domingo, 17 de julho de 2022

Constituição avacalhada

Os danos da PEC Kamikaze não se limitam aos estragos fiscais. Congresso conspirou para minar a confiança no País.

A PEC Kamikaze burlou normas relativas à responsabilidade fiscal e à legislação eleitoral, sob a justificativa social de amparar segmentos em dificuldades. Pilares institucionais foram derrubados para turbinar o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro. Para driblar a proibição de criar gastos em período pré-eleitoral, recorreu-se a um estado de emergência de justificativa questionável.

De olho no cálculo político, a oposição apoiou as medidas. Derramou-se dinheiro público para todos os lados: aumento do Auxílio Brasil para R$ 600,00, duplicação do vale-gás, subsídio ao transporte público de idosos, compensação aos Estados por crédito do ICMS no etanol e vales para caminhoneiros e taxistas. A festa vai custar R$ 41,2 bilhões.

O teto de gastos foi novamente desmoralizado. Os benefícios vigorarão até dezembro, mas dificilmente haverá condições políticas para cumprir essa regra. Muito pode tornar-se permanente, piorando a já grave situação fiscal. Foram desrespeitados princípios para a realização de emendas constitucionais. Contribuiu-se para solapar a segurança jurídica essencial à economia de mercado, ao desenvolvimento e à geração de emprego, renda e bem-estar. Um desastre.

Constituições representam a lei máxima de um país. Fixam limites à ação dos governantes para evitar o despotismo e a arbitrariedade, disciplinando o poder político. Garantem que direitos fundamentais não sofrerão mudanças frequentes ou autoritárias. Asseguram que as regras básicas serão estáveis, não se sujeitando à vontade dos governantes.

Por tudo isso, mudanças constitucionais devem observar ritos que permitam ampla discussão das propostas, cuidadosa formulação de seus termos e tempo para uma sadia reflexão sobre as respectivas alterações. Nos Estados Unidos, por exemplo, emendas constitucionais devem ser aprovadas não apenas pelo Congresso, mas também por três quartos dos Estados. Sua tramitação dura dois ou mais anos.

No Brasil, pelo regimento da Câmara dos Deputados, Propostas de Emenda Constitucional (PECs) são encaminhadas à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, para exame de sua admissibilidade ao longo de cinco sessões. Admitida a proposta, o mérito será examinado por uma Comissão Especial, que terá o prazo de 40 sessões para emitir seu parecer. Em seguida, a PEC será submetida a dois turnos de discussão e votação, com interstício de cinco sessões. No Senado, a proposta é apreciada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que terá o prazo de até 30 dias para dar seu parecer. O interstício entre o primeiro e o segundo turnos será de, no mínimo, cinco dias úteis. Na segunda votação, será aberto o prazo de cinco sessões, quando poderão ser oferecidas emendas que não envolvam o mérito.

Desse modo, emendas constitucionais costumam tramitar por seis meses ou mais, o que assegura o debate e a reflexão pelos parlamentares, ao lado de crítica exercida pela imprensa e pela sociedade. Ocorre que o plenário das duas Casas do Congresso pode derrubar as normas que regem a tramitação dos respectivos projetos. Neste caso, as regras básicas não valem. Foi o que aconteceu na PEC Kamikaze. O Senado a aprovou em dois turnos em apenas uma tarde, com interstício de apenas uma hora entre uma votação e outra. A PEC não passou por qualquer comissão. O plenário simplesmente acolheu o texto do relator. A Câmara, que também aprovou a proposta, foi além na sofreguidão e irresponsabilidade. Arquitetou-se uma sessão fantasma de apenas um minuto, às 6h30, para cumprir exigência de norma regimental. Um acinte.

Ao atropelar as regras, o Congresso conspirou para minar a confiança no País. As empresas perceberão que regras fundamentais do jogo podem ser alteradas à matroca. A Constituição pode ser modificada a toque de caixa, sem obstáculos. Por aí, normas tributárias poderiam ser alteradas com violação do princípio da anterioridade, pelo qual elas somente valerão no exercício seguinte. Essa regra é rigorosamente adotada na Inglaterra desde a Carta Magna de 1215.

Os danos da PEC Kamikaze não se limitam, pois, aos estragos fiscais. Ela nos ensinou que governos populistas podem alterar regras constitucionais básicas sem submeter-se tempestivamente ao debate, à investigação da imprensa e ao crivo da sociedade. Nem mesmo o regime militar foi tão longe. O risco de violação de instituições fundamentais aumentará à medida que esse processo voltar a se repetir, o que é muito provável.

É preciso discutir a criação de mecanismos institucionais que evitem a repetição da irresponsabilidade que caracterizou a aprovação da PEC Kamikaze. Sem isso, governos do turno, associados a parlamentares descompromissados com o futuro, podem mudar do dia para a noite as normas de caráter estrutural – que deveriam ser permanentes –, sem uma reflexão apropriada de seus efeitos, movidos por objetivos populistas e/ou eleitoreiros. Sem essa defesa institucional, o Brasil pode tornar-se uma república de bananas, legando-nos um futuro sombrio.

Maílson da Nóbrega, o autor deste artigo, é sócio da Tendências Consultoria. Foi Ministro da Fazenda. Publico originalmente. n' O Estado de S.Paulo, em 12.07.22

Pastores na tormenta

A política não tem o direito de convocar religiosos como cabos eleitorais e manipular as escolhas espirituais de quem busca suas próprias luzes.

A chave do cidadão não está virando bem na fechadura das instituições. A escalada da ambição mundana manipula a fé de forma profana, o Parlamento ludibria a Constituição e a violência começa a visitar as eleições.

Há, no Brasil, uma ordem constitucional que identifica um regime democrático, mas não há uma ordem cultural, um costume provido de um sentimento que caracteriza plenamente a democracia. As elites do poder não se sentem constitucionalmente iguais aos brasileiros, que acabam resignados a Deus-dará.

Políticos, ministros, juízes, procuradores, militares e policiais deveriam cumprir com seu dever atuando nos seus lugares de forma exemplar. Por mais preparados, motivados e articulados que se sintam, não podem seguir impondo doutrina própria, conceitos corporativos, sem conectividade social. O rapapé entre o Executivo e o Legislativo está desconectando a política das regras legais como moinhos viciados que se movimentam pelo vento de si mesmos.

Caneta, arma, querer é poder são falácias de força. Cegueira do topo querer se sustentar tirando a grandeza da posição hierárquica que é respeitada se aceita a contraparte de controle que a limita. Barganha, arbítrio, isso diminui a capacidade de ação democrática ao criar conexões e camuflagem entre governo e oposição.

As leis não são madeira para queimar. A maioria dos empresários e dos trabalhadores clama por um governo estável, amigo de regras, contratos, tratados, acordos à luz do dia. A minoria, amiga do usufruto de governantes, tem sido mais influente e tolera solavancos, as improvisações, pois sua forma de proteção não é a Constituição.

A desinstitucionalização geral é uma das armas combinadas da má-fé, patologia da ambivalência. Faz chantagem com a necessidade social, não apura delitos e projeta um Jesus partidário, sem ênfase poética e espiritual. Carestia, inflação, violência política, improbidade, guerras de religião – o Brasil precisa estar em mãos capazes de tornar as coisas mais bonitas para nosso povo. O mundo do progresso exige um projeto de nação em que o cidadão possa viver segundo suas próprias convicções, sem a defesa violenta de ideias ou a pressão transgressora de ninguém.

Se a Califórnia decide que contra roubo de até US$ 100 a polícia não está autorizada a agir, reconhece o fracasso das políticas de proteção social no país mais rico do mundo. Enquanto isso, aqui, a mistura de religião e política consolida a decadência do Estado Social de que nem mais Deus duvida.

Os erros se agravam quando evangélicos aceitam que o escotismo e o emotivismo interesseiro da política interfiram nas controvérsias morais das igrejas. A política não tem o direito de convocar religiosos como cabos eleitorais e manipular as escolhas espirituais de quem busca suas próprias luzes. Nem tem titularidade para se meter no direito de livre prática da fé para se beneficiar do seu uso como autocracia teológica.

Administrar seus próprios assuntos é o princípio de um sistema justo em que cidadãos livres toleram a objeção de consciência, não aceitam o preconceito nem se acham pessoas especiais, únicas e isoladas. Estados confessionais e governantes que usufruem de igrejas como bureau eleitoral não governam para iguais. A mesma limitação de competência se exige do Estado laico, se quer assegurar a liberdade de crença.

A defesa da equidade dirige-se aos princípios da justiça coletivamente partilhada, e não a discussões sobre verdade e transcendência. Se as premissas da consciência são fundamentadas na fé, as da justiça social o são na evidência, na liberdade e na igualdade. Se um religioso se corrompe e não é atormentado na sua fé, deve estar certo de que só há salvação na sua igreja. Quando enfrenta a doutrina do Estado de Direito, invoca o princípio da tolerância religiosa com um ardil. Advoga que seus fiéis é que devem separar o joio do trigo, pois não pode ser réu quem serviu a um Estado enganadoramente laico.

Melhor confessar, se arrepender. Evite o anátema, pois, neste caso, amar a justiça não significa odiar a Deus. Confie na salvação também fora da igreja.

A igreja reformada deveria estudar melhor a história do protestantismo, as revoltas e os dogmas que o formaram. E reler Martinho Lutero, que dizia que todo homem odeia a verdade, especialmente se diz respeito a ele.

Em todas as religiões ou entre ateus e agnósticos existem cidadãos exemplares. A espiritualidade ajuda muito a maioria das pessoas, a constitucionalidade ajuda todos. A intolerância a artigos de lei enfraquece os argumentos na defesa da tolerância aos artigos de fé.

Quem se acha perfeito costuma exigir pouco de si mesmo. O poder oferece sucessivas distrações, e uma das mais graves diz respeito à confusão entre a ética das relações privadas e a das relações públicas. A ética diz respeito ao ato de fazer em si mesmo. Se o ato original é imoral, suas consequências se completam.

Na vida pública, quem tergiversa pode se encontrar com a fatalidade do julgamento de seus atos. Se escapar, que se acerte com seus deuses para não ter uma velhice cheia de litígios com a consciência.

Paulo Delgado, o autor deste artigo. é sociólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 13.07.22

Pregações destrutivas

Às ladainhas armamentista e da discórdia se soma uma que visa ao desprestígio dos Poderes e das instituições do Estado.

“Se eu não estivesse armado, a minha reação teria sido um tapa nas costas, um pontapé no traseiro, no máximo um empurrão.” No entanto, após ter sido magoado pela vítima, o agressor sacou da arma que portava e atirou. Assim, com intenso sofrimento e claros sinais de arrependimento, ele forneceu uma patética lição a todos os apologistas das armas. Eu indago: quantos e quantos assassinatos teriam sido evitados, se o agressor não estivesse armado? A sua raiva, o seu ciúme, a sua frustração, seja lá o sentimento que o moveu, seriam extravasados de outra forma, de uma forma não cruenta.

As estúpidas brigas de trânsito têm levado ao crime. Uma fechada, uma brecada abrupta, uma falta de sinal, quaisquer motivos, por mais insignificantes que sejam, levam motoristas a sair do carro, discutir e, não raras vezes, tirar a vida de alguém. Motivos insignificantes provocam uma consequência extrema: interrompem a vida alheia.

Nestes e em outros casos, quem enfrenta qualquer dissabor com uma arma de fogo demonstra, primeiro, uma grande insegurança, pois necessita da arma para se sentir fortalecido. Por outro lado, ao empunhar o revólver, passa a agir com arrogância, prepotência, sentindo-se senhor absoluto da situação de beligerância. Essas condições psicológicas e a arma nas mãos constituem campo fértil para um homicídio. O puxar o gatilho é mero ato mecânico desencadeado em fração de segundos. O cérebro não consegue conter a ação que está apoiada no desejo de superação do outro.

Andar armado por que e para quê? A razão seria sentir-se poderoso, guarnecido, protegido, imune a qualquer agressão? Doce ilusão. Ledo engano. Aliás, amarga ilusão. É desnecessário ter conhecimento especializado em segurança pública para saber que, no caso de um assalto, o assaltante não dá aviso prévio. Ele investe contra a vítima de inopino, surpreendendo-a. Claro que, se esta esboçar qualquer reação, se tentar pegar a sua arma, o assaltante atirará primeiro. Na melhor das hipóteses, desarmará o assaltado, que, reagindo ou não, possibilitará ao criminoso se apossar do revólver.

Além da apologia que se faz ao porte de armas, estamos assistindo a um discurso oficial que estimula a discórdia, o antagonismo, a desarmonia entre pessoas, especialmente entre aquelas que pensam de forma diversa. A compreensão, a concórdia, o respeito pelo outro só se fazem presentes quando “você pensa como eu penso”.

As ladainhas armamentista e da discórdia estão acompanhadas por uma terceira pregação. Esta objetiva suscitar o desprestígio dos Poderes e das instituições do Estado. Esse discurso autoritário investe contra a própria democracia e contra a liberdade de pensamento.

Corroer os tecidos social e institucional parece ser o escopo prioritário de uma conduta política propositalmente voltada para a desarmonia entre a sociedade e as estruturas do Estado e entre os integrantes dos vários núcleos da sociedade, incluindo a própria família.

É claro que isso cria um caldo de cultura propício para a desarmonia generalizada. Desapreço pelo próximo, de um lado, e desconsideração pelas instituições e pela própria lei, de outro, estão conduzindo a um descaso, até desdém, pelos direitos humanos, pela liberdade alheia e pela democracia.

Ao lado dessas mazelas, assiste-se à insensibilidade de parcelas da sociedade em relação às trágicas situações que se nos têm apresentado ultimamente. Quase 700 milhões de mortes pela pandemia; enchentes; moradores de rua; fome; criminalidade crescente; e violência policial parecem que não mais incomodam. Estamos nos acostumando e convivendo sem abalos com esses dramas humanos. Desde que eles não nos atinjam, pouco importam.

O que fazer?, alguém perguntará. O que for possível, o mínimo que se fizer é o bastante. A solidariedade não evita a tragédia, mas pode minimizar as suas consequências. Um ato qualquer que nos aproxime daquele que sofre mostrará que ele não está só no mundo. Ao contrário, a insensibilidade e a indiferença conduzem à terrível sensação de abandono absoluto.

O homem não pode perder a crença no próprio homem, pois, se isso ocorrer, perderá a esperança de um porvir melhor.

Infelizmente, estamos assistindo à implantação de uma ideologia, de uma filosofia que está dificultando o viver coletivo, ao contrário do movimento que seria esperado de quem governa. Aliás, perdoem-me, nem ideologia nem filosofia, falta a este governo estrutura intelectual para criá-las. É um nada no campo da criação, mas são condutas nocivas às estruturas sociais e institucionais e podem conduzir a uma ruptura do sistema democrático.

O grande malefício desta situação que se está implantando, por meio de falas predatórias, odientas, irresponsáveis e instigantes à violência, é o risco de sua perpetuação. Mesmo com os seus autores fora de cena, ela poderá criar raízes difíceis de serem removidas. Nosso dever é, ao lado de contestá-los com veemência, produzir o humanismo, a solidariedade e o amor ao próximo que se possam contrapor à caótica e destruidora estratégia que está sendo executada.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo é advogado. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 17.07.22

O Brasil como construção coletiva

As nações mais prósperas são aquelas entendidas por seus cidadãos como um projeto de todos, para o qual cada grupo ou indivíduo contribui na medida de sua responsabilidade

O Brasil jamais se libertará das amarras que o aprisionam em um patamar de desenvolvimento humano, político e econômico abaixo de todo o seu potencial enquanto a sociedade não se assumir como a verdadeira responsável por seu próprio destino. Entre nós viceja o sebastianismo, essa eterna espera por um salvador que nunca chega. Cada ciclo eleitoral, com suas paixões de momento, reflete essa ânsia por encontrar o “painho” ou o “mito” de ocasião, aquele que, por seus atributos estritamente pessoais, haverá de nos tirar do atraso. Ao fim e ao cabo, o debate público fica reduzido a nomes, o que há muitos anos tem inspirado votos sob o signo da rejeição, não da esperança. Pouco se dialoga sobre uma ideia de país.

Esse ciclo pernicioso parece se repetir em 2022, ao menos até agora, às vésperas da campanha eleitoral oficial. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) lideram as pesquisas de intenção de voto não porque são vistos pela maioria dos eleitores como líderes de uma concertação política com vistas à construção de um Brasil melhor para todos, mas simplesmente por serem quem são, um o antípoda do outro. Tanto Lula como Bolsonaro têm a enorme capacidade, há que reconhecer, de explorar as emoções do eleitorado da forma mais nefasta possível. São hábeis em pautar o debate público nos termos em que ambos se sentem confortáveis – não raro ao rés do chão. As questões de fundo sobre as quais os cidadãos deveriam estar debatendo, sobretudo neste ano de eleições gerais, são deliberadamente negligenciadas.

Ao longo de quase 150 anos de história, o Estadão jamais se conformou com esse reducionismo. Este jornal acredita que é papel inalienável de um veículo jornalístico profissional e independente oferecer à sociedade informações confiáveis como substrato para o engrandecimento do debate público. Por meio de seus editoriais e reportagens, o Estadão tem procurado mostrar que os temas que interessam ao País podem ir muito além do que querem fazer crer os autoritários, populistas e irresponsáveis de plantão.

Justamente neste ano em que se prenuncia uma das campanhas eleitorais à Presidência da República mais violentas e mentirosas de nossa história, o Estadão não haveria de se omitir. O jornal elaborou 15 questões, publicadas no domingo passado, que podem servir como ponto de partida para um diálogo entre eleitores e candidatos sobre uma agenda mínima que o futuro governo precisará liderar se acaso quiser que o Brasil supere os obstáculos que impedem o País de atingir seu máximo potencial de desenvolvimento. São questões que se coadunam com as ideias constitutivas deste jornal, mas apenas por uma benfazeja coincidência: as indagações do Estadão sobre questões ligadas à educação, saúde, economia e política, entre outros temas, coincidem com diagnósticos de especialistas que enxergam o País muito acima das miudezas das disputas político-ideológicas momentâneas.

As nações mais prósperas, sob todos os aspectos, são aquelas entendidas por seus nacionais como um projeto de construção coletiva, para o qual cada indivíduo ou grupo contribui na medida de sua responsabilidade. É a essência da cidadania. Isso não implica, obviamente, a supremacia do pensamento único, nem tampouco majoritário, isto é, não significa impor às minorias a mera condição de espectadoras ou coadjuvantes. Trata-se, muito ao contrário, de uma exortação à consciência de cada um dos cidadãos. A sociedade é composta por indivíduos e interesses muito distintos, mas não necessariamente irreconciliáveis. Significa estabelecer consensos mínimos, a começar pela defesa da dignidade humana, e, a partir deles, avançar no que é possível por meio do diálogo, da boa política.

É lastimável que, até aqui, o debate público tenha sido pautado por questões inventadas pelos dois principais candidatos à Presidência, e não pelos problemas que tiram o sono da maioria dos brasileiros. Mas quando a sociedade souber que país deseja construir, tanto mais fácil será escolher quem está apto, ou não, a guiá-la nesse projeto.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 17.07.22

quinta-feira, 14 de julho de 2022

O mau exemplo vem de cima

Se o próprio presidente desrespeita a Constituição, militares que recebem acima do teto não têm com o que se preocupar

No governo do presidente Jair Bolsonaro, os militares ganharam projeção inaudita desde a redemocratização do País. Nas mais diferentes áreas da administração pública federal, da Saúde ao Meio Ambiente, da Educação à Ciência e Tecnologia, da Cultura à Justiça e Segurança Pública, constata-se a presença de mais militares ocupando cargos e exercendo funções civis do que já houve em todos os governos eleitos a partir de 1989. De acordo com um levantamento recente do Tribunal de Contas da União (TCU), hoje há 6.157 militares, da ativa e da reserva, atuando no governo federal.

Há muitos reparos que devem ser feitos à entrega de cargos e funções essencialmente civis a membros das Forças Armadas, cuja proximidade institucional com a Presidência da República Bolsonaro instrumentaliza por interesses particulares. Mas há previsão legal para essas designações. O problema é que todo esse prestígio que as Três Armas, sobretudo o Exército, obtiveram no atual governo tem servido de subterfúgio para que alguns militares engordem seus holerites em desabrida afronta às leis, à Constituição e ao próprio “espírito militar”. Militares de corpo e alma são bastante ciosos da obediência aos comandos da Constituição.

O Estadão teve acesso ao relatório de uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) que identificou uma série de casos de acúmulo de funções militares e civis sem qualquer tipo de amparo legal. Em muitos casos (729), a soma das remunerações desses militares ultrapassa o teto constitucional de R$ 39.293,22 por mês, equivalente ao salário pago aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Se todos esses pagamentos ilegais fossem restituídos, R$ 5,14 milhões teriam de voltar aos cofres públicos.

A CGU constatou que, daquele total de militares que atuam no governo federal, 2.327 (incluindo seus pensionistas) estão em “situação irregular”. Destes, 558 ocupam ilegalmente cargos militares da ativa e cargos civis, ou seja, estão exercendo funções estritamente vedadas aos fardados. A CGU apurou ainda que 930 militares se enquadram nos casos legais de acúmulo de funções, mas extrapolaram o prazo-limite. Por lei, militares da ativa podem ser designados para cargos de natureza civil, mas pelo prazo máximo de dois anos. 

De acordo com a CGU, o problema pode ter como causa “a eventual má-fé dos militares ao permanecerem como requisitados para atividades civis federais por tempo prolongado, nos casos em que estejam cientes da irregularidade”. A Constituição é claríssima: o vínculo civil de militares é autorizado por período máximo de dois anos, devendo o militar ser transferido para a reserva caso a situação do vínculo temporário persista.

Alguns militares, no entanto, podem se sentir autorizados a descumprir as leis e a Constituição porque, no topo da hierarquia, há um comandante em chefe das Forças Armadas que é useiro e vezeiro em afrontar o ordenamento jurídico do País. Até um dos mais notáveis traços da natureza militar – a força do exemplo – Bolsonaro parece empenhado em dilapidar.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.07.22

Ministros do STF acham que Bolsonaro quer golpe e Mourão vê magistrados ‘com medo da própria sombra’

Presidente atiça as Forças Armadas, em uma estratégia ‘kamikaze’, que pode resultar em perda de apoio no próprio Centrão

Sob o argumento de que é preciso promover uma contagem de votos paralela à do TSE, Bolsonaro atiça as Forças Armadas, em uma estratégia 'kamikaze'. 

Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral estão convencidos de que o presidente Jair Bolsonaro (PL) tem um plano para tumultuar e até impedir as eleições de outubro. Sob o argumento de que é preciso promover uma contagem de votos paralela à do TSE, Bolsonaro atiça as Forças Armadas, em uma estratégia “kamikaze”, palavra da moda, que pode resultar em perda de apoio no próprio Centrão.

Mas enquanto dirigentes do PL divergem de Bolsonaro e admitem, nos bastidores, que ele tem feito tudo para perder a disputa, o vice-presidente Hamilton Mourão – preterido na chapa pela entrada de Braga Netto – assume o discurso de defesa. A cinco meses e meio de deixar o cargo, Mourão diz não ver escalada de violência na arena política e chegou a atribuir o assassinato de um militante do PT por um apoiador de Bolsonaro a um “incidente policial”.

Em agosto do ano passado, quando blindados desfilaram diante do Planalto, Mourão foi convidado pelo então presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, para uma conversa reservada. Horas antes de a Câmara derrubar o voto impresso, Barroso queria saber se as Forças Armadas embarcariam em um golpe. O general o tranquilizou. De lá para cá, porém, o tom das ameaças só cresceu. Agora, a maioria dos magistrados tem certeza de que o presidente tentará uma ruptura institucional.

“Tem magistrado com medo da própria sombra”, disse-me Mourão, sentado numa poltrona de couro off-white, em seu gabinete. “O processo eleitoral vai ter paixões exacerbadas, mas será realizado normalmente. E o vencedor que leve as batatas”, emendou ele, rindo, numa referência à famosa frase do clássico Quincas Borba, de Machado de Assis.

'O 7 de Setembro terá um discurso aqui e ali, recheado com desfile militar, mas no dia seguinte a quitanda vai abrir com berinjelas para vender e troco no caixa para atender o freguês', disse Mourão. 

O comando da campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acusa o governo de incentivar tragédias como o assassinato do guarda municipal Marcelo de Arruda, baleado pelo policial penal Jorge Guaranho, em Foz do Iguaçu. Para Mourão, no entanto, o clima de acirramento começou com o “nós contra eles” dos tempos de Lula. “Quem semeia vento colhe tempestade”, resumiu.

Candidato a uma vaga ao Senado pelo Rio Grande do Sul, Mourão precisa do apoio do presidente em um Estado onde o bolsonarismo é forte. A reaproximação, porém, não o faz tentar convencer o homem com quem viveu às turras a ficar longe dos atos de rua do 7 de Setembro, às vésperas das eleições.

“O 7 de Setembro terá um discurso aqui e ali, recheado com desfile militar, mas no dia seguinte a quitanda vai abrir com berinjelas para vender e troco no caixa para atender o freguês”, afirmou Mourão, parafraseando Delfim Netto. Diante de tantos ataques à democracia, é preciso ver se a quitanda ficará de pé.

Vera Rosa, Repórter Especial d'O Estado de S. Paulo em Brasília-DF. Publicado originalmente em 14.07.22

Governo ganha poder para doar de cesta básica a trator na campanha eleitoral

Congresso afrouxa lei eleitoral e também torna orçamento secreto ainda mais sigiloso

Votação conjunta do Congresso Nacional, para votar projetos de lei que contrariam pareceres técnicos, lei eleitoral e até a Constituição. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Sem alarde, o Congresso aprovou um pacote que abre caminho para mais uma farra de distribuição de recursos públicos neste ano eleitoral. Em menos de vinte minutos, os parlamentares votaram dois projetos que tornam ainda mais oculto o orçamento secreto, autorizam o governo a distribuir de cesta básica a tratores no meio da campanha e permitem ao Executivo tirar verba já reservada a um município para colocar em outro, de acordo com conveniências políticas. As medidas contrariam pareceres técnicos, lei eleitoral e até a Constituição.

As propostas foram aprovadas anteontem, enquanto o Congresso estava mobilizado em torno de temas como a PEC Kamikaze, que permite ao governo conceder benefícios sociais no período eleitoral, e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que define as regras para o orçamento do próximo ano. Uma delas chegou a ser votada sem que as alterações fossem nem sequer lidas em plenário. Como a análise foi simbólica, é impossível saber como cada um votou.

Os congressistas ignoraram um relatório das consultorias da Câmara e do Senado, que considerou inconstitucional a mudança no destino final de recursos já empenhados. Segundo o texto aprovado, o governo pode retirar o dinheiro já reservado para uma obra e mudar o fornecedor que receberá o recurso, a localidade ou trocar o objeto da contratação sem nenhuma discussão ou planejamento.

Essas mudanças foram incluídas de última hora no relatório do projeto, apresentado pelo deputado Carlos Henrique Gaguim (União Brasil-TO), e os parlamentares votaram sem ler. O presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda precisa sancionar os projetos, mas, antes da votação, o Centrão já havia combinado o apoio do Planalto às propostas.

Na prática, políticos que romperem com prefeitos de determinada cidade poderão agora punir a traição, realocando os recursos em outro município. No período eleitoral, a manobra tende a virar moeda de troca. Um prefeito pode, por exemplo, perder o dinheiro já reservado para sua cidade se um candidato a deputado ou a senador considerar que ele não entregou os votos prometidos. O artifício aumenta o poder do congressista sobre o prefeito.

Técnicos do Congresso observam que a manobra fere princípios da Constituição, entre eles o que proíbe uma despesa de ser alterada de um ano para outro sem a aprovação de novo Orçamento. Além disso, pagar um recurso para um credor diferente, ou para uma obra distinta da inicialmente autorizada, desconfigura o princípio do empenho na administração pública, que consiste em definir para onde vai o dinheiro, quem vai executar e o que de fato será entregue.

A artimanha foi chamada nos bastidores de “pedalada orçamentária” e preocupa especialistas, que veem a possibilidade de bilhões do Orçamento serem manipulados para atender a interesses políticos. O relator Carlos Gaguim justificou a manobra sob o argumento de que vai possibilitar a retomada de 20 mil obras paradas no Brasil, que estariam suspensas por problemas contratuais, ao permitir alternar o fornecedor ou a localidade. A solução para esse impasse, porém, seria cancelar o recurso e emitir uma nova nota de empenho, segundo especialistas.

“Não havendo amparo na Constituição e na Lei n.º 4.320/1964 para possibilitar que um credor possa ser pago à conta do orçamento anterior, quando esse não tiver sido originalmente indicado na nota de empenho e na correspondente inscrição dos restos a pagar, não se encontra justificativa para a alteração proposta”, diz a nota da consultoria, elaborada antes da aprovação e ignorada pelos parlamentares.

Políticos mais experientes se disseram chocados com o artifício. “Trocar o credor no exercício (ano) seguinte... Gente, eu acho que eu não estou no Brasil, não”, disse o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), que é economista e especialista em contas públicas.

Outra mudança aprovada no pacote do Congresso autoriza o governo a realizar doações, incluindo cestas básicas, redes de pesca, ambulâncias, tratores e outros maquinários agrícolas em plena campanha. A medida confronta a legislação eleitoral, que proíbe essa prática. Em abril, o Congresso já havia estendido o prazo até julho. Agora, prorrogou até o final do ano. “Nós temos de mudar o que está lá na lei eleitoral. A lei eleitoral é que está errada”, disse o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) durante a votação. “Ah, bom, agora o argumento é maravilhoso”, ironizou o líder da Minoria no Senado, Jean Paul Prates (PT-RN).

No mesmo bolo de projetos, os parlamentares puseram mais uma camada de sigilo sobre os recursos do orçamento secreto. Até agora, não é possível identificar os beneficiados com o esquema do toma lá, dá cá. Apenas o nome do relator-geral do Orçamento aparece associado a esse tipo de emenda. Com o projeto aprovado na terça-feira, 11, nem isso.

A ocultação do nome do relator-geral ocorrerá quando as emendas forem remanejadas para outra rubrica, chamada RP-2, sob o controle direto dos ministérios. Com isso, o Congresso dribla a determinação judicial que obriga a dar transparência para o manejo do dinheiro público.

Revelado pelo Estadão, o orçamento secreto vai garantir a um grupo seleto de deputados e senadores definir onde devem ser aplicados R$ 19 bilhões, no próximo ano, além das emendas a que todos têm direito. O dinheiro é distribuído pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

O senador Marcos Do Val (Podemos-ES) disse ao Estadão que recebeu R$ 50 milhões em emendas por ter votado em Pacheco para a presidência do Senado. Foi a primeira vez que um parlamentar admitiu publicamente o critério de divisão do dinheiro.

Alterações após empenhos de recursos: O projeto aprovado pelo Congresso permite ao governo mudar, de um ano para o outro, o município e até mesmo o fornecedor de uma obra que já teve o recurso empenhado, ou seja, garantido no Orçamento. A prática contraria a Constituição.

Doações durante a campanha: O pacote aprovado autoriza, ainda, o governo federal a fazer doações de cestas básicas e de veículos como tratores e até a transferir emendas para entidades privadas no meio da campanha eleitoral. A prática contraria a legislação, que proíbe repasse no período da campanha.

Sem identificação: O Congresso também aumentou o grau de segredo do orçamento secreto, ao permitir que recursos das chamas emendas RP-9 sejam alocados nos ministérios sem a identificação dos parlamentares beneficiados e até do relator-geral do Orçamento.

Parecer: Os textos foram aprovados anteontem, enquanto o Congresso discutia a PEC Kamikaze. Os congressistas ignoraram relatório das consultorias da Câmara e do Senado.

Daniel Weterman, de Brasília para o Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 14.07.22.

Lula fica em suíte mais cara de hotel de luxo em Brasília; diária é de R$ 6 mil

Espaço de luxo tem dois quartos, duas salas, uma cozinha completa, dois banheiros, um lavabo e dois halls; PT diz que as despesas são pagas pelo partido


Hotel onde o ex-presidente Lula se hospedou em Brasília; petista passou dois dias na capital federal Foto: Wilton Junior/Estadão

Nos dois dias em que passou em Brasília para contatos políticos, nesta semana, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato do PT ao Palácio do Planalto, se hospedou na melhor suíte presidencial do hotel de luxo Meliá. Com 183 metros quadrados, o espaço é reservado na internet por uma diária de R$ 6 mil.

A suíte ocupada pelo petista, segundo anúncio do hotel, é destinada para hóspedes que vão se “sentir especiais”. Tem dois quartos, duas salas, uma cozinha completa, dois banheiros, um lavabo e dois halls. Há, ainda, uma sala de jantar para oito pessoas. A conta da hospedagem deve sair do Fundo Partidário. A socióloga Rosângela Silva, mulher de Lula, conhecida como Janja, se hospedou com o ex-presidente.

Líder nas pesquisas de intenção de voto, Lula está na suíte que é oferecida a preço cheio por R$ 9,2 mil, sem o desconto da internet. A decoração é composta por móveis franceses e abajures de cristal. O hotel tem outras duas opções de suítes presidenciais – um apartamento de 86 m² e outro de 102 m² –, cada uma delas com diária de aproximadamente R$ 4 mil.

O Estadão perguntou à assessoria do PT o motivo de Lula ter escolhido a suíte presidencial. Em nota, o partido informou que, durante os deslocamentos do ex-presidente, providencia “locais de hospedagem capazes de atender também a sua equipe de apoio e os dirigentes políticos que o acompanham em suas agendas, com instalações adequadas para receber convidados e realizar reuniões (salas e auditórios)”. Destacou, ainda, que “todas as despesas relacionadas aos deslocamentos de seu presidente de honra são realizadas pelo PT, conforme a lei e rigorosamente informadas à Justiça Eleitoral, que as divulga”.

Presidenciáveis

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (PL) fica em residências oficiais quando em deslocamento. No exterior, desde que assumiu, tem feito vídeos para se contrapor aos governos do PT, dizendo que não se hospeda com dinheiro do contribuinte.

Em novembro, porém, ele próprio fez uma gravação para mostrar a suíte de luxo em que ficou no Bahrein, no Oriente Médio. “Aqui a gente tem uma sala, uma sala aqui que (é) quase o tamanho do apartamento que eu morava no Rio de Janeiro. A cama bastante confortável, uma televisão (de) primeira linha.” A diária de R$ 46 mil, segundo Bolsonaro, foi paga pelo “rei do Bahrein”.

Bolsonaro colocou sob sigilo gastos do cartão corporativo, o que inviabiliza identificar despesas nas viagens internacionais. Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), publicada pela Veja, apontou que os deslocamentos do presidente e do vice Hamilton Mourão, assim como de suas equipes de apoio, custaram mais de R$ 16 milhões de 2019 até março do ano passado. Não foram encontradas irregularidades, mas a Corte apontou aumento nos gastos de viagens.

Adversária do petista, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse, por meio de assessoria, que não usa suíte presidencial “em nenhum momento”. Simone afirmou que a escolha de hospedagens é feita “levando em consideração a eficiência dos deslocamentos e dentro de um padrão do bom senso dos investimentos dessa rubrica, sem buscar luxo”. Ciro Gomes (PDT) não respondeu aos contatos da reportagem.

Por Julia Affonso, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 13.07.22

Os focos de preocupação dos EUA com eleições no Brasil

"Você está indo para um país onde o retrocesso democrático é uma preocupação real. Estamos preocupados com o atual líder do Brasil, que tem tentado minar a essência do processo eleitoral", afirmou o senador democrata Bob Menendez, de New Jersey, e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

Segundo reportagem da agência de notícias financeiras Bloomberg, Bolsonaro teria pedido a Biden ajuda para se reeleger nas eleições presidenciais de outubro (Itamaraty)

Na semana passada, parlamentares americanos adicionaram mais um elemento à lista recente de advertências que tanto o Congresso dos Estados Unidos quanto o governo do presidente Joe Biden têm enviado ao Brasil sobre a eleição no país.

Trata-se de uma emenda, entre mais de mil, incluída no projeto de Orçamento americano, que, se aprovada, prevê a suspensão de parcerias e corte de recursos americanos destinados às Forças Armadas brasileiras, caso elas abandonem a neutralidade política nos próximos meses.

A motivação, segundo apurou a BBC News Brasil, teria sido "sinais preocupantes" observados pelos parlamentares americanos de que os militares brasileiros estariam dispostos a participar do processo político-eleitoral, o que, argumentam os deputados americanos, seria um fator de instabilidade para a América Latina e para os interesses de segurança nacional dos EUA.

Bancada por seis deputados da ala mais à esquerda do partido Democrata, é possível que a emenda nem chegue a ser apreciada no plenário. Se for votada, não o será antes de dezembro, dois meses depois da eleição brasileira. E sua chance de aprovação é hoje minoritária.

Ainda assim, a manobra foi vista como uma mensagem importante. Ela seria menos uma peça legislativa e mais um recado de que os desdobramentos eleitorais no Brasil seguem sendo analisados de perto pelos americanos.

A administração Biden e boa parte do partido democrata, no entanto, tenta se equilibrar na linha tênue entre demonstrar atenção a um pleito que tem sido descrito por eles como "contencioso" e deixar claro que não estão dispostos a intervir de nenhuma maneira no processo eleitoral, que deve "ser feito por brasileiros, para os brasileiros" e seguir seu curso programado.

Recado da CIA

A proposta de emenda se junta a uma lista de ao menos outras quatro manifestações públicas feitas nos últimos dois meses que indicam uma atenção próxima de autoridades americanas ao processo eleitoral brasileiro.

Primeiro, houve a revelação, pela Reuters, de uma conversa entre o chefe da CIA (agência de inteligência dos EUA), William Burns, e auxiliares de Jair Bolsonaro (PL) em que Burns recomendava que o mandatário brasileiro deixasse de questionar as eleições brasileiras. A conversa, a portas fechadas, teria acontecido em outubro de 2021.

Bolsonaro e seus ministros negaram que ela tenha acontecido e disseram que seria "extremamente deselegante" que o chefe da CIA viesse dar "recado" no Brasil. A própria CIA não comentou o assunto.

EUA querem eleições livres e justas no Brasil

Uma semana depois, em entrevista à BBC News Brasil a subsecretária de Estado dos EUA, Victoria Nuland, afirmou que "o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que já serviram bem a vocês (brasileiros) no passado".

Com isso, ela explicitava a posição dos americanos contrária a qualquer tipo de intervenção das Forças Armadas no processo eleitoral, como defende o presidente Bolsonaro.

"Foi a declaração mais forte do governo americano sobre como se preocupa e avalia a situação", afirma o brasilianista Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly.

"Líder que minar a democracia"

Ainda em maio, senadores americanos descreveram Bolsonaro como um "líder que tenta minar a democracia" apontaram "retrocessos democráticos no país", durante a sabatina da apontada por Biden para assumir a embaixada americana no Brasil, Elizabeth Bagley.

"Você está indo para um país onde o retrocesso democrático é uma preocupação real. Estamos preocupados com o atual líder do Brasil, que tem tentado minar a essência do processo eleitoral", afirmou o senador democrata Bob Menendez, de New Jersey, e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

Em outra intervenção, Menendez citou o presidente pelo nome: "Bolsonaro tem tentado enfraquecer o processo eleitoral. Que medidas podemos tomar para apoiar a integridade e o resultado democrático das eleições?".

Bagley, escolha política de Biden que falhou em ser chancelada pela Comissão e pode ter sua indicação retirada pelo governo, criticou diretamente o presidente brasileiro, embora tenha feito ressalvas sobre a qualidade das instituições do país.

"Bolsonaro tem dito muitas coisas, mas o Brasil tem sido uma democracia, tem instituições democráticas, Judiciário e Legislativo independentes, liberdade de expressão. Eles têm todas as instituições democráticas para realizar eleições livres e justas. Eu sei que não será um processo fácil, por todos os comentários dele (Bolsonaro), mas, a despeito disso, temos todas essas instituições e continuaremos expressando confiança e expectativa de uma eleição justa", disse Bagley.

Encontro entre Bolsonaro e Biden ocorreu durante a Cúpula das Américas (Getty Images)

Maravilhado x Satisfeito

Em junho, Biden e Bolsonaro se encontraram pela primeira vez e, nas poucas palavras que disse diante do colega na presença da imprensa, Biden reafirmou confiança nas instituições eleitorais brasileiras.

Após o encontro, Bolsonaro se disse "maravilhado" com o líder americano. Já Biden teria se sentido, segundo o Departamento de Estado, "satisfeito" — e teria levado a sério supostas garantias dadas por Bolsonaro de respeito ao processo eleitoral.

Dias mais tarde, a agência de notícias financeiras Bloomberg noticiou que durante o encontro Bolsonaro teria pedido a Biden que o ajudasse a vencer Lula nas urnas em outubro.

A BBC News Brasil questionou a Casa Branca sobre o assunto. Sem negar, nem confirmar o teor da reportagem, a administração Biden respondeu que "falando amplamente, temos total confiança no sistema eleitoral do Brasil. Em uma democracia consolidada como a brasileira, esperamos que os candidatos respeitem o resultado constitucional do processo eleitoral".

Manifestantes a favor de Trump invadiram Capitólio em 6 de janeiro de 2021 (Getty Images)

A palavra em Washington é "preocupação"

"A palavra em voga sobre Brasil em Washington é preocupação. Não é à toa que temos visto esses vazamentos e declarações. A administração Biden tem deixado clara as suas preocupações publicamente", diz à BBC News Brasil Nick Zimmerman, consultor sênior do Brazil Institute, do Wilson Center, e ex-auxiliar da Casa Branca para política externa na gestão de Barack Obama (2009-2017).

Zimmerman foi anfitrião do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin que, na semana passada, deu uma palestra em Washington na qual disse que "nós poderemos ter um episódio ainda mais agravado do 6 de janeiro daqui do Capitólio".

Em transmissão ao vivo nas suas redes sociais, em 8 de julho, Bolsonaro atacou o sistema eleitoral de urnas eletrônicas e declarou que os eleitores "sabem como se preparar" antes das eleições.

"Não preciso dizer o que estou pensando, mas você sabe o que está em jogo. Você sabe como você deve se preparar, não para o novo Capitólio, ninguém quer invadir nada, mas sabemos o que temos que fazer antes das eleições", disse o presidente aos apoiadores durante a live.

A declaração gerou preocupação entre os que temem atos antidemocráticos antes ou depois da eleição, embora o presidente não tenha especificado a que ele se refere quando diz que os eleitores "sabem o que têm que fazer" antes do pleito.

"O governo Biden está preocupado com a possibilidade de uma ruptura institucional e vê com clareza a possibilidade de um 6 de janeiro no Brasil, que poderia acontecer até mesmo antes das eleições de outubro", afirma Winter. Segundo ele, a possibilidade de que Bolsonaro tente adiar o pleito de outubro está no radar das autoridades em Washington.

"Se Bolsonaro se convencer de que não tem como ganhar nas urnas, vai tentar paralisar o processo", diz Winter. As atuais pesquisas eleitorais mostram o presidente em segundo lugar, cerca de dez pontos percentuais atrás do primeiro colocado, o petista Luiz Inácio Lula da Silva.

Tanto as acusações de falta de transparência das urnas eletrônicas quanto o cenário de tensão e violência — maximizados pelo caso do assassinato de um dirigente local do PT em Foz do Iguaçu (PR) por um apoiador de Bolsonaro no último fim de semana — poderiam ser levantados como justificativas pelo governo para tentar impedir a realização do pleito, em menos de três meses. A possibilidade tem sido ventilada também em Brasília, como afirmou Elio Gaspari, colunista dos jornais Folha de S. Paulo e de O Globo.

Para o ex-embaixador americano no Brasil Thomas Shannon, o adiamento das eleições parece um risco bastante palpável.

"Se isso fosse feito, os EUA e outros países da região teriam reações bastante dramáticas. Bolsonaro estaria arriscando a própria relação Brasil-EUA, não só em termos políticos, mas econômicos também. O Brasil ficaria isolado", antevê Shannon.

Para o diplomata americano, o caso de 6 de janeiro nos EUA foi instrutivo para os brasileiros.

"Brasil e EUA são como dois espelhos que refletem um ao outro nesse momento, em sua polarização política, sua sociedade dividida", afirma Shannon.

Ele argumenta que tanto Bolsonaro quanto seu entorno, especialmente seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), estudaram detidamente os eventos de 6 de janeiro, quando uma massa de apoiadores do então presidente Donald Trump, derrotado nas eleições, invadiu o Congresso para tentar impedir a certificação da vitória de Biden. Eduardo estava nos EUA na ocasião e havia se encontrado com o núcleo trumpista um dia antes do episódio.

"Acredito que ele (Eduardo) chegou à conclusão de que o erro de Trump foi confiar na multidão de apoiadores, sem conseguir se apoiar nas forças de segurança, sem trazer consigo esse suporte institucional. Esse é um erro que eles tentam não repetir", diz o diplomata, que morou por sete anos no Brasil.

Embora admita que militares tenham se envolvido de modo "inusual" na gestão de Bolsonaro, Shannon duvida que as Forças Armadas brasileiras, como instituição, estariam dispostas a patrocinar qualquer possível tentativa de ruptura institucional proposta por ele. Mas vê nas ações do presidente, de dragar os militares para dentro do processo de apuração de votos, uma tentativa de provocar esse efeito.

Comportamento das Forças Armadas brasileiras têm chamado atenção nos EUA (Getty Images)

Apoio ou intervenção?

"Quando os deputados propõem a emenda ao orçamento sobre Forças Armadas do Brasil, estão mandando um claro recado de que estão atentos a esses movimentos. Esse tipo de mensagem, no entanto, é uma faca de dois gumes: se por um lado, mostra apoio à democracia brasileira, por outro, irrita o sentimento nacionalista do Brasil, pode soar como intromissão", diz Shannon.

A diplomacia americana estuda com cuidado seus movimentos justamente porque, há pouco mais de dois anos, se viu no lado oposto do cenário. Em 2020, era Bolsonaro quem fazia comentários sobre o processo eleitoral americano — indicando possibilidade de fraude, como defendia Trump, sem provas. À época, tais declarações geraram insatisfação em Washington, especialmente entre os democratas.

"Os EUA hoje se debatem entre expressar essa preocupação e ser cautelosos para não forçar demais a mão no assunto, o que poderia gerar efeitos negativos e levantar questionamentos dado o histórico de envolvimento dos americanos em episódios trágicos da América Latina no século 20", diz Zimmerman, em referência às ditaduras militares na região, que contaram com o apoio dos americanos.

Segundo Zimmerman, a Casa Branca não quer gerar qualquer espaço para que se diga que os EUA favorecem um dos lados. Até porque, qualquer um deles pode compor o próximo governo com quem Biden terá que negociar em pautas que lhes são caras, como o meio ambiente.

Esse seria inclusive, segundo fontes ouvidas reservadamente pela BBC News Brasil, um dos motivos pelos quais o ex-presidente Lula acabou não visitando os EUA no primeiro semestre de 2022. A campanha petista queria tentar repetir em território americano o tour que ele deu na Europa, com bons resultados políticos. A administração Biden, no entanto, sinalizou aos emissários do ex-presidente que esse não seria um momento conveniente para isso.

Para Winter, além de pouca vontade, o governo Biden tem poucas condições de mensagens mais fortes nesse momento, porque "têm muitos problemas a administrar e tem perdido poder".

Impopular, o presidente americano deve sofrer derrota nas eleições de meio de mandato no Congresso. Por mais que possa se preocupar com o Brasil, por falta de apoio parlamentar, ele sequer conseguiu, até o momento, enviar ao país um embaixador de sua confiança. O mais provável é que Washington não tenha nenhum observador diplomático do mais alto nível em Brasília durante as eleições brasileiras de 2022.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington, em 13.07.22 / publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62142759

Brasil vive 'mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política', diz americano especialista em democracia na América Latina

Petista morto por bolsonarista disse há 2 meses que policiais da esquerda seriam 'primeiras vítimas' de violência política

Arruda foi enterrado num ambiente de grande comoção nesta terça (12) (Reuters / Christian Rizz)

Nem mesmo a experiência de quem acompanha a política e as eleições na América Latina há mais de 30 anos foi suficiente para evitar o espanto que o professor americano Scott Mainwaring sentiu ao saber da morte de Marcelo Arruda, um membro do PT morto a tiros por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL).

"É um fato grave, não lembro de nada parecido no Brasil", disse à BBC News Brasil.

Scott Mainwaring é um dos maiores especialistas do mundo em política, democracias e ditaduras na América Latina. Ele já morou em países como a Argentina e o Brasil (onde fez pesquisa de campo para o seu doutorado) e fala português fluentemente. Nestes países, ele investigou a redemocratização na região e viu como, em alguns casos, esse processo envolveu casos de violência política.

Mainwaring foi professor na Universidade de Harvard, da qual é um membro associado. Em 2019, ele foi apontado como um dos 50 cientistas políticos mais citados em trabalhos acadêmicos do mundo. Atualmente, é professor de Ciências Políticas da Universidade de Notre Dame.

O americano é autor de dezenas de livros sobre a política da América Latina, entre eles: Decay and Collapse (Sistemas Partidários na América Latina: Institucionalização, Decadência e Colapso), Democracies and Dictatorships in Latin America: Emergence, Survival and Fall (Democracias e Ditaduras na América Latina: Surgimento, Sobrevivência e Queda), e Party Systems in Latin America: Institutionalization (Sistemas partidários na América Latina: Institucionalização).

Eleição ocorre em meio a polarização política (Reuters)

É com essa experiência que ele analisa, com preocupação, a escalada de violência às vésperas das eleições deste ano no Brasil.

Em entrevista à BBC News Brasil, Mainwaring diz que a morte de Marcelo Arruda é resultado da "relação tóxica" entre a violência e poder político presente no país.

Segundo ele, o Brasil, assim como os Estados Unidos, vive um ambiente de "ódio pessoal e polarização política".

Para o professor, a polarização no Brasil não vai desaparecer e os principais pré-candidatos à Presidência da República, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), precisam condenar atos de violência.

"Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante", disse o professor.

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Confira os principais trechos da entrevista:

Scott Mainwaring é um dos principais pesquisadores do mundo sobre política, democracia e ditaduras na América Latina (Matt Cashore / Harvard)

BBC News Brasil - Nas últimas semanas, ocorreram alguns incidentes violentos no Brasil relacionados à campanha política. O último foi o assassinato de um membro do Partido dos Trabalhadores (PT) praticado por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro. E isso lança algum tipo de alerta sobre o que está ocorrendo no Brasil?

Scott Mainwaring - Certamente. Não pode ter espaço para esse tipo de violência política. É um ato de criminalidade comum e, além disso, é um tipo de ato que atinge a democracia.

BBC News Brasil - Que sinal a morte de alguém nessas circunstâncias manda para a comunidade internacional?

Mainwaring - Para mim, é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. Como fato isolado, não acho preocupante. O que é preocupante é quando você combina isso com outros incidentes de violência.

Marcelo Arruda foi morto quando comemorava seus 50 anos numa festa com decoração do PT e imagens de Lula (Facebook / Marcelo Arruda)

BBC News Brasil - O que o Sr. quer dizer com isso?

Mainwaring - Me refiro a outros incidentes de violência. Estou pensando na relação da política com as milícias, com o crime organizado, nos assassinatos de candidatos a prefeitos, vereador. Quando você combina tudo isso, aí, sim, é preocupante.

BBC News Brasil - Considerando o histórico político do Brasil, quão grave é a morte de um militante político por um oposicionista?

Mainwaring - É um fato grave. Não lembro de acontecimentos parecidos no Brasil. Isso lembra, por exemplo, os brownshirts (camisas marrons) da Alemanha nos anos 1920 e começo dos 1930. Atinge de forma profunda a democracia.

[Nota: "camisas marrons" era o nome pelo qual ficaram conhecidos os primeiros integrantes de uma organização paramilitar nazista fundada por Adolf Hitler em 1921]

BBC News Brasil - O senhor mencionou os camisas marrons. Na sua avaliação, esse episódio lembra a Alemanha pré-nazismo ou a Alemanha nazista?

Mainwaring - Não quero exagerar. Na Alemanha pré-nazista isso era comum. Tanto os nazistas como os comunistas tinham milícias muito grandes, inclusive maiores que o Exército alemão naquela época. Mas vai nesse sentido. Vai nessa direção.

BBC News Brasil - Quais foram os fatores que levaram o Brasil a esse nível de animosidade que resultou, por exemplo, na morte desse membro do Partido dos Trabalhadores?

Mainwaring - Desde 2014, o Brasil sofre um processo muito grave de polarização política. E isso se acentua pela presença das mídias sociais, que exacerba a polarização política e cria uma animosidade. Elas levam essa polarização para um processo de animosidade, de ódio. É possível ter um processo de polarização que não se baseia em ódios pessoais. Mas no Brasil de hoje, como também nos Estados Unidos, você tem essa mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política.

Em ato de campanha em 2018, Bolsonaro defendeu fuzilar a 'petralhada' (YouTube)

BBC News Brasil - Considerando essa escalada de violência, o Sr. acredita que o Brasil poderia ser palco de algo semelhante à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, caso um candidato não aceite o resultado das eleições?

Mainwaring - É um risco.

BBC News Brasil - É um risco alto, médio, baixo? Como o senhor classificaria?

Mainwaring - Não acho que seja grande, mas eu diria que é médio. O fato de Bolsonaro denunciar os mecanismos eleitorais brasileiros e dar sinais de que pode não aceitar o resultado caso ele perca as eleições, é aí que reside o maior risco. Isso, para a democracia, é muito grave.

BBC News Brasil - O Brasil tem sido descrito por especialistas como um dos países da terceira onda de democratização onde os fundamentos e funcionamento da democracia iam relativamente bem. Esses episódios violentos mais recentes indicam uma deterioração da democracia brasileira?

Mainwaring - Sem dúvida. A democracia brasileira entre 1985 e 2012 ou 2014, realmente, tinha muitos aspectos altamente positivos. Acho que a degradação da democracia brasileira nos últimos cinco ou seis anos é real.

A eleição de um presidente com perfil tão autoritário como o Bolsonaro é um sinal em si mesmo.

Quando você elege um presidente iliberal, com traços muito autoritários, isso já representa um perigo para a democracia.

Os problemas antecediam a eleição de Bolsonaro, como a corrupção, os problemas econômicos, o aumento da violência e a perda de credibilidade, por um lado, do PT, e por outro do establishment ao centro e à direita.

Bolsonaro já falou em 'fuzilar' petistas e usar 'granadinha' para matar Lula e políticos opositores (Carla Carniel)

BBC News Brasil - Considerando a quantidade de armas circulando no Brasil, o Sr. teme que o país vá na direção de uma realidade em que atos de violência política sejam mais comuns? Há ambiente para uma deterioração ainda maior?

Mainwaring - Isso é possível e acho que não devíamos subestimar o quanto isso já aconteceu. O exemplo mais famoso é o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Mas também já aumentou o número de assassinatos de candidatos a prefeito e vereador. Isso é grave e poderia se acentuar, mas não vejo como algo inevitável.

BBC News Brasil - O nível de polarização tende a piorar ou melhorar até as eleições?

Mainwaring - Acho que vai piorar, porque a campanha política vai ser, certamente, entre Lula e Bolsonaro. E 40% do país tem ódio do Lula e outros 40% têm ódio do Bolsonaro. A tendência provável de Lula não vai ser polarizar. Ele vai polarizar contra o Bolsonaro, mas não vai assumir posições radicais. Mas Bolsonaro sempre polariza e certamente ele vai pintar Lula como um diabo. Eu acho quase inevitável que a polarização se exacerbe nos próximos meses. Agora, depois da eleição é um momento de possível diminuição da polarização. Os dois candidatos vão ter que costurar alianças para governar o país.

BBC News Brasil - Qual é a responsabilidade de Lula nesse cenário de polarização?

Mainwaring - Acredito que o Lula poderia polarizar contra Bolsonaro, mas buscar o eleitor médio. Lula, provavelmente, vai se posicionar para ganhar o centro do Brasil. A probabilidade de ele ganhar aumenta se ele pode capturar o centro do país. Para mim, a estratégia mais óbvia do Lula seria lógico denunciar o Bolsonaro, polarizar contra ele, mas se posicionar como uma alternativa sensata, uma alternativa viável ou uma alternativa que no governo não vai ser radical, não vai polarizar.

BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem sido acusado por alguns críticos de incentivar os seus apoiadores contra esquerdistas. Por outro lado, alguns dias atrás, o presidente Lula agradeceu a um membro do Partido dos Trabalhadores que atacou um manifestante antilula. Na sua avaliação, é justo dizer que Lula e Bolsonaro são igualmente responsáveis por esse ambiente de tensão que a gente vê no Brasil?

Mainwaring - Teria que estar no Brasil para fazer uma avaliação mais equilibrada sobre essa pergunta.

Lula parabenizou um ex-vereador do PT que agrediu um empresário em 2018 num protesto contra o ex-presidente (Reuters)

BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem questionado, ainda que sem apresentar provas, a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro. Os militares, que são muito próximos do presidente, têm colocado a integridade do sistema em dúvida. O senhor acredita que as Forças Armadas brasileiras vão aceitar o resultado das eleições se Bolsonaro perder?

Mainwaring - Se Lula ganha por uma vantagem razoável, acho que a tendência dos militares, neste caso, é aceitar o resultado. E se a eleição for muito apertada? Aí, digamos, teria mais espaço para os militares não aceitarem. Acho, de qualquer maneira, pouco provável que os militares não aceitem [o resultado]. Mas essa possibilidade aumenta se a eleição for extremamente apertada.

BBC News Brasil - O senhor é um dos principais especialistas em democracia, ditaduras e ditaduras militares na América Latina. Na sua avaliação, existe algum espaço para uma ruptura democrática no Brasil hoje?

Mainwaring - Para a ruptura clássica via golpe militar, acho que não há espaço. Desde o fim da Guerra Fria, a maneira mais frequente de a democracia se romper é pela via do que chamamos de "executive takeover". Seria, digamos, quando o presidente, ao longo do tempo, degrada a democracia a tal ponto que ela deixa de ser um regime democrático. Um exemplo clássico é a Venezuela pós-Hugo Chávez. Outro exemplo claro é a Nicarágua e o regime de Daniel Ortega. Mas poderíamos pegar um caso como a Hungria de Viktor Orbán. Esse risco eu acho que é real, especialmente se Bolsonaro ganhar de novo. O risco de ele procurar concentrar mais o poder... os ataques dele ao STF são um indicador nefasto. Agora, Bolsonaro não deverá ter uma maioria no Congresso e isso dificulta as coisas para ele.

BBC News Brasil - Nos últimos anos, houve um relaxamento das normas no Brasil em relação à compra de armas e alguns especialistas dizem hoje que o Brasil tem mais armas circulando hoje do que no passado. Considerando todo esse ambiente de tensão das nossas eleições, quão preocupante é termos uma eleição neste ambiente?

Mainwaring - Não sei quão preocupante isso é para a eleição. Acho que (assassinatos como o de Marcelo) são um episódio raro e que não se repetem muito. O que é mais preocupante em termos do aumento de número de armas é a prática quotidiana da democracia nas áreas pobres do Brasil como as favelas do Rio de Janeiro. É o controle que as milícias e as organizações criminosas exercem nessas áreas e na região amazônica. Eu diria que aí a democracia brasileira sofre muito e isso não é uma novidade.

BBC News Brasil - O senhor sente que há uma preocupação maior neste ano, fora do Brasil, em relação às eleições deste ano na comparação com outros anos?

Mainwaring - Certamente. A preocupação não é porque o sistema eleitoral seja frágil, mas é que um dos candidatos, Bolsonaro, poderia não aceitar o resultado.

BBC News Brasil - Existe, na sua avaliação, algum sinal de que essa tensão que existe hoje possa se dissipar depois das eleições? Ou esse nível de polarização é algo que veio para ficar e que vai demorar um tempo para desaparecer, se é que vai desaparecer?

Mainwaring - Se Lula ganhar, vai depender de como ele governará. A polarização não vai se dissipar. Não há nenhuma forma para que isso passe, mas poderia diminuir. E de quê maneira? Se o governo de Lula for exitoso, a tendência é diminuir a polarização. Por outro lado, se ele toma posições mais moderadas, isso ajudaria a diminuir a polarização. Por outro lado, se se repetem os casos de corrupção, se a economia não retomar um caminho mais positivo, se a violência não diminuir, aí a polarização provavelmente não vai diminuir.

BBC News Brasil - O Sr. mencionou que a morte de Marcelo Arruda é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. O que é exatamente os atores políticos podem ou deveriam fazer para que episódios como esses não acontecessem?

Mainwaring - Para os candidatos Bolsonaro e Lula, sobretudo porque são os únicos que têm uma chance viável, eles têm que denunciar essa violência. Isso é muito importante. Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante. Você tem que renunciar o uso da violência.

BBC News Brasil - Numa declaração, o presidente Bolsonaro disse o seguinte: "Vocês viram o que aconteceu ontem? Uma briga entre duas pessoas lá em Foz do Iguaçu? Bolsonaro isso não sei o que ela. Agora ninguém fala que o Adélio", que é a pessoa que o esfaqueou em 2018 e que foi filiado ao PSOL. Nas suas redes sociais, ele não chegou a lamentar a morte do Marcelo e acusou a esquerda de violenta. Esse tipo de declaração ajuda a acalmar os ânimos?

Mainwaring - Evidente que não. Agora, eu não sabia do incidente no qual o Lula aplaudiu a agressão de um petista contra um Bolsonaro. E isso também, no meu ver, é lamentável. Os dois têm que se pronunciar contra o uso da violência.

Leandro Prazeres, da BBC News Brasil em Brasília, em 13.07.22 - originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62144553

terça-feira, 12 de julho de 2022

Sérgio Moro vai disputar vaga ao Senado pelo Paraná

Ex-juiz lançou pré-candidatura pelo seu Estado de origem após ter transferência de domicílio eleitoral a São Paulo negada pela Justiça Eleitoral


Após ter sua transferência de domicílio eleitoral barrada da Justiça Eleitoral, Moro lança pré-candidatura ao Senado pelo Paraná Foto: Werther Santana/Estadão

A primeira disputa eleitoral do ex-juiz federal e ex-ministro Sérgio Moro (União Brasil) será por uma vaga ao Senado pelo Paraná. Quase um mês após anunciar que seria candidato pelo Estado, ele acabou com o suspense sobre o cargo e confirmou a pré-candidatura na manhã desta terça-feira, 12, em entrevista coletiva em um hotel, no Centro de Curitiba.

“Sou pré candidato ao senado pelo Paraná, a minha terra”, disse Moro, em um vídeo logo na abertura do evento. Na sequência, ele relembrou a atuação na Operação Lava Jato e o combate ao crime organizado e narcotraficantes.

Moro estava ao lado do presidente do diretório municipal do União Brasil, o deputado federal Ney Leprevost. Os presidentes estadual e nacional do partido, os deputados Felipe Francischini e Luciano Bivar, não estiveram presentes. Francischini teve um problema de saúde e precisou de atendimento médico antes da coletiva.

Após ter sua transferência de domicílio eleitoral barrada da Justiça Eleitoral, Moro lança pré-candidatura ao Senado pelo Paraná

“Precisamos de novas ideias e de renovação”, disse. “O Paraná precisa de vozes fortes no Senado, lideranças que não se omitam e não sumam do cenário político. A minha carreira pública, como juiz e como Ministro, me dá credibilidade e legitimidade para ser esse representante do povo paranaense”, afirmou.

Antes de encerrar o pronunciamento que precedeu a entrevista coletiva, Moro citou o poeta curitibano Paulo Leminski, recordando o poema “Incenso fosse música”: “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é, ainda vai nos levar além”. “Esse é o objetivo dessa jornada. Nada, nada vai nos deter”, destacou.

Disputa ao Senado

Na disputa ao Senado, as pesquisas eleitorais já divulgadas apontam que o ex-juiz e o senador Alvaro Dias (Podemos) brigam pela vaga. Entre a última semana de junho e a primeira de julho, três pesquisas de institutos diferentes mostraram que o cenário está indefinido para o Senado.

A diferença entre os dois pré-candidatos oscila entre 7% e 10% das intenções de voto. Moro apareceu à frente apenas no levantamento do Real Time Big Data, com 30% a 23% sobre Dias. A pesquisa Ipespe mostrou o senador na dianteira, 31% a 24%. Já o levantamento da IRG Pesquisas indicou Dias com 32%, contra 22% do ex-juiz.

A sondagem do Ipespe mediu também a rejeição dos candidatos ao Senado no Paraná. Moro lidera com 31% daqueles que não votariam “de jeito nenhum”. Dias aparece em terceiro, atrás de Dr. Rosinha (PT), com 17%. Outro fator a ser considerados nas pesquisas é a quantidade indecisos e daqueles que não votariam nos pré-candidatos apresentados, que varia de 20% a 30%.

Alvaro Dias articulou a entrada de Moro no Podemos, ainda antes da mudança do ex-ministro para o União Brasil, no fim de março. Três meses e meio depois de desistir da candidatura à Presidência, que era apoiada pelo senador, o ex-juiz vai disputar contra o “padrinho político”.

Ambos têm se tratado publicamente da, até então, possível disputa com respeito e civilidade. “É um político que respeito. Corremos em raias separadas. (Precisa ver) se afinal de contas, ele será candidato ao senado ou uma outra situação. Caso se confirme, vou conduzir no mais alto nível, sempre tive essa postura de construção e de jamais proceder ataques”, afirmou Moro.

No mês passado, entre a possível corrida pelo Planalto, como representante da chamada terceira via, e a pré-candidatura ao Senado pelo Paraná, Moro viu frustrados os planos de se candidatar a uma vaga no Congresso por São Paulo. Ele teve a transferência de domicílio eleitoral negada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), por não ter vínculo com o Estado. À época, o ex-juiz discordou, mas disse que respeitava a decisão.

“Havia intenção e desejo de que eu me colocasse como pré-candidato à Presidência, mas seria necessário ter estrutura partidário robusta para concorrer em condições de igualdade. Não foi possível no Podemos”, disse. “O destino escreve certo por linhas tortas, estou radiante no Paraná por poder colocar meu nome como pré-candidato ao Senado”, apontou.

O ex-ministro nasceu em Maringá (PR) e foi o responsável por julgamentos da Operação Lava Jato como juiz federal de primeira instância, de 2014 a 2018. Depois, deixou a magistratura para assumir o Ministério da Justiça do recém-eleito, à época, presidente Jair Bolsonaro. Moro anunciou a saída do cargo em maio de 2020.

Ederson Hising, especial para o Estado de S. Paulo, em 12.07.22

Como partidos políticos gastam milhões em dinheiro público praticamente sem fiscalização

        Entre as eleições de 2014 e 2018, o Brasil não assistiu apenas a uma mudança no perfil do presidente eleito. A matriz de financiamento da         política no país também deu uma guinada: a participação do dinheiro público nas despesas das campanhas saltou de quase 4% para 69% no         período, de R$ 189 milhões para R$ 2,09 bilhões.

Brasil mudou o modelo de financiamento da política, mas praticamente não alterou as regras do jogo ou a estrutura de fiscalização - o que acaba favorecendo a corrupção (Getty Images)

Nesse meio tempo, foram aprovados a criação do fundo eleitoral, que injetou R$ 1,7 bilhão em recursos públicos nas campanhas, e o reforço do fundo partidário, cujo orçamento mais que dobrou, de R$ 371 milhões para R$ 888 milhões nesses quatro anos.

O país mudou o modelo de financiamento de campanhas e partidos, mas praticamente não alterou as regras do jogo ou a estrutura de fiscalização. Como resultado, parte dos bilhões que alimentaram as eleições foi gasto com pouco ou sem nenhum escrutínio.

Um exemplo: nem todas as despesas do fundo eleitoral passam pela análise da Justiça Eleitoral. Como o volume de informações a cada pleito é enorme - foram pouco mais de 28 mil candidatos em 2018 -, a fiscalização é feita por amostragem. Via de regra, apenas as candidaturas vencedoras têm as contas verificadas.

As estatísticas mostram que a maior parte dos gastos está de fato concentrada nos vencedores - de acordo com um cálculo feito pelo professor de direito eleitoral Filippe Lizardo, em 2014, os 7% do total de candidatos que foram eleitos concentraram 63% das movimentações de receita.

Os escândalos recentes envolvendo candidaturas laranjas nas eleições do ano passado, entretanto - em que partidos usavam candidatas de fachada para cumprir as cotas obrigatórias para mulheres e desviar os recursos para particulares ou para formação de caixa 2 -, mostraram que há casos importantes de corrupção que, dessa forma, acabam escapando da fiscalização do Estado.

Especialistas em contabilidade eleitoral afirmam que a Justiça não tem estrutura para avaliar todas as contas, mas ressaltam que a própria regulamentação do fundo eleitoral abre uma série de brechas para corrupção.

Gráfico com a composição das despesas de campanha

Ela não proíbe, por exemplo, que candidatos contratem empresas de familiares ou que os fornecedores que prestam serviço para as campanhas subcontratem outras firmas - o que permite, por exemplo, que uma gráfica que claramente não tenha infraestrutura para entregar os milhões em santinhos declarados na prestação de contas alegue que repassou o trabalho para outra empresa.

O fundo eleitoral foi criado como alternativa ao financiamento privado de campanha, que é pano de fundo de alguns dos maiores casos de corrupção da última década e que foi considerado inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2015.

Diante dos escândalos recentes, pelo menos dois projetos surgiram do Congresso neste ano com a proposta de acabar com o fundo eleitoral - o que divide especialistas.

Ele não é, entretanto, a única fonte de dinheiro público usada por partidos políticos - ou que tem problemas na maneira como está estruturado.

Fundo partidário: TSE ainda julga contas de 2014

Mais antigo que o fundo eleitoral, o fundo partidário está previsto na Constituição de 1988, mas foi apenas recentemente que ele passou a chamar atenção, por movimentar cifras cada vez maiores.

"Em 2014, o Congresso se deu conta de que o STF iria julgar inconstitucional o financiamento privado de campanha e deram um jeito de aumentar o valor do fundo", diz Lizardo, que já foi chefe da seção de contas eleitorais do TRE-SP.

Em setembro de 2015, o Supremo proibiu o financiamento privado de campanha. Cinco meses antes, em abril daquele mesmo ano, uma emenda à proposta de Orçamento relatada pelo senador Romero Jucá (MDB-RR) aumentou a previsão de repasse para o fundo partidário em três vezes, para quase R$ 900 milhões.

O texto foi aprovado sem vetos pela presidente Dilma Rousseff, que não queria se indispor com o Legislativo e perder ainda mais apoio entre deputados e senadores.

Gráfico mostra evolução do fundo partidário

No caso do fundo partidário, porém, a avaliação da Justiça Eleitoral é mais minuciosa. Como conta Henrique Neves da Silva, ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e presidente do Ibrade (Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral), técnicos da Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias (Asepa) do TSE ou dos Tribunais Regionais Eleitorais analisam cada nota fiscal apresentada pelas legendas.

O problema: isso leva muito tempo. Hoje estão sendo julgadas as contas de 2014 apresentadas pelos 35 partidos. Ou seja, há ainda cerca de R$ 3,6 bilhões em recursos públicos ainda não avaliados pela Justiça - e o prazo de prescrição é de 5 anos.

"O fundo partidário é uma caixa-preta", diz Marcelo Issa, coordenador do movimento Transparência Partidária.

Procurador Regional Eleitoral de São Paulo, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves reconhece que a Justiça Eleitoral não tem estrutura para dar conta da demanda de forma célere - "a gente precisaria ter 10 vezes o tamanho de uma (auditoria) Ernst&Young pra conseguir fiscalizar isso tudo" -, mas pondera que "é de interesse dos partidos protelar ao máximo, por causa da prescrição".

Nesses casos, a avaliação detalhada muitas vezes não tem efeito prático, já que os partidos não podem sofrer sanções por eventuais irregularidades, mesmo que elas sejam encontradas.

No início de abril, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, criticou emendas feitas ao PL 1321/19, que anistia partidos que cometeram infrações eleitorais (Najara Araujo / Câmara dos Deputados)

Na prática, diz ele, os partidos costumam, de antemão, entregar a documentação incompleta - e muitas vezes fora do prazo. A fiscalização, por sua vez, leva três ou quatro anos para detectar a falta de algum comprovante - que, a essa altura, muitas vezes nem existe mais.

Apesar de a contabilidade eleitoral (ou seja, das campanhas) ser automatizada desde 2002, a prestação de contas dos partidos era feita em papel até 2017. E ainda que o sistema seja hoje digital, ele não é alimentado em tempo real - os partidos têm até abril do ano fiscal seguinte para apresentar os documentos.

O movimento Transparência Partidária já propôs a mudança, inclusive para que os dados estivessem disponíveis para a sociedade civil em um prazo mais curto, mas a sugestão foi rejeitada por advogados e representantes de 32 dos 35 partidos, diz Issa.

Ele elenca ainda outro problema, esse comum ao fundo partidário e eleitoral - o das rubricas excessivamente genéricas, que dificultam a identificação da natureza da despesa e, portanto, o destino de fato do recurso público.

No relatório sobre as contas dos partidos apresentadas em 2017, o Transparência Partidária apontou que 45 das 270 categorias de despesas presentes no Sistema de Prestação de Contas Anual (SPCA) eram excessivamente abrangentes. Juntas, elas responderam por 17,4% das despesas totais dos partidos em 2017, mais de R$ 120 milhões.

Apenas a rubrica "Serviços técnicos-profissionais - Outros serviços técnicos e profissionais - Ordinárias" concentrou R$ 44,9 milhões. "Assunção de Dívidas de Campanha - Dívidas de Candidatos - Despesas Eleitorais" somam outros R$ 22 milhões.

"As empresas são submetidas a um escrutínio muito maior", compara o procurador Luiz Carlos Gonçalves, que defende maior transparência "porque, afinal, trata-se de recurso público, que o Brasil poderia usar para outros fins".

Financiamento público vs. privado

Em meio aos escândalos de candidaturas laranjas que atingiram o partido do presidente Jair Bolsonaro, o PSL, o senador Major Olímpio, também filiado à sigla, apresentou em fevereiro um projeto de lei para acabar com o fundo eleitoral.

"Nos casos que estão aí manifestos em inúmeros partidos, está cada vez mais clara a falta de critérios na própria lei e ainda a imoralidade de usar recurso público, no caso, de R$ 1,7 bilhão (do fundo). A lei é absolutamente aberta. A distribuição é feita ao bel-prazer do dirigente partidário", disse ele na ocasião.

Além do PL 555/2019, também foi protocolado neste ano um outro projeto para acabar com o fundo eleitoral, o PL 748/2019, de autoria do senador Marcio Bittar (MDB-AC).

Casos de desvio de verba do fundo eleitoral por meio de candidaturas laranjas motivou propostas para acabar com financiamento público de campanha (Cecilia Tombesi / BBC)

Especialistas avaliam, entretanto, que o problema da corrupção no sistema político não se deve necessariamente ao fato de o financiamento ser público ou privado.

Rumbidzai Kandawasvika-Nhundu e Yukihiko Hamada, especialistas do International Idea, organização sem fins lucrativos que conta com uma base de dados com informações sobre o financiamento da política em 180 países, ressaltam que não existe um modelo ideal.

Seja com dinheiro público ou vindo do setor privado, dizem, o que favorece a corrupção é a falta de fiscalização ou de uma legislação rigorosa de prestação de contas ou, no caso de recursos públicos, de como o dinheiro deve ser gasto.

"Esse (o financiamento de partidos e eleições) é um desafio em todas as democracias, especialmente em um momento em que a antipolítica predomina", avalia a cientista política Silvana Krause, pesquisadora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

A especialista pondera que, hoje, a sociedade percebe que foi um equívoco a avaliação de que o problema da corrupção na política brasileira estava relacionado exclusivamente ao fato de que eram empresas privadas que financiavam campanhas.

Krause destaca que o sistema político segue altamente concentrador de recursos, à medida que o dinheiro é repassado para os diretórios nacionais, que têm completa autonomia para distribuí-los da forma como quiserem.

Esse tipo de arranjo favorece a perpetuação dos "caciques" e a formação de oligarquias nos partidos - que, em última instância, facilitam a corrupção.

Relator do PL 1321/19, que tratava da duração dos mandatos de dirigentes dos partidos, deputado Paulinho da Força incluiu emenda da anistia (Luís Macedo / Câmara dos Depuitados)

Nesse sentido, para Lizardo, além de estabelecer critérios de distribuição interna dos recursos, a legislação deveria ter regras de "democracia intrapartidária" mais rigorosas, normas específicas para balizar a aplicação dos recursos - que proibissem a contratação de parentes, por exemplo - e o fortalecimento da Justiça Eleitoral.

Para o professor, um bom começo é o Projeto de Lei do Senado 429, de 2017, que prevê a adoção de programa de compliance pelos partidos para coibir desvios e fraudes na utilização de recursos públicos.

Para Issa, do Transparência Partidária, o país vai no sentido oposto, entretanto, quando aprova, por exemplo, que os partidos sejam isentos de multas e penalidades por infrações na legislação eleitoral, como aconteceu no início deste mês de abril.

Aprovada na Câmara dos Deputados, a anistia libera os partidos que não tenham respeitado até 2019 a regra que prevê a aplicação de 5% do fundo partidário para a "criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres".

Havia uma proposta de emenda do deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) para que os partidos tivessem a possibilidade de devolver as sobras do fundo ao Tesouro - rejeitada, porém, por 294 votos a 144.

O projeto, relatado pelo deputado Paulinho da Força (SD-SP), agora tramita no Senado.

Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil em São Paulo - 23.04.19