terça-feira, 12 de julho de 2022

Como partidos políticos gastam milhões em dinheiro público praticamente sem fiscalização

        Entre as eleições de 2014 e 2018, o Brasil não assistiu apenas a uma mudança no perfil do presidente eleito. A matriz de financiamento da         política no país também deu uma guinada: a participação do dinheiro público nas despesas das campanhas saltou de quase 4% para 69% no         período, de R$ 189 milhões para R$ 2,09 bilhões.

Brasil mudou o modelo de financiamento da política, mas praticamente não alterou as regras do jogo ou a estrutura de fiscalização - o que acaba favorecendo a corrupção (Getty Images)

Nesse meio tempo, foram aprovados a criação do fundo eleitoral, que injetou R$ 1,7 bilhão em recursos públicos nas campanhas, e o reforço do fundo partidário, cujo orçamento mais que dobrou, de R$ 371 milhões para R$ 888 milhões nesses quatro anos.

O país mudou o modelo de financiamento de campanhas e partidos, mas praticamente não alterou as regras do jogo ou a estrutura de fiscalização. Como resultado, parte dos bilhões que alimentaram as eleições foi gasto com pouco ou sem nenhum escrutínio.

Um exemplo: nem todas as despesas do fundo eleitoral passam pela análise da Justiça Eleitoral. Como o volume de informações a cada pleito é enorme - foram pouco mais de 28 mil candidatos em 2018 -, a fiscalização é feita por amostragem. Via de regra, apenas as candidaturas vencedoras têm as contas verificadas.

As estatísticas mostram que a maior parte dos gastos está de fato concentrada nos vencedores - de acordo com um cálculo feito pelo professor de direito eleitoral Filippe Lizardo, em 2014, os 7% do total de candidatos que foram eleitos concentraram 63% das movimentações de receita.

Os escândalos recentes envolvendo candidaturas laranjas nas eleições do ano passado, entretanto - em que partidos usavam candidatas de fachada para cumprir as cotas obrigatórias para mulheres e desviar os recursos para particulares ou para formação de caixa 2 -, mostraram que há casos importantes de corrupção que, dessa forma, acabam escapando da fiscalização do Estado.

Especialistas em contabilidade eleitoral afirmam que a Justiça não tem estrutura para avaliar todas as contas, mas ressaltam que a própria regulamentação do fundo eleitoral abre uma série de brechas para corrupção.

Gráfico com a composição das despesas de campanha

Ela não proíbe, por exemplo, que candidatos contratem empresas de familiares ou que os fornecedores que prestam serviço para as campanhas subcontratem outras firmas - o que permite, por exemplo, que uma gráfica que claramente não tenha infraestrutura para entregar os milhões em santinhos declarados na prestação de contas alegue que repassou o trabalho para outra empresa.

O fundo eleitoral foi criado como alternativa ao financiamento privado de campanha, que é pano de fundo de alguns dos maiores casos de corrupção da última década e que foi considerado inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2015.

Diante dos escândalos recentes, pelo menos dois projetos surgiram do Congresso neste ano com a proposta de acabar com o fundo eleitoral - o que divide especialistas.

Ele não é, entretanto, a única fonte de dinheiro público usada por partidos políticos - ou que tem problemas na maneira como está estruturado.

Fundo partidário: TSE ainda julga contas de 2014

Mais antigo que o fundo eleitoral, o fundo partidário está previsto na Constituição de 1988, mas foi apenas recentemente que ele passou a chamar atenção, por movimentar cifras cada vez maiores.

"Em 2014, o Congresso se deu conta de que o STF iria julgar inconstitucional o financiamento privado de campanha e deram um jeito de aumentar o valor do fundo", diz Lizardo, que já foi chefe da seção de contas eleitorais do TRE-SP.

Em setembro de 2015, o Supremo proibiu o financiamento privado de campanha. Cinco meses antes, em abril daquele mesmo ano, uma emenda à proposta de Orçamento relatada pelo senador Romero Jucá (MDB-RR) aumentou a previsão de repasse para o fundo partidário em três vezes, para quase R$ 900 milhões.

O texto foi aprovado sem vetos pela presidente Dilma Rousseff, que não queria se indispor com o Legislativo e perder ainda mais apoio entre deputados e senadores.

Gráfico mostra evolução do fundo partidário

No caso do fundo partidário, porém, a avaliação da Justiça Eleitoral é mais minuciosa. Como conta Henrique Neves da Silva, ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e presidente do Ibrade (Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral), técnicos da Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias (Asepa) do TSE ou dos Tribunais Regionais Eleitorais analisam cada nota fiscal apresentada pelas legendas.

O problema: isso leva muito tempo. Hoje estão sendo julgadas as contas de 2014 apresentadas pelos 35 partidos. Ou seja, há ainda cerca de R$ 3,6 bilhões em recursos públicos ainda não avaliados pela Justiça - e o prazo de prescrição é de 5 anos.

"O fundo partidário é uma caixa-preta", diz Marcelo Issa, coordenador do movimento Transparência Partidária.

Procurador Regional Eleitoral de São Paulo, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves reconhece que a Justiça Eleitoral não tem estrutura para dar conta da demanda de forma célere - "a gente precisaria ter 10 vezes o tamanho de uma (auditoria) Ernst&Young pra conseguir fiscalizar isso tudo" -, mas pondera que "é de interesse dos partidos protelar ao máximo, por causa da prescrição".

Nesses casos, a avaliação detalhada muitas vezes não tem efeito prático, já que os partidos não podem sofrer sanções por eventuais irregularidades, mesmo que elas sejam encontradas.

No início de abril, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, criticou emendas feitas ao PL 1321/19, que anistia partidos que cometeram infrações eleitorais (Najara Araujo / Câmara dos Deputados)

Na prática, diz ele, os partidos costumam, de antemão, entregar a documentação incompleta - e muitas vezes fora do prazo. A fiscalização, por sua vez, leva três ou quatro anos para detectar a falta de algum comprovante - que, a essa altura, muitas vezes nem existe mais.

Apesar de a contabilidade eleitoral (ou seja, das campanhas) ser automatizada desde 2002, a prestação de contas dos partidos era feita em papel até 2017. E ainda que o sistema seja hoje digital, ele não é alimentado em tempo real - os partidos têm até abril do ano fiscal seguinte para apresentar os documentos.

O movimento Transparência Partidária já propôs a mudança, inclusive para que os dados estivessem disponíveis para a sociedade civil em um prazo mais curto, mas a sugestão foi rejeitada por advogados e representantes de 32 dos 35 partidos, diz Issa.

Ele elenca ainda outro problema, esse comum ao fundo partidário e eleitoral - o das rubricas excessivamente genéricas, que dificultam a identificação da natureza da despesa e, portanto, o destino de fato do recurso público.

No relatório sobre as contas dos partidos apresentadas em 2017, o Transparência Partidária apontou que 45 das 270 categorias de despesas presentes no Sistema de Prestação de Contas Anual (SPCA) eram excessivamente abrangentes. Juntas, elas responderam por 17,4% das despesas totais dos partidos em 2017, mais de R$ 120 milhões.

Apenas a rubrica "Serviços técnicos-profissionais - Outros serviços técnicos e profissionais - Ordinárias" concentrou R$ 44,9 milhões. "Assunção de Dívidas de Campanha - Dívidas de Candidatos - Despesas Eleitorais" somam outros R$ 22 milhões.

"As empresas são submetidas a um escrutínio muito maior", compara o procurador Luiz Carlos Gonçalves, que defende maior transparência "porque, afinal, trata-se de recurso público, que o Brasil poderia usar para outros fins".

Financiamento público vs. privado

Em meio aos escândalos de candidaturas laranjas que atingiram o partido do presidente Jair Bolsonaro, o PSL, o senador Major Olímpio, também filiado à sigla, apresentou em fevereiro um projeto de lei para acabar com o fundo eleitoral.

"Nos casos que estão aí manifestos em inúmeros partidos, está cada vez mais clara a falta de critérios na própria lei e ainda a imoralidade de usar recurso público, no caso, de R$ 1,7 bilhão (do fundo). A lei é absolutamente aberta. A distribuição é feita ao bel-prazer do dirigente partidário", disse ele na ocasião.

Além do PL 555/2019, também foi protocolado neste ano um outro projeto para acabar com o fundo eleitoral, o PL 748/2019, de autoria do senador Marcio Bittar (MDB-AC).

Casos de desvio de verba do fundo eleitoral por meio de candidaturas laranjas motivou propostas para acabar com financiamento público de campanha (Cecilia Tombesi / BBC)

Especialistas avaliam, entretanto, que o problema da corrupção no sistema político não se deve necessariamente ao fato de o financiamento ser público ou privado.

Rumbidzai Kandawasvika-Nhundu e Yukihiko Hamada, especialistas do International Idea, organização sem fins lucrativos que conta com uma base de dados com informações sobre o financiamento da política em 180 países, ressaltam que não existe um modelo ideal.

Seja com dinheiro público ou vindo do setor privado, dizem, o que favorece a corrupção é a falta de fiscalização ou de uma legislação rigorosa de prestação de contas ou, no caso de recursos públicos, de como o dinheiro deve ser gasto.

"Esse (o financiamento de partidos e eleições) é um desafio em todas as democracias, especialmente em um momento em que a antipolítica predomina", avalia a cientista política Silvana Krause, pesquisadora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

A especialista pondera que, hoje, a sociedade percebe que foi um equívoco a avaliação de que o problema da corrupção na política brasileira estava relacionado exclusivamente ao fato de que eram empresas privadas que financiavam campanhas.

Krause destaca que o sistema político segue altamente concentrador de recursos, à medida que o dinheiro é repassado para os diretórios nacionais, que têm completa autonomia para distribuí-los da forma como quiserem.

Esse tipo de arranjo favorece a perpetuação dos "caciques" e a formação de oligarquias nos partidos - que, em última instância, facilitam a corrupção.

Relator do PL 1321/19, que tratava da duração dos mandatos de dirigentes dos partidos, deputado Paulinho da Força incluiu emenda da anistia (Luís Macedo / Câmara dos Depuitados)

Nesse sentido, para Lizardo, além de estabelecer critérios de distribuição interna dos recursos, a legislação deveria ter regras de "democracia intrapartidária" mais rigorosas, normas específicas para balizar a aplicação dos recursos - que proibissem a contratação de parentes, por exemplo - e o fortalecimento da Justiça Eleitoral.

Para o professor, um bom começo é o Projeto de Lei do Senado 429, de 2017, que prevê a adoção de programa de compliance pelos partidos para coibir desvios e fraudes na utilização de recursos públicos.

Para Issa, do Transparência Partidária, o país vai no sentido oposto, entretanto, quando aprova, por exemplo, que os partidos sejam isentos de multas e penalidades por infrações na legislação eleitoral, como aconteceu no início deste mês de abril.

Aprovada na Câmara dos Deputados, a anistia libera os partidos que não tenham respeitado até 2019 a regra que prevê a aplicação de 5% do fundo partidário para a "criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres".

Havia uma proposta de emenda do deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) para que os partidos tivessem a possibilidade de devolver as sobras do fundo ao Tesouro - rejeitada, porém, por 294 votos a 144.

O projeto, relatado pelo deputado Paulinho da Força (SD-SP), agora tramita no Senado.

Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil em São Paulo - 23.04.19

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