domingo, 8 de maio de 2022

Financiamento público inibe ‘terceira via’

Neste ano, estão disponíveis R$ 5 bilhões de fundo eleitoral, R$ 1 bilhão de fundo partidário (sem falar nos R$ 16,5 bilhões do orçamento secreto à mercê das lideranças do Congresso).

Congresso Nacional | O Globo

Se você quer sair candidato à Presidência e seu nome não é nem Luiz Inácio Lula da Silva nem Jair Messias Bolsonaro, o primeiro obstáculo que terá diante de si nem será a previsível pontuação baixa nas pesquisas eleitorais. Será convencer o próprio partido a lançar candidato. As regras para o financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais funcionam contra o lançamento de candidaturas presidenciais — e esse tem sido o empecilho mais concreto às candidaturas alternativas a Lula e Bolsonaro, a proverbial “terceira via”.

(Eleições: saída do União Brasil enfraquece terceira via)

O maior interesse de praticamente todos os partidos hoje é obter uma bancada robusta no Congresso. É o tamanho dessa bancada que garantirá acesso aos fundos partidário e eleitoral, além do protagonismo nas mesas das duas Casas, com a influência decorrente sobre os recursos do Orçamento. Neste ano, estão disponíveis R$ 5 bilhões de fundo eleitoral, R$ 1 bilhão de fundo partidário (sem falar nos R$ 16,5 bilhões do orçamento secreto à mercê das lideranças do Congresso).

Os dois primeiros equivalem a R$ 6 bilhões pingando no cofre dos partidos, na proporção direta do tamanho das bancadas. Por que alguém gastaria dinheiro com uma campanha presidencial de chance incerta diante da possibilidade de investir no crescimento da própria bancada e de ganhar acesso a uma fatia maior de tais recursos?

(Crise entre os Poderes: Fachin defende posição firme contra ameaças à democracia)

É esse o cálculo que explica a resistência dos caciques do MDB à candidatura da senadora Simone Tebet (MT). Ou o lançamento do inexpressivo Luciano Bivar pelo União Brasil, de modo a preservar recursos para as campanhas ao Legislativo. Ou mesmo a sabotagem de parcela expressiva dos tucanos à candidatura do ex-governador paulista João Doria, mesmo depois de ele ter derrotado o ex-governador gaúcho Eduardo Leite em prévias transparentes de repercussão nacional.

A menos que um nome decole de modo inequívoco com potencial de derrotar Bolsonaro ou Lula, nada mudará nesse cálculo. Continuará mais vantajoso para os líderes partidários apostar na conquista de uma bancada maior, em vez de embarcar numa candidatura presidencial de risco.

(Sem alianças: União Brasil terá 'chapa pura' à Presidência) 

Tal situação demonstra a deficiência da atual legislação de financiamento público das campanhas. É um modelo que pode funcionar em regimes parlamentaristas, em que tudo o que está em jogo na eleição é o tamanho das bancadas. Mas não no nosso presidencialismo, dependente de nomes fortes para erguer uma candidatura com perspectiva de poder.

Se o financiamento privado, em particular por empresas, abria brechas inaceitáveis à corrupção e ao tráfico de influência, ao menos trazia a garantia de um leque mais plural de candidaturas. Teria sido possível aperfeiçoá-lo, exigindo maior transparência e limitando seu alcance para evitar o abuso de poder econômico. Infelizmente, não foi o caminho adotado pelos tribunais, nem pelo Congresso.

O efeito indesejado é evidente: agrava-se a característica mais nefasta do sistema partidário brasileiro. Em vez de veículos para a expressão legítima de ideologias ou interesses, os partidos se tornaram, antes de tudo, negócios que precisam zelar pelas próprias receitas. Nisso, não há rigorosamente nenhuma diferença entre aqueles oriundos de legendas tradicionais, como PT, PDT, PSB, PSDB, MDB ou União, e as tão criticadas agremiações venais associadas ao Centrão.

Editorial de O Globo, edição de 08.05.22

Bolsonaro não mascara intenção de golpe

Jair Bolsonaro não usa máscara. Sempre apostou na exposição total. Não usou máscara contra a Covid-19, quando poderia ter incentivado milhões de brasileiros a se proteger da pandemia — um dia, talvez, será possível contabilizar a real extensão dessa semeadura da morte, cujo registro até agora é de mais de 663 mil vítimas oficiais. 

O presidente tampouco usa de qualquer escudo para esconder sua índole golpista. Nunca precisou de camuflagem. Ao contrário, chegou aonde está graças a sua ostentação incendiária, tão nua quanto crua. A cada etapa, mostra-se mais arrojado, amealhando quanto pode dos podres poderes que nossa democracia em construção ainda tolera. Primeiro como vereador, depois deputado federal pelo Rio de Janeiro, chegou a presidente da República em 2018 nos braços de 55,13% dos votos válidos, ou 57,7 milhões de eleitores. A cada pit stop, tratou de estender benefícios e métodos a sua voraz parentela e conseguiu fidelizar a atual plêiade de sacripantas instalada a sua volta.

Nenhum motivo para mudar de curso, portanto —menos ainda quando cada nova pesquisa de opinião pública para o pleito de outubro próximo reaparece como assombração. A pesquisa mais recente confirma a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva nas intenções de voto. Como num cenário de segundo turno contra Lula a perspectiva de ser derrotado só aumenta, Bolsonaro está em modo bunker, 100% dedicado a abortar esse roteiro. A qualquer custo e por meio de qualquer arma, como já vem demonstrando de forma estridente.

Pode ser de utilidade pública atentar ao duplo encurtamento do tempo — à medida que a eleição se aproxima, Bolsonaro antecipa o golpe em algumas casas. Senão, vejamos. Desde seu tonitruante discurso com “aviso aos canalhas que não serei preso”, proclamado às massas no último 7 de Setembro e dirigido ao Supremo Tribunal Federal (STF), o cardápio de ataques a Poderes republicanos e a campanha contra a lisura do voto eletrônico se alastraram. Tornaram-se verdade venenosa junto às hostes bolsonaristas, impregnaram o país de dúvidas futuras e obrigaram o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a trabalhar dobrado em busca de um antídoto eficaz.

Mas, tal qual numa guerra, a estratégia inicial do golpismo foi sendo alterada. Ao longo dos primeiros meses, o timing para a insurreição planejada parecia depender do resultado das urnas. Fosse a derrota já no primeiro turno ou no segundo, a ação visaria a reverter o desfecho post factum ou, talvez, até já no início da apuração. Contudo esse calendário de violência anunciada tem se estreitado à luz do dia e, simultaneamente, aliciado altas patentes verde-oliva. Criticado com razão pela recente loquacidade espaventosa em seminário na Alemanha, o ministro Luís Roberto Barroso sabia do que falava: sim, as Forças Armadas “estão sendo incitadas a atacar o processo eleitoral brasileiro”. Os próprios fatos assim atestam. Quando um ministro da Defesa, no caso o general Paulo Sérgio Nogueira, envia 55 questionamentos ao presidente do TSE, Edson Facchin, com demandas de aprimoramento da urna eletrônica para 2022, deixou de ser sinal. É atestado de que as Forças Armadas do Brasil estão com as duas botas e várias estrelas fincadas na autocracia eleitoral.

Como é sabido, quem está acostumado a privilégio sente opressão quando ouve falar de igualdade. Daí a aparente necessidade de acelerar a marcha. Em sua live semanal de quinta-feira, Bolsonaro, tendo ao lado o cada vez mais cavernoso general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, foi fundo. Informou ao país que “as Forças Armadas não serão meras espectadoras das eleições”, são convidadas dele. Também anunciou a contratação de uma “empresa de ponta” para realizar a auditoria das eleições. Essa empresa, a ser contratada pelo PL do pantanoso Valdemar Costa Neto, atuaria não após, mas antes do pleito. Para que correr riscos? Por que esperar até as eleições? Recado dado: o golpe já começou. Ou, pelo menos, a tentativa de.

Dorrit Harazin, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 08.05.22. 

Ao vencedor, a crise

O presidente eleito este ano encontrará um legado de inflação alta, juros elevados, economia travada e contas públicas em perigo.

Bolsolula é o candidato mais cotado, neste momento, para assumir a Presidência em janeiro de 2023. Em campanha contra si mesmo, o líder petista parece empenhado em se mostrar tão perigoso quanto seu rival imediato, o inquilino do Palácio da Alvorada. Deve estar ficando difícil, para muitos eleitores, distinguir os dois adversários, o ex-sindicalista e o motoqueiro avesso às obrigações de governo. As diferenças ficam borradas, quando Luiz Inácio Lula da Silva fala em controle social dos meios de comunicação, ou quando aponta como igualmente culpados pela guerra o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelensky, e o autocrata russo Vladimir Putin. O Direito Internacional, tanto quanto o Código Penal brasileiro, diferencia claramente o agressor e a vítima. O agressor, neste caso, foi saudado por Jair Bolsonaro, poucos dias antes da invasão, com uma declaração de solidariedade.

Quem se esforça para ver os detalhes ainda pode apontar algumas distinções. Lula jamais combateu vacinas ou quaisquer medicamentos. Além disso, é difícil imaginá-lo indiferente a milhares de mortes, durante uma epidemia, ou devastando o Ministério da Saúde. Mas ele se aproxima do rival quando propõe irresponsabilidades, como a revogação da minirreforma trabalhista de 2017, a eliminação do teto de gastos e a intervenção nos preços da Petrobras. Também perde pontos, diante de qualquer cidadão atento, quando fala em deixar para depois de eleito um debate amplo e claro sobre política econômica. A frase apareceu na entrevista publicada pela revista Time: “Nós não discutimos política econômica antes de ganhar as eleições”.

Nenhum candidato sério recusa a exposição de seus planos, especialmente depois de haver apresentado ideias polêmicas sobre política fiscal, leis trabalhistas e gestão de uma empresa com ações no mercado. Expor planos e discuti-los é ainda mais importante quando a economia está emperrada, a indústria retrocede, os preços disparam, o desemprego continua elevado, os juros vão às alturas e a dívida pública se mantém acima dos padrões internacionais.

O presidente eleito vai encontrar um legado econômico desastroso. Terá de trabalhar desde o primeiro minuto – ou desde antes da posse – para abrir algum espaço a uma nova política, se tiver, de fato, alguma pretensão de consertar e dinamizar o País. O Banco Central (BC) projeta inflação acima de 7% neste ano e próxima de 3,5% em 2023, mesmo com juros muito altos e crédito apertado. Mas há previsões bem mais feias.

Novas estimativas do setor financeiro apontam alta de preços na faixa de 8% a 10% em 2022. Só com muito otimismo se pode apostar num grande recuo na virada do ano, como se os fados quisessem dar boas-vindas a um novo governo. Em condições pouco melhores, a redução dos juros básicos deverá ser gradual. O crédito escasso continuará dificultando o consumo, entravando a atividade econômica e encarecendo a dívida pública. Projeções da pesquisa Focus divulgadas no começo de maio indicaram crescimento econômico de apenas 0,70% neste ano, de 1% no próximo e de 2% nos dois anos seguintes.

Essa taxa de 2%, frequente nas projeções de médio e de longo prazos, corresponde ao potencial de expansão econômica estimado para o País. Há quem estime potencial menor, mas a mensagem é basicamente a mesma: o Brasil está despreparado para avançar mais velozmente e de forma sustentada. Sua capacidade produtiva tem sido limitada por baixo investimento em máquinas, equipamentos, obras civis, infraestrutura e – detalhe nem sempre lembrado – educação, ciência e tecnologia. O valor investido em capital físico oscila, desde o começo do século, perto de 18% do Produto Interno Bruto (PIB), taxa bem inferior àquelas observadas em outras economias emergentes. Concebida há muitos anos, a meta de investir o equivalente a 24% ou 25% continua sendo apenas um desejo.

Para retomar o crescimento duradouro e a modernização, será preciso definir metas qualitativas e quantitativas de investimento e garantir a mobilização de recursos públicos e privados. Isso envolve planejamento, uma atividade fora dos padrões do presidente Jair Bolsonaro, de sua equipe econômica e, de modo geral, dos ministros e daqueles aliados notáveis principalmente pela voracidade.

Muito mais propenso a inaugurar do que a iniciar obras, o presidente encerrará seu mandato, desastroso para a economia e perigoso para a ordem democrática, sem ter sido contaminado pelas noções de governo, de administração e de responsabilidade presidencial.

Uma derrota eleitoral de Bolsonaro será um ganho para o País, para a civilização e para a limpeza ambiental. Mas é cedo para apostar numa ampla regeneração econômica. Candidatos mais promissores em termos econômicos e políticos continuam mal situados nas pesquisas. Luiz Inácio Lula da Silva pode ser menos perigoso que Bolsonaro, em alguns aspectos. Mas seu segundo mandato abriu caminho para os desmandos da presidente Dilma Rousseff e seu discurso de candidato, hoje, está longe de prenunciar um governo sério e seguro para o País.

Rolf Kuntz, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo em 08.05.22 

Dúvida é uma coisa, má-fé é outra

A dúvida que deriva da curiosidade genuína é o motor do desenvolvimento humano. A dúvida que Jair Bolsonaro instila como tática eleitoral é mais vulgar

O presidente Jair Bolsonaro conseguiu transferir para uma expressiva parcela da sociedade os seus próprios medos e inseguranças. Hoje, muitos brasileiros afirmam ter dúvidas em relação a temas que até pouquíssimo tempo atrás eram pacíficos, como a importância das campanhas de vacinação ou a segurança das urnas eletrônicas, apenas para citar dois exemplos paradigmáticos desses tempos esquisitos.

Bolsonaro quer fazer os brasileiros acreditarem que, por trás de tudo que contrarie seus interesses e crenças, haveria um ardil para impedi-lo de governar, para apeá-lo da Presidência da República ou para permitir o triunfo de seus adversários, notadamente o ex-presidente Lula da Silva. Para Bolsonaro e seu grupo de apoiadores mais radicais, dúvidas e insinuações valem mais do que a verdade factual.

Não passa pela cabeça do presidente que ele possa cometer erros, como qualquer ser humano, ou que servidores públicos, ao tomarem decisões que lhe desagradem, possam agir orientados apenas pelo interesse público, dentro dos limites legais de suas atribuições. A Bolsonaro também escapa a compreensão de que os cidadãos possam manifestar livremente repúdio ao seu modo calamitoso de conduzir o País.

Consensos sociais mínimos foram obliterados. Instalou-se no Brasil um clima de permanente desconfiança. Estimulados pelo discurso do presidente, cidadãos suspeitam a priori da boa-fé e dos argumentos uns dos outros, interditando o diálogo civilizado nas esferas pública e privada. Sob essa espessa nuvem de suspeição que paira sobre o País, autoridades como o presidente do Superior Tribunal Militar (STM) e o vice-presidente da República se sentem à vontade para tentar reescrever a história da ditadura militar e seus horrores. É nesse ambiente tóxico que achados científicos são desqualificados por leigos sem qualquer constrangimento. Instituições republicanas, como o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, passaram a ser vistas com receios injustificados – quando não tratadas com desrespeito – por indivíduos que até ontem não tinham quaisquer reparos a fazer sobre suas decisões.

Não é errado, de forma alguma, que cidadãos tenham dúvidas em relação ao funcionamento das instituições e ao exercício do poder, que emana do povo. O ceticismo é nutriente primordial para uma democracia saudável. Só no campo das religiões as certezas se sobrepõem às dúvidas. Na vida civil, essencialmente laica, o questionamento é fundamental. Mas há dúvidas e dúvidas.

A dúvida que deriva de uma curiosidade legítima do indivíduo é o motor da produção do conhecimento e do desenvolvimento humano. Tanto é assim que a espinha dorsal do método científico experimental é a dúvida. Ninguém é absolutamente confiável, nem mesmo os cientistas. Não porque sejam movidos por uma vontade deliberada de enganar os outros, mas porque são humanos, demasiadamente humanos, e, como tais, sujeitos a vieses que podem levar ao autoengano. Por isso que, imbuídos de boa-fé, dão transparência ao seu trabalho e submetem seus experimentos ao escrutínio de outros observadores.

A dúvida que Bolsonaro instila é vulgar. Ao contrário daquela, é nociva, pois carece de quaisquer fundamentos. Afinal, o que ocorreu de relevante no País para que parte dos brasileiros passasse a desconfiar das vacinas ou das urnas eletrônicas de uma hora para outra? A rigor, nada, a não ser a eleição de Jair Bolsonaro. Todo esse clima de suspeição decorre diretamente da obsessão do atual mandatário em se manter no poder. O presidente concebe a reeleição como um fim em si mesma, quase um direito divino, e não como o coroamento de uma boa administração, algo que foi incapaz de realizar. Logo, quem pensa ser infalível – ou “imorrível” ou “imbroxável”, como já se autointitulou – não admite derrota, que só poderia decorrer de uma “fraude”.

Bolsonaro aposta em dúvidas infundadas para deslegitimar o resultado da eleição caso seja derrotado. Ainda causará muita confusão, mas, ao fim e ao cabo, prevalecerá a vontade da maioria dos eleitores, seja ela qual for.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 08 de maio de 2022 

"A democracia brasileira está respirando por aparelhos"

Para cientista político e sociólogo, líderes como Bolsonaro são mais um sintoma do que a causa da decadência democrática, e o que está em jogo no Brasil é se haverá condição de "recompor o que foi destruído".

Para o cientista político e sociólogo Luis Felipe Miguel, não cabem eufemismos para analisar o atual momento político do Brasil: ele vê um país em que a democracia "está fraturada" e denuncia que pilares do próprio Estado constitucional foram à falência na década passada, sobretudo a partir do processo de impeachment que destituiu a presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.

Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e coordenador do Grupo de Pesquisa Sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), Miguel acaba de lançar livro Democracia na periferia capitalista. Na obra, o autor contextualiza as fragilidades do arranjo político nacional a partir da trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT), de sua criação, ascensão, auge — com a chegada ao poder, por meio da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, que foi presidente entre 2003 e 2010 —, e queda.

"O que está em jogo no Brasil, no momento, não é impedir que a democracia seja fraturada. Ela já está fraturada. É se haverá condição de retornar à trilha democrática, de recompor o que foi destruído, de reconstitucionalizar o país", afirma em entrevista à DW Brasil.

Antes do novo livro, Miguel já publicou outros  de cunho político, entre eles Democracia e representação: territórios em disputa, Consenso e conflito na democracia contemporânea e O Colapso da Democracia no Brasil: da Constituição ao Golpe de 2016.

À DW Brasil, ele aponta que parte da literatura da ciência política associa a crise da democracia à emergência de movimentos e líderes políticos autoritários, "os populistas de direita, dos quais Bolsonaro é um exemplo". "Mas creio que eles são antes um sintoma do que a causa da decadência democrática", diz.

DW Brasil: De acordo com sua análise, por que a democracia está em risco no Brasil?

Luis Felipe Miguel: A democracia brasileira está bem baqueada, respirando por aparelhos. A derrubada da presidente Dilma Rousseff, em 2016, mostrou que um pilar da democracia liberal, o respeito aos resultados eleitorais, estava corroído. A perseguição judicial contra o Partido dos Trabalhadores, sobretudo por meio da Operação Lava Jato, mostrou a falência do outro pilar, o império da lei. O veto à candidatura do ex-presidente Lula, em 2018, naquilo que o cientista político Renato Lessa chamou de "impeachment preventivo", retirou a legitimidade das eleições. Um veto, convém lembrar, que dependeu não só da atuação enviesada do Poder Judiciário como também da pressão das Forças Armadas: portanto, não se pode falar em neutralidade política dos militares e obediência aos governantes civis, que são outros elementos fundantes da democracia liberal.

É todo um processo de desmonte acelerado da ordem regida pela Constituição de 1988, que culmina na presidência de Jair Bolsonaro, alguém que não se cansa de alardear seu desprezo pelas liberdades, pela democracia, pela Constituição – e que vem agindo para destruí-las, com a cumplicidade ou a omissão dos outros Poderes.

Em suma, nós saímos de uma situação de democracia incompleta, em que muitas regras definidas nos textos legais tinham dificuldade de se efetivar (penso aqui sobretudo nos direitos sociais), para uma espécie de vale-tudo. A anarquia entre os Poderes, que vivem numa permanente queda de braço, é uma faceta. A outra é a liquidação de direitos e de garantias constitucionais, feita sem qualquer diálogo ou negociação com a sociedade.

O que está em jogo no Brasil, no momento, não é impedir que a democracia seja fraturada. Ela já está fraturada. É se haverá condição de retornar à trilha democrática, de recompor o que foi destruído, de reconstitucionalizar o país.

Nos últimos dias, mais uma vez o presidente Bolsonaro afrontou o Supremo Tribunal Federal (STF) ao conceder indulto ao deputado Daniel Silveira. Qual sua leitura sobre gestos assim? São sinais de que o atual presidente pode não aceitar o resultado das próximas eleições, por exemplo?

O comportamento de Bolsonaro é um exemplo claro daquilo que a ciência política chama de "seletividade das instituições". Os governos de centro-esquerda tinham que reiterar, a todo momento, sua fidelidade às leis, seu republicanismo. Qualquer iniciativa que parecesse um pouco heterodoxa era recebida como afronta e rechaçada com alarido. Já Bolsonaro testa seus limites todos os dias e é respondido em geral com tolerância, por vezes com apelos para algum tipo de acerto, de composição – isto é, uma negociação sobre até que ponto as regras valem para ele. É um comportamento que só estimula novas bravatas, novas ameaças.

No caso do deputado Daniel Silveira, Bolsonaro concedeu um indulto que, legalmente, é questionável, mas do ponto de vista moral, não há dúvida nenhuma, é inaceitável. O Supremo mostrou pouca disposição para reagir, e agora Bolsonaro anuncia que está preparando uma anistia a todos os seus apoiadores condenados pela Justiça, afirma que não vai cumprir a decisão sobre o marco temporal caso o voto do relator, favorável aos povos indígenas, seja vitorioso, e assim por diante. São demonstrações de força que animam sua base militante, que é minoritária, insuficiente para vencer as eleições, mas muito aguerrida, muito agressiva.

A campanha incessante de denúncias infundadas contra o processo eleitoral tem esse mesmo objetivo. Alimenta a possibilidade de um novo golpe, que é algo com que Bolsonaro sonha, mas que até o momento não tem condições de realizar. E mantém motivada essa militância de extrema direita, para funcionar até como uma espécie de escudo humano contra uma eventual punição a ele mesmo e a seus filhos, por parte de um futuro governo democrático. O recado é: "Não mexam comigo que eu tenho muita gente disposta a tumultuar o país para me proteger."

Como a sociedade deve reagir caso Bolsonaro não aceite o resultado das próximas eleições?

O problema é que Bolsonaro está ameaçando o processo eleitoral há muito tempo e nunca recebeu uma resposta à altura. Pelo contrário, o esforço era para apaziguá-lo. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou a montar uma comissão de supervisão da segurança das urnas eletrônicas com representação militar, o que é absolutamente descabido. É como se o bolsonarismo agisse de boa fé, como se a comprovação de que o processo é idôneo fosse calar as acusações. Mas eles sabem que as urnas são seguras, o que querem é manter a base mobilizada, tumultuar.

É inadmissível ter um candidato e, pior, aquele que ocupa a presidência da República trabalhando para subverter o processo eleitoral. Mas é cada vez mais difícil se opor a isso, já que as mentiras e ameaças de Bolsonaro se tornaram parte do cenário.

O correto, a meu ver, diante de ameaças contra a realização das eleições ou de desrespeito a seus resultados, seria afastá-lo imediatamente do cargo, como medida profilática, necessária para resguardar o que resta de democracia no país. Mas duvido que haja coragem para tal. O que é necessário, então, é mobilizar a sociedade civil. As pessoas precisam saber que nestas eleições não basta votar. Temos que estar preparados para garantir, por meio de nossa pressão, o respeito ao resultado eleitoral.

Em sua análise, quais fatores levaram à atual crise da democracia brasileira? São mais fatores internos – e isso teria a ver com a própria crise do PT e dos partidos mais à esquerda – ou são fatores externos?

Há uma crise da democracia que não é exclusividade do Brasil, que se manifesta mesmo nos países que, dizia-se, tinham democracias plenamente consolidadas. É um fenômeno global, portanto. Mas é claro que o caso brasileiro não é simplesmente a expressão local da crise geral; ele precisa ser entendido à luz das nossas especificidades.

Muito da literatura da ciência política associa a crise da democracia à emergência de movimentos e líderes políticos autoritários, que desprezam as liberdades, tentam massacrar a oposição e usam as regras do jogo democrático para destruí-lo por dentro – os populistas de direita, dos quais Bolsonaro é um exemplo. Mas creio que eles são antes um sintoma do que a causa da decadência democrática.

Há um processo anterior de "desdemocratização", isto é, de perda de efetividade das instituições democráticas, cujas origens estão no agravamento das tensões na convivência, desde sempre conflituosa, entre economia capitalista e democracia política. […] Em países periféricos, como o Brasil, o arranjo democrático sempre funcionou de maneira mais travada. Nossa economia tem menos gordura para gastar, e nossa classe dominante tem pouca autonomia, já que está acomodada na posição de sócia menor do capitalismo internacional. Portanto, a margem de manobra para a acomodação de pressões, necessária para a convivência entre democracia e capitalismo, é bem menor.

O PT chegou ao governo ciente desse fato e propondo uma política de mínimo atrito. Seu propósito era não afrontar os interesses dominantes, mas buscar brechas que permitissem garantir um padrão mínimo de vida para todos. Ainda assim, pôs em marcha mudanças que acabaram incomodando.

Por um lado, a economia brasileira é pouco dinâmica, sua competitividade é muito dependente da baixa remuneração da mão de obra. A redução da miséria tem como efeito lógico permitir que a força de trabalho negocie a sua venda em condições menos desvantajosas, logo tende a reduzir o nível de exploração.

Por outro lado, a nossa classe dominante tem o complexo de ser, na verdade, dominada por seus parceiros externos. Por isso, para ela, assim como para a classe média que nela se espelha, a manutenção das distâncias sociais tem um papel fundamental. Temos uma classe dominante alérgica à igualdade, por isso mesmo as medidas cautelosas dos governos petistas geraram tanta reação.

Edison Veiga é Repórter. Publicado originalmente por DeuscheWelle Brasil, em 07.05.22

'Só quando Putin entender que não pode vencer poderemos acabar com esta guerra', afirma ex-diretor da CIA

Mas quanto melhor os ucranianos enfrentarem os russos no campo de batalha, mais poder terão nas negociações.

Panetta: "Há apenas um recado que Putin entende: a força" (Getty Images)

Leon Panetta conhece o governo dos EUA por dentro e ocupou cargos importantes.

Foi chefe de gabinete do presidente Bill Clinton, diretor da agência de inteligência CIA e secretário de Defesa do governo de Barack Obama.

No comando da CIA, ele foi responsável por supervisionar a operação que levou à localização e morte de Osama bin Laden.

(Guerra na Ucrânia: crianças em Mariupol tomaram água de poças para sobreviver)

Como chefe do Pentágono, ele teve que assumir o sistema de alianças de segurança que os EUA têm com países de diferentes partes do mundo, a começar pela Otan, que agora desempenha um papel central na guerra na Ucrânia.

Panetta é um crítico da invasão da Ucrânia pelo presidente russo, Vladimir Putin, que vê o conflito atual como uma "guerra por procuração" (um conflito realizado por terceiros) entre EUA, Otan e a Rússia.

Nesta entrevista à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC), Panetta afirma que Putin só entende o recado da força, portanto esse é o caminho que a Ucrânia deve seguir para viabilizar as negociações de paz.

BBC News Mundo - Você disse que a diplomacia não vai a lugar nenhum a menos que os ucranianos tenham a capacidade de influenciar as negociações. O que a Ucrânia pode fazer para obter essa capacidade e como o Ocidente pode ajudá-la a alcançar isso?

Leon Panetta - O mais importante para os ucranianos é continuar vencendo a guerra contra os russos. Essa é a vantagem mais importante que eles têm. Obviamente, até agora eles conseguiram impedir que os russos capturassem sua capital, Kiev, e agora estão em guerra para garantir que os russos não assumam o controle da área do Donbas.

Mas quanto melhor os ucranianos enfrentarem os russos no campo de batalha, mais poder terão nas negociações.

BBC News Mundo - Esse seria o melhor caminho para alcançar a paz?

Panetta - Correto. Há apenas um recado que Putin entende: a força.

Segundo Panetta, as forças ucranianas têm que mostrar a Putin que ele não vencerá, apesar de toda a destruição que possa causar (Getty Images)

BBC News Mundo - Quando você era secretário de Defesa, os EUA voltaram sua atenção da Europa para a Ásia, embora Putin já tivesse travado uma guerra contra a Geórgia. Você acha que essa mudança de atenção em direção à Ásia foi um erro?

Panetta - Não, porque ao mesmo tempo em que implantávamos navios de guerra adicionais no Pacífico, também aumentamos nossa presença de tropas na Europa para manter um forte apoio à Otan.

BBC News Mundo - Você diria que a Rússia é atualmente a maior ameaça à segurança dos EUA e à ordem mundial?

Panetta - Eu acho que a realidade é que estamos enfrentando uma série de ameaças no século 21. A Rússia está agora no topo da lista por causa da guerra na Ucrânia que eles travaram.

A mensagem enviada à Rússia sobre o preço que teria que pagar por sua invasão é a mesma mensagem que os EUA e seus aliados devem enviar à China, Coreia do Norte e Irã, para que eles entendam que pagarão um preço se decidirem entrar em guerra.

BBC News Mundo - Você disse que o que está acontecendo na Ucrânia é uma guerra por procuração contra a Rússia. Você poderia explicar por que você pensa assim?

Panetta - Os EUA e nossos aliados da Otan se uniram em oposição à invasão da Ucrânia por Putin. E é claro que por causa dessa aliança eles estão trabalhando para garantir que a Rússia pague um preço por essa invasão.

Eles implementaram severas sanções econômicas contra a Rússia. Eles estão fornecendo armas aos ucranianos para ajudá-los a combater a invasão russa e estão reforçando os países da Otan para deixar claro que resistirão a qualquer nova invasão russa.

Os EUA e seus aliados da Otan tomaram uma decisão muito importante de apoiar a Ucrânia em seus esforços para se defender. É evidente que esses países democráticos que se uniram estão fazendo tudo o que podem para impedir Putin e a Rússia.

EUA e seus aliados da OTAN estão equipando a Ucrânia com armas avançadas para se defender contra a Rússia (Getty Images)

BBC News Mundo - Portanto, seria o nível de envolvimento e intenção da aliança ocidental que faria disso uma "guerra por procuração"...

Panetta - Sim, quero dizer, na medida em que os EUA e nossos aliados estão fazendo tudo o que podem para apoiar a Ucrânia em sua guerra contra a Rússia, você pode dizer que isso é o equivalente a uma guerra por procuração.

BBC News Mundo - Alguns especialistas argumentam que o Ocidente não está usando a Ucrânia como "proxy" (um terceiro país que faz guerra contra a Rússia no lugar dos EUA e da Europa), mas que eles estão simplesmente ajudando um governo legítimo a se defender...

Panetta - Bem, isso depende da sua definição de "proxy". Está claro pelo que o presidente Biden disse e pelo que o secretário de Defesa Lloyd Austin disse nas últimas semanas que o objetivo aqui é enfraquecer a Rússia.

[Nota da BBC: após esta entrevista, Biden negou que o que está acontecendo na Ucrânia seja uma guerra por procuração contra a Rússia].

BBC News Mundo - Se o que os EUA e a Otan travam for mesmo uma guerra por procuração, com o secretário de Defesa dos EUA dizendo que quer ver a Rússia enfraquecida, é possível que Moscou sinta que tem o direito de levar a guerra para além da fronteira da Ucrânia?

Panetta - Putin e Moscou decidiram pela guerra, invadindo uma democracia soberana. São eles que devem arcar com as consequências de sua invasão, e a melhor maneira de acabar com esse conflito é Putin e a Rússia decidirem deixar a Ucrânia. Essa é a conclusão.

O secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, disse que quer que a Rússia saia enfraquecida da guerra na Ucrânia (Getty Images)

BBC News Mundo - Você foi secretário de Defesa e também diretor da CIA. Como você avalia a estratégia inicial de Biden de compartilhar publicamente informações sobre os planos de Putin sobre a guerra na Ucrânia?

Panetta - Acho que foi uma estratégia muito eficaz fornecer informações ao público sobre o que a Rússia estava fazendo em seus planos de invadir a Ucrânia. A Rússia continuou negando, Putin continuou negando que eles iriam invadir a Ucrânia, enquanto todas as evidências e informações mostravam claramente que eles estavam planejando a invasão.

Acho importante que o público entenda a hipocrisia que Putin e a Rússia demonstraram ao mentir para o mundo sobre quais eram suas verdadeiras intenções.

 BBC News Mundo -  Alguns argumentam que, ao fazer isso, Biden poderia ter colocado em risco alguns ativos de inteligência…

Panetta - Acho que hoje em dia existem várias fontes de inteligência, sejam elas tecnológicas ou humanas. Existem fontes diferentes e algumas delas não colocam as pessoas em risco, então tenho certeza que eles foram cuidadosos com a inteligência que divulgaram.

(A indignação de Israel com declaração russa de que Hitler 'tinha sangue judeu')

Antes do início da guerra, Biden divulgou publicamente informações sobre os planos de guerra de Putin (Getty Images)

BBC News Mundo - Em relação à expansão da Otan, você acha que a aliança foi longe demais na inclusão de novos membros ou deveria ter ido ainda mais longe enquanto ainda tinha a oportunidade de se expandir?

Panetta - Eu acho que a decisão sobre a Otan é uma decisão tomada por países independentes e soberanos e se esses países decidiram que querem fazer parte da Otan — como, por exemplo, a Finlândia e a Suécia, que estão considerando essa possibilidade hoje — então eu acho que é uma decisão que esses países deveriam tomar.

Eu acredito que alianças são absolutamente essenciais para enfrentar nossos adversários como a Rússia e outros.

BBC News Mundo - Mas geralmente as grandes potências se sentem ameaçadas se houver uma aliança poderosa ao seu redor...

Panetta - A melhor maneira de a Rússia não ser ameaçada é se tornar parte da família internacional de nações, engajando-se no comércio, engajando-se em relações financeiras, engajando-se com outros países para tentar promover a paz e a prosperidade. É assim que você protege sua segurança. Não com guerra.

BBC News Mundo - Como você acha que essa guerra vai acabar?

Panetta - Eu rezo para que acabe logo. Eu acho que Putin deve entender que não pode alcançar a vitória na Ucrânia, não importa o quanto ele destrua, não importa quantos inocentes ele mate. Quando ele estiver disposto a entender isso, acho que só então teremos uma chance de acabar com essa guerra.

BBC News Mundo - Quão perto estamos desse ponto?

Panetta - Eu acho que as próximas semanas nos dirão muito sobre se podemos chegar a esse ponto em breve ou se essa guerra se arrastará ainda mais no futuro.

Ángel Bermúdez (@angelbermudez), da BBC News Mundo, em 07.05.22

sábado, 7 de maio de 2022

Editorial de O Globo hoje: Preocupa a atitude de militares diante do sistema eleitoral

Tem sido, na leitura generosa, decepcionante — ou, na pessimista, preocupante — a atitude de alguns representantes das Forças Armadas diante da eleição que se avizinha. 

É o caso dos últimos movimentos do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, que traduzem uma aproximação perigosa da instituição essencial da República que ele representa com teses conspiratórias absurdas sobre as urnas eletrônicas e a articulação política de evidente cunho golpista promovida pelo presidente Jair Bolsonaro.

É verdade que Nogueira estava certo ao contestar a frase infeliz do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), insinuando que as Forças Armadas tivessem sido “orientadas a atacar o processo eleitoral”. Desde então, porém, suas palavras e atos parecem dar razão à insinuação.

Ele foi com Bolsonaro a uma reunião do Alto-Comando do Exército, de modo a sugerir proximidade entre o presidente e a cúpula militar. Em seguida, encontrou-se com o presidente do STF, Luiz Fux, na tentativa aparente de apaziguar os ânimos institucionais. Depois, enquanto o STF celebrou o encontro como um compromisso em defesa da democracia, o Ministério da Defesa emitiu uma nota tíbia.

O texto preza o “respeito entre as instituições”, fala na “colaboração das Forças Armadas para o processo eleitoral”, mas, numa frase dúbia, reafirma “o permanente estado de prontidão das Forças Armadas para o cumprimento de suas missões constitucionais”. Que missões? A dúvida fica no ar. Em nenhum momento a nota usa a palavra-chave capaz de saná-la: democracia.

Nogueira também enviou ofício ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo a divulgação do questionamento do representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência das Eleições (CTE). Ora, o TSE já divulgou relatório com respostas às sugestões dos integrantes da CTE, não apenas o militar. O pedido não é apenas descabido, mas pode ser interpretado — com razão — como forma de pressão.

(Após reunião de Fux com ministro da Defesa:  STF diz que Forças Armadas estão comprometidas com a democracia )

Diante dessa movimentação, dois fatos têm de ficar claros. Primeiro, não há — nem nunca houve — substância nas acusações bolsonaristas contra a urna eletrônica. Trata-se de um sistema de votação exemplar, reconhecido no mundo todo, em que jamais foi comprovada fraude. Sempre será possível aperfeiçoá-lo, mas os cenários inverossímeis aventados pelo representante militar na CTE nada oferecem em matéria de “colaboração para o processo eleitoral”. Servem apenas para semear confusão, com vista a uma possível tentativa de virada de mesa caso o resultado desfavoreça Bolsonaro.

(Fachin: TSE não vai aceitar intervenção das Forças Armadas nas eleições)

Segundo, nem o TSE nem nenhuma instituição da República está sob tutela das Forças Armadas. As sugestões dos militares devem ser analisadas como as dos demais. A decisão sobre divulgá-las, aceitá-las ou recusá-las cabe aos técnicos do TSE — e a mais ninguém. Exigir transparência é razoável, mas fazer pressão porque ideias estapafúrdias não foram atendidas é inaceitável.

É essencial, por fim, ressaltar o papel republicano que as Forças Armadas mantêm desde a redemocratização. Felizmente, o Brasil dispõe de um quadro de militares profissional, capaz e competente. É da natureza de Bolsonaro tentar envolvê-los em seu projeto golpista. Cabe às Forças Armadas, sobretudo a seus líderes, evitar cair nessa armadilha, para que continuem a desempenhar sua principal missão constitucional: respeitar a democracia.

Editorial de O Globo. Publicado originalmente em 07.05.22.

O que querem os militares?

A pergunta que se faz agora também é quando e por que os militares resolveram dar palpite político. Por Ascânio Seleme.

Desde 1985, quando chegou ao fim a ditadura inaugurada 21 anos antes, os militares brasileiros não se salientam tanto como agora. As Forças Armadas, profissionalizadas sob o exemplo do general Leônidas Pires Gonçalves no comando do Exército durante o governo de José Sarney, conviveram serenamente com a volta da eleição direta para presidente, com a implementação de uma nova Constituição em que se bradou o ódio e o nojo à ditadura, com o impeachment de dois presidentes, a eleição de um líder sindical por um partido de esquerda e de um ultradireitista. Agiram sempre como se esses assuntos não lhes dissessem respeito. E não diziam mesmo.

A pergunta que se faz agora é quando e por que os militares resolveram dar palpite político, fazer pressão sobre Poderes da República, fechar a cara e pintar-se para a guerra como se as eleições de outubro próximo fossem muito diferentes das oito últimas, que elegeram Collor, FH, Lula, Dilma e Bolsonaro. Claro que a próxima eleição será exatamente igual às anteriores. Com os eleitores sufragando livre e democraticamente seus candidatos e com o mais votado sendo eleito para tomar posse em janeiro. Não há chance disso mudar. A menos que os militares se somem à falsa paranoia do golpista Jair Bolsonaro e seus generais palacianos e tentem melar o jogo democrático.

Essa chance existe e cresceu quando oficiais superiores passaram a sair do seu quadrado ao ouvirem Bolsonaro falar em seu nome. Nunca antes um presidente teve tanta vontade de ser generalíssimo quanto o capitão, nem mesmo os generais-presidentes da ditadura. Foi depois da posse do extremista que alguns chefes militares passaram a falar como se vestissem terno e gravata e ocupassem gabinetes no Congresso. Não porque eles também sejam ultradireitistas, alguns até são, mas porque sentiram-se empoderados pelo comandante em chefe.

Os quartéis, que já estavam inflamados desde janeiro de 2018, ficaram sobremaneira excitados quando no ano passado Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e nomeou o fidelis ut canem general Braga Neto para o seu lugar. A troca dos comandantes das três Forças que se deu em seguida acabou transtornando hierarquias e provocando ainda mais agitação na caserna. Era o que queria Bolsonaro, velho arruaceiro de quartéis.

Além de convulsionar as Forças com as trocas de comando, o presidente cooptou seus líderes oferecendo milhares de cargos na administração federal a eles, seus familiares e agregados. São mais de seis mil militares em cargos de segundo e terceiro escalões. Além deles, amigos, afilhados e namorados também foram nomeados. São boquinhas que mamam nas tetas do Estado e farão o que for possível para continuar mamando em 2023. Inclusive colaborando para a permanência ilegal de Bolsonaro no poder.

Como já foi dito aqui, Bolsonaro vai tentar mais uma vez dar um golpe se for derrotado em outubro. Para isso, para obter o apoio de quem tem as armas, é que ele vem alimentando os militares com cargos e salários públicos. E estes têm seguidamente demonstrado boa vontade com o capitão. Viu-se isso no episódio do TSE, na questão da tortura com conhecimento do STM, na ultrajante comemoração do 31 de março e nos sucessivos solavancos dados por Bolsonaro nas instituições. Os oficiais que falam, pessoalmente ou por nota, estão subordinados aos desejos antidemocráticos do capitão.

Não são poucos os generais dispostos a manchar seus nomes e biografias numa aventura golpista. Se a tragédia ocorrer, vão entrar para a História como homens mesquinhos, oportunistas, que tentaram desviar o curso de uma nação apenas para manter seus cargos e os de seus filhos e genros. Há pouca ideologia por trás do golpe, trata-se principalmente de dinheiro público em bolsos privados. Por sorte, não são todos. Há outros generais, muitos, que não navegam por essas águas escuras. Nestes, e nas forças civis desarmadas, deve-se repousar a esperança de um Brasil grande, livre e verdadeiramente democrático.

Imunidade arcaica

Nenhum país concede tantas imunidades aos seus parlamentares quanto Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Do grupo de ex-ditaduras do Cone Sul, apenas o Chile está fora da lista de piores num estudo feito em 90 países pelos professores e pesquisadores Karthik Reddy, Moritz Schularick e Vasiliki Skreta. Os quatro países refletiram em suas leis preocupação que teve origem nas ditaduras, procurando defender os parlamentares da má vontade de um governante de botas. Na maioria dos países pesquisados as imunidades são limitadas. Na Inglaterra não há qualquer imunidade parlamentar, nem mesmo para o primeiro-ministro. O que deve ser inalcançável pela Justiça é o voto do representante popular, não as suas opiniões e palavras. O exagero pode significar que não importa o que diga o parlamentar, nada lhe será imputado. Essa é a questão de Daniel Silveira. Alega que a ameaça que fez ao Supremo, aos ministros e seus familiares era opinião e deve ser protegida. Não foi opinião, foi crime e precisa ser punido.

Faltam Marinas

Sobram Gleisis na campanha de Lula. Manda-chuvas como a presidente do PT espalham-se por todos os cantos do partido. Cada nicho tem um chefe. Também abundam operários, carregadores de piano prontos para obedecerem ordens que vêm de cima. Não se pode negar que o PT seja organizado e disciplinado. Não fosse assim, as regionais nos estados, fora São Paulo, jamais teriam engolido tantos sapos por tanto tempo. O que o PT mais precisa agora é de ponderação e sensibilidade. Faltam Marinas na campanha de Lula.

Problema

O problema no PT é que a cada dia diminui o número de pessoas com coragem para chamar a atenção de Lula. Já foi melhor, hoje, poucos apertam o chefe ou criticam as bobagens que ele eventualmente fala. Os mais próximos do candidato são os que mais dão tapinhas de incentivo em suas costas. A mudança na estrutura da campanha tem este sentido. Já a afirmação de que Zelenski, Estados Unidos e Europa são tão responsáveis pela guerra na Ucrânia quanto Putin não foi uma bobagem. O PT ainda julga que o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, é a fonte de todos os males da humanidade.

Vale insistir

É mais do mesmo a declaração do novo comandante da PM de São Paulo, coronel Ronaldo Miguel Vieira, de que não vai permitir manifestações políticas de militares da ativa. A lei já determina isso. Mas a manifestação do coronel é muito bem-vinda nestes tempos bicudos em que aquartelados querem se meter em tudo, até na contagem de votos.

A lista de FH

No documentário “O presidente improvável”, Ricardo Lagos diz que salvou 100 chilenos da ditadura de Pinochet com dinheiro enviado a ele por Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente do Chile diz que FH mandou US$ 5 mil do Cebrap para o seu grupo em Santiago, suficiente para comprar cem passagens aéreas para Buenos Aires. Os sobreviventes do regime saíram do país aos poucos, sempre com a desculpa de estar indo participar de seminários no país vizinho.

Democracia pra quê?

No mesmo documentário, FH defende a liberdade e a democracia por outra razão, além da simples mas imprescindível autodeterminação das pessoas e das nações. “Precisamos de liberdade, mas liberdade pra quê? Precisamos de democracia. Mas pra quê? Para a elite? Para eleger senador? Isso não adianta. Precisamos de democracia para que você (cidadão) participe. Democracia é para ajudar ao povo, para a guerra contra a miséria”. O documentário dirigido por Belisario Franca está disponível na Globoplay.

Imagine só

O inacreditável Ernesto Araújo publicou um vídeo de 1h32m no YouTube para atacar o globalismo e, veja se pode, criticar a música “Imagine”, de John Lennon. Logo no começo, ele observa que a letra pede para as pessoas imaginarem um mundo sem céu (paraíso), ou nas suas palavras, “uma realidade transcendente”. Seu raciocínio é tão pequeno e mesquinho que não alcança a genialidade de Lennon. Para ele, o autor apenas recomenda que se deixe de acreditar em Deus, não conseguindo entender o enorme libelo de paz contido na letra.

Bichonete de volta

A nota publicada aqui sobre a lanchonete do Itamaraty conhecida por bichonete causou certo rebuliço no Ministério das Relações Exteriores. Apesar de ser preconceituoso e abusivo, o apelido já está consolidado e, para muitos, não vale a pena fazer qualquer movimento junto a Google e Foursquare para tirar a referência dos seus mapas e sites. Tem gente que pensa diferente. Um diplomata fez a seguinte provocação: “O apelido é tão homofóbico quanto seria racista se o estabelecimento fosse chamado de petronete”.

As minas de Zema

Nas Minas Gerais de Romeu Zema quem defende as mineradoras é a Secretaria de Meio Ambiente. É o que se vê agora na questão da exploração mineral na Serra do Curral. Todos os comunicados e entrevistas sobre o assunto, defendendo a exploração de minério na área considerada como a Floresta da Tijuca de Belo Horizonte, são da secretária do setor Marília Melo. Difícil dizer quem protege o estado dos problemas ambientais gerados pelas mineradoras. Zema bebe na fonte garimpeira de Bolsonaro.

Ascânio Seleme, o autor deste artigo, é colunista de O Globo. Publicado originalmente em 07.05.22.


É preciso reagir aos crimes de Bolsonaro

Ao atacar o processo eleitoral e envolver as Forças Armadas em sua campanha de deslegitimação das urnas, Bolsonaro incorre na prática de crimes. Congresso e PGR têm de agir

  O Congresso e a Procuradoria-Geral da República (PGR) têm o dever de reagir às ameaças e agressões que Jair Bolsonaro vem cometendo contra a Constituição, a legislação eleitoral e a Lei 1.079/1950 (Lei do Impeachment). Não podem ficar passivos perante tão insistente violência do presidente da República contra a ordem jurídica e o regime democrático.

No dia 5 de maio, Jair Bolsonaro anunciou que as Forças Armadas vão realizar uma tarefa inteiramente estranha às suas competências constitucionais. “As Forças Armadas não vão fazer papel de chancelar apenas o processo eleitoral, participar como espectadoras do mesmo”, disse Bolsonaro.

Com tal anúncio, verdadeira ameaça contra o processo eleitoral, o presidente da República violou a Constituição que jurou defender. As Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, diz a Constituição. Não é papel dos militares tutelar eleições.

Entre os crimes de responsabilidade, a Lei 1.079/1950 inclui “incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina”. De forma evidente e continuada, o que Jair Bolsonaro tem feito é incitar a que Marinha, Exército e Aeronáutica se sintam autorizados a agir fora de suas competências constitucionais. Ao contrário do que disse Bolsonaro, as Forças Armadas são rigorosamente espectadoras do processo eleitoral. É assim que funciona num regime democrático.

Meses atrás, Jair Bolsonaro incitou o Congresso a colocar-se contra o processo eleitoral. Felizmente, o Legislativo foi prudente e rejeitou as propostas do Palácio do Planalto. Em vez de proporcionar maior segurança e confiabilidade, o projeto do voto impresso introduzia fragilidades no sistema, suscitando situações para novas e velhas fraudes. Era descarada tentativa de impor o retrocesso num processo eleitoral que funciona muito bem, de forma rápida, segura e confiável. Na ocasião, Jair Bolsonaro prometeu acatar a decisão do Congresso. Não apenas não cumpriu sua promessa, como tenta agora envolver as Forças Armadas em sua campanha de deslegitimação do processo eleitoral.

Infelizmente, a incitação de Jair Bolsonaro para que as Forças Armadas atuem fora de suas competências não é um perigo abstrato ou distante. Por exemplo, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, sentiu-se no direito de pedir ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a divulgação de propostas das Forças Armadas sobre o processo eleitoral. O ofício do ministro da Defesa é um total disparate, a revelar incompreensão sobre o funcionamento de um Estado Democrático de Direito.

O convite para que as Forças Armadas participassem, em função consultiva, sem nenhum poder decisório, da Comissão Externa de Transparência da Justiça Eleitoral não autoriza o ministro da Defesa a exercer pressão pública sobre o TSE, opinando sobre o que a Corte deveria dar publicidade. Cabe ao TSE ser muito firme na defesa de suas prerrogativas constitucionais, sem transigir com esse tipo de pressão, que, de uma só vez, agride a independência do Judiciário e extrapola as competências das Forças Armadas.

Como se não bastasse, Jair Bolsonaro anunciou que seu partido, o PL, vai contratar uma empresa para auditar as eleições. A legislação eleitoral prevê essa possibilidade, mas não é bem isso o que Bolsonaro quer. Ele deseja criar atrito com a Justiça Eleitoral e desconfiança nas urnas. Já até anunciou a pretensa jogada: “Ela (a empresa) pode falar ‘aqui é impossível auditar’ e não fazer o trabalho. Olha a que ponto vamos chegar”, disse. Com essa conduta, Jair Bolsonaro incorre noutro crime de responsabilidade, previsto no art. 7.º da Lei 1.079/1950: “Utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral”.

O País tem, portanto, lei para punir Jair Bolsonaro pelo que está fazendo. Cabe ao Congresso e à PGR torná-la efetiva. Não é tempo de covardia. Ao permitirem que o presidente da República perturbe as eleições, como há tempos está fazendo, as instituições a quem caberia impedi-lo prejudicam a si mesmas. Afinal, no regime sonhado por Bolsonaro, o Congresso, o Ministério Público e outras expressões do poder soberano do povo não têm nenhuma serventia. 

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 07 de maio de 2022 

Partidos que traem a própria história

Buscar apoios de ocasião por pragmatismo político pode não ser uma boa decisão. Por João Gabriel de Lima

Para conquistar o respeito dos cidadãos, no entanto, os partidos precisam, primeiro, respeitar a si próprios. Foto: Dida Sampaio/Estadão

“Navegar é preciso, viver não é preciso.” A frase do italiano Francesco Petrarca, adotada como lema de vida por outro poeta, o português Fernando Pessoa, marcou um discurso histórico de Ulysses Guimarães em 1973. Na ocasião, o deputado se lançou “anticandidato” à Presidência da República em protesto contra o jogo de cartas marcadas da ditadura militar. Surgia o mito fundador do MDB, partido forjado na oposição ao autoritarismo.

Vinte anos mais tarde, os brasileiros já haviam conquistado, com muita luta, a democracia, mas sofriam com outro flagelo: a inflação. Foi quando o presidente Itamar Franco chamou Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda. Comandando um time de economistas brilhantes, Fernando Henrique colocou em marcha o Plano Real e criou o que se tornaria a marca do PSDB: congregar acadêmicos de alto nível para resolver problemas complicados do País.

São talvez os momentos mais altos das trajetórias de MDB e PSDB, siglas que tiveram também vários pontos baixos, incluindo o envolvimento em escândalos de corrupção. São, no entanto, partidos com tradição e legado. Não são siglas oportunistas criadas para apoiar governos em troca de benesses de ocasião.

Faz sentido que deputados de tais partidos abram mão de criar uma alternativa eleitoral para apoiar Jair Bolsonaro?

O Estadão lançou este questionamento num editorial publicado nesta semana, “Vendilhões da democracia”. De acordo com o texto, a proximidade com um “presidente da República que afronta as instituições, põe em dúvida o processo eleitoral e tenta envolver as Forças Armadas em devaneios golpistas” não combina com a luta do MDB contra a ditadura.

Da mesma maneira, nada mais oposto ao espírito tucano que a atitude negacionista de Bolsonaro na pandemia. Políticos do PSDB de São Paulo passaram os últimos meses enxovalhando o presidente, enquanto o governo paulista comprava vacinas e contrariava, ponto por ponto, a cartilha do governo federal.

Buscar apoios de ocasião por pragmatismo político pode não ser uma boa decisão. “Derrotas em eleições são do jogo. O pior é a derrota política, quando um partido perde seu legado e não deixa nada para a eleição seguinte”, diz o cientista político George Avelino, da Fundação Getulio Vargas, em entrevista ao minipodcast da semana.

Os brasileiros são criticados por votar em pessoas e não em partidos, o que abre caminho para aventuras populistas. A crítica é pertinente. Para conquistar o respeito dos cidadãos, no entanto, os partidos precisam, primeiro, respeitar a si próprios. Ao rasgar o passado, arriscam-se a jogar o futuro no lixo.

Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 07.05.22

‘Único nome a ser testado é o de Simone Tebet’, afirma Eduardo Giannetti

Para economista, senadora tem vantagem na terceira via por ser mulher e do Centro-Oeste

Pré-candidatos dialogam pouco com o eleitor, afirma Giannetti. Foto: Helcio Nagamine/Estadão

Eleito em dezembro membro da Academia Brasileira de Letras pela obra na qual faz reflexões sobre os caminhos do Brasil, o economista e escritor Eduardo Giannetti disse ao Estadão que esperava que forças políticas se unissem para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro. Não viu o movimento acontecer. Na terceira via, Giannetti vê dificuldade de encontrar um nome com capacidade de diálogo com o eleitor suficiente para quebrar o cenário polarizado. Entre os nomes que se apresentam, avalia que Simone Tebet (MDB-MS) leva vantagem por ser mulher e ainda não ter sido testada em disputa majoritária. A seguir os principais trechos da entrevista.

Há alguém na terceira via que pode se tornar competitivo até outubro?

Os ingleses têm um ditado que diz “uma semana é um tempo longo na política”. A política tem uma dinâmica e uma temporalidade muito acelerada e, portanto, é perfeitamente possível. Agora, quanto mais a gente se aproxima da eleição, mais remota parece essa possibilidade. Principalmente diante da ausência de um nome que seja realmente capaz de catalisar a parte ponderável do eleitorado que preferiria ter uma alternativa à polarização de Bolsonaro e Lula. A dificuldade é encontrar um candidato que consiga galvanizar esse eleitorado que não deseja repetir em 2022 a polarização raivosa que houve em 2018 e que está se anunciando mais uma vez.

Qual é o problema da disputa entre Lula e Bolsonaro?

Ambos dividem o Brasil, cada um à sua maneira e por distintas razões. Não é bom ter uma eleição em que os candidatos representam um País rachado ao meio e despertam rejeição do outro lado, em níveis muito altos. O perigo disso descambar para um cenário de violência e de conflito é grande.

O fiasco das manifestações de 1.º de Maio é reflexo do cansaço com a política?

Nenhum político brasileiro hoje consegue mobilizar a população para a rua. Bolsonaro que pareceu erroneamente, em 2018, ser alguém que vinha de fora, um outsider, na verdade nunca o foi. Ele estava havia 30 anos no Congresso, onde não fez absolutamente nada, exceto propor a autorização da pílula do câncer. É preciso colocar o Bolsonaro dentro de um contexto mais amplo. Não é algo isolado de um processo que está ocorrendo em escala planetária, que é a ascensão de uma direita populista. Esse fenômeno se reflete em muitos países com características distintas, mas com substrato comum.

Por que os outros candidatos não conseguiram conquistar o eleitor?

A alternativa não surge por uma série de razões que vão de fogueiras das vaidades até falta de lideranças que consigam se comunicar com o brasileiro comum. Esse é um fenômeno muito sério na política brasileira. Gostemos ou não, só dois líderes brasileiros fazem com que o brasileiro comum sinta que estão falando com ele: Lula e Bolsonaro.

João Doria (PSDB), Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT) têm apelo que fale com o brasileiro?

O único nome que ainda está por ser testado é a Simone Tebet e o fato de ser uma mulher do Centro-Oeste é um ativo. Mas precisaria ter um vice com um perfil muito forte e popular e com penetração na Região Nordeste para ter uma chapa competitiva.

Em tempos de redes sociais, qual a influência do relacionamento entre as lideranças econômicas e os candidatos?

O efeito é mínimo. Em alguns casos é até contraproducente. As lideranças tradicionais dos partidos, quando falam, parecem estar se dirigindo à zona sul do Rio, aos Jardins, ao câmpus universitário. Não estão falando com o brasileiro comum. Isso não é uma coisa que se improvisa ou um golpe publicitário. É uma experiência de vida, que dá à pessoa a condição de se fazer entender. O eleitor brasileiro é altamente movido por afeto, por sentimento, por emoção. Não é movido por ideias e planos de governo. É um eleitor profundamente emocional, que muda de opinião. Muita gente que votou no Bolsonaro tinha votado no Lula. E agora possivelmente vai votar no Lula, tendo votado em Bolsonaro.

Por Cristiane Barbieri, O Estado de S. Paulo, em 07.05.22

Em três anos, Petrobras distribui R$ 447 bilhões ao governo federal, o dobro do seu lucro

O valor foi transferido pela estatal à União, desde o início do governo Bolsonaro, a título de dividendos, impostos e royalties; lucro da Petrobras é o maior entre as principais petroleiras globais

     Sede da Petrobras; estatal foi a petroleira que registrou, em dólares, o maior lucro líquido no primeiro trimestre no mundo. Foto: Sergio Moraes/Reuters - 09/12/2019

Na quinta-feira, 5, após a Petrobras anunciar lucro de R$ 44,5 bilhões no primeiro trimestre, o presidente Jair Bolsonaro (PL) veio a público reclamar do número, que considerou um “estupro” ou um “crime”. Mas, como o governo federal é o maior acionista da empresa, talvez o mais correto fosse comemorar, já que, quanto melhor o desempenho da empresa, mais dinheiro entra nos cofres públicos.

Entre janeiro de 2019 (início do governo Bolsonaro) e março deste ano, a Petrobras já injetou nos cofres federais R$ 447 bilhões, levando-se em conta, além dos dividendos, os impostos e os royalties pagos. Os números constam dos relatórios fiscais da companhia. Nesse período, o lucro líquido foi de R$ 200 bilhões. Se a conta considerar o faturamento (R$ 1,16 trilhão), o valor transferido corresponde a 38,5% do total.

Considerando-se ainda o que a empresa paga a Estados e municípios, o montante que entra nos cofres públicos chega a R$ 675 bilhões. Para se ter uma ideia do que isso significa, só o montante pago à União corresponde a aproximadamente cinco vezes o orçamento do Auxílio Brasil previsto para este ano, em torno de R$ 89 bilhões. O dinheiro também chega perto do desembolso feito pelo governo em 2020 com gastos relacionados à covid-19, de R$ 524 bilhões. 

O diretor executivo interino da Instituição Fiscal Independente (IFI), Daniel Couri, afirma que, dado o tamanho da contribuição da Petrobras, é muito relevante sua importância para a saúde das contas públicas do País. O cálculo, por alto, é de que, sozinha, a Petrobras responda por algo entre 1% e 2% do total da arrecadação federal – é de longe o maior contribuinte individual. 

“Provavelmente, sozinha, a Petrobras consegue pagar todas as despesas de saúde no Brasil”, diz o especialista. Couri lembra ainda que parte desses recursos vindos da estatal não é dinheiro carimbado, ou seja, que já tem destinação obrigatória – ao contrário, é de uso livre, algo importante para as contas do governo. 

Em entrevista para comentar os resultados da companhia nesta sexta-feira, 6, o presidente da estatal, José Mauro Coelho, reiterou a ideia de que, quanto mais forte é o resultado, mais impostos são recolhidos para a União, o que beneficia a sociedade. Ele lembrou que, apenas neste primeiro trimestre, foram pagos pela empresa cerca de R$ 70 bilhões em impostos, o que "promove mais empregos, permite que Estados e municípios façam investimentos". Desse valor, R$ 44 bilhões foram para a União. Além disso, outros cerca de R$ 15 bilhões em dividendos relativos ao primeiro trimestre também vão entrar nos cofres federais.

Os antecessores de Coelho no cargo, Roberto Castello Branco e Joaquim Silva e Luna - demitidos por Bolsonaro -, defendiam ardentemente a mesma tese do atual presidente. Em entrevista ao Estadão/Broadcast em janeiro, Silva e Luna disse que "a contribuição da Petrobras é quando se torna uma empresa saudável e gera recursos, que repassa para a União na forma de tributos". Segundo ele, a empresa não pode fazer política pública, seu papel é colocar recursos na mão de quem pode fazer - o governo, no caso. 

Lucro

A Petrobras foi a petroleira que registrou, em dólares, o maior lucro líquido no primeiro trimestre no mundo. Segundo levantamento feito pela empresa de informações financeiras Economática, o lucro da Petrobras, de US$ 9,405 bilhões, foi quase o dobro dos US$ 5,480 bilhões registrados pela americana ExxonMobil, a maior petroleira do mundo em valor de mercado.  

Ao rebater as críticas que o presidente Jair Bolsonaro fez ao tamanho do lucro da estatal, Coelho disse que a disparada das cotações internacionais do petróleo turbinou os resultados de todas as petroleiras e que o lucro da estatal brasileira está no “mesmo patamar” do das demais empresas.

Entre as dez maiores companhias que já divulgaram resultados, o lucro da Petrobras foi maior do que o registrado por petroleiras que faturaram mais, como Chevron, BP, PetroChina, CNOOC e Eni Spa – a anglo-holandesa Shell ainda não divulgou o balanço. A maior receita do mundo ficou com a PetroChina, que faturou US$ 122,929 bilhões no primeiro trimestre. Mesmo assim, a chinesa teve lucro líquido de US$ 6,161 bilhões, segundo os dados da Economática.

Todas as principais petroleiras do mundo viram suas receitas saltarem na comparação com 2021. A maioria também experimentou uma disparada no lucro líquido. Foi o caso da ExxonMobil (100,7% a mais), Chevron (alta de 354,5%), Conocophillips (mais 486,5%), PetroChina (46% mais) e CNOOC (avanço de 1.315,9%). Mesmo nesse quesito, a Petrobras foi destaque absoluto, com disparada de 4.492% ante o primeiro trimestre de 2021. 

O bom resultado é um efeito direto da guerra na Ucrânia, que fez disparar a cotação do barril de petróleo no mercado global, para um patamar acima dos US$ 110 o barril.

Bom humor

As críticas de Bolsonaro ao lucro da Petrobras não tiraram o bom humor do mercado com o resultado da empresa na sexta – principalmente após a informação de que os dividendos do primeiro trimestre serão de R$ 48,5 bilhões. “No geral, os resultados foram muito bons, mas os dividendos roubaram a cena”, aponta relatório do banco Credit Suisse, enviado a clientes. 

A XP também destacou os dividendos, mas reconheceu que o ruído político tem prejudicado o desempenho das ações da companhia. “Os dividendos estão proporcionando aos investidores um bom retorno total das ações, apesar do ruído político que mantém os preços (e índices) das ações reprimidos”, destacou.  

Fernanda Guimarães, Vinicius Neder e Denise Luna , O Estado de S.Paulo, em 07 de maio de 2022 

sexta-feira, 6 de maio de 2022

A depressão num país deprimido

O alto índice da doença entre os brasileiros não terá relação direta com as estruturas políticas hojedeprimidas? Por Flávio Tavares

O aumento dos casos de depressão no Brasil (que os especialistas qualificam como assustador) mostra algo que deveria ser entendido – ou resolvido – pela sociedade inteira, não apenas pelos diretamente afetados. Pesquisa recente do Ministério da Saúde nas 26 capitais estaduais e em Brasília aponta que mais de 11% dos brasileiros sofrem de depressão. A cifra supera, inclusive, os afetados por diabetes, que nos últimos anos aparecia como doença em avassaladora expansão.

Não busco substituir-me à psicanálise ou aos psicanalistas nem ser um panfletário Freud perscrutando os desvãos do inconsciente. Tento apenas chamar a atenção para as causas sociais de um distúrbio provocado, também, pelo ambiente cotidiano.

Sim, pois estamos cercados pelas atraentes e perigosas quinquilharias da sociedade de consumo. Não foi ao acaso que a pesquisa constatou que o endividamento pessoal tornou-se a principal causa da depressão, afetando mais do que tudo as mulheres. A compulsão por comprar “todas as novidades” – até as inalcançáveis – afeta todas as classes sociais, mas tem crescido nos setores médios, superando em muito os orçamentos domésticos.

Em consequência, surge o endividamento familiar e as dívidas crescem com os escorchantes juros bancários.

Os endividados buscam aliviar-se do peso da dívida e passam a beber, numa (falsa, mas habitual) tentativa de fugir do problema. O arco perigoso se completa, então, e surge o alcoolismo, estimulado pela tonitruante propaganda para consumir cerveja e similares. Com outros ingredientes, repete-se a situação dos anos 1930-1970 em que fumar era visto como elegante e de bom tom. Quando o cancioneiro argentino arrebatava o mundo ocidental, surgiu até um tango que pregava “fumar é um prazer”.

A pretendida e falsa fuga do endividamento através da bebida abre portas para os estados depressivos gerados pelo alcoolismo. O torpor típico dos deprimidos, que passam na cama todo tempo possível, agrava o quadro pela falta de exercícios físicos.

A pesquisa constatou, ainda, que as mulheres – aparentemente por problemas hormonais – têm o dobro do risco dos homens para desenvolverem a depressão.

A pandemia agravou e expandiu o quadro geral da depressão ao restringir a convivência e o contato pessoal. O distanciamento e o “trabalho em casa” nos protegem da covid-19, mas geram, igualmente, a solidão que alimenta o deprimido.

Hoje, especialmente nas grandes cidades, os psicanalistas vêm constatando um forte aumento dos casos de depressão entre os adolescentes. A vida tensa nas grandes cidades é uma das faces do problema, ao qual se juntam outros criados pela competição desenfreada da sociedade de consumo, em que, desde tenra idade, somos levados até a esmagar e destruir o outro para “vencer na vida”.

Trata-se, inclusive, da perda total da visão cristã que manda “amar ao próximo como a ti mesmo”. A ânsia de vencer passou a dominar a própria vida, não só o desporto, que é competição em si. Chegamos a competir conosco mesmos, gerando angústias que acabam em depressão.

Desconheço se a situação se resume ao Brasil ou se é, como penso, um fenômeno mundial gerado (ou agravado) pela ansiedade de consumir.

Entre nós, tudo cresceu a partir de janeiro de 2019, quando os atos iniciais do novo governo federal mostraram a confusa balbúrdia que aumentou nos tempos seguintes. As armas passaram a ter prioridade sobre o amor. Armai-vos uns aos outros substituiu o preceito que os Evangelhos resumem no “amai-vos uns aos outros”.

Em paralelo ao quadro geral de incentivo ao ódio, surgiu a pandemia, com o presidente da República desmobilizando a população nos cuidados com o novo coronavírus, que Jair Bolsonaro chamava de “gripezinha” sem importância.

Armou-se no País, desde então, uma situação de medo geral, quase pânico, com o presidente da República inventando, até, que a vacinação anticovid provocava aids.

A sucessão de disparates verbais veio acompanhada de um crescente aumento de preços dos bens essenciais de consumo, dos alimentos aos combustíveis. O índice geral de preços cresce a cada dia, tal qual o desemprego, que chega a mais de 11 milhões de brasileiros, mais que o dobro da população do Uruguai.

O fantasma da inflação reaparece como se fosse maldição da qual não podemos fugir. No recente 1.º de maio, porém, o Dia do Trabalho nada reivindicou aos trabalhadores nem expôs as penúrias do desemprego. Grupos bolsonaristas se concentraram nas ruas pedindo a dissolução do Supremo Tribunal Federal e a intervenção militar. Ou seja, reivindicaram a ditadura, num absurdo dos absurdos.

Não será isso – indago – uma inusitada forma de depressão generalizada, que abarca até o ambiente político, num país em que os partidos se transformaram em meros aglomerados de pessoas em busca de poder pessoal ou de negociatas? O alto índice de depressão não terá relação direta com as estruturas políticas hoje deprimidas?

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Publicado originalmente n'O EStado de S. Paulo,em 06.05.22

É preciso preservar a autoridade do STF

Supremo tem enfrentado um cenário inédito de resistência e oposição em amplos setores da sociedade. Todos, especialmente os ministros do STF, devem zelar pela autoridade da Corte

A Constituição de 1988 dispõe que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são “independentes e harmônicos entre si”. No entanto, há uma percepção perigosamente generalizada na sociedade de que a Justiça, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), está em uma rota de desarmonia crescente com os outros Poderes. O Supremo estaria num grau inédito de isolamento, resultado de decisões que teriam contrariado parte da opinião pública e, pior, aplicado de forma duvidosa e parcial a Constituição.

A situação é grave. O País precisa não apenas de uma Corte constitucional, mas de uma Corte constitucional respeitada e com autoridade. Suas decisões precisam ser acatadas, concorde-se ou não com elas.

No dia 21 de abril, o presidente Bolsonaro tripudiou de uma sentença condenatória do STF, usando um decreto de indulto como se fosse órgão revisor da Corte. O Executivo federal não respeitou a independência da Justiça, e menos ainda atuou de forma harmônica com o Judiciário. Fez o exato contrário: toda a ação do Palácio do Planalto foi para destacar sua desarmonia com o Supremo.

Ao abusar do cargo, Jair Bolsonaro merece a mais cabal reprovação. Indulto não revisa decisão judicial, não altera entendimento jurisprudencial. No entanto, apesar de todas as evidências de uso antirrepublicano do poder de indultar penas, parte significativa da população entendeu que a ação de Bolsonaro não foi assim tão equivocada. Para essas pessoas, a atuação do Supremo nos últimos anos – não só em questões ligadas ao governo Bolsonaro – estaria de fato merecendo algum tipo de resistência.

Tem-se aqui um problema sério. De acordo com a Constituição de 1988, é o STF quem dá a última palavra sobre a Constituição, como ocorre nas Constituições dos países democráticos. A pretensão de falar depois do Supremo é descumprimento da Constituição, levando à corrosão do funcionamento do próprio regime democrático.

Essa prerrogativa do Supremo, que sempre foi tão cristalina, tem sido cada vez mais questionada, seja pelos golpistas bolsonaristas, seja por cidadãos que entendem que o Judiciário está repleto de ativistas políticos de esquerda. A justificativa é uma só: como o Supremo quer ser a última palavra, se ele mesmo descumpre, quando lhe convém, a Constituição?

Esse é o grande problema. No momento em que o Supremo tem sua autoridade questionada, deixa de ser visto como intérprete legítimo da Constituição, o que afeta a compreensão do próprio texto constitucional. A Constituição já não é mais o que diz o STF, e sim o que cada um entende que ela seja. Nesse diapasão, a decisão judicial que desagrada não é mais vista como um ato que, apesar de contrariar o ponto de vista pessoal, continua dispondo de autoridade e exigindo obediência. Aos olhos de quem foi desagradado, a decisão é tachada de ilegítima, já que estaria descumprindo a Constituição.

Esse cenário inverte o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. Em tese, a atividade jurisdicional, acompanhada da devida fundamentação jurídica, deve gerar uma contínua legitimação do Poder Judiciário perante a população. Mesmo que contrarie a preferência pessoal, a decisão judicial fundamentada deve ser apta a suscitar respeito e obediência. Na situação atual de desprestígio da Corte, ocorre o oposto. Até o exercício jurisdicional do Supremo mais rigorosamente fundamentado parece confirmar, em quem foi contrariado, a ideia de desvio de finalidade da Corte.

O quadro não será revertido batendo boca com o Palácio do Planalto. Todos têm o dever de proteger, dentro de suas possibilidades e atribuições, a independência do Judiciário e a autoridade do Supremo: é parte constitutiva do regime democrático, é elemento necessário de cidadania. No caso dos ministros do STF, cumpre-se esse dever observando as obrigações próprias de juiz, seja qual for a época ou lugar: ser o primeiro cumpridor da lei, falar apenas nos autos, ser consciencioso com os limites de sua função, não buscar os holofotes, não usar o cargo para promover ideias ou convicções pessoais. São juízes, servos da lei, e assim devem ser vistos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de maio de 2022 | 03h00

Os três recados diretos dos EUA a Bolsonaro sobre o sistema eleitoral e a democracia brasileira; leia análise

Os Estados Unidos, maior potência mundial e país-modelo de democracia para Jair Bolsonaro, já deram o recado ao presidente três vezes: as eleições no Brasil e o sistema de urnas eletrônicas são confiáveis e não devem ser questionadas sem provas. Por Felipe Frazão.

Diretor da CIA, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca e subsecretária de Estado para Assuntos Políticos deixaram claro que, para o governo Biden, as urnas eletrônicas são confiáveis (Foto: Brynn Anderson/AP)

A principal autoridade a vocalizar a mensagem do governo Joe Biden foi o diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William J. Burns, em 1º de julho de 2021, conforme revelou nesta quinta-feira, dia 5, a Reuters. A agência de notícias informou ter confirmado o teor do recado, ouvido por Bolsonaro e seus ministros do Palácio do Planalto, com três fontes a par dos assuntos tratados pela delegação da CIA.

Os Estados Unidos, maior potência mundial e país-modelo de democracia para Jair Bolsonaro, já deram o recado ao presidente três vezes: as eleições no Brasil e o sistema de urnas eletrônicas são confiáveis e não devem ser questionadas sem provas. Foto: AP Photo/Eraldo Peres

Os Estados Unidos, maior potência mundial e país-modelo de democracia para Jair Bolsonaro, já deram o recado ao presidente três vezes: as eleições no Brasil e o sistema de urnas eletrônicas são confiáveis e não devem ser questionadas sem provas. Foto: AP Photo/Eraldo Peres 

A visita foi cercada de mistério. Tanto o governo brasileiro quanto a embaixada se recusam a dar mais explicações. Também não divulgaram a agenda previamente. Além das audiências no Palácio do Planalto, ministros do governo Bolsonaro participaram de um jantar no Lago Sul, oferecido pelo então embaixador, Todd Chapman.

Questionados por parlamentares, os generais Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria Geral da Presidência), preferiram termos genéricos, que dificultaram a compreensão do que foi tratado.

”A pauta versou sobre assuntos afetos à promoção da democracia, da segurança e da estabilidade no hemisfério”, afirmou Heleno. “Desconheço, naquela ocasião, a abordagem de assuntos contrários ao Estado Democrático de Direito”, asseverou Ramos. Ambos falaram ainda em diálogos informais, conforme ofícios remetidos por eles ao Congresso.

A principal autoridade a vocalizar a mensagem do governo Joe Biden foi o diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William Burns, em 1º de julho de 2021.

A principal autoridade a vocalizar a mensagem do governo Joe Biden foi o diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William Burns, em 1º de julho de 2021. 

Nesta quinta, durante live com o presidente, Heleno disse que “essa conversa sobre eleições jamais aconteceu”. Bolsonaro também tentou desacreditar a reportagem. “Seria extremamente deselegante chefe de agência como a CIA ir a outro país dar recado”, afirmou o presidente.

Diplomatas do Itamaraty, que não se pronunciou oficialmente, seguem a linha da desconfiança. Dizem, nos bastidores do governo, que o relato sobre a visita do chefe da CIA requenta especulações e pode não ser tão preciso. Um deles lembra que um recado desses poderia soar como interferência e que um diretor da CIA não seria tão contundente, ainda mais com o perfil de Burns, que é diplomata.

Mas a preocupação com a insistência de Bolsonaro em levantar suspeição sobre as eleições brasileiras, sem provas, não se restringem à maior agência de inteligência do mundo. E atravessaram o ano.

Em agosto de 2021, Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, transmitiu pessoalmente a Bolsonaro mensagem similar à de Burns, alertando que o presidente não deveria “desacreditar o processo eleitoral” e que não havia evidências de fraudes no sistema. Na ocasião, outro colaborador de Biden, o diretor sênior do Conselho de Segurança Nacional, Juan González, confirmou a conversa em entrevista promovida pelo governo Biden.

Porta-voz dos EUA afirma que Brasil tem ‘forte histórico de eleições livres e justas’

Ned Price mandou ainda um recado aos eleitores: ‘É importante que os brasileiros confiem em seu sistema eleitoral’

Diretor da CIA disse ao governo Bolsonaro para não mexer com eleição no Brasil, afirma Reuters

Fontes informaram à agência que William J. Burns alertou os ministros Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos sobre falas do presidente durante jantar em Brasília, em julho do ano passado

Na semana passada, a subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland, tratou das eleições em visita no Itamaraty. Despachada em missão oficial do Departamento de Estado a Brasília, disse que, assim como os americanos, os brasileiros também deveriam confiar na tradição nacional de realizar eleições justas e livres, nas instituições democráticas e no sistema de urnas eletrônicas, “inclusive no nível de liderança”. A expressão, embora permita mais de uma interpretação, costuma ser usada no jargão diplomático para se referir aos líderes políticos, ou seja, chefes de Estado e governo, no caso, o presidente Bolsonaro. O porta-voz do departamento, Ned Price, reiterou a fala de Nuland nesta quinta.

Tampouco é a primeira vez que Washington manifesta preocupação com a estabilidade da segunda maior democracia do continente. O episódio de 6 de janeiro de 2021 ainda povoa a cabeça de autoridades do governo Joe Biden. Eles não esqueceram do endosso do governo Bolsonaro às dúvidas e protestos antidemocráticos, incentivadas pelo aliado republicano de Bolsonaro, Donald Trump, que levaram a uma tragédia com mortos no Capitólio.

No ano passado, o risco de ruptura no Brasil e de atos violentos durante o Sete de Setembro, com tentativas de minar a confiança em instituições, figurou em comunicações despachadas pelas missões diplomáticas estrangeiras sediadas em Brasília. Agora, todos os olhos do governo americano – da CIA à Casa Branca, passando pelo Departamento de Estado -, se voltam ao respeito ao resultado das eleições.

Felipe Frazão é jornalista. Publiadooriginalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.05.22

Bolsonaro não é um líder militar, afirma General Bolivar Meirelles

ContraPoder entrevistou o General Bolivar Meirelles sobre o cenário das Forças Armadas e a possibilidade de um golpe no Brasil. A entrevista era para ser apenas em vídeo, porém as respostas em texto são de tanta importância quanto a entrevista gravada.

A entrevista foi feita e organizada pelo Contrapoder e pela professora Virgínia Fontes (UFF). Agradecemos imensamente a disponibilidade da professora em conduzir a entrevista.

Ao final do texto encontra-se a entrevista em vídeo e mais um pequeno artigo escrito pelo General para a Tribuna imprensa livre.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Há duas correntes ou tendências nas FFAA como parece acreditar uma parte da mídia? A relação das diferentes hierarquias (alto escalão e praças) com Bolsonaro é algo novo ou é uma continuidade? 

Gen. Bolivar Meirelles: Uma coisa são os interesses pecuniários, correspondem aos interesses de ordem salarial, que envolvem não apenas militares, mas civis também. São as pessoas menos politizadas que pensam e agem por essa motivação. Hoje fica explicitado que há grupos menos aquinhoados pela Reforma Previdenciária, que beneficiou estratos mais altos da hierarquia militar, mas não beneficiou igualmente parcelas mais baixas dessa categoria. É uma questão a se tratar no âmbito da política.

Contrapoder e Virgínia Fontes: É sabido que Bolsonaro tem estreita relação com milícias no Rio de Janeiro e com policiais – muitos da chamada ‘banda podre’ – da PM. Agora procura controlar diretamente a PF. Como vê a relação das Forças Armadas e de sua hierarquia com esse esquema de privatização e milicialização da segurança pública?

Gen. Bolivar Meirelles: Não vejo como viável o envolvimento total do estamento Forças Armadas brasileiras com as milícias, grupamento de origem nas polícias estaduais que dominam “negócios tópicos” e, por interesse financeiro, se conflitam com narcotraficantes. Isso é uma questão que, no Estado do Rio de Janeiro, é notória, e em São Paulo e Espírito Santo já vem, de certa forma se locando[CSM1] . As Forças Armadas, por sua natureza nacional, podem ser remanejadas. Acho que os grandes conflitos que possam se dar dentro da sociedade brasileira são conflitos de classe. Contradições de interesses. Claro que milicianos e narcotraficantes, hoje, já constituem agrupamentos de interesse econômico — negócios, pois, que podem atuar como componentes, embora ilegais, mas com ideologia similar a uma burguesia espúria. A máfia já teve seu espaço na Itália e nos EUA também; envolvem, pois, interesses de ordem econômica e financeira (os “donos” do negócio são explorados e remunerados por eles).  Essa questão não é, pelo menos, apenas militar, é uma questão social e política.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual a relação entre as FFAA e as polícias na atualidade? Que modificações relevantes podem ser identificadas? Há maior aproximação e confusão de papéis entre elas, pelas GLO, por exemplo?

Gen. Bolivar Meirelles: A Garantia de Lei e Ordem foi uma limitação da Constituição Cidadã de 1988 que cedeu a pressões das Forças Armadas e permitiu remanescer na Carta Magna resíduos do poder militar exercido nos idos dos governos militares implantados com o golpe de Estado de 1º de abril de 1964. Sarney (ARENA) foi um governo transitório — Tancredo Neves (MDB) era o possível candidato da transição —; tinha a confiança da classe dominante e era oriundo da ARENA, partido do Governo Militar. Convoca uma Constituinte, mas permite que ela possa ter, continuamente dentro do Poder Legislativo Nacional, elementos do “lobby” militar pressionando. Tanto que não houve uma revisão da precária Lei da Anistia negociada no governo Figueiredo, pela qual torturadores foram anistiados, nem permitiu a reversão ao serviço ativo dos militares democratas e patriotas atingidos pelos instrumentos ditatoriais, os atos institucionais.

Quanto à ligação das Forças Armadas brasileiras com milicianos, a pergunta já foi respondida no quesito 2.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como o senhor analisa a disseminação de empresas de segurança (legais e ilegais) dirigidas por militares (das FFAA e das polícias) da ativa ou reformados? Saiu recentemente matéria sobre general no norte de MG que dirige com empresários uma milícia contra assentados rurais.

Gen. Bolivar Meirelles: É um negócio inerente à formação profissional de militares. Médicos se dedicam mais a clínicas médicas, engenheiros mais a empresas de engenharia. Crime é para todos, civis e militares, clínicas de aborto clandestinos, empresas de engenharia que constroem em locais indevidos, médicos estupradores em seus consultórios… infelizmente existem. Negócios de igrejas que vendem Jesus como mercadoria… Isso tudo tem de ser combatido e os responsáveis devem ser processados e responder perante a lei.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual a influência dos Estados Unidos na doutrina dominante? VF – Quais os setores estadunidenses com os quais as FFAA têm proximidade? Que tipos de atividades? Formação, armamentos, doutrina, participação em treinamentos?

Gen. Bolivar Meirelles: O Brasil tem forte ligação militar com os EUA, não é de hoje. Participou da Segunda Guerra Mundial, na Itália, sob o comando norte-americano. O General Eisenhower foi o comandante da Segunda Frente Ocidental. Militares brasileiros voltaram da Guerra impressionados com os EUA, e outros com a União Soviética. A ESG, Escola Superior de Guerra, é criada à semelhança do War College norte-americano — este surgido por inspiração da classe dominante norte-americana. A ESG brasileira, criada em 1948, vem da estrutura militar norte americana. No Brasil, as Forças Armadas, principalmente o Exército Brasileiro, têm dupla função; é instrumento repressivo, mas também ideológico. Vários quadros políticos importantes cursaram a ESG. 

A inter-relação das Forças Armadas brasileiras com as dos EUA se dá de várias maneiras: cursos, acordos militares, trocas de informações etc.

Quando eleito em 1950, Getúlio Vargas assina a lei 2004, de iniciativa do deputado Euzébio Rocha, que criou a Petrobrás, mas cede a pressões e assina o Acordo Militar Brasil-EUA. Interessante é que esse acordo venha a ser denunciado no Governo Geisel.

A Guerra Fria foi um período de grande influência norte americana nas questões militares brasileiras. Os EUA influenciaram na queda de Getúlio em 1945 e na queda de Goulart em 1964.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como avalia a liderança real de Bolsonaro nas Forças Armadas? VF – Há tensões?

Gen. Bolivar Meirelles: Bolsonaro não é um líder militar; Geisel fez expressa crítica ao insubordinado Capitão. Bolsonaro, no entanto, se colocou como um sindicalista militar. Auferiu muitos votos no e do estamento militar por isso, inicialmente no Rio de Janeiro e depois nacionalmente. Não acredito que os comandos responsáveis o desejem como ditador brasileiro. Existem muitas contradições internas nas Forças Armadas brasileiras. Bolsonaro hoje se caracteriza como um autoritário entreguista. Muitos militares são autoritários, outros nem tanto e muitos são patriotas, nem todos entreguistas. É uma questão complexa. Agora, muitos civis, inclusive nas camadas médias altas, se associam ao Bolsonaro autoritário, privatista e entreguista. Não é específica essa categoria ao Militar.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como vê o compromisso efetivo dos militares com o respeito à Constituição? VF – Há algum consenso sobre o “Estado de Direito”?

Gen. Bolivar Meirelles: Não vejo grande interesse de os militares brasileiros “rasgarem” a Constituição de 1988. Ela responde, em grande parte, a seus interesses. Os militares têm forma constitucional de exercer certa interferência na política. Os militares acabam, pelas patentes superiores e oficiais generais, sendo beneficiados pela Reforma Previdenciária, muito mais pela atitude do Poder Legislativo do que do Executivo.

Quem dá golpe de Estado é a classe dominante e está dividida. As Forças Armadas são, muito mais, usadas pela classe dominante. Faz lembrar a história do macaco que pediu a mão do gato emprestada para tirar as castanhas que assavam no forno.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como diferencia a composição das Forças Armadas hoje e durante a ditadura militar?

Gen. Bolivar Meirelles: De início, hoje não existe Guerra Fria, o principal consumidor das commodities brasileiras é a China, o Brasil é membro do BRICS. Não existe uma esquerda forte no Brasil. Não existe uma CGT, Comando Geral dos Trabalhadores, sob a direção do Partido Comunista Brasileiro. O PCB não tem a força política que tinha e o PC do B é um partido reformista. Não há situação objetiva nem existe um partido revolucionário com expressão popular. Não há, pois, nem situação objetiva nem subjetiva. As esquerdas e a centro-esquerda são frágeis no momento.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Quais são os principais grupos políticos que influenciam a ação da corporação?

Gen. Bolivar Meirelles: Acho que, hegemonicamente, como as camadas médias altas, o estamento militar, pelos seus oficiais, suboficiais e sargentos, vota mais em partidos conservadores. Não tenho, no entanto, informação empírica, é apenas observação superficial.

Contrapoder e Virgínia Fontes: A que segmento da sociedade os militares respondem? Quais os nexos orgânicos que a corporação tem com a burguesia?

Gen. Bolivar Meirelles: Entre os militares, oficiais, suboficiais e sargentos são componentes das camadas médias da sociedade, uns na alta e outra na intermediária.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Ainda resta algum sentimento nacionalista entre a cúpula dos militares? VF – Houve a defesa do petróleo antes de 1964 –  e quanto ao pré-sal (Amazônia Azul) na atualidade?

Gen. Bolivar Meirelles: Acho que deva haver algum sentimento patriótico residual, a maioria à direita. Em 1964 houve um expurgo muito grande nas Forças Armadas brasileiras — talvez as instituições mais atingidas. Após a Revolução Cubana, em 1961 — eu era cadete então, cursava a Academia Militar das Agulhas Negras —, foi introduzida a concepção do Inimigo Interno. Forte lavagem cerebral anticomunista nas Forças Armadas. As Forças Armadas já tinham forte anticomunismo a partir dos levantes militares em Natal, Recife e Rio de Janeiro em 1935, da Aliança Nacional Libertadora. Esse anticomunismo foi alimentado durante a Guerra Fria e realimentado após a vitoriosa Revolução Cubana.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual deveria ser a política da esquerda socialista em relação aos militares?

Gen. Bolivar Meirelles: Fazer seu trabalho de politização no âmbito da sociedade. Embora haja uma sinergia dialética entre a sociedade e o Estado, é muito mais uma sociedade bem politizada que fará avançar o Estado e seus estamentos, inclusive o militar, no sentido patriótico, mas internacionalista, bem como na constituição de uma sociedade igualitária.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Julga que existe ameaça de intervenção militar? Ela seria com ou sem Bolsonaro?

Gen. Bolivar Meirelles: Embora já haja respondido pergunta similar, volto a respondê-la. Não vejo situação objetiva nem interesse subjetivo das Forças Armadas brasileiras assumirem a responsabilidade pela instalação de uma ditadura no Brasil. Não observo confiança das Forças Armadas no Capitão Bolsonaro para fazê-lo ditador. As classes dominantes brasileiras estão divididas. O Trump não é uma liderança capaz de conduzir o Brasil a um golpe de Estado com militares como protagonistas. A Europa, a Rússia e a China são as principais compradoras das commodities brasileiras. Não havendo realidade objetiva, nem subjetiva… não vejo viabilidade de um golpe com ostensivo uso das Forças Armadas. Agora, o governo Bolsonaro já foi, de certa forma, um golpe de Estado institucional.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual o papel das Forças Armadas na sociedade brasileira?

Gen. Bolivar Meirelles: As Forças Armadas brasileiras cumprem um papel de defesa da Pátria brasileira. Quando eu a elas me integrei, em 1956, fiz o juramento à bandeira de “defender a Pátria com o sacrifício da própria vida”. Ninguém jurou defender o capitalismo ou o imperialismo norte-americano. A Pátria é um processo de “ser e vir a ser”. Quando na vigência do Tratado de Tordesilhas, o Brasil era um, depois até o nome mudou. Espero que, um dia, quando o mundo não tiver mais fronteiras, as Forças Armadas percam a sua razão de existir. A Pátria constitui o território, o solo e o subsolo, reservas aquíferas, suas florestas, seu povo.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Voltando ao passado: em 1963-64, o senhor acredita que os nacionalistas conheciam o projeto/plano de Magalhães Pinto de declarar MG um ‘estado beligerante”?

Gen. Bolivar Meirelles: Acho que não. Mesmo se existisse essa pretensão seria, militarmente, inviável. Minas Gerais é um Estado sem saída para o mar. Seria facilmente reconquistado, pressionado por forças militares do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, as demais Forças Armadas localizadas em outras regiões. Projeto inviável. São Paulo, com saída marítima e forte indústria, seria mais viável.

Publicado originalmente por ContraPoder, em 7 de junho de 2020. (Bolsonaro não é um líder militar, afirma General Bolivar Meirelle. - Contrapoder).