domingo, 17 de julho de 2022

Pregações destrutivas

Às ladainhas armamentista e da discórdia se soma uma que visa ao desprestígio dos Poderes e das instituições do Estado.

“Se eu não estivesse armado, a minha reação teria sido um tapa nas costas, um pontapé no traseiro, no máximo um empurrão.” No entanto, após ter sido magoado pela vítima, o agressor sacou da arma que portava e atirou. Assim, com intenso sofrimento e claros sinais de arrependimento, ele forneceu uma patética lição a todos os apologistas das armas. Eu indago: quantos e quantos assassinatos teriam sido evitados, se o agressor não estivesse armado? A sua raiva, o seu ciúme, a sua frustração, seja lá o sentimento que o moveu, seriam extravasados de outra forma, de uma forma não cruenta.

As estúpidas brigas de trânsito têm levado ao crime. Uma fechada, uma brecada abrupta, uma falta de sinal, quaisquer motivos, por mais insignificantes que sejam, levam motoristas a sair do carro, discutir e, não raras vezes, tirar a vida de alguém. Motivos insignificantes provocam uma consequência extrema: interrompem a vida alheia.

Nestes e em outros casos, quem enfrenta qualquer dissabor com uma arma de fogo demonstra, primeiro, uma grande insegurança, pois necessita da arma para se sentir fortalecido. Por outro lado, ao empunhar o revólver, passa a agir com arrogância, prepotência, sentindo-se senhor absoluto da situação de beligerância. Essas condições psicológicas e a arma nas mãos constituem campo fértil para um homicídio. O puxar o gatilho é mero ato mecânico desencadeado em fração de segundos. O cérebro não consegue conter a ação que está apoiada no desejo de superação do outro.

Andar armado por que e para quê? A razão seria sentir-se poderoso, guarnecido, protegido, imune a qualquer agressão? Doce ilusão. Ledo engano. Aliás, amarga ilusão. É desnecessário ter conhecimento especializado em segurança pública para saber que, no caso de um assalto, o assaltante não dá aviso prévio. Ele investe contra a vítima de inopino, surpreendendo-a. Claro que, se esta esboçar qualquer reação, se tentar pegar a sua arma, o assaltante atirará primeiro. Na melhor das hipóteses, desarmará o assaltado, que, reagindo ou não, possibilitará ao criminoso se apossar do revólver.

Além da apologia que se faz ao porte de armas, estamos assistindo a um discurso oficial que estimula a discórdia, o antagonismo, a desarmonia entre pessoas, especialmente entre aquelas que pensam de forma diversa. A compreensão, a concórdia, o respeito pelo outro só se fazem presentes quando “você pensa como eu penso”.

As ladainhas armamentista e da discórdia estão acompanhadas por uma terceira pregação. Esta objetiva suscitar o desprestígio dos Poderes e das instituições do Estado. Esse discurso autoritário investe contra a própria democracia e contra a liberdade de pensamento.

Corroer os tecidos social e institucional parece ser o escopo prioritário de uma conduta política propositalmente voltada para a desarmonia entre a sociedade e as estruturas do Estado e entre os integrantes dos vários núcleos da sociedade, incluindo a própria família.

É claro que isso cria um caldo de cultura propício para a desarmonia generalizada. Desapreço pelo próximo, de um lado, e desconsideração pelas instituições e pela própria lei, de outro, estão conduzindo a um descaso, até desdém, pelos direitos humanos, pela liberdade alheia e pela democracia.

Ao lado dessas mazelas, assiste-se à insensibilidade de parcelas da sociedade em relação às trágicas situações que se nos têm apresentado ultimamente. Quase 700 milhões de mortes pela pandemia; enchentes; moradores de rua; fome; criminalidade crescente; e violência policial parecem que não mais incomodam. Estamos nos acostumando e convivendo sem abalos com esses dramas humanos. Desde que eles não nos atinjam, pouco importam.

O que fazer?, alguém perguntará. O que for possível, o mínimo que se fizer é o bastante. A solidariedade não evita a tragédia, mas pode minimizar as suas consequências. Um ato qualquer que nos aproxime daquele que sofre mostrará que ele não está só no mundo. Ao contrário, a insensibilidade e a indiferença conduzem à terrível sensação de abandono absoluto.

O homem não pode perder a crença no próprio homem, pois, se isso ocorrer, perderá a esperança de um porvir melhor.

Infelizmente, estamos assistindo à implantação de uma ideologia, de uma filosofia que está dificultando o viver coletivo, ao contrário do movimento que seria esperado de quem governa. Aliás, perdoem-me, nem ideologia nem filosofia, falta a este governo estrutura intelectual para criá-las. É um nada no campo da criação, mas são condutas nocivas às estruturas sociais e institucionais e podem conduzir a uma ruptura do sistema democrático.

O grande malefício desta situação que se está implantando, por meio de falas predatórias, odientas, irresponsáveis e instigantes à violência, é o risco de sua perpetuação. Mesmo com os seus autores fora de cena, ela poderá criar raízes difíceis de serem removidas. Nosso dever é, ao lado de contestá-los com veemência, produzir o humanismo, a solidariedade e o amor ao próximo que se possam contrapor à caótica e destruidora estratégia que está sendo executada.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo é advogado. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 17.07.22

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