quarta-feira, 11 de maio de 2022

Como Rússia e China distorcem a história

A manipulação de sua própria história nacional serve tanto a Xi Jinping quanto a Vladimir Putin para garantir o poder e justificar suas políticas.

"Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado." Esta citação do livro mundialmente famoso 1984, de George Orwell, descreve em uma frase a importância da história para a política. E a jornalista Katie Stallard destaca essa citação em seu livro recém-publicado Dancing on Bones – History and Power in China, Russia, and North Korea. Nele, ela descreve como os poderosos da Rússia, China e Coreia do Norte usam a história para seus propósitos.

Em entrevista à DW, ela diz que "regimes autoritários sabem o poder da história, que é uma ferramenta crucial para obter apoio da população". A história gera legitimidade, está intimamente ligada à identidade dos cidadãos e tem a vantagem para os governantes autoritários de poder ser manipulada de acordo com as necessidades. "Os sucessos econômicos vêm e vão. Já a história é no que você pode confiar", afirma Stallard.

A história como justificativa para a guerra na Ucrânia

A agressão russa na Ucrânia é o exemplo atual de que uma compreensão revisionista da história pode ter consequências mortais. Mesmo antes da eclosão da guerra, Putin publicou em julho de 2021 um ensaio intitulado "Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos".

No texto, o presidente russo acusa o Ocidente de um "revisionismo perigoso". Segundo o historiador Andreas Kappeler em uma análise para a revista Osteuropa, Putin quer se contrapor a essa alegação como um "estadista onisciente" que conhece a "única verdade histórica".

A verdade, segundo Putin, é que russos e ucranianos sempre foram uma única entidade espiritual, e o Ocidente está tentando transformar a Ucrânia em uma "anti-Rússia" – e Moscou nunca permitirá isso e, se necessário, impedirá pela força das armas.

Em 9 de maio, quando a Rússia comemorou a vitória sobre a Alemanha nazista seguindo a tradição da União Soviética, Putin reiterou seu ponto de vista e foi além ao afirmar que o Ocidente havia planejado um ataque contra a Rússia.

Um tanque histórico da era soviética também participou do Dia da Vitória deste anoFoto: Alexander Nemenov/AFP/Getty Images

A visão de mundo soviética de Putin

A narrativa da suposta unidade russo-ucraniana – que o Ocidente ignora – faz parte de uma visão de mundo bipolar e de pensar em termos de grandes categorias de poder, afirma Kappeler. Para Putin, apenas os países poderosos – como Rússia, EUA e China – desempenham um papel, e "pequenos" Estados, como a Ucrânia, não têm agenda própria. Além disso, as grandes potências, por sua vez, estariam envolvidas numa competição ideológica que está sendo travada com todos os meios à disposição.

Essa visão de Putin, que Kappeler classifica como teoria da conspiração, está associada ao nacionalismo étnico e à tese de que os nazistas supostamente tomaram o poder na Ucrânia. Nela, o líder russo faz uso de supostos nazistas para o que, segundo Kappeler, é "o elemento mais importante da ideologia de integração russa: a vitória soviética sobre a Alemanha de Hitler". A visão de mundo de Putin é a de um agente do serviço secreto da extinta União Soviética.

Xi Jinping: timoneiro da história

Muitos padrões da visão etnonacionalista da história de Putin e seus apoiadores no Kremlin também podem ser encontrados entre as autoridades chinesas. A China quer fazer melhor do que a União Soviética, que o presidente chinês Xi Jinping cita repetidamente como um exemplo de alerta. A União Soviética teria se desintegrado porque seus líderes não conseguiram erradicar o "niilismo histórico" que minou a crença na causa comunista.

Para evitar o destino da União Soviética, o Partido Comunista Chinês (PCC) escreveu, entre outras coisas, uma história oficial atualizada do partido em 2021, fortemente feita sob medida para Xi Jinping. O Diário do Povo Chinês, um órgão de imprensa do partido, escreve sobre o líder da China: "Nesta nova era, o secretário-geral Xi Jinping nos ajudou a compreender os mecanismos da evolução e as leis da história em ação no longo e tortuoso fluxo do tempo e a tempestade global. Ele tomou a decisão certa em cada encruzilhada." A narrativa do PCC é difundida na imprensa, redes sociais, cinema e jogos de computador. Visões alternativas são ilegais.

Com muita pompa, atores encenaram os 100 anos de história do Partido Comunista Chinês em junho de 2021 (Foto: Thomas Peter/Reuters)

Partido Comunista Chinês garante a unidade do país

O partido oficial determina há anos o que pode ser pensado e escrito na China. Em essência, trata-se de uma "estrutura ideológica que justifica intervenções cada vez maiores e mais abrangentes do partido na política, economia e política externa", segundo o ex-chanceler australiano e especialista em China Kevin Rudd.

Os superpoderes do PCC são historicamente justificados: antes de os comunistas tomarem o poder, a China era fraca e dividida, e a desunião permitiu que o Ocidente humilhasse o país. Somente o PCC, de acordo com o subtexto, é capaz de unir o país e, assim, reconduzi-lo à sua antiga força.

Dessa forma, o PCC continua o que os nacionalistas chineses começaram no século 19, como evidencia Bill Hayton em seu livro The Invention of China. Naquela época, a China multiétnica foi reinterpretada como uma cultura uniforme han-chinesa, e as tradições manchus, mongóis e de muitos outros povos foram extraídas da história para dar lugar à visão de uma China que sempre esteve unida. Assim, hoje, os efeitos desse desejo de unidade são vivenciados por uigures e tibetanos, que estão sendo colocados em campos de reeducação e têm sua língua e cultura reprimidas.

É apropriado que Xi Jinping, falando ao Comitê Central do PCC em 2013 sobre a importância da história, tenha citado o estudioso confucionista Gong Zhishen ao dizer que "para destruir um país é preciso primeiro apagar sua história". Foi um aviso para questionar a unidade de 5 mil anos da China, o que é, claro, uma ficção na versão do PCC.

Embora seja verdade que havia uma certa continuidade da língua e da doutrina confucionista, é falso dizer que a cultura chinesa han sempre foi dominante no que é hoje o território da República Popular da China.

Na verdade, a Dinastia Ming (1368-1644) foi a última em que os chineses han governaram. Antes disso, durante séculos, dinastias de outros povos, como os mongóis, prevaleceram na maior parte do que hoje é a China. A última dinastia foi fundada pelos manchus e governou de 1644 até a proclamação da república, em 1º de janeiro de 1912.

No desejo de criar uma história unificada na qual a Rússia de hoje e a República Popular da China emergiram sem ruptura, fecha-se o círculo com Putin, que nega ou distorce a história da Ucrânia para declarar que russos e ucranianos são um só povo.

China Xi Jinping Porzellan China Xi Jinping Porzellan 

Uma loja de souvenirs em Pequim oferece pratos de porcelana de Xi Jinping (à esquerda) e do fundador do Estado chinês Mao Tsé-Tung (Foto: Andy Wong/AP Photo/picture alliance)

"Território recuperado"

Há também uma obsessão por questões territoriais em ambos os sistemas. As afirmações históricas de Putin omitem em grande parte os crimes da era Stalin, mas dedicam considerável atenção ao território da União Soviética, que também incluiu a Ucrânia, Belarus, Estados bálticos, Estados da Ásia Central e outros.

A China, por exemplo, usa há anos argumentos históricos sobre o Mar da China Meridional. O país declara um mar do tamanho do Mar Mediterrâneo como seu território, citando evidências históricas questionáveis. Ao mesmo tempo, Pequim se recusa a reconhecer a decisão da Corte Internacional de Arbitragem, que declarou nulas todas as reivindicações históricas.

Para Stallard, voltar-se para as questões territoriais tem duas funções: por um lado, enfatizar as humilhações do passado, em que nos foi tirado algo que é nosso por direito. E, ao mesmo tempo, enfatizar a força dos atuais líderes – estamos retomando o que é nosso. "Trata-se de defender sua soberania, sentir-se forte e ter orgulho de defender seu próprio país", afirma.

Repressão contra opiniões divergentes

Mesmo que existam diferenças no conteúdo das narrativas históricas na Rússia e na China – por exemplo, o culto à personalidade mais pronunciado da China em torno de Xi –, os padrões são claros.

Ambos os sistemas reivindicam uma unidade e continuidade que nunca existiram. Qualquer um que questiona isso na Rússia ou na China enfrenta punições severas. E esses países constroem um inimigo externo – o Ocidente – do qual apenas eles – Putin ou Xi – podem proteger a nação e vincular a história com as reivindicações territoriais.

"A vontade de manipular a história para fins políticos não é vista apenas em sistemas autoritários", afirma Stallard. Mas apenas sistemas autoritários reprimem opiniões divergentes.

Rodion Ebbighausen para Deutsche Welle Brasil, em 10.05.22

terça-feira, 10 de maio de 2022

A cama está feita

A farsa golpista encenada por Bolsonaro chegou à página em que a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro estaria condicionada ao exame por auditoria a ser contratada pelo partido de Valdemar Costa Neto. Por Carlos Andreazza

Processo cuja legitimação dependerá da supervisão das Forças Armadas, o Poder Moderador empossado pela leitura pervertida do Artigo 142 da Constituição e, até outro dia, comandado pelo general candidato a vice na chapa de Bolsonaro à reeleição.

A cama está feita.

Mais do que se considerarem, as Forças Armadas agem como Poder da República. Poder da República especial, cujo alcance moderador foi investido por ministros de tribunal superior que avalizaram burocratas armados e ressentidos como interlocutores com status para formular questões cujo pressuposto é a desonestidade da Justiça Eleitoral. Uma tocaia em que, independentemente das respostas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a tese de fraude restará provada.

A cama está feita.

As Forças Armadas que agem como Poder Moderador são as mesmas a serviço de minar a credibilidade do sistema eleitoral. A serviço, pois, dos interesses de Bolsonaro.

O ministro da Defesa já é outro. Não importa quem seja o da vez. O governo é militar e não se move senão sob o entendimento viciado — desde há muito explicitado — segundo o qual as Forças Armadas seriam conjunto com poder interventor sobre Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional. São generais zelosos dessa competência arbitrária — de representantes de um Poder acima do equilíbrio republicano, com direito a tutela sobre a concertação republicana — os que Luís Roberto Barroso e Luiz Fux convidaram a participar do processo eleitoral.

É uma obviedade: militares não são autoridades em matéria eleitoral; nem compõem um Poder, muito menos um Moderador. O problema, porém, é maior. Há má intenção. Sob o que já chamei de 7 de Setembro permanente, um estado mesmo de ameaça golpista que sustenta a instabilidade institucional como modo de o populismo bolsonarista prosperar, os militares aceitaram o papel de fundação para que o arruaceiro lastreasse o conspiracionismo com que espalha desconfiança contra uma das expressões concretas da República.

Parêntese importante aqui. Não é à toa que Bolsonaro ataca as culturas brasileiras de vacinação e eleição, ambas sólidas manifestações de um país que chega igualmente a todos. Ambas, portanto, materializações — manifestações de sucesso e fortaleza — da ideia de República. E ele é, antes de tudo, um antirrepublicano.

O presidente da República é, sobretudo, um mentiroso. Prometeu várias vezes — e há tempos não fala disso — apresentar provas de que a eleição que venceu fora fraudada. Nunca o fez. Nunca foi punido por criminalizar o TSE.

Prometeu também que sossegaria — aceitaria — qualquer que fosse o resultado da votação no Parlamento sobre adoção do voto impresso; pacificação em que só acreditou quem não compreende que a existência competitiva de Bolsonaro se alimenta de choques e imprevisibilidades. Arthur Lira nunca acreditou. Compôs o teatro. É sócio e está bom assim, bem servido pela multiplicação de orçamentos secretos que o antirrepublicanismo favorece.

Escorado num Congresso amansado, Senado de Pacheco incluído, por Orçamento da União sem teto para gastos de natureza patrimonialista em ano eleitoral, Bolsonaro declara que “as Forças Armadas não vão fazer o papel de chancelar apenas o processo eleitoral”. Note-se como evolui a corrosão da ordem constitucional. Convidadas — pelo TSE — a “chancelar” a qualidade do sistema, algo que nunca lhes coube, as Forças Armadas, orientadas pelo presidente e “bastante zelosas” de suas prerrogativas assaltadas à Constituição, tomaram o que jamais lhes foi função e ora vão deitadas na cama, de coturno e tudo, endossando previamente o que será acusação de fraude na eleição de outubro.

A cama está feita e ocupada.

Bolsonaro é claro sobre como explorará a armadilha que o Supremo levantou ingenuamente e a que o Supremo se oferece: “As Forças Armadas não estão se metendo no processo eleitoral. Elas foram convidadas”. Foram mesmo; convidadas a participar de comissão de transparência — um erro imensamente apontado — e agora se projetam como habilitadas a não validar o resultado de eleição.

Não validarão. Está dado. Ou não avançamos no capítulo em que as Forças Armadas — sob gestão explícita de Bolsonaro — plantam, na forma de perguntas diabólicas (em que a Justiça Eleitoral teria de provar a lisura de seu sistema de votação), que um tribunal superior é corrupto? Não se trata de outra coisa.

Desnecessário, a esta altura, será dizer que ninguém ali — presidente à frente — está preocupado com a segurança das eleições, como jamais esteve com a segurança da população a ser vacinada. Só a auditoria de Valdemar poderá nos salvar.

Carlos Andreazza é Jornalista.  Publicado originalmente n'O Globo, em 10.05.22.

Em vez de golpe com militares, não se descarta instabilidade com bolsonaristas armados nas ruas

É assustador assistir a Bolsonaro e sua gente ameaçando Supremo, TSE, ministros e as próprias eleições. O Brasil está normalizando o que não tem nada de normal. Leia aqui o artigo de  Eliane Catanhede, pubicado no Estado de S. Paulo hoje.

Foto: DEFESAGOVBR-TWITTER

Que confusão a Defesa está fazendo! É uma trapalhada atrás da outra, uma ameaça atrás da outra, um recuo atrás do outro e a imagem que fica é que “os militares” fazem qualquer coisa para agradar ao capitão insubordinado que assumiu a Presidência e pinta e borda com eles. “Qualquer coisa” incluiria até golpe. Pode uma coisa dessas?

É assustador assistir ao presidente Jair Bolsonaro e sua gente ameaçando Supremo, TSE, ministros e as próprias eleições, assim como atacaram a saúde e a vida na pandemia. O Brasil está normalizando o que não tem nada de normal. Os presidentes de Supremo, TSE, Senado e até Câmara, enviesadamente, têm de defender a democracia todo santo dia e o foco nacional não é inflação e fome, é como e quando vai ser o golpe...

A pergunta deve ser outra: com quem? A escalada de Bolsonaro, filhos, séquito e robôs é clara, mas, se a gente olha os comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica e se fixa no Alto-Comando do Exército, é difícil encontrar ao menos um disposto a jogar seu nome na lama da história contra a democracia.

Em vez de golpe com militares, o que não se pode descartar é que Bolsonaro esteja criando um clima de tumulto e instabilidade com sua turba civil, que armou com revólveres e fuzis e pode entrar em ação em caso de derrota. Ele está em segundo lugar, com recorde de rejeição.

O que acontece nesse caso? “Cerca os caras, julga, condena e prende todo mundo. Acabou-se a história”, responde um oficial, parte de um grupo grande de militares que é contra o PT e o ex-presidente Lula pelo petrolão e “otras cositas más”, mas não louva Bolsonaro, muito menos golpes.

O problema é que, quando o general da ativa Eduardo Pazuello dizia que “um manda, outro obedece”, os militares ficavam indignados com a sabujice e agora, quando é a democracia em jogo, a Defesa passa a ideia de que “um manda, todos obedecem”.

Bolsonaro diz que o TSE tem uma “sala escura” para contar votos, quer uma justiça eleitoral paralela e um duto dos votos para um computador das Forças Armadas. O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Oliveira, encampa, quer mandar no TSE, tira e põe de novo um general na comissão de transparência e usa slogan bolsonarista: “Brasil acima de tudo”.

A Defesa reclama do sigilo de suas demandas sobre as urnas, mas o pedido foi da própria Defesa. Reclama que o ministro Edson Fachin não recebeu o general Paulo Sérgio, mas seria exatamente no último dia de prazo para o título de eleitor. Imaginem a agenda do presidente do TSE! Seria cômico, não fosse trágico.

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é comentarista de política na Rádio Eldorado (SP),e Rádio Jornal (PE) e no telejornal "Em Pauta", da Globo News.

O prestígio e o papel das Forças Armadas

É grave erro usar o prestígio dessa instituição para fins incompatíveis com suas atribuições constitucionais. Militares devem estar distantes da política e de assuntos eleitorais

As Forças Armadas têm prestígio junto à população. Trata-se de um fato bem conhecido. Esse prestígio foi conquistado e é preservado, entre outras causas, pela exemplar lealdade da Marinha, do Exército e da Aeronáutica à Constituição de 1988 e aos princípios republicanos, com a estrita obediência às suas atribuições constitucionais, bem longe da política. É de justiça reconhecer: depois da redemocratização do País, as Forças Armadas entenderam o seu papel dentro da organização de um Estado Democrático de Direito. Não são guarda pretoriana, tampouco poder moderador. Destinam-se, assim o estabelece a Constituição de 1988, “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Por óbvio, é muito bom – muito saudável institucionalmente – que a população confie nas Forças Armadas. O prestígio dos militares é um bem para o País e merece ser zelosamente preservado. No entanto, deve-se advertir que há quem queira usar o prestígio das Forças Armadas para outros fins não previstos na Constituição, o que representa um perigoso desvio da função militar. 

O caso mais grave é o bolsonarismo, que tenta continuamente se identificar com as Forças Armadas, identificação esta que é rigorosamente inconstitucional. As Forças Armadas não têm orientação político-partidária, e menos ainda são um grupo político. No entanto, com frequência, Jair Bolsonaro refere-se às Forças Armadas com um “nós”, como se fossem uma só coisa. Entre outros danos, expressar-se assim é descarada manobra para atrair a si a confiança que a população deposita nos militares.

Além da inconstitucionalidade, há uma notória contradição nessa atitude de Jair Bolsonaro. Ele quer os louros políticos da imagem pública das Forças Armadas, mas nunca se dispôs a cumprir o que fundamenta o prestígio da instituição militar: a disciplina, a hierarquia e a obediência à lei. Como se sabe, Jair Bolsonaro foi um mau militar.

Para piorar, nos últimos meses, Jair Bolsonaro tem tentado envolver as Forças Armadas em seus devaneios golpistas, em especial na campanha para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. No fim do mês passado, em ato público no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro defendeu a contagem paralela de votos pelas Forças Armadas, o que é uma aberração institucional. Não cabe às Forças Armadas a função de revisor da votação.

A inusitada tentativa do Palácio do Planalto de envolver as Forças Armadas em assuntos eleitorais remete, por sua vez, à iniciativa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de convidar, em agosto do ano passado, o Ministério da Defesa para participar, com um representante, da Comissão Externa de Transparência da Justiça Eleitoral. O convite foi um modo de o TSE aproveitar o prestígio das Forças Armadas para fortalecer a confiança da população no sistema eleitoral, que na época estava sendo ostensivamente atacado pelo bolsonarismo. O motivo da Justiça Eleitoral era justo e necessário, mas os meios, não. Não é papel dos militares atuar nesse tipo de matéria, de natureza essencialmente civil.

O equívoco do TSE ficou ainda mais em evidência quando, meses depois, as Forças Armadas decidiram não participar de um teste público de segurança da urna eletrônica. De fato, não tinham de participar, mas a recusa desvelou a insensatez de toda a situação: as Forças Armadas estavam sendo colocadas no papel de garantidoras da lisura das eleições. Mais recentemente, soube-se que, ao longo dos últimos meses, os militares enviaram dezenas de questionamentos sobre supostos riscos das urnas, que foram devidamente respondidos pelo TSE.

Se tudo o que veio à tona corrobora o bom trabalho da Justiça Eleitoral, provendo um sistema de votação confiável, há nessa história um importante aprendizado. As Forças Armadas devem estar apenas em suas funções constitucionais. Não há motivo, por mais nobre que seja, a justificar exceções. Para o bem do País e das Forças Armadas, para que possam continuar desfrutando de seu merecido prestígio.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 10.05.22

Guerra está ficando mais perigosa para os EUA e Biden sabe disso; leia o artigo de Thomas Friedman:

Para autoridades americanas, está cada vez mais óbvio que o comportamento de Putin não é tão previsível quanto já foi no passado



Presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, posa para foto entre os secretários americanos de Defesa (E), Lloyd Austin e de Estado, Antony Blinken, em Kiev, em 24 de abril de 2022

Se você tem acompanhado as reportagens sobre a Ucrânia, pode pensar que a guerra se assentou como um longo caminho, arrastado e em certa medida aborrecido. Você pode estar errado. Na realidade, as coisas estão ficando mais perigosas a cada dia.

Para começar, quanto mais longa for esta guerra, mais oportunidades existirão para erros de cálculo catastróficos — e a matéria-prima para isso está se acumulando rapidamente e furiosamente. Considerem os dois vazamentos de graduadas autoridades americanas, ocorridos na semana passada, a respeito do envolvimento dos Estados Unidos na guerra entre Rússia e Ucrânia:

No primeiro, o Times revelou que “os EUA forneceram informações de inteligência a respeito de unidades russas que permitiram aos ucranianos localizar e matar muitos dos generais russos que morreram em ação na guerra da Ucrânia, de acordo com graduadas autoridades americanas”.

No segundo, após uma reportagem da NBC News e citando autoridades americanas, o Times noticiou que os EUA “forneceram informações de inteligência que ajudaram as forças ucranianas a localizar e atacar” o Moskva, o principal navio de guerra da esquadra russa no Mar Negro. Essa ajuda na localização do alvo “contribuiu para o eventual naufrágio” do Moskva provocado por dois mísseis de cruzeiro ucranianos.

Como jornalista, adoro um bom vazamento de informações, e os repórteres que produziram essas reportagens realizaram uma investigação poderosa. Ao mesmo tempo, por tudo que pude perceber após conversas com graduadas autoridades americanas, que falaram comigo sob condição de anonimato, esses vazamentos não foram fruto de nenhuma estratégia planejada, e o presidente Joe Biden ficou furioso com isso.

Relataram-me que ele chamou a diretora nacional de inteligência, o diretor da CIA e o secretário da Defesa para deixar claro, nos termos mais contundentes e explícitos, que esse tipo de conversa mole é algo irresponsável e tem de parar imediatamente — antes que acabemos numa guerra não intencional contra a Rússia.

A estarrecedora conclusão que decorre desses vazamentos é que eles sugerem que não estamos mais numa guerra indireta contra a Rússia, mas, em vez disso, estamos à beira de uma guerra direta — e ninguém preparou o povo americano nem o Congresso para isso.

Vladimir Putin certamente não tem dúvidas sobre a magnitude com que os EUA e a Otan estão municiando a Ucrânia com armamentos e informações de inteligência, mas quando autoridades americanas começam a se gabar em público a respeito do papel dos EUA na morte de generais russos e no ataque que afundou o navio de guerra russo, matando muitos marinheiros, poderíamos estar criando uma abertura para Putin responder de maneiras capazes de ampliar perigosamente esta guerra — e afundar os EUA neste conflito mais do que o país deseja.

Batalhas na Ucrânia e contra a variante Ômicron têm demonstrado a fraqueza de sistemas autoritários em Moscou e Pequim

Não consigo lembrar de outro momento em minha vida em que tenha duvidado do futuro da democracia americana e do mundo

Isso é duplamente perigoso, afirmam graduadas autoridades americanas, porque fica cada vez mais óbvio para elas que o comportamento de Putin não é tão previsível quanto já foi no passado. E Putin está ficando sem opções para algum tipo de sucesso que mantenha as aparências no campo de batalha — ou até mesmo de uma saída para salvar sua dignidade.

É difícil exagerar o tamanho da catástrofe que esta guerra tem sido para Putin até agora. Na realidade, Biden apontou para sua equipe que Putin, ao tentar afrontar a expansão da Otan, acabou pavimentando o caminho para essa expansão. Tanto a Finlândia quanto a Suécia estão agora dando passos na direção de aderir à aliança da qual se mantiveram fora ao longo de sete décadas.

É por isso que as autoridades americanas estão tão preocupadas com o que Putin possa fazer ou anunciar nos próximos dias. Aliás, temos de estar atentos para o fato de que não apenas os russos gostariam de nos envolver mais. Não tenha dúvidas, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, tem tentado exatamente isso desde o início: tornar a Ucrânia membro da Otan imediatamente ou obrigar Washington a forjar um pacto de segurança bilateral com Kiev. Respeito o heroísmo e a liderança de Zelenski. Se eu fosse ele, estaria tentando enredar os EUA ao meu lado da mesma maneira.

Mas sou cidadão dos EUA — e quero que sejamos cautelosos. A Ucrânia foi — e ainda é — um país repleto de corrupção. Isso não significa que não deveríamos ajudar os ucranianos. Fico feliz por estarmos fazendo isso. E insisto que devemos fazê-lo. Mas minha sensação é que a equipe de Biden caminha muito mais sobre uma corda-bamba em relação a Zelenski do que possa dar a parecer — querendo trabalhar como pode para garantir que ele vença esta guerra, mas fazendo isso de uma maneira que ainda mantenha alguma distância entre Washington e a liderança da Ucrânia; para que não seja Kiev a dar as cartas e para que não sejamos constrangidos pela bagunçada política ucraniana depois da guerra.

A percepção de Biden e sua equipe, segundo minha apuração jornalística, é que os EUA precisam ajudar a Ucrânia a restabelecer sua soberania e expulsar os russos — mas não permitir que a Ucrânia se transforme num protetorado americano na fronteira com a Rússia. Temos de ter foco preciso no que é nosso interesse nacional e não vaguear por caminhos que levam a constrangimentos e riscos que não desejamos.

Uma coisa que sei sobre Biden — com quem viajei ao Afeganistão em 2002, quando ele era o senador que liderava a Comissão de Relações Exteriores — é que ele não romantiza a respeito de líderes mundiais. Ele lidou com muitíssimos ao longo de sua carreira. E adquiriu uma noção muito boa sobre onde começam e até onde vão os interesses americanos. Pergunte aos afegãos.

Então, onde os EUA estão neste momento? O Plano A de Putin — de tomar Kiev e instaurar um líder fiel à Rússia — fracassou. E seu Plano B — de tentar simplesmente tomar o controle do antigo centro industrial da Ucrânia, conhecido como Donbas, cuja população tem origem russa em sua maioria — ainda está em dúvida.

As recentemente reforçadas tropas terrestres de Putin fizeram algum progresso, mas ainda limitado. É primavera (Hemisfério Norte) no Donbas, o que significa que o terreno ainda está pantanoso e úmido em certos locais, portanto, os blindados russos ainda têm de apelar para estradas e autopistas em muitas regiões, o que os torna vulneráveis.

O cantor irlandês Bono, do grupo U2, deu um show neste domingo em uma estação de metrô de Kiev. O artista pediu que a paz chegue em breve.

Enquanto os EUA navegam entre Ucrânia e Rússia tentando evitar ser ludibriados, um ponto brilhante no esforço para evitar uma guerra maior é o sucesso do governo americano em evitar que a China forneça ajuda militar à Rússia. Isso é importantíssimo.

Afinal, em 4 de fevereiro, o presidente da China, Xi Jinping, recebeu Putin na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, quando eles revelaram todo tipo de acordo em comércio e energia e posteriormente publicaram uma declaração conjunta garantindo que a amizade entre Rússia e China “não tem limites”.

Isso é passado. Depois que a guerra começou, Biden explicou pessoalmente para Xi, durante um delongado telefonema, que o futuro econômico da China depende do acesso do país aos mercados americano e europeu — seus dois maiores parceiros comerciais — e que se a China fornecer ajuda militar para Putin, isso teria consequências muito negativas para o comércio chinês com ambos os mercados.

Objetivo claro e definido

Xi fez a conta e foi dissuadido de ajudar a Rússia militarmente de qualquer modo, o que também enfraqueceu Putin. As restrições do Ocidente sobre exportações de microchips para a Rússia estão começando a prejudicar seriamente as fábricas do país — e a China, até agora, não se apresentou.

Minha conclusão ecoa meu ponto de partida — e não canso se ressaltar: Os EUA têm de se ater o mais estritamente possível ao seu objetivo limitado e claramente definido de ajudar a Ucrânia a expulsar as forças russas o quanto possível ou de ajudar a Ucrânia a negociar a retirada dos russos sempre que os líderes ucranianos considerem que for o momento certo para isso.

Mas estamos lidando com alguns elementos incrivelmente instáveis; em particular, um Putin ferido politicamente. Gabar-se de matar seus generais e afundar seus navios — ou apaixonar-se pela Ucrânia de maneira que nos envolva com o país eternamente — é o cúmulo da insensatez. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Por Thomas Friedman, o autor deste artigo, é Jornlista. Ganhador do Prêmio Pulitzer. Publicado originalmente no New York Times e reproduzido no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 10.05.22.

Zelenski pede ações imediatas contra crise alimentar global

Presidente da Ucrânia apela à comunidade internacional por ajuda para acabar com bloqueio russo a portos e permitir transporte de grãos. "Sem nossas exportações, dezenas de países estão à beira da escassez", diz.

Dois meses e meio após o início da guerra na Ucrânia, o presidente do país, Volodimir Zelenski, apelou à comunidade internacional para que ajude imediatamente a acabar com um bloqueio russo a portos ucranianos, de modo a permitir o transporte de grãos e, assim, evitar uma crise alimentar global.

Zelenski fez as declarações após conversar sobre a questão com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, que visitou a cidade ucraniana de Odessa, onde fica o maior porto no Mar Negro para exportação de produtos agrícolas e que foi atingida por mísseis nesta segunda-feira (09/05).

Bombeiro segura cachorro diante de prédio bombardeado em Odessa, na UcrâniaBombeiro segura cachorro diante de prédio bombardeado em Odessa, na Ucrânia

Mísseis destruíram prédios na cidade portuária de Odessa nesta segunda-feiraFoto: State Emergency Service of Ukraine/REUTERS

Segundo Zelenski, ele e Michel discutiram "medidas imediatas para desbloquear os portos da Ucrânia para exportação de grãos".

"Pela primeira vez em décadas, não há um movimento regular da frota mercantil. Isso provavelmente nunca ocorreu em Odessa desde a Segunda Guerra Mundial", disse em mensagem em vídeo.

"E isso é um golpe não só para a Ucrânia. Sem nossas exportações agrícolas, dezenas de países em diferentes partes do mundo já estão à beira da escassez de alimentos. E com o tempo, a situação pode se tornar terrível", prosseguiu.

"Isso é uma consequência direta da agressão russa, que só pode ser superada em conjunto – por todos os europeus, por todo o mundo livre. Só pode ser superada pressionado a Rússia, forçando efetivamente a Rússia a parar com esta guerra desgraçada", disse.

No Telegram, Zelenski havia dito que "medidas imediatas devem ser tomadas para desbloquear os portos ucranianos para a exportação de trigo", sem especificar a que tipo de medidas se referia.

Mapa mostra presença de tropas russas na UcrâniaMapa mostra presença de tropas russas na Ucrânia

Após fazer uma visita surpresa a Odessa nesta segunda-feira, o presidente do Conselho Europeu – do qual fazem parte os chefes de Estado ou de governo dos 27 países-membros da UE e a presidente da Comissão Europeia –, disse ter visto silos cheios de trigo e milho prontos para serem exportados, mas bloqueados.

"Esses alimentos tão necessários estão retidos por causa da guerra e do bloqueio aos portos no Mar Negro, provocando dramáticas consequências para países vulneráveis. Precisamos de uma resposta global", escreveu Michel no Twitter.

Importante exportador de grãos

Antes da guerra, a Ucrânia exportava 4,5 milhões de toneladas de produtos agrícolas por mês através de seus portos – 12% do trigo mundial, 15% do milho e 50% do óleo de girassol, segundo a agência de notícias AFP.

Mas a invasão russa, iniciada em 24 de fevereiro, abalou a capacidade de exportação ucraniana, com a destruição de infraestrutura de transporte e o bloqueio à cidade portuária de Odessa. E o conflito levou a uma alta do preço dessas commodities agrícolas.

A Ucrânia foi o quarto maior exportador de milho do mundo na temporada 2020/21 e o sexto maior exportador de trigo, de acordo com os dados do Conselho Internacional de Grãos. Mas quase 25 milhões de toneladas de grãos estão agora retidas no país, segundo a ONU.

O Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU apelou na semana passada para a reabertura dos portos na região de Odessa, afirmando que centenas de milhões de pessoas no mundo dependem do fornecimento de grãos pela Ucrânia.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a segurança alimentar não pode ser garantida mundo afora sem a restauração da produção ucraniana para o mercado mundial.

Ajuda à Ucrânia

Moscou diz que sua "operação militar especial" na Ucrânia foi projetada para desarmar e desnazificar o país vizinho, o que a Ucrânia e o Ocidente classificam como um falso pretexto para uma guerra de agressão.

Os países da Otan, incluindo os EUA, descartaram uma intervenção armada na Ucrânia por temores de desencadear uma guerra de maiores proporções.

Nesta segunda-feira, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sancionou uma lei que reavivou um programa utilizado durante a Segunda Guerra Mundial, que ajudou a derrotar a Alemanha nazista, para agilizar a ajuda à Ucrânia. A estratégia chamada lend-lease ("empréstimo e arrendamento"), aprovada por democratas e republicanos, permite a transferência rápida de equipamentos militares e outros recursos para Kiev.

O primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, que visitou Kiev no último domingo, afirmou que seu país ajudaria a Ucrânia a encontrar opções para exportar grãos armazenados.

Deutsche Welle, em 10.05.22


lf (Reuters, AFP, ots)

O que há de verdade no discurso de Putin no Dia da Vitória

Ameaça nuclear pela Ucrânia? Invasão da Crimeia? Neonazistas no poder em Kiev? Otan surda? Fala do presidente russo no 9 de Maio conteve velhas e novas acusações. DW checou os fatos: a maioria é falsa. 

O presidente russo, Vladimir Putin, após parada militar pelo Dia da Vitória em Moscou, em 9 de maio de 2022O presidente russo, Vladimir Putin, após parada militar pelo Dia da Vitória em Moscou, em 9 de maio de 2022

Durante a parada militar por ocasião do 77º aniversário da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista, falando da Praça Vermelha de Moscou, o presidente russo, Vladimir Putin, levantou acusações sérias contra a Ucrânia e o Ocidente. A equipe de checagem de fatos da DW examinou algumas assertivas centrais desse discurso.

Ucrânia não busca armamento nuclear

Alegação: "Em Kiev foi anunciada a possível aquisição de armas atômicas. O bloco da Otan começou a ampliar ativamente o potencial militar dos territórios fronteiriços com o nosso", declarou Putin.

Verificação da DW: Falso

Putin aparentemente se refere ao discurso do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, durante a Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro de 2022.

Lá ele mencionou o Memorando de Budapeste de 1994, que garante a inviolabilidade das fronteiras da Ucrânia, Belarus e Cazaquistão perante os países signatários. Além dos Estados Unidos e do Reino Unido, a Rússia reconheceu aí as fronteiras ucranianas. Em troca, Kiev entregou as armas nucleares herdadas da União Soviética ou, em parte, as destruiu.

Na Conferência de Munique, Zelenski sugeriu que poderia se retirar do Memorando, uma vez que a soberania ucraniana foi violada com a anexação da península da Crimeia por Moscou, em 2014.

Do ponto de vista jurídico, tal passo seria relativamente sem consequências, pois o acordo de Budapeste não se refere ao armamento atômico – que é tema do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, assinado no mesmo ano pela Ucrânia. Além disso, não há provas de qualquer tentativa ilícita, ou sequer de planos do país de obter esse tipo de armamento. Portanto a alegação de Putin é falsa.

Seu comentário sobre novas infraestruturas militares da Otan perto das fronteiras russas é enganosa. A aliança militar internacional, de fato, reforçou sua presença no Leste Europeu, porém respeitando as condições acordadas no Ato Fundador entre a Rússia e a Otan, de 1997, em Paris.

Ucrânia não se prepara para retomar territórios e não está super-armada

Alegação: Putin insistiu que a guerra seria "preventiva": antes, a Ucrânia teria se preparado abertamente para uma nova "mobilização no Donbass" e "invasão de territórios históricos russos, inclusive na Crimeia". Países da Otan também teriam fornecido armas ultramodernas aos ucranianos.

Verificação da DW: Fals

O governo ucraniano tem repetidamente afirmado que procura uma solução diplomática, não militar, do conflito na região do Donbass, no leste do país – onde se localizam as províncias pró-russas de Lugansk e Donetsk, reconhecidas por Putin como "repúblicas populares" pouco antes de marchar sobre a Ucrânia. Quando, no terceiro trimestre de 2021, a Rússia postou suas tropas ao longo da fronteira ucraniana, não houve qualquer sinal de uma reação militar ucraniana iminente.

O mesmo se aplica à Península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014 e transformada por ela numa fortaleza militar de fato, equipada com os armamentos mais modernos. Mesmo perante esses quadros, Kiev tem se engajado por soluções diplomáticas como a "Plataforma da Crimeia", com o fim de chamar a atenção para as violações dos direitos humanos na região.

Alguns países-membros da Otan, de fato, forneceram ao país sob invasão armas modernas, como mísseis antitanques, porém de modo hesitante e, de início, restrito. Só pouco antes da invasão, no fim de fevereiro, as entregas se intensificaram. Armas pesadas, como tanques blindados, só passaram a ser enviados depois da eclosão da guerra.

As alusões de Putin a "territórios históricos" russos são injustificadas. Com a dissolução da União Soviética, a Rússia reconheceu as fronteiras da Ucrânia. Assim, do ponto de vista do direito internacional, tanto a Crimeia como as províncias no Donbass são territórios ucranianos. Uma resolução das Nações Unidas de 2020 confirmou a condenação e o não reconhecimento da anexação da Crimeia por Moscou.

Ucrânia não está dominada por neonazistas

Alegação: Putin acusou a Ucrânia de estar sendo liderada por "neonazistas", com quem seria "inevitável" chocar-se. No Donbass, civis teriam "morrido pelos disparos arbitrários e ataques bárbaros de neonazistas".

Verificação da DW: Falso

A identificação da Ucrânia com "neonazistas" é uma assertiva falsa, apesar de insistentemente repetida por Vladimir Putin, seu governo e a mídia estatal russa. Como pretexto inicial para a invasão do país vizinho, Putin alegou a necessidade de "desnazificação" – conceito com que se descreve a política das Forças Aliadas vencedoras para com a Alemanha, ao fim da Segunda Guerra Mundial.

É falaciosa a comparação entre o regime nacional-socialista da Alemanha, de 1933 a 1945, e a atual Ucrânia, sob democracia constitucional: nem Kiev almeja a um sistema totalitário, nem há extremistas de direita no poder. É fato que membros radical-nacionalistas também integram o mal afamado Batalhão Azov, que combate os invasores russos no leste do país. Porém, nas eleições parlamentares de 2019, a frente unida dos partidos ultradireitistas não conseguiu mais de 2,15% dos votos.

Para o especialista em nacionalismo no Leste Europeu Ulrich Schmid, da Universidade de Sankt Gallen, a narrativa do Kremlin e seus seguidores é uma "insinuação pérfida": existem, sim, neonazistas no país, "mas na Rússia há pelos menos tantos grupos de extrema direita quanto na Ucrânia".

Essa posição conta com amplo respaldo científico: numa declaração publicada no periódico Jewish Journal, mais de 300 historiadores e pesquisadores classificaram como "propaganda" a suposta "desnazificação" da Ucrânia, concluindo: "Essa retórica é factualmente falsa, moralmente repulsiva e profundamente ofensiva para os milhões de vítimas do nacional-socialismo."

Em vez de diálogo, Rússia impôs exigências inaceitáveis à Otan

Alegação: "Em dezembro passado, propusemos firmar um acordo sobre garantias de segurança. A Rússia chamou o Ocidente para um diálogo honesto, busca de soluções de consenso sensatas, consideração pelos interesses recíprocos. Os Estados da Otan não quiseram nos escutar, o que significa que, na verdade, tinham bem outros planos", disse Putin.

Verificação da DW: Enganoso

O presidente russo se refere a um catálogo de exigências apresentado à Otan em 17 de dezembro de 2021. Entre as oito condições sobre as quais ambos os lados deveriam acordar, a fim de evitar um conflito, as principais eram o fim da ampliação da aliança militar para o leste e o recuo de suas tropas às posições adotadas em 1997.

Isso implicaria a retirada dos contingentes da Otan da Polônia, Hungria, República Tcheca, Bulgária, Romênia, países bálticos (Estônia, Letônia, Lituânia) e diversos Estados dos Bálcãs. Além disso, a aliança ocidental deveria abrir mão de atividades militares nas vizinhanças da Rússia – sendo a Ucrânia mencionada especificamente. Ficariam também banidos mísseis de curto e médio alcance baseados em terra capazes de alcançar o território dos signatários.

Observadores ocidentais consideraram parte das exigências incompatíveis com as diretrizes da Otan. Segundo seu Artigo 10º, a liberdade de se associar a ela é direito de todo Estado soberano, mesmo se tratando de um vizinho da Rússia. O país e sua antecessora, a União Soviética, ratificaram esse princípio fundamental em 1975, 1994 e 1997.

Em sua resposta, no fim de janeiro de 2022, a Otan rechaçou a exigência de que suspendesse a admissão de novos países-membros. Por outro lado, acedeu à reivindicação de uma melhora dos canais de comunicação entre Moscou e as capitais ocidentais, com vista à reabertura de representações na Rússia e em Bruxelas.

Além disso, o Conselho Otan-Rússia deveria passar a servir ao intercâmbio sobre manobras militares e política nuclear. O secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, dispôs-se, ainda, ao diálogo com Putin sobre controles armamentistas, desarmamento e transparência nos exercícios militares – exigindo, em contrapartida, a retirada das tropas russas dos territórios da Geórgia, Ucrânia e Moldávia.

Roman Goncharenko | Michel Penke | Joscha Weber para a Deutsche Welle, em 09.05.22

Portanto os fatos não corroboram a versão do chefe do Kremlin, de ter proposto um "diálogo honesto" e não ser "escutado" pelo Ocidente.

Jovens 'sem religião' superam católicos e evangélicos em SP e Rio

"Eu não tenho religião, sempre fui totalmente pura a isso. Eu acredito em tudo, primeiramente em Jesus, o único Deus todo poderoso. Também acredito em entidades, que me ajudaram muito e sempre que puderem vão me ajudar... Acredito em energias, no universo..."

Mariana Oliveira Viana, de 21 anos, se diz sem religião, mas acredita em Deus, em Jesus, nas entidades da umbanda e em energias (Arquivo Pessoal)

Assim Mariana Oliveira Viana, de 21 anos e moradora do Rio de Janeiro, definiu em uma rede social suas crenças."Eu não tenho religião, sempre fui totalmente pura a isso. Eu acredito em tudo, primeiramente em Jesus, o único Deus todo poderoso. Também acredito em entidades, que me ajudaram muito e sempre que puderem vão me ajudar... Acredito em energias, no universo..."

Manicure autônoma e moradora do bairro de Irajá, na Zona Norte do Rio, Mariana tem parte da família evangélica, uma mãe que frequenta a umbanda e um irmão de 24 anos que, como ela, não segue uma religião, mas acredita em Deus.

Visão feminista de classe alta não vê que igreja evangélica pode fortalecer mulher, diz autor de 'O Povo de Deus'

"Minha família sempre deixou que o outro tenha total liberdade, ninguém fica questionando nada a ninguém", conta Mariana à BBC News Brasil.

Não batizada em nenhuma religião, a jovem frequentou terreiros e igrejas, e diz ter se sentido bem em todos esses lugares. Assim, decidiu não escolher uma religião e acreditar em tudo.

"Fui abrindo a mente com isso com o tempo, fui amadurecendo, no sentido de ter respeito por todas as religiões e ter a mente aberta com isso."

Os 'sem religão' no Censo e no Datafolha

Mariana é uma de milhares de jovens brasileiros que se auto definem como "sem religião", grupo que já supera católicos e evangélicos entre a população de 16 a 24 anos no Rio e em São Paulo, segundo as primeiras pesquisas Datafolha do ciclo eleitoral de 2022.

No Censo de 2010, os sem religião eram 8% da população brasileira, ou mais de 15 milhões de pessoas. Esse percentual vem crescendo década após década: os sem religião eram 0,5% da população brasileira em 1960, 1,6% em 1980, 4,8% em 1991 e 7,3% em 2000.

Os sem religião no Censo. Em % da população brasileira.  .

Com o adiamento do Censo populacional de 2020 para este ano, devido à pandemia, ainda não é possível saber de forma definitiva o que aconteceu com a religiosidade brasileira na última década.

Mas as pesquisas eleitorais, cujas amostras são construídas com objetivo de refletir a realidade da população brasileira, dão pistas importantes neste sentido.

As primeiras pesquisas Datafolha de 2022, por exemplo, mostram que, em nível nacional, 49% dos entrevistados se dizem católicos, 26% evangélicos e 14% sem religião — já acima dos 8% sem religião identificados no último Censo.

Entre os jovens de 16 a 24, o percentual dos sem religião chega a 25% em âmbito nacional.

Nas pesquisas Datafolha para Rio de Janeiro e São Paulo, o crescimento dos brasileiros que se dizem "sem religião" é ainda mais marcante, particularmente entre os jovens.

Em São Paulo, os jovens de 16 a 24 anos que se dizem sem religião chegam a 30% dos entrevistados, superando evangélicos (27%), católicos (24%) e outras religiões (19%).

No Rio, os sem religião nessa faixa etária chegam a 34%, também acima de evangélicos (32%), católicos (17%) e demais religiões (17%).

Religião dos jovens de 16 a 24 anos no RJ. Em % dos entrevistados pelo Datafolha.  

Os 'sem religião' já são mais de 30% dos jovens de 16 a 24 anos no Rio e em São Paulo, indica Datafolha (Getty Images)

Mas o que significa ser "sem religião" no Brasil? Por que esse grupo cresce, e como isso se relaciona com a diminuição da população católica e ascensão das religiões evangélicas no país?

Por que esse fenômeno é maior entre os jovens e nas grandes cidades? E que relação tudo isso tem com o comportamento eleitoral da juventude brasileira?

A BBC News Brasil ouviu três cientistas sociais especialistas em religião para explicar o fenômeno.

Quem são os brasileiros 'sem religião'

Em primeiro lugar, é preciso ter clareza que apenas uma minoria dos "sem religião" no Brasil são ateus ou agnósticos. Os ateus são pessoas que não acreditam na existência de Deus, já os agnósticos avaliam que não é possível afirmar com certeza se Deus existe ou não.

Preconceito, agressividade e desconfiança: como é ser ateu no Brasil

No Censo de 2010, por exemplo, dos 15,3 milhões de brasileiros que se diziam sem religião, apenas 615 mil (4% dos sem religião) se consideravam ateus e 124 mil se afirmavam agnósticos (0,8%).

"A maior parcela dos sem religião tem a ver com uma desinstitucionalização, o que quer dizer que o sujeito está afastado das instituições religiosas, mas ele pode ter uma visão de mundo e até mesmo práticas pessoais informadas por crenças religiosas", explica Silvia Fernandes, cientista social e professora da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

Entre outros livros, ela é autora de Jovens religiosos e o catolicismo — escolhas, desafios e subjetividades (Quartet/FAPERJ, 2010), Novas Formas de Crer — católicos, evangélicos e sem-religião nas cidades (Promocat, 2009) e organizadora de Mudança de religião no Brasil — desvendando sentidos e motivações (Palavra e Prece, 2006).

"Então esse sujeito é sem religião porque não está vinculado a uma igreja, porque não frequenta, mas pode ter crenças relacionadas a alguma religião que já teve ou ter uma dimensão mais pluralista da religiosidade", diz a especialista.

"Ele incorpora elementos de uma espiritualidade mais fluida, pode fazer um sincretismo [misturar elementos de diferentes religiões], pode ter crenças muito associadas ao universo do cristianismo — acreditar em Deus, em Jesus, em Maria — mas seguir se declarando sem religião."

Mariana, a carioca de Irajá que acredita em Deus, em Jesus, nas entidades da umbanda e em energias é um exemplo típico desses brasileiros sem religião, mas de forma alguma sem fé.

Por que cada vez mais brasileiros se dizem 'sem religião'

Regina Novaes, pesquisadora do ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), observa que a fase dos 16 aos 24 anos, onde os "sem religião" são mais presentes, é uma fase de experimentação.

"Há uma trajetória de busca e experimentação que foi colocada para as novas gerações que não era colocada para as antigas", diz a pesquisadora.

Ela observa que, atualmente, muitos jovens crescem em famílias plurirreligiosas, por exemplo, com avó mãe de santo, pai católico não praticante e mãe evangélica. Esses jovens não sentem a obrigação de seguir uma religião de família e tendem a buscar uma religiosidade própria.

Essa fase de experimentação pode seguir dois caminhos: uma busca que resulta mais tarde na escolha de uma religião; ou a construção de uma síntese pessoal, em que a pessoa se diz "sem religião" por não pertencer a nenhuma igreja, mas combina diversos elementos de fé.

"Isso é interessante, porque havia uma ideia de que, com o passar do tempo e o avanço da secularização [processo através do qual a religião perde influência sobre as variadas esferas da vida], haveria um aumento das pessoas que se desvinculariam da fé, do sobrenatural. Mas isso não está acontecendo. O que está acontecendo são outros modos de ter fé", diz Novaes.

A pesquisadora observa que esse é um fenômeno que vem desde a década de 1990, mas há outros dois processos mais recentes que têm contribuído para o avanço dos "sem religião".

Luta antirracista e 'desigrejados'

O primeiro deles é a emergência das religiões afro-brasileiras como uma opção cultural, diante do fortalecimento da luta antirracista no país.

"Junto à questão racial, vem a questão da ancestralidade. Então há muitos jovens que deixam de ser católicos, protestantes, evangélicos e se ligam a um terreiro, a uma mãe de santo ou pai de santo", diz Novaes

"Mas há também uma parcela que não vai se ligar institucionalmente, mas vai se sentir parte de uma cultura. Então eles podem se dizer sem religião, mas participar de festas, cultuar orixás, usar signos como turbantes e colares, como parte de um processo identitário."

Luta antirracista leva jovens a deixar igrejas cristãs e adotar elementos das crenças afro-brasileiras, como uma forma de afirmação da identidade negra (Getty Images)

Um segundo fenômeno são as novas gerações de evangélicos, criados na igreja, mas que passam a ter problemas com seus pastores, por questões morais, comportamentais, por críticas políticas ou com relação à maneira de conduzir a igreja.

Muitos desses jovens vão para outras igrejas, como as alternativas ou inclusivas. Mas há um outro grupo que passa a se definir através de uma palavra nova: são os "desigrejados", jovens que seguem partilhando do mundo evangélico, mas que ficam sem igreja.

"Ao ficar sem igreja, muitos desses jovens podem passar a se definir como sem religião. Porque, diferentemente do catolicismo, em que o batizado católico é, no mundo evangélico, a frequência à igreja é fundamental para a pessoa se definir", observa a especialista.

Um fenômeno jovem e urbano

Para Ricardo Mariano, professor da USP (Universidade de São Paulo) e autor do livro Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (Loyola, 1999), a perda de força da igreja católica é um dos motivos que explicam o avanço dos "sem religião".

Em 1950, quase 94% da população brasileira se dizia católica, percentual que caiu a 65% no Censo demográfico de 2010 e está em 49% entre os entrevistados do Datafolha de 2022.

Parcela da população brasileira que se diz católica diminuiu de 94% para 65% entre os Censos de 1950 e 2010 e já está em 49% nas pesquisas Datafolha de 2022 (Getty Images)

"O forte declínio dos católicos em idade de reprodução contribui para a redução no número de crianças educadas em famílias católicas e consequentemente, dos jovens com formação católica", observa o sociólogo.

"Além disso, a igreja católica tradicionalmente tem um enorme contingente de católicos ditos 'nominais', ou seja, que não frequentam os cultos, não estão expostos às autoridades eclesiásticas e nem às suas orientações doutrinais, morais e comportamentais", acrescenta.

"Isso também reduz a socialização religiosa intrafamiliar, aquela que ocorre dentro da família, o que torna menos provável que os filhos de pais católicos permaneçam na religião ou sejam por ela influenciados."

Para o pesquisador, outro fator que explica a maior parcela de jovens sem religião é o fato de que esse grupo tem redes de sociabilidade mais diversas — diferentemente, por exemplo, dos idosos, cuja sociabilidade muitas vezes é restrita à família e à igreja — e está exposto a múltiplas fontes de informação, como colégios, universidades, redes sociais e veículos midiáticos.

"Os jovens ocupam seu tempo engajados em atividades de lazer e entretenimento — o funk, o hip hop, blocos e escolas de carnaval, e por aí vai — que muitas vezes entram em conflito com orientações comportamentais e morais das igrejas cristãs mais conservadoras", observa.

Para Silvia Fernandes, da UFRRJ, isso ajuda a explicar também por que os "sem religião" são em maior número nos grandes centros urbanos, como Rio e São Paulo.

"É preciso considerar que mais de 80% da população brasileira hoje é urbana. E, nas grandes cidades, há uma celeridade da vida e acesso a uma multiplicidade de informações que colocam a religião como uma das esferas possíveis da existência, mas ela não é mais tão determinante para a sociabilidade e o encontro como no mundo rural", diz Fernandes.

Escolhas eleitorais

Há relação entre o aumento do número de jovens "sem religião" e o fato dessa parcela do eleitorado ser uma das que mais indica intenção de voto em Lula (PT) nas eleições de outubro, já que Jair Bolsonaro (PL) construiu sua imagem como um candidato da comunidade evangélica?

Aqui, os especialistas têm visões diversas.

Bolsonaro no evento evangélico 'Marcha Para Jesus' em 2019 (ALESP)

Para Ricardo Mariano, da USP, isso é sim um fator que contribui para a melhor performance da candidatura petista junto a esse segmento da população.

"O governo Bolsonaro abraçou pautas morais ultraconservadoras, as armas, homofobia, autoritarismo, políticas antiecológicas e anticientíficas, sobretudo na pandemia. Tudo isso afastou muito os jovens", observa o professor.

"Eles [os jovens] têm acesso a muita informação e tendem a ser menos conservadores em uma série de pautas. Por isso a rejeição maior ao governo Bolsonaro", avalia.

Já Regina Novaes, do ISER, destaca que é preciso ter clareza que, assim como os sem religião são uma categoria fluida, os evangélicos não são um grupo estático.

"Sim, é possível pensar que mais jovens longe das igrejas, fazendo suas escolhas, também possam fazer escolhas mais questionadoras e por isso se aproximar do Lula. Mas qual é o perigo dessa pergunta?", questiona a pesquisadora.

"É achar que os jovens evangélicos são estáticos, e que eles são [eleitores de] Bolsonaro, enquanto os sem religião são [eleitores de] Lula. Isso não é verdade. Os evangélicos não são essa massa de manobra que o Bolsonaro pensa que são, eles têm cor, têm classe social, têm local de moradia. Esse é um ponto bem importante e acredito que vamos conhecer melhor o mundo evangélico nessas eleições", avalia.

Visão feminista de classe alta não vê que igreja evangélica pode fortalecer mulher, diz autor de 'O Povo de Deus'

Brasil pode nunca vir a ser país de maioria evangélica?

O crescimento dos sem religião coloca uma dúvida para o futuro do Brasil: pode ser que o país nunca venha a ter uma maioria evangélica, como chegaram a prever alguns analistas?

Olhando para os dados, vemos que, do Censo de 2000 para o de 2010, o percentual de evangélicos no Brasil saltou de 15% para 22%, e os católicos diminuíram de 74% para 65%.

Já na pesquisa Datafolha desse início de ano para o Brasil como um todo, os católicos são 49% dos entrevistados, evangélicos 26% e os sem religião, 14%.

Embora as pesquisas não sejam diretamente comparáveis, pela diferença de abrangência, os números do Datafolha trazem algumas pistas do que esperar para o próximo Censo.

"O declínio histórico do catolicismo continua, com a igreja católica perdendo fiéis a cada década. Mas, ao mesmo tempo, você não tem os evangélicos crescendo na mesma proporção e parte disso é explicado por esse fenômeno dos sem religião", diz Fernandes, da UFRRJ.

Para a professora, alguns fatores explicam a perda de ímpeto da expansão evangélica: em primeiro lugar, as igrejas pentecostais e neopentecostais deixaram de ser uma novidade.

Um segundo fator é a diversificação na oferta dessas igrejas, que faz com que elas disputem entre si pelos fiéis, contribuindo para esse processo de experimentação característico da experiência religiosa mais fluida da contemporaneidade.

Por fim, com as igrejas evangélicas já em atividade há décadas no país, há uma parcela dos fiéis que se decepcionaram com promessas não cumpridas de cura, milagres e prosperidade, ou que não conseguem se integrar às rígidas normas morais e comportamentais, engrossando as fileiras dos "sem religião".

Para Mariano, da USP, ainda assim é de se esperar que os evangélicos sejam um dia maioria.

"É inevitável até por razões demográficas, o perfil dos católicos no Brasil é mais rural, mais velho do que os evangélicos. Os pentecostais têm um contingente enorme de pessoas em idade reprodutiva, mais do que os católicos, além disso, essas igrejas têm uma grande capacidade de recrutamento e manutenção de adeptos. Então é uma questão de tempo", afirma.

Regina Novaes, do ISER, tem outra visão.

"É difícil fazer 'profecia' sociológica, mas acredito que o Brasil não será um país evangélico. Por dois motivos: o catolicismo não é mais 'a religião dos brasileiros', mas ainda é da maioria dos brasileiros. Ateus e agnósticos vão continuar sendo minoria, mas a categoria dos sem religião passa a fazer parte das alternativas presentes do campo religioso", observa.

"Agora, a ideia é não olhar para os sem religião como uma coisa estática, porque as ofertas [religiosas] continuam existindo. E o lugar que a religião tem na vida — de dar sentido a ela, de tornar o sofrimento 'sofrível' — continua existindo. Então as religiões continuam a ser recursos culturais para os sem religião", acrescenta.

Thais Carrança - @tcarran, da BBC News Brasil em São Paulo, 09.05.22

"O Brasil continuará um país de maioria católica, os evangélicos crescerão ainda, mas os sem religião passam a ser uma possibilidade que tem de ser observada."

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Sobre as urnas, veja aqui os 7 questionamentos das Forças Armadas e as respostas do TSE

Dúvidas levantadas por militares foram classificadas no tribunal como manifestação de ‘opinião’ e foram contestadas ponto por ponto

Foto: Wilton Junior

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou públicos nesta segunda-feira, 9, sete questionamentos em que as Forças Armadas levantam suspeitas sobre o processo eleitoral. Do número de urnas eletrônicas auditadas à maneira como o TSE totaliza os votos, representante das Forças Armadas apresentou quesitos que acabaram sendo classificados pela equipe técnica da Corte como “opinião”.

Apesar das dúvidas levantadas pelos militares, não há registro de investigação que tenha encontrado prova de fraude nas urnas eletrônicas. A seguir, o que as Forças Armadas questionaram e as respostas do TSE:

1) Nível de confiança dos testes das urnas

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: Os militares pediram que fosse ampliado o número de urnas submetidas a testes durante a eleição. Alegaram que o nível de confiança médio seria baixo e a possibilidade de realizar mais testes de confiança em seções eleitorais sorteadas deveria ser estudada.

O QUE DIZ O TSE: A Corte apontou “erro de premissa” conceitual das Forças Armadas. A equipe técnica explicou que, historicamente, falhas nos equipamentos são irrisórias e que o risco está na casa de 0,01%. Apontou ainda que os militares incluíram na conta até mesmo as urnas que estão no estoque e que apenas ficam de prontidão para uso em caso de falha em algum equipamento. Serão usadas este ano urnas em 465.504 seções eleitorais e passarão por teste 648 urnas.

Não há registro de investigação que tenha encontrado prova de fraude nas urnas eletrônicas.

Não há registro de investigação que tenha encontrado prova de fraude nas urnas eletrônicas. Foto: Antonio Augusto/TSE

2) Critério de seleção das urnas que serão submetidas a testagem

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: Esse processo deveria ser aleatório, e não ser atribuído às entidades fiscalizadoras, como acontece hoje.

O QUE DIZ O TSE: Tornar o processo aleatório não é uma medida impossível, mas só poderia ser adotada em eleições futuras. O TSE explicou que o modelo hoje prevê que as entidades fiscalizadoras, incluindo os partidos políticos, já podem indicar de maneira aleatória as urnas que deverão ser testadas. A Corte entende ainda que é preciso debate com as entidades fiscalizadoras, que hoje têm o direito de escolher as urnas testadas, para uma mudança nessa linha.

3) A “sala escura” e quem deve totalizar os votos da eleição

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: A totalização dos votos nas eleições deve se manter no TSE, mas também ser feita nos tribunais estaduais, os TREs. A redundância do processo, defendem as Forças Armadas, aumentaria a auditabilidade das eleições, alegando que isso iria “diminuir a percepção da sociedade de que somente o TSE controla todo o processo eleitoral”.

O QUE DIZ O TSE: Os TREs hoje já comandam as totalizações em suas respectivas unidades da federação. A centralização no TSE é apenas de equipamentos - uma orientação, inclusive, da Polícia Federal para minimizar risco de ataques hackers. A equipe técnica da Corte destacou ainda que não há “sala escura” para apurar votos. E informou que, este ano, adota uma inovação com equipamentos em Brasília que estão prontos a atuar em caso de falhas dos que estiverem operando na apuração.

4) Fiscalização e auditoria das urnas

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: O TSE deve incentivar a fiscalização do processo eleitoral pelas entidades, incluindo uma auditoria própria do Poder Legislativo.

O QUE DIZ O TSE: O incentivo à fiscalização já integra a legislação brasileira. A Corte explicou que o Tribunal de Contas da União (TCU) já atua na fiscalização do processo como órgão assessor do Congresso. E que os partidos também podem atuar. “Por tais razões e tendo em conta, sobretudo, a rigorosa auditoria realizada pelo TCU sobre o processo eleitoral, considera-se que a sugestão já se encontra hoje incorporada aos procedimentos do TSE”, diz a Corte, que vê a questão como caso já resolvido.

5) Inclusão das urnas eletrônicas do modelo do ano de 2020 nos testes de segurança

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: É preciso realizar um teste público de segurança nesses modelos antes da utilização deles nas eleições.

O QUE DIZ O TSE: O modelo 2020 já teve o núcleo de segurança avaliado por instituição certificada pelo INMETRO, conforme rígidas regras impostas pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informação – ITI, e tem arquitetura de segurança compatível com o modelo de 2015.

6) Procedimentos em caso de verificação de irregularidade em um teste de segurança

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: Os procedimentos que seriam adotados em caso de irregularidades em testes de segurança precisam ser melhor divulgados.

O QUE DIZ O TSE: Hoje, cabe ao juiz eleitoral adotar as providências e investigações necessárias para esclarecer eventual irregularidade verificada.

7) Sobre a divulgação de abstenção e voto

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: Seria preciso divulgar o comparecimento e a abstenção em cada seção eleitoral.

O QUE DIZ O TSE: Esses relatórios contêm dados pessoais que são de acesso restrito.

Por Eduardo Gayer / O Estado de S. Paulo, em 09;05.22.

TSE diz que não há ‘sala escura de apuração de votos’ ao rebater teses das Forças Armadas

Tribunal diz que parte dos questionamentos de militares é baseada em equívocos e 'erros de premissa'

Tribunal Superior Eleitoral: “Os votos digitados na urna eletrônica são votos automaticamente computados e podem ser contabilizados em qualquer lugar”. Foto: Dida Sampaio/Estadão

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) rebateu novos questionamentos formulados pelas Forças Armadas que, sem provas, colocam sob suspeição o processo eleitoral no País. Na resposta, cuja minuta o Estadão teve acesso, a equipe técnica da Corte reitera a segurança das urnas eletrônicas e diz que não há “sala escura” de apuração dos votos. A expressão citada na resposta do TSE já foi usada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) quando sugeriu uma contabilização paralela de votos controlada pelos militares.

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Apesar das suspeitas que o representante das Forças Armadas apresentou ao TSE, discurso que também é sustentado pelo presidente Jair Bolsonaro, até o momento não foi encontrada nenhuma prova de fraude nas eleições com urnas eletrônicas. No ano passado, a Polícia Federal fez levantamento de todos os inquéritos abertos desde 1996 e nada encontrou que colocasse em suspeita a segurança do processo de votação. Os indícios de irregularidades foram detectados quando ainda havia cédula de papel.

Como o Estadão revelou, as Forças Armadas fizeram 88 questionamentos ao TSE, sendo que 81 deles já tinham sido divulgados. Estavam pendentes esses que fazem parte da resposta tornada pública nesta segunda-feira, 9, pela Corte.

O relatório técnico do TSE classifica como “opinião” as avaliações apresentadas pelo representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência, criada pela Corte para aperfeiçoar o processo eleitoral neste ano. Mesmo assim, rebate um a um os questionamentos em que os militares defendiam mudanças no processo de apuração e totalização dos votos, apontando o que chama de “equívocos”, “erros amostrais” e “erros de premissa”.

“Não há, pois, com o devido respeito, “sala escura” de apuração. Os votos digitados na urna eletrônica são votos automaticamente computados e podem ser contabilizados em qualquer lugar, inclusive, em todos os pontos do Brasil”, diz a Corte, que, no entanto, afirma agradecer “todas as considerações e contribuições ofertadas”.

No dia 27 de abril, Bolsonaro defendeu em cerimônia oficial no Palácio do Planalto uma apuração paralela do TSE, encabeçada pelas Forças Armadas, e citou que atualmente havia uma “sala secreta”. “Como os dados vêm pela internet para cá e tem um cabo que alimenta a sala secreta do TSE, uma das sugestões é que, nesse mesmo duto que alimenta a sala secreta, seja feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um computador das Forças Armadas, para contar os votos no Brasil”, afirmou o presidente na ocasião. No ano passado, ele dizia que o tribunal queria eleger o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) numa “sala escura”.

O TSE ainda desmente a tese apresentada pelas Forças Armadas de que a totalização dos votos seria feita apenas pelo TSE. “É impreciso afirmar que os TREs não participam da totalização: muito pelo contrário, os TREs continuam comandando as totalizações em suas respectivas unidades da federação”, afirma o ofício. A resposta foi dada a um quesito em que as Forças Armadas parecem indicar como ser um problema a Corte eleitoral em Brasília somar o resultado da votação. “Recomenda-se que a totalização dos votos seja feita de maneira centralizada no TSE em redundância com os TRE, visando a diminuir a percepção da sociedade de que somente o TSE controla todo o processo eleitoral e aumentar a resiliência cibernética do sistema de totalização dos votos”, escreveu o general que representa os militares. Na resposta, o tribunal esclareceu ainda que, apesar de haver contagem nos Estados, a soma final ocorre em equipamentos centralizados em Brasília. O TSE lembrou que isso foi, inclusive, uma orientação da Polícia Federal para minimizar risco de ataques hackers.

A minuta de respostas às Forças Armadas veio acompanhada de um despacho assinado pelo presidente do TSE, ministro Edson Fachin, que defende a Corte. “Ciente e cumpridor do seu papel constitucional ao longo dos últimos 90 anos, este Tribunal manterá a sua firme atuação voltada a garantir paz e segurança nas eleições, a aprimorar o processo eleitoral, a propagar informações de qualidade e, acima de tudo, a exortar o respeito ao resultado das eleições como condição de possibilidade do Estado de Direito Democrático e de uma sociedade livre, justa e solidária, nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil”, diz o magistrado.

Eduardo Gayer, de Basília para O Estado de S. Paulo, em 09.05.22

A parte da elite que apoia o atraso

Seduzidos pelas canetadas populistas de Bolsonaro, alguns empresários flertam com o apoio à sua reeleição, atentando não só contra os interesses nacionais, mas contra o seu próprio

Desde as eleições de 2018, entrou na cena pública um escrete de folclóricos empresários bolsonaristas, tão histriônicos e incorrigíveis como o seu “mito”. Mas, às vésperas de novas eleições, segundo a colunista do Estado Adriana Fernandes, novas lideranças empresariais têm flertado com o apoio à reeleição de Jair Bolsonaro. Com assombrosa capacidade de abstração, elas excluem de seus cálculos a mistura de estagnação econômica, autoritarismo político, indigência administrativa, instabilidade institucional e degradação moral que é o governo Bolsonaro.

A psique infantil e insegura do presidente; as afrontas ao decoro e à liturgia do cargo; as relações obscuras com milicianos; a truculência no debate público; as crises institucionais artificiais; as calúnias ao sistema eleitoral e as ameaças de descumprir a vontade das urnas; a degradação da administração federal; o obscurantismo que asfixia a educação, a cultura e a ciência; a devastação do patrimônio ambiental; o nanismo diplomático que, oscilando entre a negligência geopolítica e os insultos a parceiros internacionais, resultou num descrédito sem precedentes; o escárnio pelas minorias; a sabotagem às medidas de contenção do vírus da covid-19 e à imunização, resultando em milhares de mortes evitáveis; o descompromisso com as reformas e privatizações, malgrado suas tonitruantes promessas eleitorais; o sequestro do Orçamento com os fisiologistas do Centrão e a deterioração das contas públicas; os indícios de corrupção na compra de vacinas, verbas escolares e licenças a criminosos ambientais; a captura da máquina pública para fins eleitoreiros; a predisposição a privilegiar interesses familiares sobre os corporativos, os corporativos sobre os de governo e os de governo sobre os de Estado – nenhuma dessas mostras de incompatibilidade com os deveres de um estadista parece pesar na intenção de voto desses empresários.

Tampouco os motiva a estratégia do “voto útil” contra o suposto “mal maior”, questionável, mas compreensível, ante a ameaça do mandarinato lulopetista de recobrar o poder e restabelecer seu desenvolvimentismo irresponsável, sua hostilidade ao livre mercado, os gastos descontrolados, o aparelhamento do Estado e a capilarização da corrupção, tendo como corolário o retrocesso socioeconômico.

Não, as razões são mais primárias e constrangedoras: uma mescla de egoísmo e credulidade.

Entusiasmados com uma momentânea melhora nos indicadores econômicos, afagados por benefícios, créditos e isenções sacados a golpes da caneta presidencial, encantados pelos gráficos fabricados no Ministério da Economia e pelas gesticulações do seu “superministro”, esses empresários parecem comprar um pacote de inovações “estruturais” prometidas para o próximo mandato.

A novidade não é a insensibilidade com o opróbrio da esmagadora maioria de seus conterrâneos, a fome, o desemprego, a inflação que corrói a renda das famílias pobres. Essa indiferença é moeda corrente em parte significativa das elites nacionais. O surpreendente é a ignorância em relação aos seus próprios interesses. Com tantos anos de experiência, essa parcela do empresariado parece que ainda não entendeu que os votos comprados pelo populismo hoje cobram juros escorchantes amanhã, seja pela fuga de capitais, escassez de investimentos públicos, deterioração do capital humano e degradação institucional, seja pelos demais ingredientes que alimentam a estagnação da economia, a incivilidade nas ruas ou a rapacidade das classes políticas.

Que esse engano é autoengano, ou seja, que ainda resta um laivo recôndito de preocupação republicana, depreende-se do relato da colunista Adriana Fernandes, segundo o qual “o apoio à reeleição é ainda envergonhado”.

Diversas vezes a elite empresarial e suas associações se manifestaram contra os desmandos de Bolsonaro na área ambiental, educacional, sanitária ou diplomática. É hora de se mobilizarem para expor tudo o que há de vergonhoso no voto de seus colegas seduzidos pelo canto desafinado da sereia bolsonarista. Se não for pelos interesses nacionais, que seja ao menos para preservar seus próprios interesses.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 09.05.22

O inimigo institucional

Bolsonaro estendeu a sua noção de inimigo ao Supremo, um pilar da democracia, e não somente ao seu adversário principal na eleição, Lula.

O cenário político brasileiro entrou numa zona cinzenta, de contornos indefinidos, em que o jogo partidário normal está derrapando para o confronto institucional. Não se trata apenas de um embate eleitoral, próprio do jogo democrático, mas sinaliza para algo mais, a saber, a própria existência de instituições democráticas. No momento em que as próprias instituições são questionadas e sua legitimidade é posta em dúvida, a política deriva para uma espécie de não política no sentido clássico do termo, isto é, pode concretizar-se em soluções autoritárias, que se situam fora do cenário propriamente democrático.

A partir da condenação do deputado Daniel Silveira, da base de apoio bolsonarista, pelo Supremo Tribunal Federal, o presidente Bolsonaro aproveitou-se da ocasião para deslanchar toda uma campanha contra o Supremo enquanto instituição, vindo, na sequência, a questionar o processo de apuração da urna eletrônica, chamando as Forças Armadas para si, como se fizessem parte de sua base de apoio, quando são instituições de Estado. Há, claramente, aqui um apagamento de fronteiras constitucionais. Assim se conduzindo, ele tornou o próprio Supremo o seu novo inimigo, o que significa dizer que a própria democracia pode estar a perigo. Note-se que o alvo não é Lula ou outro competidor, mas uma instituição republicana, sem a qual o regime democrático desmorona. O inimigo torna-se institucional.

Não se trata, aqui, de defender a decisão específica do Supremo, considerada inclusive por não bolsonaristas como excessiva em sua pena, além de criar problemas, no que diz respeito à cassação do mandato, com o Poder Legislativo, que teria essa cassação como uma atribuição sua. Outros poderiam argumentar, com certa dose de razão, que o inquérito das fake news já teria ido longe demais. No entanto, não é isso que está em questão, uma vez que o presidente Bolsonaro, por sua vez, no uso de suas prerrogativas presidenciais, recorreu ao indulto individual como se estivesse a defender a liberdade, um princípio constitucional. Deu, assim, um passo político temerário, colocando-se na posição de revisor constitucional, quando não tem essa prerrogativa. Anulou, dessa maneira, a divisão de Poderes.

Trata-se de uma autoatribuição sem nenhuma base constitucional. O indulto é, sim, uma prerrogativa sua para ser utilizada com o objetivo de suspender a pena dos criminosos, não lhe cabendo discutir as razões da condenação. Reiterando, ele não é uma suprema instância cujo poder reside acima do próprio Judiciário. Seria ele, segundo uma tal concepção, um poder correcional das decisões de um Supremo que cessaria de ser supremo. Em outras palavras, tal formulação é de cunho claramente autoritário, a partir da qual as portas estariam abertas para ele “corrigir” qualquer decisão de nossa mais alta Corte, o que significaria dizer que poderia descumprir qualquer decisão dela derivada. Poderia não acatar, por exemplo, uma decisão do Supremo relativa aos resultados da urna eletrônica, como se coubesse a ele decidir sobre esses resultados. A crise institucional estaria instalada.

Note-se que Bolsonaro chegou a utilizar a expressão “comoção social” para justificar o seu ato de indulto, quando não houve nenhuma manifestação deste tipo, salvo o barulho já usual de suas redes sociais, que são ainda mais atiçadas quando seus objetivos políticos assim o exigem. Sugeriu que haveria uma profunda insatisfação social com a condenação de Daniel Silveira, quando ela concerne somente à própria bolha bolsonarista. A imensa maioria dos cidadãos brasileiros está preocupada com a inflação, com o desemprego, com a baixa renda e com suas necessidades mais imediatas.

Desde uma perspectiva eleitoral, o atual mandatário procurou unicamente aumentar a coesão do grupo dos seus apoiadores, cansados e desiludidos com a falta de cumprimento de suas promessas, exemplificada em sua aliança com o Centrão, em sua “conversão” à “velha política”.

A política bolsonarista, conforme assinalado em outros artigos, é de cunho schmittiano, baseada na distinção entre amigo e inimigo. Há uma clara estratégia a esse respeito, embora as oportunidades para reiterá-la resultem das intervenções, muitas vezes improvisadas, do presidente. Recuos fazem igualmente parte desta sua estratégia, como moderações repentinas, a exemplo das recentes manifestações de rua. O inimigo é todo aquele que é designado como tal, não importa quem seja ou o que faça. Basta que tenha essa designação, que é atribuição daquele que assim o denomina. Pode ser qualquer um, seja alguém real, seja alguém imaginário, seja uma instituição.

No caso em questão, Bolsonaro estendeu a sua noção de inimigo ao Supremo, um pilar da democracia, e não somente ao seu adversário principal, Lula. Tivesse ele se restringido a este último, estaria ainda submetido às regras democráticas; extrapolando seu gesto, ele termina se situando para além dessas regras. Passa a democracia a ser o seu alvo.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidde Federal do Rio Grande do Sul.  Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 09.05.22

domingo, 8 de maio de 2022

O Brasil não vai se acabar

Essa próxima eleição tem que servir para evitar a catástrofe definitiva. É a disputa entre a civilização e a barbárie. Lembra Cacá Diegues.

Lévi Strauss nos disse que existem dois grupos de cientistas sociais e homens políticos: os conservadores, que acham que a idade de ouro da humanidade foi vivida no passado; e os progressistas, que garantem que a idade de ouro está no futuro. Ninguém se dá conta de que a idade de ouro será sempre o tempo que nos é dado viver, o único no qual podemos intervir e dar-lhe um rumo mais próximo daquilo que julgamos valer à pena.

Estamos praticamente às vésperas de uma eleição presidencial e temos que exigir, em primeiríssimo lugar, que o vencedor respeite a Constituição que nós todos, expressa ou implicitamente, juramos respeitar. Governar ignorando a Constituição é viver numa selva em que só a violência e o acaso decidem o que deve acontecer. Temos o direito de supor que as leis talvez não traduzam a cultura de nosso povo, a quem devemos propor a mudança, se precisarmos mudá-las. Mas só ele e seu desejo têm o direito de mexer nelas.

Toda Constituição democrática deve garantir à maioria a liderança da sociedade e reconhecer o direito de as minorias se manifestarem e viverem do jeito que julgarem mais apropriado, sem fazer mal a ninguém. Se no discurso dominante não houver uma mínima possibilidade de o contrário do que afirmamos estar certo, ele será sempre um discurso autoritário que não serve ao progresso da humanidade. Toda lei é um acordo entre cidadãos que desejam permanecer juntos, unidos numa mesma sociedade, com os mesmos fins.

O sonho acabou e o Brasil virou o que é agora — um país sem caráter, de desigualdades e desemprego, de fome e miseráveis desassistidos, uma economia em recessão, sem expectativa de recuperação em prazo humano. Um país violento, desorientado e caótico, à beira de uma catástrofe definitiva. E nada mais iluminado para nossos olhos do que aquilo que não temos como evitar. Basta dormir em paz e, na manhã seguinte, acordar novamente com o relho na mão. O que valia mesmo era o prazer de viver num país onde, mesmo merecendo essa ou aquela correção de rumo (às vezes profunda), havia um horizonte de luz à nossa espera. E nós todos acreditávamos com orgulho nesse horizonte, podíamos viver dessa expectativa ou dessa esperança.

A democracia, o sistema político por excelência da civilização, não é a imposição do modo de vida da maioria; mas o regime em que as minorias têm garantido o seu direito de ser diferente.

Essa próxima eleição tem que servir para evitar a catástrofe definitiva. Não se trata de uma escolha entre políticos, programas, partidos. O que está em jogo é um capítulo final dessa história de decadência, a disputa que pode ser derradeira entre civilização e barbárie. É a uma dessas duas formas de viver e conviver que vamos dar o nosso voto.

O Brasil cansou mas não acabou. Nessas eleições mesmo, com tão pouca reflexão, a multiplicação das posições políticas, deixando o esquematismo tradicional dos diversos “populismos nacionais”, é uma notícia positiva que deve ser desenvolvida, fora das eleições, por quem estiver afim de reencontrar o povo. As mulheres brasileiras, por exemplo, foram às ruas, exercendo seu direito de manifestação e inaugurando uma nova etapa em seu papel na sociedade em que vivemos. Parabéns a elas.

Ao contrário do que diz e age a insensatez de alguns brasileiros inconformados com nossas peculiaridades, é em nome do peculiar que devemos nos comportar. Em nome sobretudo do respeito ao direito do outro ser diferente de nós e, afinal de contas, sermos todos iguais perante nós mesmos. É em benefício disso, desse sonho ideal, que devemos votar em outubro e sempre.

Cacá Diegues, o autor deste artigo, é cineasta ("By By Brasil", dentre outros clássicos nacionais). Publicado originalmene n'O Globo, em 08.05.22