqui das Forças Armadas que ficaram presentes hoje lá na sala cofre. Repito, elas foram convidadas a participar, integrar uma comissão de transparência eleitoral. Então isso aí fica a cargo do ministro da Defesa", disse Bolsonaro.

Na mesma entrevista, questionado quando receberia um relatório das Forças sobre as urnas, ele afirmou: "Olha, eles participaram da sala cofre. Devem estar lá até agora. Até o encerramento, vão estar lá. Vai ser feito um relatório pelo Ministrério da Defesa", disse Bolsonaro na ocasião.

Nesta terça (18), o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), determinou que a Defesa apresente os dados do relatório sobre a votação. A Defesa até agora não entregou material algum.

Bolsonaro foi questionado sobre o tema em entrevista no Palácio da Alvorada. Nesse momento, o presidente negou que haja algum relatório.

"As Forças Armadas não fazem auditoria. Lançaram equivocadamente. A comissão de transparência eleitoral não tem essa atribuição. Então furada, fake news", respondeu o presidente.
Um repórter insistiu se Bolsonaro não havia falado antes em relatório.

"Você agora está botando na minha boca agora? Não bota na minha conta, não", rebateu o presidente.

Guilherme Mazui, de Brasilia - DF para o g1, em 19.10.22, às 14h26 

Vítima de racismo, Seu Jorge viveu na rua por 7 anos e venceu pela arte

 Vítima de racismo durante show na última sexta-feira (14), Seu Jorge é um dos principais nomes da música brasileira das últimas duas décadas. Antes da fama, no entanto, ele teve uma vida difícil e viveu por sete anos em situação de rua.

Seu Jorge (Reprodução/Instagram)

Jorge Mário da Silva nasceu em 1970 e cresceu em uma favela de Belford Roxo, na Região Metropolitana do Rio. Vindo de uma família humilde, ele fez de tudo um pouco antes de participar do Farofa Carioca, grupo que fez sucesso nos anos 90 unindo samba e rock.

'Muita grosseria racista', diz Seu Jorge após sofrer ataques em show no RS

Antes da fama, ele esteve em situação de vulnerabilidade. Ainda em Belford Roxo, quando Jorge tinha 19, seu irmão Vitorio foi morto em uma chacina, o que desestabilizou a família. O jovem chegou a morar com um parente no Méier, Zona Norte do Rio, mas logo depois foi parar nas ruas da cidade.

Em entrevista a Jô Soares em 2001, ele contou que viveu nas ruas por sete anos, mas não abandonou a arte nesse período. Pelo contrário, quatro desses anos foram juntos a uma companhia de teatro.

"Dos sete anos (que morei nas ruas), quatro estive no teatro. Eu fiz com eles 26 espetáculos... Eu não tinha onde ficar, depois de duas semanas eu falei com ele: 'oh, Antonio (Pedro), roupa limpa tá acabando, já tô dormindo aqui escondido. Me dá essa condição aí porque eu quero aprender a profissão, me formar aqui, ser artista, ser músico'. Tinha o Paulo Moura, ele falou para eu ficar lá. Fui ficando", disse.

Após ser descoberto pelo clarinetista Paulo Moura, ele fez um teste para um musical e teve a vida mudada. Na sequência, ele recebeu o nome artístico de "Seu Jorge", dado pelo baterista Marcelo Yuka. Em 1997, chegou ao Farofa Carioca, e quatro anos depois gravou seu primeiro disco, o "Samba Esporte Fino", e fez parcerias com Planet Hemp, Ed Motta e Paula Lima.

Em 2005, ao ser entrevistado no "Roda Viva" (TV Cultura), ele detalhou como era viver nas ruas. Naquele ano, ele viveu um dos auges da carreira com a música "É Isso Aí", ao lado de Ana Carolina

"Tive bons encontros na minha vida, pessoas incríveis. O teatro foi um encontro. Lá dentro do teatro me encontrei com outras pessoas... Vivia muito bem com a coisa do violão, sabe? Não esticava a mão e pedia nada. Eu trocava. Tinha um vidro para limpar, eu pegava o álcool para limpar e o cara me dava uma quentinha", disse.

Eu lavava o banheiro, aquele sujo que ninguém queria lavar? Eu levava e pegava o meu rango. Nunca pedi nada. Sempre troquei as coisas.

Jorge disse que sempre teve a facilidade de imaginar o amanhã e "a coisa do sol" apesar das dificuldades, as quais enumerou durante a entrevista.

"(Morar na rua) É você não ter onde dormir, é as pessoas pularem por você. Por exemplo, você está dormindo no ponto de ônibus, porque a noite é muito difícil, tem muita covardia e ali sempre tem gente, uma luminária. Aí, chega de manhã, o cara pula você e diz: 'um cara desse tamanho, podia tá numa obra, mas tá aí largado, usando drogas'... Tem dificuldades. Banho é muito difícil, necessidades fisiológicas são difíceis e a higiene é muito difícil. Vai baixando a moral e acaba mexendo na sanidade mental. Você não consegue controlar as emoções. A humilhação é muito grande", contou ao "Roda Viva"

"Eu tive uma sorte muito grande que era a coisa do violão, defendia o meu rango, era querido no meio da roda, ali na Vila Isabel. No Petisco da Vila, por exemplo, eu chegava, ficava em volta das cadeiras e o pessoal me chamava para tocar violão. Sempre consegui ir driblando", completou.

Uma das pessoas para quem Seu Jorge pediu para dar uma canja foi Xande de Pilares, que também ainda não era reconhecido nacionalmente. O sambista contou a história em uma participação no "Esquenta", programa apresentado por Regina Casé na Globo, em 2015.

"Ele pegou o violão de Soneca (outro integrante do grupo) e começou a cantar. Ele roubou a cena de uma tal forma que eu não quis nem voltar", disse Xande, que só voltou a ver Seu Jorge quando o cantor já estava no Farofa Carioca.

Seu Jorge, na sequência, relembrou a difícil fase da vida. "A minha situação era muito ruim a ponto de não ter mesmo o que comer. Então, o lance de tocar não era o dinheiro. Mas é que tinha uma pizza no final que o Xande, sem nenhuma resenha, ele dividia aquilo", contou ele a Regina Casé.

Aos 52, hoje, Seu Jorge já recebeu prêmios por sua música, como o de Melhor Cantor no Prêmio Multishow 2009 e o de Melhor álbum pop contemporâneo no Grammy Latino 2012 pelo disco "Músicas Para Churrasco Vol. 1".

Como ator, ele participou de filmes de sucessos, como "Cidade de Deus" (2002), "Tropa de Elite 2" (2010), "Medida Provisória" (2020) e "Marighella" (2021).

"Muita grosseria racista"

Ontem, Seu Jorge usou as redes sociais para dizer que presenciou "muito ódio gratuito e grosseria racista" durante um show realizado no clube Grêmio Náutico União, em Porto Alegre, A Polícia Civil está investigando o caso para identificar os envolvidos nos ataques.

Em vídeo de nove minutos divulgado em seu canal no Youtube, o artista aparece ao lado da bandeira do Rio Grande do Sul para afirmar seu amor ao estado e relatou ter escutou vaias e ofensas racistas em sua apresentação a um evento que "não viu a presença" de pessoas pretas.

"Quando chegou no final do show, eu sai do palco. Quando cheguei atrás do palco, eu começo a escutar muitas vaias e xingamentos. Por conta disso, eu percebi não seria possível voltar para fazer o famoso "bis", mas sozinho retornei ao palco e, de maneira respeitosa, agradeci a presença de todos e me retirei do local do show. Na verdade, o que eu quero dizer aqui é que não reconheci a cidade que aprendi amar e respeitar. Na verdade, o que eu presenciei foi muito ódio gratuito e muita grosseria racista", disse o cantor em trecho do vídeo.

Filipe Pavão, De Splash, no Rio de Janeiro  - RJ para o UOL, em 19.10.22

terça-feira, 18 de outubro de 2022

O desalento da juventude

Maioria dos jovens de 15 a 29 anos deseja sair do Brasil. E até agora, nem Lula nem Bolsonaro apresentarampropostas para resgatar a esperança desses jovens no País

O Brasil não se descortina como um país promissor para a grande maioria dos jovens entre 15 e 29 anos na próxima década, de acordo com uma pesquisa Datafolha divulgada na semana passada. 

O que é isso, afinal, se não um atestado de incompetência de sucessivos governos nos últimos anos? O resultado da pesquisa revela que todas as administrações mais recentes, em maior ou menor grau, foram incapazes de compreender que o nível de atenção às necessidades das novas gerações está fundamentalmente ligado ao nível de desenvolvimento social, político e econômico do País.

De acordo com a pesquisa Datafolha, 67% dos jovens entre 15 e 29 anos têm esperança de que sua situação pessoal estará “muito melhor” nos próximos dez anos – 65% acham o mesmo em relação à sua situação financeira, especificamente. No entanto, apenas 25% desses jovens acreditam que o Brasil seguirá a mesma trajetória auspiciosa na próxima década.

O resultado dessa profunda desconexão entre as aspirações dos mais jovens e a crença que eles têm no potencial do Brasil para oferecer-lhes as condições para seu desenvolvimento pessoal pode ser medido pelo número de jovens que não veem o seu futuro diretamente atrelado ao futuro do País. A grande maioria dos jovens entre 15 e 29 anos ouvidos pelo Datafolha (76%) afirma ter “muita” ou “alguma vontade” de sair do Brasil. É extremamente preocupante constatar que o País segue incapaz de transmitir esperança aos mais jovens.

O desalento da juventude não é novo. Há pelo menos dez anos, este jornal tem alertado para o risco de negligenciar os cuidados com as novas gerações, especialmente com a sua educação. No editorial A geração nem-nem (26/9/2012), alertávamos que a mão de obra com um mínimo de competência técnica começava a escassear, e que esse processo dramático, letal para o desenvolvimento do País, seria acelerado se não houvesse “uma virada drástica e imediata no sistema educacional, de modo a atrair novamente essa massa de jovens para os estudos e a especialização, fazendo-os perceber que a educação pode significar um futuro melhor”.

A “virada drástica” na educação não veio, como se viu. Políticas públicas voltadas à formação humana e profissional dos mais jovens vieram aos solavancos, muitas vezes interrompidas ou modificadas a cada ciclo eleitoral. Chegou-se ao paroxismo no curso do governo de Jair Bolsonaro – que entrará para a história como o governo que dizimou o Ministério da Educação em nome de seus interesses eleitorais.

O resultado aí está: apenas uma minoria dos entrevistados pelo Datafolha (19%) acredita que “estudar é a única forma de ter mais renda no futuro”. Outros 13% disseram que estudar é “uma das formas”, mas não “a melhor forma” de melhorar a situação financeira. Evidentemente, a educação formal não é, de fato, a única força propulsora do desenvolvimento profissional e financeiro de um indivíduo. No entanto, quando um número tão alto de jovens não vê os estudos como uma base sólida para seu crescimento pessoal, isso significa que há uma crise de desconfiança na capacidade do Estado de oferecer uma educação pública de qualidade para quem precisa. É melancólico, mas não surpreende que apenas para 8% dos jovens entre 15 e 29 anos o término da formação escolar seja sua maior aspiração.

“Não há melhor preditor do futuro do País do que o universo dos jovens de hoje”, afirmaram em junho do ano passado os pesquisadores da FGV Social, a propósito da publicação da pesquisa Jovens: Projeções Populacionais, Percepções e Políticas Públicas.

O Atlas da Juventude, realizado pelas redes de organizações Em Movimento e Pacto das Juventudes pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em parceria com a FGV Social, também tem mostrado periodicamente que a descrença dos brasileiros mais jovens em relação ao País é uma das grandes barreiras para um futuro mais promissor.

Daqui a pouco menos de 15 dias, os brasileiros voltarão às urnas para escolher o próximo presidente da República e, lamentavelmente, nem o petista Lula da Silva nem o presidente Jair Bolsonaro apresentaram propostas concretas para resgatar a confiança dos mais jovens no Brasil que eles pretendem governar.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18.10.22, às 03h00

Sob Bolsonaro, Brasil se afasta de meta de erradicar pobreza

Número de brasileiros na pobreza aumentou em 10 milhões entre 2020 e 2021, representando agora quase 30% da população. Especialistas criticam foco eleitoreiro do Auxílio Brasil e falta de propostas na campanha.

O mundo não conseguirá cumprir a meta estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) de erradicar a pobreza até 2030 — e o Brasil apresenta retrocessos sociais que também vão nesse sentido. Esse é o panorama 30 anos após a ONU instituir o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, em 17 de outubro de 1992.

O prognóstico negativo foi confirmado em relatório divulgado no início deste mês pelo Banco Mundial. E encontra eco nos números, segundo os quais a pandemia de covid-19 causou o pior momento desde que os dados vêm sendo monitorados, nos anos 1990, empurrando mais de 70 milhões de pessoas para a linha extrema em 2020. E os prognósticos, com a guerra na Ucrânia e a inflação decorrente do conflito, indicam que esse contingente ficará ainda maior.

De acordo com a instituição, 719 milhões de pessoas atualmente subsistem com menos de 2,15 dólares por dia — o que significa pobreza extrema. E a projeção é que até o fim deste ano 115 milhões a mais estejam nesse limiar da fome.

A linha da pobreza teve o valor mínimo reajustado pelo banco, tendo em vista o aumento dos custos em escala global. Antes, era de 5,50 dólares por dia. Agora é de 6,85. Considerando essa faixa, uma em cada cinco pessoas do mundo está abaixo da linha da pobreza.

O balde de água fria no sonho de acabar com a fome até 2030 tem sua explicação justamente no clima de otimismo dos anos 1990.

"Existia naquele contexto de final de século a expectativa de que o fortalecimento das democracias no pós-Guerra Fria fortaleceria os mercados e promoveria a redução da miséria, através da globalização e do neoliberalismo. Essas pretensões acabaram não acontecendo. Ao contrário, acabaram criando mais desigualdade pelo mundo", avalia o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Brasil: 30% do país na pobreza

No Brasil, o cenário é preocupante. "A queda [dos índices de pobreza] no Brasil foi até 2015", aponta o economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social.

Ele se baseia em dados que apontam que, no fim do ano passado, havia um recorde do contingente de pobres no país desde o início da série histórica — 62,9 milhões de brasileiros, ou quase 30% da população, vivendo com renda domiciliar per capita igual ou inferior a R$ 497 por mês (5,50 dólares por dia). O número significa 10,1 milhões pessoas a mais do que no ano anterior, 2020.

O levantamento realizado pelo FGV Social com base nos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresenta um quadro nítido e preciso do que ocorreu nos últimos dez anos, início da série histórica. Em 2012, eram 54 milhões pobres no Brasil, número que caiu para 47,6 milhões em 2014, quando voltou a subir. Em 2018, eram 55,1 milhões. E 2021 terminou com o recorde histórico de 62,9 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza.

Para Ramirez, nesta conta é preciso acrescentar, além do cenário global, os cortes de programas sociais durante os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, ou mesmo a não atualização compatível dos valores destinados a eles. Mas ele também observa que como essas estatísticas se baseiam no ganho diário em dólar, a desvalorização da moeda brasileira significa "o aumento da quantidade de pessoas que entram" nessa desfavorável lista.

Avanços e retrocessos

Segundo Neri, nos últimos 30 anos, é possível destacar uma série de esforços históricos para a redução desse cenário. Nos anos 1990, havia a famosa campanha empreendida pelo sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, com sua organização Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

Em 2001, no fim do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, foram implementados os programas Bolsa-escola e Bolsa Alimentação, precursores dos modelos de transferência de renda.

O auge da luta contra a pobreza extrema viria, contudo, na gestão posterior, sob o comando do petista Luiz Inácio Lula da Silva, com o programa Fome Zero e a instituição do Bolsa Família.

"O compromisso [de erradicar a pobreza] veio com o governo FHC, com algumas bolsas, e conseguiu uma expansão eficaz nos governos Lula e Dilma, quando a fome foi de fato extirpada do país e houve um compromisso com a empregabilidade, permitindo que o brasileiro pudesse ter três refeições por dia", comenta Ramirez. "Mas isso ainda não significou o fim da pobreza."

O Bolsa Família unificou e ampliou os programas de transferência de renda então existentes. Em 2014 quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou que o Brasil havia saído do mapa da fome, o programa foi apontado como um dos responsáveis pelo feito.

O programa beneficiava 14,7 milhões de famílias em 2021, quando foi extinto pela gestão Jair Bolsonaro. Em seu lugar, foi implementado o Auxílio Brasil, uma das principais bandeiras eleitoreiras do candidato à reeleição.

Neri avalia que "a política social de cunho assistencial está crescendo em dinheiro, mas perdendo em eficácia operacional", com o domínio de uma "visão oportunista eleitoral e pouco foco na superação da pobreza estrutural". "Anda para trás em relação ao que o Bolsa Família já fazia."

"Hoje [o programa Auxílio Brasil] tem foco eleitoreiro mas provavelmente não [funcionará] depois das eleições", considera o economista.

Ele aponta que há gargalos bastante problemáticos, a começar porque o benefício foi aprovado graças a um Projeto de Emenda Constitucional (PEC), apelidado de "Kamikaze", que colocou o Brasil em estado de emergência até o fim deste ano. Ao contrário do Bolsa Família, portanto, o Auxílio Brasil não é um programa com previsão de continuidade.

Outra questão que vem sendo trazida de forma recorrente por estudiosos é que o Bolsa Família fazia parte de um conjunto de políticas sociais implementadas pelo governo federal. Era condicionado à frequência escolar e vacinação em dia das crianças e caminhava em paralelo com outras medidas, como o projeto Minha Casa Minha Vida, de habitação popular, e melhorias no acesso ao ensino superior, com cotas e programas de financiamento. Também foi um período em que havia ganho real do salário mínimo, com reajustes anuais acima da inflação.

Discussão politizada

Neri crê que no momento qualquer solução fica difícil de ser avaliada, pois "a discussão está muito politizada e volúvel no Brasil". No cenário de campanha eleitoral, o vale-tudo das promessas não permite enxergar o que vem por aí.

"Bolsonaro implementou um pacote de benefícios no fim do mandato, mas não há nenhuma garantia de que serão mantidos ou que teremos orçamento para mantê-los", alerta Ramirez. "Lula carrega o histórico de ter liquidado a fome no Brasil, mas em sua campanha não fica nítido de onde viriam os recursos [para implementar programas do tipo]."

"Infelizmente, esta campanha eleitoral é uma das mais pobres em termos de propostas políticas. Pouco demonstram o que vai ser feito [para erradicar a pobreza] ou como vai ser feito", lamenta o sociólogo. "As pautas morais ganharam fôlego porque debater pobreza tem tido pouca repercussão entre eleitores em um mundo em que o sensacionalismo e os factoides ganham destaque."

Edison Veiga, Repórter, para Deutsche Welle Brasil, em 17.10.22

Janja posta nova entrevista em que Bolsonaro fala de 'meninas bonitinhas' da Venezuela

Afirmação de presidente de que 'pintou um clima' com adolescentes foi explorada por opositores


Bolsonaro em entrevista a um podcast nesta sexta-feira (14) - Reprodução

A socióloga Rosângela Silva, a Janja, mulher do ex-presidente Lula (PT), postou no Twitter uma nova entrevista em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) conta a história da visita que fez a uma casa em que estavam adolescentes venezuelanas, em 2020

Na conversa com entrevistadores do podcast Collab, o presidente narra exatamente os fatos que revelou ao canal Paparazzo: ele diz que viu "meninas bonitinhas" em uma rua do Distrito Federal, pediu para entrar na casa delas e encontrou um ambiente de prostituição.

"Inacreditável que o 'presidente' já tenha exposto essas meninas venezuelanas, anteriormente em outra entrevista. A minha indignação só aumenta. O 'cidadão de bem' deveria ter denunciado se houvesse qualquer indício de exploração de menores. É essa proteção das famílias que ele prega?" escreve Janja na rede social.

Na entrevista ao Collab, realizada no dia 12 de setembro deste ano, Bolsonaro defende sua atitude de andar sem máscaras em plena epidemia de Covid-19.

"'O presidente sem máscara'. Deixa eu morrer, porra. Deixa eu morrer sem máscara, pô", afirma. Em seguida, ele narra a história das adolescentes venezuelanas. "Tem uma passagem minha, de 2020, vale a pena contar aqui."

"Eu estava, eu acho que é Paraíso o nome do... São Sebastião, em Brasília. Com a moto lá, segurança. Tinha lá o pessoal da segurança, etc. Eu parei numa esquina, tirei o capacete. Daí eu olhei para trás, tinha umas duas, três meninas bonitinhas, de uns 14, 15 anos de idade. Me chamou a atenção. Menina bonitinha, sábado, né? Mas por que me chamou a atenção? Eram parecidas. Eu vi que apareceu mais uma, mais outra. Eu desci da moto. 'Posso entrar [na casa em que elas estavam]?' Tinha umas 15 meninas dessa faixa etária, 14, 15, 16 anos", descreveu.

"Todas muito bem arrumadas, tinha tomado banho, estavam fazendo o cabelo. Venezuelanas. Estavam se arrumando para quê? Alguém tem ideia? Quer que eu fale? Eu vou falar: para fazer programa", seguiu o presidente. "Vocês acham que elas queriam fazer isso? Qual era a fonte de sobrevivência delas? Essa."

O presidente também narrou o mesmo episódio em discurso na 36ª edição da Apas Show, feira de alimentos, bebidas e supermercados, em maio deste ano. A fala de Bolsonaro foi inclusive compartilhada em sua página do Facebook.

A exploração da narrativa de Bolsonaro por apoiadores de Lula abalou a campanha do presidente.

Na entrevista anterior, ao Paparazzo, ele disse que, quando viu as meninas, "pintou um clima", e por isso desceu para conversar com elas. Opositores associaram a frase à pedofilia.

Além disso, a informação de Bolsonaro de que as meninas se prostituíam foi desmentida por mulheres que estavam no local. Elas narraram ao UOL que, naquele dia, um projeto social envolvendo treinamento de cabeleireiras e maquiadoras fazia um evento com as adolescentes, que estavam se arrumando.

No mesmo dia da divulgação da primeira entrevista, a campanha de Bolsonaro reagiu nas redes sociais e acionou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para impedir que o PT e seus aliados sigam divulgando o vídeo.

O ministro Alexandre de Moraes acatou o pedido, mas o PT recorreu.

O impacto negativo levou a senadora eleita Damares Alves e a primeira-dama Michelle Bolsonaro a procurarem as entidades que têm ligação com o projeto. As famílias exigiram a retratação de Bolsonaro.

Em outro post no Twitter, Janja contou que já atuou em um programa de proteção a crianças e adolescentes na região fronteiriça do Brasil. "Trabalhei durante anos no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes na tríplice fronteira e ouvir o 'presidente' falando que 'pintou um clima' com meninas de 14 anos me causa tanta revolta e indignação que nem consigo descrever aqui", afirmou ela.

MÔNICA BERGAMO com BIANKA VIEIRA, KARINA MATIAS e MANOELLA SMITH em sua coluna na Folha de S. Paulo, em 18.10.22, àa 11h38.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

A eficiência da justiça brasileira

É possível melhorar a atuação do Executivo para poder aumentar a contribuição da justiça para o bem-estar da Nação.

O tema está na ordem do dia. Os indicadores de eficiência interna apresentam resultados ambíguos. Quando comparados com outros países, o número de juízes por habitante e a quantidade de sentenças por juiz apontam para uma produtividade elevada, e, por outro lado, o custo do Judiciário em relação ao PIB e o tempo médio de sentenças mostram uma ineficiência relativa aqui.

Considerando que a justiça é um bem público, é necessário analisar seu impacto na eficiência da economia como um todo e como o ambiente institucional em que atua afeta seu desempenho. Uma forma para aferir seu impacto é fazer uma comparação entre o tempo médio de sentenças com a taxa de recuperação de falências. É fato: quanto maior a demora, maior é a destruição de valor.

Tomando como base o tempo médio de uma sentença do Reino Unido, o da Itália é 1,6 vez maior e o do Brasil é 4,8 vezes maior. Comparando também com o Reino Unido, o valor do que é perdido numa falência é 1,3 vez maior na Itália e 4,7 vezes maior no Brasil. A correlação é elevada e corrobora a relação de causação de que uma justiça mais demorada é mais onerosa para a sociedade.

Outro aspecto a ser considerado é comparar a complexidade institucional entre os países e o tempo médio de sentenças. Usando como indicador de complexidade o número de horas médio por empresas para pagar impostos e comparando também com o do Reino Unido, o italiano é 2,1 vezes mais complexo e o brasileiro é 13,2 vezes mais.

A ordem de causação é inversa: quanto mais complexa for a tributação, maior é a demora das sentenças. Um juiz brasileiro tem de administrar justiça num ambiente mais ininteligível. Proporcionalmente, é mais eficiente que seus colegas estrangeiros. São dezenas de impostos, taxas e contribuições a mais aqui, no Brasil.

Outro exemplo que ilustra a complexidade institucional é a indexação. Enquanto a Inglaterra e a Itália têm apenas um indexador, que é usado com parcimônia, o Brasil tem mais de dez, usados profusamente. O assunto é tão confuso que há processos sobre a indexação nos planos de estabilização que duram décadas. Centenas de milhões de reais gastos com advogados.

Uma agravante da indexação é a correção de dívidas fiscais. São corrigidas pela taxa Selic. É um contrassenso: desde o Plano Real, aumentou dez vezes mais do que a inflação medida pelo IPCA, 6.676% e 645%, respectivamente. O Estado foca primordialmente em extrair, no curto prazo, o máximo de recursos, mesmo que em prejuízo da sobrevivência econômica dos devedores.

O montante atual das dívidas fiscais equivale à metade do total de crédito do sistema financeiro nacional. Sua quase totalidade é composta da correção monetária e das multas sobre os valores originais, que fazem com que pequenos montantes se transformem em dívidas impagáveis.

O problema é agravado porque o governo entra com ações na justiça para cobrar devedores, com causas com chances remotas de sucesso. Ao todo, são 26,8 milhões de processos de execução fiscal. Há casos de processos em que a causa é de R$ 2,00, e o custo é alocado ao Judiciário, quando deveria ser alocado ao Poder Executivo. O poder público é o maior litigante no Poder Judiciário brasileiro.

As execuções fiscais representam 35% do total de casos pendentes no Brasil. Há processos que se eternizam. São 7,1 milhões de processos suspensos e entram mais processos do que saem. Na crise, a inadimplência piorou e o Estado, em vez de ser parte da solução, é parte do problema da economia, entulhando e onerando o Judiciário.

O Poder Judiciário é utilizado como cobrador de dívidas de devedores sem patrimônio para quitá-las. Há uma interpretação equivocada da Lei de Responsabilidade Fiscal no que concerne à renúncia de receitas. Não é possível falar em renúncia de receita quando o montante perseguido é inferior ao próprio custo do processo.

Agravando o quadro, quando perde, o Estado recorre sistematicamente usando prerrogativas processuais, tais como prazos diferenciados para contestação, ser um credor privilegiado na falência, em detrimento de demais credores, e a prática dos atos judiciais de seu interesse independe de prévio depósito. A justificativa para essas prerrogativas é o interesse público.

Interesse público é a promoção do emprego, da solvência de cidadãos e empresas, de um Judiciário eficiente e de ressarcir o Judiciário por serviços recebidos. Interesse público não pode ser confundido com extrativismo fiscal, um regime em que se paga apenas porque a lei prescreve.

É fato: a eficiência interna da Justiça pode ser aprimorada. Há várias ações em curso nesse sentido, com destaque para propostas do Conselho Nacional de Justiça e de trabalhos de juízes da Associação Paulista de Magistrados em conjunto com o Centro de Estudos de Direito Econômico e Social. É fato, também, que há espaços para melhorias na atuação do Executivo de todos os níveis de governo, que podem aumentar a contribuição da justiça para o bem-estar da nação brasileira.    

Roberto Luis Troster e Vanessa Ribeiro Mateus, os autores deste artigo, são, respectivamente, economista e juiza de direito. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 17.10.22, às 03h00

Bolsonaro não tem do que se queixar

Presidente reclama que o Judiciário o persegue, mas o fato é que ele faz o que bem entende na campanha, transforma a estrutura do Estado em máquina eleitoral e permanece impune

Campanha eleitoral antecipada

Há poucos dias, o presidente Jair Bolsonaro disse que “a maioria” dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) “não tem isenção”, pois “os caras têm lado político” – contra ele, naturalmente. Bolsonaro se queixou ainda de que, em “qualquer ação no Supremo e no TSE” contra ele e seu governo, essas Cortes superiores invariavelmente “dão ganho de causa para o outro lado”.

Mas Bolsonaro não tem do que se queixar: se ele ainda é presidente e pode até se reeleger, é porque as instituições, judiciais e políticas, não só foram coniventes com seus abusos, como muitas vezes os legitimaram.

Tivesse o Congresso cumprido seus deveres constitucionais, por exemplo, Bolsonaro teria sido cassado quando ainda era deputado, por seus frequentes atentados ao decoro e à ordem democrática. Mais impressionante, porém, é o catálogo de crimes de responsabilidade acumulados durante a Presidência e deixados impunes pelo Congresso.

O candidato “antissistema” de 2018, que conseguiu se eleger prometendo fazer terra arrasada da “velha política” – simbolizada pelo Centrão, comparado pela campanha bolsonarista a um bando de ladrões –, tornou-se rapidamente vassalo desse mesmo Centrão, que lhe garantiu a permanência no poder, a despeito das inúmeras razões para seu impeachment, e ainda alavancou sua reeleição. Sem o Centrão como inimigo, o bolsonarismo, como qualquer movimento populista, logo inventou outro: o Judiciário.

Retratados pelo bolsonarismo como ardilosos manipuladores, encerrados em seus gabinetes escuros, envoltos em suas togas sinistras, os magistrados foram apontados por Bolsonaro como a fonte de todos os problemas nacionais e, principalmente, como ameaça real à “liberdade”.

A realidade, contudo, é muito diferente do que a propaganda bolsonarista alardeia. Não foram poucas as vezes em que decisões judiciais impediram, por exemplo, que as robustas suspeitas de que a família Bolsonaro operou por muitos anos um esquema de rachadinha fossem devidamente esclarecidas.

Ademais, o Tribunal Superior Eleitoral parece mais ocupado em patrulhar as redes sociais do que em julgar ações contra o evidente abuso de poder político e econômico por parte do presidente, como nos atos eleitorais extemporâneos, a utilização do Palácio da Alvorada como núcleo de campanha e a transformação de comemorações cívicas e atos oficiais da chefia de Estado em comícios. Motivos para cassar a candidatura do presidente não faltaram.

Mais grave, contudo, é o sequestro das políticas públicas para fins eleitorais, escandaloso desvio que nem sequer está sendo abordado pela Justiça Eleitoral. Alimentada com cargos e verbas, a clientela parlamentar de Bolsonaro não só o blindou de um impeachment, como solapou a Constituição, o pacto federativo, a ordem jurídica, os marcos fiscais e a legislação eleitoral para fabricar incontáveis “pacotes de bondades” que se dissolverão ao fim do ano eleitoral. Em pleno segundo turno, o governo anuncia o perdão de dívidas, mais dinheiro para o Auxílio Brasil e benefícios extras para taxistas. À força de canetadas, o presidente transformou os contribuintes em financiadores compulsórios de sua campanha.

Assim como Bolsonaro atacava o Parlamento por fora, enquanto o corrompia por dentro, assim ele agride a Justiça Eleitoral por fora (bombardeando-a com acusações fraudulentas sobre a lisura das urnas) e a degrada por dentro (estraçalhando o equilíbrio eleitoral com o peso da máquina pública). Tudo sob o olhar dócil da Procuradoria-Geral da República.

Como parte de seu figurino antissistema, Bolsonaro hostilizou todas as instituições desenhadas para conter arroubos autoritários como os seus. Essas instituições, tão desmoralizadas pela retórica bolsonarista em razão de seu “ativismo”, na realidade se desmoralizaram a si mesmas por sua omissão ou cumplicidade. Freios e contrapesos foram estiolados, abrindo precedentes perniciosos para os demagogos do futuro.

Muito além de sanar as mazelas conjunturais legadas pelo desgoverno Bolsonaro, a pauta mais relevante da agenda pública nos próximos anos será restaurar a estrutura institucional degradada até a raiz pela razia antidemocrática bolsonarista.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17.10.22, às 03h00

Cynthia Fleury, a filósofa que aplica a psicanálise à política: "O ressentimento é gangrena para as democracias"

A acadêmica tem estudado as patologias sofridas pelos regimes democráticos

A filósofa e psicanalista Cynthia Fleury em Pamplona em 8 de outubro.

Magra e veemente, vestida de preto rigoroso com jeans, bota de cano alto e suéter de lã, Cynthia Fleury (Paris, 48 ​​anos) subiu ao palco no sábado, 8 de outubro, para falar sobre como curar ressentimentos no quadro da Encontros de Pamplona 72-22, realizados até 18 de outubro na capital de Navarra . Filósofa, especializada em política e psicanalista, ocupa a cátedra de Humanidades e Saúde no Conservatoire national des Arts et Métiers e é professora na École nationale supérieure des Mines de Paris (Mines-ParisTech).

Destacam-se na obra de Fleury seu estudo das patologias da democracia e sua análise de como curar aquele estado de ressentimento que, como enfatizou em seu discurso, é absolutamente estéril e "só produz estagnação". Esses sujeitos envenenados e ressentidos, para não cair em depressão, transformam o ódio que sentem por si mesmos no outro, por exemplo, o imigrante, transformando-o em objeto, quase fetiche, negativo. "Você tem que sair dessa armadilha, porque o sofrimento existe, mas não pode ficar nesse laço que implica em falta de maturidade, e prende quem sofre com isso em busca de algum sinal para validar sua tese", alertou Fleury. . "O ressentimento não é a tradução exata da desigualdade socioeconômica, é uma disfunção psíquica, uma alienação, uma gangrena que põe em risco as democracias."

Na manhã seguinte, pouco antes do voo de volta a Paris, concedeu esta entrevista para expor sua dissecação clínica e filosófica das mazelas das democracias e falou sobre suas ideias sobre como enfrentar outro dos grandes males: a crise de representatividade. O Fleury faz parte do comitê de governança que supervisiona o funcionamento e as regras da convenção de fim de vida na França, que apresentará suas conclusões sobre as leis que devem reger a eutanásia.

Pergunta: O que o levou a investigar as patologias da democracia há mais de uma década?

Resposta: Comecei em 2005 e depois com a Primavera Árabe quis ver se podíamos fazer uma tipologia de regimes democráticos de acordo com a sua idade. Ele queria estudar o processo de nascimento das democracias ocidentais para ver o que elas tinham em comum. Eu também queria saber o que diferenciava as democracias mais velhas e maduras e o que isso significava, se isso realmente importava ou não. Usei a metodologia clínica, para procurar sintomas e chegar a um diagnóstico, como na medicina. Partiu da ideia de que a relação entre doença e saúde não é impermeável, mas porosa. O normal e o patológico estão intimamente interligados. Eu venho de uma escola de psicoterapia institucional que trabalha muito com o que se chama de normopatia.

P. Como isso se traduz na filosofia política?

R. Significa partir da ideia de que as normas da sociedade são também sistemas disfuncionais.

P. Disfuncionais porque são imperfeitos?

R. As regras em uma democracia devem proteger os mais vulneráveis, mas se baseiam na ideia de que o indivíduo deve ter muito desempenho e ser muito competente. Isso é disfuncional, porque é falso epistemológica e eticamente, mas também é estúpido porque não funciona.

P. O que você descobriu sobre as patologias das democracias?

R. Vi que existem patologias intrínsecas e outras que variam conforme a idade das democracias. Interessei-me pelos avatares do individualismo e, embora naqueles anos as redes sociais não tivessem tanta presença como hoje, falei do histrionismo como uma deriva do individualismo que vimos nos políticos (Trump, Bolsonaro, Berlusconi), mas também em indivíduos. Nas redes sociais há essa hipervisibilidade, essa histeria, esse hipernarcisismo interno e ao mesmo tempo uma enorme fragilidade. Tudo isso explodiu nesta era do espetáculo, das redes sociais, do grande panóptico.


A filósofa e psicanalista Cynthia Fleury em Pamplona.

P. Que outras tendências se acentuaram?

R. Vemos uma transformação da comunidade, e a reivindicação da vítima, que é uma nova histeria, porque é outra forma de reivindicar um status identitário forte. Perversão narcisista e desparentalidade são dois tópicos que abordei. Também o que Richard Sennett chama de carisma incivil; um termo muito interessante, porque o exercício da civilidade hoje é considerado uma sujeição, uma submissão. Antes, respeitar o outro fazia parte do exercício dessa civilidade, mas hoje, para provar minha dignidade, assino esse carisma incivil.

P. Você errou em algum de seus diagnósticos?

R. No momento, não vejo onde errei, mas isso é normal porque a metodologia da filosofia política funciona a longo prazo, não sou louco de megalomania.

P. Você viu uma onda de populismo chegando como a que veio?

R. Nós filósofos somos capazes de identificar todos os ingredientes de uma revolução ou de uma reforma, de um colapso, mas não podemos identificar o momento em que tudo explode. Há décadas dizemos 'olho, atenção', e não é que estejamos errados, mas não somos precisos, não damos uma data. O processo histórico é latente e cristaliza essa sedimentação de camadas, de valores, de transformações sociais.

P. Que papel desempenha a memória histórica nas democracias adultas? E nas nascentes?

R. A democracia é o único regime político que reivindica a responsabilidade pela continuidade da história. A democracia assume responsabilidades e outros regimes não, porque é construída sobre um discurso de não impunidade. Isso significa que ele assume a responsabilidade pelo que aconteceu antes e faz parte de sua tarefa iluminar esses buracos negros na história. Quanto mais velha é uma democracia, mais o discurso do que aconteceu é divulgado. É complicado, mas é aí que reside a sua força, embora ali se liberte a dor e a injustiça.

P. O esquecimento também é necessário?

R. Usamos o esquecimento em escala individual de forma pragmática e é muito importante viver, mas isso não significa que vamos lançar um discurso de apagamento. É preciso transmitir e educar. Como diz Nietzsche, temos a faculdade do esquecimento e a faculdade da memória e assim construímos reconciliações.

P. O outro lado do ressentimento é o perdão?

R. Não. Perdoar é uma coisa que só pertence ao sujeito, e há quem diga que é um escândalo, porque o que é perdoável, bem, é e pronto, e se algo é imperdoável é um escândalo perdoar . Não podemos perdoar alguém e ao mesmo tempo lançar politicamente uma reconciliação. O perdão não deve ser instrumentalizado politicamente, mas deixado a cada um, mesmo que organizemos processos diários de reconciliação. A outra face do ressentimento é a sublimação. O ressentimento deixa você preso em um loop, é um sistema fechado, como um dogma.

P. Como ele cura?

R. O antídoto é mostrar uma dimensão criativa, conseguir humor, abertura, uma desconstrução. Como conseguir isso? Uma das grandes capacidades da democracia é que ela é uma cultura de alternativas.

P. Você defende que o ressentimento tem um componente de infantilização. Existe uma parte de não assumir o papel que se tem, a responsabilidade?

R. O ressentimento nasce em pessoas que não conseguem superar o que chamamos de angústia de separação. A necessidade de reparação, a frustração, a necessidade de proteção, tudo isso está relacionado à infância.

P. Também nasce da opressão?

R. Não, e é terrível dizer isso, mas você pode sofrer muita opressão e não desenvolver ressentimento. Essas pessoas sentem que não podem se proteger bem contra a opressão se ficarem presas ao ressentimento.

Andrea Aguillar, a autora deste artigo,  é jornalista de cultura. Graduada em História e Política pela University of Kent, recebeu uma bolsa de estudos da Graduate School of Journalism da Columbia University, em Nova York. Seu trabalho, com foco especial no mundo literário, também apareceu em revistas como The Paris Review e The Reading Room Journal. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 17.10.22, às 00:40hs.

Os cinco temas que dominaram o debate entre Lula e Bolsonaro

Entre os principais temas discutidos pelos presidenciáveis estão pandemia, fake news, economia e benefícios sociais.

Os candidatos à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) participaram no domingo (16/10) do primeiro debate na corrida do segundo turno. (Reprodução TV Bandeirantes)

No encontro, transmitido pela TV Bandeirantes e um "pool" de outros veículos, os candidatos se enfrentaram diretamente em três blocos e durou quase duas horas.

Apesar da tensão nas campanhas, o debate teve poucos momentos mais acalorados — o que se refletiu, por exemplo, no número relativamente baixo de pedidos de direito de resposta, ao contrário do que ocorreu no último debate do primeiro turno.

Em alguns momentos, Lula administrou mal o tempo que poderia usar para responder e questionar o adversário dele. No terceiro bloco, por exemplo, Lula esgotou o tempo dele quando Bolsonaro, que tenta a reeleição e está atrás nas pesquisas, ainda tinha mais de cinco minutos para falar.


A última pesquisa feita pelo instituto Datafolha, divulgada na sexta-feira (16/10) mostrou Lula com 49% das intenções de voto contra 44% de Bolsonaro. O segundo turno das eleições presidenciais acontecerão no dia 30 de outubro.

Confira abaixo uma seleção feita pela BBC News Brasil de alguns trechos do que foi discutido no debate.

Pandemia

O primeiro bloco do debate entre os presidenciáveis foi tomado pelas discussões sobre a pandemia. De um lado, Lula responsabilizou Bolsonaro por mais de 400 mil mortes de brasileiros que, segundo ele, poderiam ter sido evitadas e teriam sido causadas diretamente por atraso na compra de vacinas.

"O Brasil tem 5% da população mundial e 11% das mortes. Por que houve tanta demora para comprar vacina?", questionou o petista.

Bolsonaro se defendeu dizendo que não atrasou a vacina, pois "não havia venda em 2020".

"No Brasil, em janeiro de 2021 começaram a vacinar. Todos aqueles que quiseram se vacinar, se vacinaram. E o Brasil foi um dos países que vacinou mais rápido", afirmou o candidato do PL.

Lula, então, retrucou dizendo que esse "é um fato de concreto" de que a negligência de Bolsonaro levou brasileiros à morte na pandemia.

"A verdade é que o senhor debochou, o senhor gozou das pessoas e deixou as pessoas morrerem afogadas por falta de oxigênio em Manaus. Apareceu na TV imitando pessoas sem ar."

Bolsonaro, então, atacou Lula afirmando que "tem um vídeo de Lula dando graças a Deus que à natureza criou a covid".

"O que eu fui contra é protocolo do sr. Mandetta (então ministro da Saúde), que mandava à pessoa irem pra casa até sentir falta de ar. A vacina não é para quem está contaminado - é para quem ainda não foi", disse.

Bolsonaro também acusou o PT e políticos do Nordeste de corrupção na pandemia.

Benefícios sociais

Bolsonaro iniciou o debate dizendo que o Auxílio Brasil será mantido de "forma vitalícia", caso ele seja reeleito e que o PT era contra o benefício.

Lula respondeu dizendo que o PT havia feito proposta de Auxílio maior antes da determinação dos 600 reais. "O presidente só propunha 200 reais", disse o petista.

O petista disse ainda que "se souber planejar vai ter dinheiro para fazer as coisas" e fala em aprovar uma reforma tributária.

O ex-presidente citou feitos do seu governo: "Fizemos a maior política social que esse país já teve, geramos 22 mi de empregos" e cita criação de universidades. E questionou Bolsonaro sobre quantas universidades ele fez em seu governo.

Bolsonaro disse que "não tinha cabimento abrir universidade para ficar fechada (na pandemia)" e disse que deu anistia a dívidas do Fies.

Fake news

Uma declaração de Bolsonaro, dada em entrevista a um podcast, causou polêmica nas redes sociais nesta semana após ele narrar um episódio em que teria visto adolescentes venezuelanas em situação de vulnerabilidade no Distrito Federal. Vídeos mostram o presidente dizendo que "pintou um clima" ao passar pelas meninas que, segundo ele próprio, teriam entre 14 e 15 anos.

Bolsonaro aproveitou a pergunta de um jornalista para tocar no tema e chamar a campanha de Lula de mentirosa.

"O seu programa, influenciado por Gleisi Hoffmann, me acusou de pedofilia, tentando me atingir naquilo que tenho mais de sagrado: a defesa da família brasileira, defesa das crianças", afirmou Bolsonaro.

E usou uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tomada pelo ministro Alexandre de Moraes, que mandou excluir vídeo sobre as meninas e também proibiu que o PT o use em sua campanha.

"O sr. Alexandre de Moraes dá uma sentença contrária a essas mentiras. Diz a sentença aqui: 'A postagem realizada pela representada Gleisi Hoffmann (que representa o PT), em 15 de outubro, agora, se descola da realidade por meio de inverdades, fazendo uso de recortes em encadeamentos inexistentes de falas gravemente descontextualizadas do representante Jair Bolsonaro, com o intuito de induzir o eleitorado negativamente. Tal contexto evidencia a divulgação de fato'."

Lula, por outro lado, diz que o adversário dele tem 36 processos por fake news

"A imprensa publica fartamente que pelo menos seis ou sete mentiras por dia são contadas (por Bolsonaro). Brinca-se de contar mentira. Levanta de madrugada, tem vontade, vai e conta uma mentira, faz uma live e conta uma mentira, sabe? Levanta até uma hora da manhã para fazer live", afirmou o petista.

Meio ambiente

Outro tema muito debatido entre Bolsonaro e Lula foi o meio ambiente, principalmente o desmatamento na Amazônia.

Lula afirmou que o Brasil era reconhecido como um país que preservava o meio ambiente.

"O Brasil participou da COP-15, em Copenhagen, e de um encontro em Paris, em que era elogiado porque era o país que menos desmatava e que mais cuidava da questão ambiental. Não existiu nenhum governo que fizesse o que a gente fez na questão ambiental", afirmou.

O candidato petista dise que, caso seja eleito, vai implantar políticas de preservação que vão atrair investimento internacional para o país.

"E agora nós vamos fazer mais, porque nós vamos fazer com que a agricultura de baixo carbono possa fazer com que o Brasil receba, quem sabe, muito dinheiro da União Europeia e de outros países, por conta do sequestro de gás de efeito estufa que nós vamos fazer preservando a Amazônia, coisa que você (Bolsonaro) não sabe. Nós vamos tentar fazer da biodiversidade da Amazônia uma forma de enriquecimento daquele povo", afirmou.

Já Bolsonaro disse que a intenção do candidato petista é dar parte da riqueza da Floresta Amazônica a outros países.

"Lula, tu acabou de dizer, há poucas semanas, que ia dividir a biodiversidade da Amazônia com o mundo. Você já está se curvando ao mundo. Em vez de você falar que a Amazônia é nossa, você quer dividir a nossa biodiversidade", afirmou Bolsonaro.

O candidato à reeleição disse ainda que Lula não executou políticas para proteger a floresta durante os anos em que ele e Dilma Rousseff foram presidentes do país.

"Em 14 anos, você não fez nada. Está prometendo que vai fazer pela Amazônia agora? Você não fez nada! Você passeou por aí, nas suas viagens, mas nada além disso", disse.

Corrupção

Lula disse que houve corrupção no governo Bolsonaro durante a compra de vacinas, algo que foi investigado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

"O senhor atrasou a vacina, depois tendo um processo inclusive de corrupção definido e denunciado pela CPI. E o fato concreto é que a sua negligência fez com que 680 mil pessoas morressem quando mais da metade poderia ter sido salva. A verdade é que o senhor não cuidou, debochou, riu, dizia que quem tomava vacina virava jacaré, virava homossexual, que não podia tomar vacina. O senhor gozou das pessoas, imitou as pessoas morrendo afogada por falta de oxigênio em Manaus", disse o petista.

Bolsonaro disse que Lula mentiu e disse que "não teve corrupção porque não teve vacina no Brasil". E retrucou dizendo que o PT se envolveu em corrupção durante a pandemia.

"Corrupção fez o seu partido na covid. Quando chegou na CPI a notícia de 50 milhões de reais desviados do sr. Carlos Gabas, ex-ministro de Dilma Rousseff, que passeava de bicicleta com ela, a CPI, dos seus amigos Renan Calheiros e Omar Aziz, não quis investigar. 50 milhões torrados em uma casa de maconha, não chegou nenhum respirador, e daí sim irmãos nordestinos morreram por falta de ar, por corrupção do sr. Carlos Gabas, deixar bem claro, e, em especial, o seu governador da Bahia, Rui Costa", afirmou o candidato à reeleição.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 17.10.22

domingo, 16 de outubro de 2022

Lula enfrenta reta final liderando em algumas pesquisas que deixam margem para dúvidas

Bolsonaro está um pouco menos de 5 pontos atrás na média, mas a subestimação geral do atual presidente no primeiro turno coloca em dúvida onde cairão os decisivos 7,6% de indecisos

Lula (48,6%) está consistentemente à frente de Bolsonaro (43,8%) na corrida ao Planalto segundo todas as pesquisas realizadas após o primeiro turno eleitoral. 

Mas sua vantagem é pequena (menos de 5 pontos) e, portanto, inconclusiva, pelo menos ainda não. Na verdade, essa distância é substancialmente menor do que o número total de indecisos restantes entre os prováveis ​​eleitores. Isso deixa a batalha mais aberta, e nas mãos desse grupo de céticos que impedem qualquer um dos dois candidatos de chegar a metade mais um do total.

De acordo com as assembleias de voto, nenhum dos dois candidatos que foram para o segundo turno mal conseguiria somar apoio se contarmos como ponto de partida aqueles que já obtiveram em 2 de outubro. Não pelo menos em porcentagem: apenas 0,4 ponto a mais para Bolsonaro e míseros 0,2 para Lula. Como resultado, há tantos eleitores indecisos quanto pessoas que optaram por candidatos de terceiros no primeiro turno. Cabe lembrar aqui que todas essas quantidades são relativas: porcentagens de uma massa previamente definida como "prováveis ​​eleitores". Mas as saídas e entradas dessa massa (e, portanto, para a abstenção) contam tanto ou mais do que as transferências entre seus componentes (as candidaturas).

A maioria das pesquisas o coloca abaixo de 50% (e nenhuma além de 51, onde ele ocupa o segundo lugar). A vantagem atribuída a ele varia de 0,4 a 9 pontos. A média é 4,8. Este é um valor quase idêntico ao que resultou da primeira volta: 5.2. A maior surpresa na época foi justamente esse número, que era metade do esperado pelo consenso demográfico. Em outras palavras: o maior erro da maioria das assembleias de voto ocorreu então na subestimação do potencial eleitoral de Jair Bolsonaro. Foi quase sem dúvida a única grande falha, na verdade. Todo o resto foi cumprido conforme o esperado pelas pesquisas, que informaram corretamente os contornos essenciais do resultado: Lula estaria à frente do atual presidente, ambos estariam bem acima dos demais candidatos,

Apesar de todos esses sucessos, o foco do debate público desde a noite de 2 de outubro rapidamente se voltou para o erro com a direita. Essa fixação no erro é comum em períodos pós-eleitorais e pode ser explicada do ponto de vista cognitivo: se as pesquisas são um espelho no qual a sociedade espera se ver refletida, a distorção sempre chamará mais atenção do que o sucesso. Mesmo uma pessoa que nunca teve um espelho diante de si pode sentir seu rosto e contar dois olhos, um nariz, duas orelhas, uma boca. Da mesma forma, uma sociedade pode, desajeitada e imperfeitamente, explorar-se por meio de conversas mais ou menos gerais (nos bares, nas redes sociais ou na mídia) e ao menos saber que não houve rival realista para Lula ou Bolsonaro. Além disso, uma vez que confirmamos o que intuímos diante do espelho, a previsão torna-se paisagem. É atribuída uma probabilidade de 100% e deixamos de usá-la como critério para avaliar a qualidade da previsão. Paradoxalmente, isso chama a atenção para onde permanece a maior incerteza, precisamente o que é mais difícil para métodos desajeitados e precisos de prever.

Agora, nem tudo é viés cognitivo. Há um sentido analítico e prospectivo nessa atenção: afinal, chegando a um segundo turno com apenas dois candidatos, um hipotético erro significativo com um deles poderia significar, agora, um erro também no essencial: antecipar o vencedor. É muito cedo para adivinhar, e ainda há tempo para os indecisos se decidirem e para as pesquisas ajustarem os métodos. Mas, por enquanto, há pelo menos uma indicação para ficarmos atentos: há uma correlação negativa entre o erro que cada pesquisador cometeu com sua última pesquisa publicada sobre Bolsonaro e o voto que eles preveem para ele hoje. Ou seja: quem subestimou o atual presidente então hoje continua a tê-lo na faixa baixa, apesar de todos já assumirem que ele terá pelo menos um valor semelhante ao obtido no dia 2 nas urnas.

Embora a distância média antecipada por esses mesmos pesquisadores entre os dois candidatos seja menor do que o total de indecisos declarados, bastaria que, como aconteceu em 2 de outubro, a maioria deles decidisse pelo atual presidente para que essa vantagem fosse reduzir drasticamente. Portanto, as pesquisas não viram essa virada.

Jorge Galindo, o autor deste artigo, é analista colaborador do EL PAÍS, doutor em sociologia pela Universidade de Genebra com duplo mestrado em Políticas Públicas pela Central European University e pela Erasmus University of Rotterdam. É coautor dos livros 'The Invisible Wall' (2017) e 'La Urna Rota' (2014), e é membro do EsadeEcPol (Esade Center for Economic Policy). Publicado no EL PAÍS, em 16.10.22, às 07:15hs

Putin perde sua auréola como domador da elite russa

A guerra da Rússia na Ucrânia expõe publicamente fissuras e lutas internas na liderança político-militar de que o chefe do Kremlin se beneficiou enquanto ocorriam em privado

O presidente russo Vladimir Putin durante uma cerimônia do Dia da Nação em Moscou em 2017. SERGEI KARPUKHIN (REUTERS)

A guerra da Rússia na Ucrânia também causou um tremor entre as elites russas. As piores derrotas das forças russas na Ucrânia desencadearam uma onda de mensagens sem precedentes contra a liderança das Forças Armadas e os oficiais responsáveis ​​pela logística na batalha. A enxurrada de críticas na mídia orbital do Kremlin contra a liderança militar precedeu os golpes verbais de analistas e propagandistas da guerra contra o ministro da Defesa, Sergei Shoigu. Um cenário absolutamente impensável há apenas um ano e que simboliza as guerras internas, as fissuras nos escalões superiores da estrutura piramidal de poder e a preocupação com o futuro na Rússia de Vladimir Putin, um país governado pelo aparato de segurança, que permanece impassível enquantoseu líder continua uma corrida para a frente , mudando os objetivos da sangrenta invasão da Ucrânia, que o deixou tocado em casa e muito isolado internacionalmente.

Em outro momento, ninguém ousaria levantar a voz contra o chefe do Exército, ministro-estrela e líder nas pesquisas de popularidade pública. Shoigu, o homem que acompanha Putin há anos em suas sessões de fotos coreografadas de férias na Sibéria, nas quais o líder russo passou de posar de homem forte, a cavalo com o peito nu, a avô tomando chá em um piquenique de mesa com sal de vidro e abanadores de pimenta.

As brigas, pisadas, facadas e rivalidades nos escalões inferiores da pirâmide do poder existem há décadas, mas agora são divulgadas abertamente, com grande alarde, nos canais do Telegram e até nos meios de propaganda tradicionais. O antagonismo, por exemplo, entre suas agências de espionagem – os militares, o GRU, e o general, o FSB – tem sido lendário. Na verdade, Putin usou essas brigas para seu próprio benefício. O líder russo manteve as águas calmas nos altos escalões do poder, bem como entre as elites econômicas e políticas que compõem o tecido do putinismo, que cumpriram sua parte do trato por não criticarem o Kremlin e seguirem o padrões do sistema, a fim de conservar uma porção do bolo suficiente para enriquecer em um país com desigualdades de capital.

Mas assim como o presidente russo, ao lançar a mobilização militar, ele quebrou o contrato social com os cidadãos, a quem prometeu estabilidade ou pelo menos uma vida moderadamente previsível; A guerra na Ucrânia explodiu o status quo entre as elites político-militares, especialmente em algumas das mais visíveis -embora não por isso as mais poderosas-, onde a crítica pública às decisões estratégicas que foram tomadas na invasão.

No topo da pirâmide russa, porém, a continuidade do líder não está em questão. "Não há desafio para Putin", diz um funcionário ligado à inteligência ocidental, que estuda de perto o ambiente do líder russo há anos. “O círculo íntimo de Putin é formado por homens como ele, pessoas que também vêm da KGB e cujo poder absoluto se baseia nesse sistema, que entraria em colapso sem o líder. Imediatamente abaixo deles, eles temem o que pode vir a seguir. E, sobretudo, quanto poderiam perder e que consequências enfrentariam? “Há uma grande preocupação e começaram a surgir sintomas de que, se as derrotas continuarem no front, sem nenhum tipo de mudança de jogo, podem surgir lutas internas”, diz.

As críticas e atritos internos conhecidos nos últimos meses não parecem fazer parte de uma campanha contra o Kremlin, mas são sintomas visíveis de uma elite que se sente em crise e que Putin não está fazendo o trabalho que deveria. dele: “Ser o homem que controla as disputas por dentro”, diz Mark Galeotti. O analista, autor de vários ensaios sobre a Rússia, como Breve história da Rússia ou Temos que falar de Putin , ambos editados em espanhol por Capitan Swing, comenta por telefone que os círculos do poder russo estão "preocupados" com a falta de controle e as fissuras abertas em um sistema que gira em torno de uma única figura há duas décadas. “Isso significa que Putin será menos responsivo quando ocorrer algum tipo de crise externa; como uma doença, um protesto popular, o colapso das Forças Armadas no front ou um ataque da Ucrânia na Crimeia”, diz Galeotti. “Não há ameaça direta contra Putin, mas quando houver, ele estará muito mais vulnerável [do que antes]”, acrescenta.

A bem-sucedida contra-ofensiva ucraniana e as perdas vergonhosas das forças do Kremlin provocaram uma onda de gritos e pressão para que o Kremlin levasse a invasão a uma escala maior. Putin deu ao setor ultranacionalista parte do que ele buscava ao decretar a mobilização – que alimentou o descontentamento dos cidadãos , abalou lares e provocou a fuga de dezenas de milhares de homens do país – e ordenou uma campanha de bombardeios indiscriminados contra infra-estrutura civil ucraniano em uma suposta reação à sabotagem de sua ponte para a Crimeia.

A analista Tatyana Stanovaya, da consultoria RealPolitik, descreve com um símile o sistema de Putinismo: “Cada jogador tem sua própria zona de teste e dentro dela quase tem carta branca. É quase impossível ir mais longe. Essas zonas são diferentes em tamanho e escala de tarefas”, diz ele. Com a guerra, alguns jogadores até então marginais, congelados, ou mesmo considerados párias pelas elites gerais, passaram a ocupar o espaço de outros e vêm ganhando espaço no quadro parado do sistema.

É o caso do controverso e obscuro Yevgeni Prigozhin. Depois de anos negando qualquer ligação com a empresa mercenária Wagner —e até levando a tribunal aqueles que o vinculavam a ela—, o homem conhecido como chef de Putin (porque tem uma empresa de catering) se apresentou como o principal recrutador de empreiteiros privados para o guerra na Ucrânia - inclusive nas prisões russas - e ele pegou uma fatia maior do bolo do que tinha. Ao mesmo tempo em que empunha duras críticas à liderança militar russa por meio de seus propagandistas e da mídia com a qual lida. É também o caso do líder checheno Ramzan Kadirov, recentemente promovido a general do Exército de Putin, depois de xingar furiosamente os comandantes superiores das Forças Armadas por terem perdido a batalha de Liman.

Esses ataques à liderança militar revelam uma luta pelo poder agora que o Exército está desgastado e mais fraco, aponta o analista militar russo Pavel Luzin, que enfatiza que aqueles que estão envolvidos na guerra, mas que não fazem parte do Exército regular, , como Prigozhin e Kadyrov, estão tentando culpar as Forças Armadas por derrotas e lucros ao mesmo tempo.

O chef de Putin, por exemplo, que vai até a morte com o ministro Shoigú, a quem ele responsabiliza pela perda de algumas licitações para o Exército, agora está em melhor posição com Wagner. Enquanto isso, Kadyrov busca mais financiamento agora que os orçamentos estão instáveis ​​e a Chechênia, que recebe mais de 80% de seus fundos diretamente de Moscou, pode ser atingida. “Ele está dizendo: 'Eu posso ser um verdadeiro pé no saco e é por isso que você deveria me pagar.' Moscou está apavorada que Kadyrov e a Chechênia explodam novamente", acrescenta Galeotti.

Para o analista Nikolaus von Twickel, diretor do Zentrum Liberale Moderne e ex-assessor da OSCE na guerra do Donbas em 2014, as últimas nomeações do alto comando – Sergei Surovikin, conhecido por seu bombardeio de infraestrutura civil na Síria – não refletem uma luta pelo poder, mas tentativas "desesperadas" das lideranças político-militares (Putin e Shoigu) para melhorar o que têm. “Não vejo que as elites vão tentar algo contra Putin agora. O sistema de Putin foi construído sobre tensões entre facções, o que garante que as facções não se unam contra o próprio presidente”, diz Von Twickel. O especialista dá como exemplo Kadyrov e Prigozhin, que "devem tudo a Putin" e "podem criticar abertamente desde que sejam controlados por outros lados".

As lutas internas russas levaram à prisão de vários chefes dos canais de propaganda de Prigozhin nas redes sociais. O chef de Putin, também responsável pelos exércitos de bots que interferiram nas eleições na Europa e na América, testemunhou nestes meses várias ondas de prisões entre seus funcionários por suposta fraude; embora o verdadeiro motivo possa ser sua crítica às autoridades.

A mudança de direção de Putin também atingiu o setor ultranacionalista. Igor Girkin, conhecido como Major Strelkov, bem como outras vozes altamente críticas à condução da guerra, estão atualmente sob investigação por suas calúnias contra o alto comando, Mash , com ligações ao Kremlin, informou. O militar chegou a acusar Shoigú de ter cometido "negligência criminosa" ao planejar a ofensiva. "Não tenho base para acusá-lo de traição, mas suspeito disso", disse Strelkov em maio, quando a Rússia controlava milhares de quilômetros quadrados de território. As prisões crescentes são sinais de que há cada vez menos controle, concordam os especialistas.

Mortes misteriosas e silêncio cúmplice

Neste ambiente de desestabilização e preocupação, enquadram-se várias mortes misteriosas de pessoas do mundo empresarial e de alguns altos funcionários das administrações regionais. Da morte em circunstâncias estranhas de Ravil Magánov, diretor da Lukoil , a Alexánder Tiuliakov, diretor de segurança corporativa da empresa de gás Gazprom. “Eu não diria que foram [assassinatos] organizados pelo Kremlin, podem ser rivalidades; mas a sensação de estar nos anos 1990 está começando a se espalhar”, diz o analista Galeotti, referindo-se aos turbulentos anos pós-soviéticos.

À medida que facadas e cotoveladas surgem em alguns quartéis militares e políticos, as elites urbanas e o rosário de tecnocratas educados no Ocidente permanecem em grande parte em silêncio. Nomes como Alexei Kudrin, ex-ministro das Finanças; o diretor executivo do Sberbank, German Gref; ou a diretora do Banco Central, Elvira Nabiullina, e todos os outros tecnocratas apolíticos "se abstêm de críticas públicas, de rejeitar a guerra e se apegam a seus cargos", analisa a especialista em Carnegie Alexandra Prokorenko.

Em 21 de fevereiro, quando Putin convocou seu Conselho de Segurança para preparar sua ofensiva, o velho Putinismo desapareceu. O modelo colegiado-consultivo, no qual a opinião do ambiente presidencial era considerada importante, às vezes até definitiva, deu lugar a uma situação em que todas as decisões são tomadas por uma única pessoa: o presidente, explica Prokorenko em recente análise em que ele prevê que o sistema entrará em crise: "O problema, para os tecnocratas, é que será impossível ser eficiente entre as ruínas morais e institucionais deixadas pela guerra".

Todas essas lutas internas visíveis também trouxeram à tona um enorme medo do que poderia acontecer em uma Rússia sem Putin. Em um país onde o chefe do Kremlin e o aparato de segurança, que realmente governa o país, derrubaram completamente a oposição e a sociedade civil, e onde a maioria dos dissidentes proeminentes está na prisão ou no exílio , é complicado reconstruir uma rebelião tecido social a partir de dentro.

Alguns fizeram suas possíveis piscinas. E na Rússia de Putin, outro Putin provavelmente brotaria hoje, diz um funcionário ligado a uma agência de inteligência ocidental. Provavelmente seria um dos homens da KGB que faz parte de seu círculo íntimo. Segundo o analista Von Twickel, o atual chefe do Conselho de Segurança e seu sucessor à frente do Serviço Federal de Segurança (FSB), Nikolai Patrushev, só estariam nas possíveis piscinas "em caso de incapacidade". “Não acho provável. Seria como a transição [nos últimos momentos da URSS] de Andropov para Chernenko: sinal de que a elite não quer mudanças”, diz o analista. “A questão é que é extremamente difícil fazer uma previsão porque não existem instituições que possam servir de guia”, alerta o especialista.

MARIA R. SAHUQUILLO e JAVIER G. CUESTA, de Bruxelas e Moscou para o EL PAÍS, em 16.10.22, às 06:08hs

Bolsonaro quer destruir nosso futuro

Eu vou votar em Lula, mas não vai ser fácil encarar a urna e digitar o 13. Faz anos perdi a confiança em Lula

Foi no governo Lula que ocorreram os maiores casos de corrupção organizada da história do Brasil. Primeiro foi o mensalão onde o governo pagava uma mesada para que membros do congresso aprovassem os projetos do executivo. Um nojo! Depois vieram os casos de corrupção descobertos na Lava Jato. Na Petrobrás o governo nomeou executivos cuja função era desviar dinheiro. Essas pessoas foram descobertas, confessaram, delataram outras, devolveram parte do dinheiro roubado, e foram presas.

As provas que praticamente todo o alto escalão do PT estava envolvido são incontestáveis, muitos foram condenados e presos. Além disso, prosperou a relação espúria do governo com empreiteiras e outras grandes empresas. Elas pagavam propina para vencer concorrências e obter vantagens. Acionistas e executivos dessas empresas foram presos e fizeram delações premiadas.

Evidências das relações pessoais de Lula com muitos desses empresários abundam, e muitas delas geraram processos que envolveram Lula pessoalmente. Para mim, é impossível acreditar que Lula não estava a par do que ocorria e não deu seu aval para toda a roubalheira. Lula é inteligente demais para acreditarmos que tudo foi feito embaixo de suas barbas inocentes.

Lula foi condenado em diversos processos, em diversas instâncias, por muitos juízes, e acabou preso. E não é o julgamento tardio do STF, que anos depois decidiu que os crimes não deveriam ter sido investigados e julgados em Curitiba, que vai me convencer de sua inocência.

Apesar de tudo isso, vou votar em Lula. Prefiro o mal menor.

Não vou detalhar as horríveis características pessoais de Bolsonaro, sua falta de educação, seu machismo, a homofobia, sua falta de controle verbal e emocional, sua capacidade de mentir descaradamente, sua predileção pela violência e a apologia das armas. A meu ver, se fossem esses seus únicos defeitos, e ele fosse um democrata, até consideraria dar a ele, com nojo profundo, meu voto.

Meu maior problema com Bolsonaro envolve sua tentativa de destruir o futuro do Brasil (Exterminador do Futuro, 13 de Agosto de 2022). Eu vivi minha juventude durante a ditadura militar lutando pela volta da democracia. Felizmente, ou infelizmente, grande parte das pessoas que vão votar no dia 30 de outubro não viveram esse período, não foram educadas para entender o que ocorreu, ou já se esqueceram.

Foi uma época em que amigos simplesmente desapareciam, eram presos, torturados e mortos. A imprensa sofria censura prévia e um artigo como esse teria sido substituído por uma receita culinária ou versos de Camões. Uma época em que não podíamos eleger o presidente. Quando todas as instâncias criadas para proteger a democracia foram deturpadas, destruídas, ou tornadas impotentes.

Eu acredito que Bolsonaro, que inúmeras vezes elogiou a ditadura militar e os mais abjetos personagens da época, deseja a volta desse período sombrio de nossa história. Assim como outros líderes autoritários de esquerda e direita, Bolsonaro tem como agenda única minar aos poucos as instituições democráticas para se tornar um ditador. Ele tenta subjugar o judiciário, prega a desconfiança no processo eleitoral, e alicia a banda podre do legislativo e das forças armadas distribuindo vantagens financeiras. Se Bolsonaro tiver sucesso a democracia acaba no Brasil.

A democracia não é um regime perfeito. Sua premissa é que o povo manda através do voto e que as pessoas eleitas representam a vontade da população. O progresso de um país democrático ocorre à medida que seu povo escolhe líderes que respeitam a democracia e implementam os desejos da população. Quando isso ocorre, aos poucos (infelizmente é aos poucos mesmo) o país progride. Médicos bem formados passam a coordenar a saúde, bons economistas pilotam as finanças, e ecologistas cuidam para que o meio ambiente seja preservado.

Sabemos que um povo pouco educado é presa fácil de promessas impossíveis, de argumentos demagógicos e enganosos, como o que armar a população diminui a criminalidade. É por isso que a manutenção e o progresso das democracias depende de dois fatores: governantes que respeitem os princípios democráticos, e uma melhora gradativa do nível de educação. Só isso permite a eleição de representantes cada vez melhores.

Políticos autoritários, os realmente perigosos, como Bolsonaro, vão aos poucos desacreditando os alicerces do processo democrático (o voto, as urnas, o processo legal, o judiciário e o TSE) e ao mesmo tempo tentam retardar, destruir ou mesmo fazer retroceder a educação de seus eleitores. Quanto menor o nível educacional, mais fácil manipular e enganar a população. Esse é o maior conflito de interesse de muitos políticos: prometem melhorar a educação mas sabem que se isso ocorrer vai ficar mais difícil se manterem no poder. No caso dos políticos autoritários, como Bolsonaro, a decisão é simples. Prometem educar mas destroem o Ministério da Educação, da Ciência e Tecnologia e substituem o debate racional por lemas, crenças e palavras de ordem. E assim tentam se manter no poder pelo voto até acabarem com o voto e a democracia, se tornando ditadores.

É por esse motivo que para mim é impossível votar em Bolsonaro. No fundo acredito que é melhor um presidente corrupto ou conivente com a corrupção, mas que respeita a democracia (brigou pelo fim do regime militar, se submeteu à prisão e lutou por vias legais por sua soltura) a um que tem como objetivo exterminar nosso futuro. É mais fácil combater a corrupção do que reconstruir uma democracia. É por isso que vou votar, constrangido, em Lula.

Fernando Reinach, o autor deste artigo, é Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais". Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.10.22

sábado, 15 de outubro de 2022

O bolsonarismo e sua perversa disjuntiva

Ao usar a máquina pública para atacar institutos de pesquisa, Bolsonaro insiste na tática de sempre: impõe às instituições a disjuntiva entre a omissão e a atuação fora dos ritos

O Estado brasileiro tem sofrido a mais descarada e intensa distorção desde a redemocratização do País. O presidente Jair Bolsonaro manipula o aparato estatal para seus interesses particulares, produzindo continuamente novos abusos, numa sequência aparentemente interminável de excepcionalidades, e suscitando, por sua vez, respostas das instituições que, infelizmente, não têm sido as melhores, com outras tantas excepcionalidades. O cenário é desolador.

O abuso desta semana consistiu em usar a máquina pública para atacar, em duas novas frentes, os institutos de pesquisa. A partir de uma representação feita pela campanha de reeleição do presidente, o Ministério da Justiça requisitou à Polícia Federal a abertura de inquérito contra os institutos. Além disso, o presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Alexandre Cordeiro, abriu uma investigação contra o Datafolha, o Ipec e o Ipespe.

São duas ações inéditas e absolutamente ineptas para produzir os supostos efeitos legais pretendidos. Seu objetivo é outro: disseminar desconfiança e criar ainda mais confusão na campanha eleitoral. Usa-se supostamente a lei – o Ministério da Justiça falou em apurar eventual crime de divulgação de pesquisa fraudulenta, o presidente do Cade disse haver indícios de cartel na atuação dos institutos – para atacar a própria lei. Afinal, um dos objetivos do Direito eleitoral é prover um ambiente de tranquilidade durante a campanha, justamente o que o bolsonarismo deseja impedir com suas contínuas excepcionalidades.

Diante dessas inéditas ameaças, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, considerou que houve por parte da Polícia Federal e do Cade uma “flagrante usurpação das funções constitucionais da Justiça Eleitoral” e determinou, de ofício, a interrupção das duas investigações. Pode-se entender, não sem razão, que Alexandre de Moraes fez o que lhe cabia fazer: eliminou, pela raiz, mais uma ameaça do bolsonarismo à tranquilidade das eleições.

Entretanto, não se pode ignorar que, com a atuação de ofício do presidente do TSE interferindo em órgãos que não estão sob a alçada da Justiça Eleitoral, o bolsonarismo também atingiu seu objetivo. Obteve mais um caso em que a Justiça agiu de forma excepcional, além de seus limites legais, o que não apenas dá munição ao discurso de que Jair Bolsonaro estaria sendo indevidamente perseguido por Alexandre de Moraes, como produz um enfraquecimento do próprio Judiciário. As instituições republicanas devem atuar sempre, sem exceção, dentro da lei. A legitimidade de sua ação inclui necessariamente o estrito respeito aos procedimentos e às esferas de atuação. Ainda que possam ser justificadas pelas circunstâncias, excepcionalidades sempre desgastam o Judiciário.

O bolsonarismo impõe às instituições uma disjuntiva rigorosamente antirrepublicana: a omissão ou o abuso. Suas constantes e crescentes ameaças são tão abusadas – não há rigorosamente nenhum limite – que uma resposta dentro da lei, de acordo com os ritos previstos, parece ser insuficiente, mais se assemelhando a uma omissão. Ou seja, para não serem coniventes, as instituições são instadas a uma atuação fora dos padrões, fora dos ritos.

A ameaça desta semana é, por si só, muito grave. O governo federal conseguiu envolver até o Cade nas eleições. Toda a máquina pública – mesmo aqueles órgãos que, em tese, dispõem de autonomia e não têm relação com temas eleitorais – está orientada para reeleger Jair Bolsonaro. Mas o problema do bolsonarismo é muito mais sério do que uma campanha eleitoral sem escrúpulos. São quatro anos em que, de forma ininterrupta, Jair Bolsonaro tem imposto essa disjuntiva entre omissão e abuso sobre o funcionamento de todo o Estado Democrático de Direito.

Não há respostas fáceis para lidar com esse problema. De toda forma, há um requisito para seu enfrentamento. É preciso reconhecer, sem meias palavras, o problema: há um presidente da República deturpando profundamente a lei e a máquina pública.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 15.10.22

Orçamento Secreto: PF prende suspeitos de corrupção com emendas de relator

Município de 11,5 mil habitantes informou ter feito 12,7 mil radiografias de dedo em um ano

Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão conjunta do Congresso Nacional - Roque de Sá/Agência Senado

A Polícia Federal prendeu nesta sexta (14) os irmãos Roberto Rodrigues de Lima e Renato Rodrigues de Lima, suspeitos de inserir dados falsos em sistemas do Ministério da Saúde para justificar uma série repasses do governo Jair Bolsonaro (PL) para municípios por meio de emendas de relator.

As emendas de relator, identificadas também como RP9, são um instrumento orçamentário que permite que parlamentares façam o requerimento de verba da União sem transparência e sem detalhes como identificação de quem solicitou ou mesmo qual será a destinação dos recursos.

Em 2022, este tipo de emenda teve R$ 16,5 bilhões no Orçamento, se tornando a principal ferramenta para garantir apoio político para Bolsonaro no Legislativo e para fortalecer os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

As prisões foram expedidas pela Justiça Federal do Maranhão no âmbito da Operação Quebra Ossos, deflagrada nesta sexta-feira pela Polícia Federal em parceria com a Controladoria-Geral da União e o Ministério Público Federal.

As suspeitas são de crimes de fraude à licitação, superfaturamento contratual, peculato, lavagem de dinheiro e associação criminosa.

Cerca de 60 policiais federais cumpriram 16 mandados de busca e apreensão e os dois mandados de prisão temporária em cinco cidades do Maranhão e duas do Piauí. A Justiça ainda determinou o bloqueio de R$ 57 milhões dos alvos da operação.

Foram apreendidos com Roberto e Renato Rodrigues de Lima dois veículos de luxo, um em posse de cada irmão, além de uma arma. Não foi encontrado dinheiro em espécie. A Folha entrou em contato com o advogado dos irmãos por telefone, mas não obteve retorno.

Roberto e Renato Rodrigues de Lima atuavam como intermediários na captação de recursos de emendas do relator para pequenos municípios do Maranhão.

Segundo o Ministério Público Federal, o esquema fraudulento se inicia com a inserção de dados falsos pelos municípios maranhenses nos sistemas de dados do SUS (Sistema Único de Saúde), como Sistema de Informações Ambulatoriais e Sistema de Informações Hospitalares.

Um dos centros da investigação na Operação Quebra Ossos foram os recursos repassados ao município de Igarapé Grande, a 300 km de São Luís, onde foram detectados indícios de desvios de recursos e fraudes em contratos firmados pela cidade, segundo a PF.

Em 2020, o município informou ter realizado mais de 12,7 mil radiografias de dedo no sistema público de saúde —a população da cidade é de 11,5 mil habitantes.

Segundo a Procuradoria, o crescimento do número de procedimentos no sistema faz com que o limite para o recebimento de emendas parlamentares seja "abruptamente aumentado de maneira fictícia", possibilitando repasses bem acima do usual que seriam "desviados da sua destinação legal".

O caso de Igarapé Grande foi revelado em julho em reportagem da revista piauí, que apontou o município maranhense como o que mais recebeu recursos federais por habitante para a saúde em todo o Brasil: R$ 590 por morador.

A reportagem aponta que houve um crescimento exponencial dos atendimentos de média e alta complexidades na cidade. Foram 123 mil atendimentos em 2018, número que cresceu para 761 mil em 2019. Apenas as consultas com especialistas chegaram a 385 mil na cidade, o que daria uma média de 34 consultas por ano por habitante.

De acordo com a Polícia Federal, Roberto e Renato Rodrigues de Lima teriam sido os responsáveis pela inserção de dados falsos nos sistemas do SUS (Sistema Único de Saúde) não apenas em Igarapé Grande, mas em vários municípios maranhenses desde 2018.

Também estão sendo investigadas empresas que estão entre as que mais receberam recursos públicos da saúde entre 2019 e 2022 no Maranhão. Apenas uma delas, segundo a PF, recebeu repasses de R$ 52 milhões no período.

Foram expedidas ainda medidas cautelares que incluem o afastamento de servidores públicos suspeitos de seus respectivos cargos, além da suspensão do direito dos empresários e de empresas investigadas de participarem de licitações e de contratarem com órgãos públicos.

Em nota, o Ministério Público Federal do Maranhão informou que iniciou há três meses investigações em 46 municípios do estado com indícios de recebimento "de maneira fraudulenta" de repasses federais oriundos de emendas parlamentares.

Até esta sexta, a Justiça Federal no Maranhão havia determinado o bloqueio de R$ 78 milhões das contas dos fundos de saúde de 20 municípios maranhenses após pedido da Procuradoria. Entre os 20 municípios que tiveram as contas bloqueadas está Igarapé Grande.

Em análise preliminar da Controladoria Geral da União, foi constatado que, nos últimos cinco anos, a produção ambulatorial informada pelos municípios maranhenses cresceu 78%. O avanço dos atendimentos, contudo, não foi acompanhado de uma ampliação da estrutura de atendimento de saúde e contratação de médicos e demais profissionais de saúde nestas cidades.

Outro caso que está na mira do MPF (Ministério Público Federal) é o do município de Miranda do Norte (MA), que recebeu R$ 10 milhões em emendas este ano. Em 2020, a cidade teve uma produção ambulatorial de média e alta complexidade de R$ 330 mil. No ano seguinte, este valor saltou para R$ 9,3 milhões sem qualquer crescimento aparente das instalações e contratação de médicos.

O município informou ao Ministério da Saúde que, em 2021, foram realizadas 900 mil consultas de médico em atenção especializada. A cidade tem 29 mil habitantes e oito médicos, que deveriam cada um ter realizado 450 consultas por dia caso o número de atendimentos fossem verdadeiros.

Na avaliação da Procuradoria, há uma fragilidade do Ministério da Saúde no controle da efetiva produção ambulatorial informada pelos municípios. Nos últimos quatro anos, apenas os municípios maranhenses receberam R$ 3 bilhões de emendas parlamentares para a área de saúde.

João Pedro Pitombo, de Salvador para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente na edição impressa, em 14.10.22, às 17h30