segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Extrema-direita no Brasil já não precisa de Bolsonaro para se mobilizar, revela pesquisa

Estudo mostra o legado radical de 18 meses de manifestações de rua pelo País; para Isabela Kalil, que coordena o trabalho, presidente pode moderar a performance e o tom sem que os atos sejam desmobilizados

       Manifestação em São Paulo pró-Bolsonaro; pesquisa analisou 45 atos no Brasil e nos Estados Unidos. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 7/9/2021

Os atos e manifestações do bolsonarismo não precisam mais da presença de Jair Bolsonaro para acontecer. Dezoito meses de mobilização das ruas deixaram como herança uma extrema-direita rapidamente mobilizada em torno de pautas que vão do combate às medidas de isolamento social à defesa do voto impresso e à guerra contra instituições.

É o que mostra pesquisa inédita coordenada pela antropóloga Isabela Kalil, Democracia Sitiada e Extremismo no Brasil: 18 meses de manifestações bolsonaristas, do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (NEU-FESPSP). Ao todo foram mapeadas 45 manifestações entre março de 2020 e setembro deste ano, em que o bolsonarismo atuou por meio do que os pesquisadores classificaram como “extremismo estratégico”.

Mas o que seria esse extremismo e por que essa história não acaba com a declaração à nação feita por Bolsonaro para recuar dos ataques aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) na manifestação de 7 de Setembro? Para Kalil, apesar de ser impossível saber se o presidente continuará a participar desses eventos após o recuo, é certo que os atos não precisam mais de Bolsonaro para ocorrer. “Há vários exemplos na pesquisa. Bolsonaro pode moderar o tom e mudar a performance sem que os atos sejam desmobilizados.”

Como exemplo, a antropóloga citou as ações recentes de caminhoneiros e grupos como o 300 do Brasil. “Nas manifestações, sua base cobra mais radicalismo e diz: ‘eu autorizo o que for necessário’. Mas institucionalmente não aconteceu nada.” Ao não poder entregar o radicalismo esperado pelos extremistas, Bolsonaro “entrega a performance”. É assim, segundo ela, que se explica o desfile de carros de combate da Marinha em Brasília, no dia da votação da PEC do voto impresso, rejeitada pelo Congresso.

Para o cientista político José Álvaro Moisés, a história das manifestações é marcada pelo crescimento do que chamou de “expressões mais radicais do bolsonarismo”. O professor da USP alerta, no entanto, que os fracassos do governo desativaram a força do bolsonarismo radical para se impor ao País. “A declaração à nação de Bolsonaro foi um recuo tático. É preciso ainda entender seu impacto sobre o movimento.”

A resposta para isso tem relação com as táticas e a estratégia do movimento até as eleições de 2022. Moisés acredita que Bolsonaro deve adotar a visão escatológica, da luta final contra o petismo e o comunismo, como forma de mobilizar sua base, ainda mais do que o discurso antissistema que alimentou o extremismo estratégico nos 18 meses de atos de rua.

A pesquisa do NEU-FESPSP mostra que a formação desse extremismo é indissociável da covid-19. De acordo com ela, a pandemia se transformou em uma oportunidade para mobilizar os apoiadores do presidente. A maioria dos atos em 2020 trazia como pauta a defesa do tratamento precoce e o ataque a governadores e prefeitos que defendiam medidas de isolamento social, como o fechamento do comércio.

A pesquisa também detectou uma mudança da retórica bolsonarista. Antes da pandemia, os alvos prioritários eram os políticos e partidos tradicionais. Depois, passaram a ser instituições, como o Congresso e o STF. O deslocamento das pautas dos protestos é acompanhado pelo aumento do radicalismo, incluindo “atos de insurgência”. Um exemplo foi a tentativa de invasão do Congresso, em 13 de junho de 2020, quando o grupo 300 do Brasil subiu na cúpula do prédio após ter seu acampamento desmontado em Brasília.

Os pesquisadores identificaram ainda a presença cada vez maior de símbolos militares e de novos tipos de protestos, como os encontros de motociclistas – as motociatas –, que predominaram nos atos em 2021. Onze delas contaram com a participação presidencial – Bolsonaro esteve presente em 25 dos 45 eventos estudados.

Trump

As motociatas, segundo a pesquisa, atraem pessoas que se comunicam por grupos fechados, no Instagram e no Telegram. “Elas parecem se dar de forma espontânea, mas não são. Uma motociata anuncia a data da outra. Algumas são anunciadas na live do presidente”, diz Kalil.

Foi só no 22.º evento analisado que nasceu esse tipo de ato. A data que marca o começo foi 7 de maio deste ano, quando o empresário Luciano Hang andou na garupa de Bolsonaro durante a inauguração de uma ponte em Rondônia. Dias depois, ocorreria a primeira motociata oficial, em Brasília.

Esse tipo de evento seria inspirado no tradicional encontro de motocicletas de Sturgis, na Dakota do Sul, que atrai um público antissistema. “(Donald) Trump foi muito hábil para falar com esse público e associar sua imagem ao Rally de Sturgis, um encontro que aconteceu mesmo durante a pandemia”, afirma Kalil. Como em outras áreas, aqui também a inspiração do bolsonarismo seria a extrema-direita americana, ancorada no trumpismo.

Repetidas 19 vezes em 2021, as motociatas foram interiorizadas e viraram um modelo bem-sucedido de mobilização. “É importante notar que Eduardo Bolsonaro participou de uma motociata, em Miami, depois de se reunir com Steve Bannon (ex-estrategista de Trump), na Dakota do Sul.” O evento na Flórida aconteceu dias depois do encontro de Sturgis.

No dia em manifestações em SP e no DF atacaram o STF e pediram intervenção militar, Bolsonaro fez sobrevoo e depois foi a ato a cavalo. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 31/5/2020

Escalada

Os passeios de motocicleta compuseram a escalada até o ato de 7 de Setembro, visto pelos pesquisadores como “parte de uma ação de insurgência”, que se desenvolveu de forma “gradativa, com planejamento, tática e objetivos definidos”. Essa estratégia recorreu a determinados temas, pautas e agendas, que formaram o chamado “extremismo estratégico”. Em dez eventos, a pauta principal foi a defesa do voto impresso. Em cinco deles, foi a “intervenção militar”.

Mas nem só o público radical compareceu aos atos. As maiores manifestações incluíram um público mais amplo, envolvendo conservadores e suas famílias que dão apoio ao presidente e às pautas ligadas aos costumes. “Há duas manifestações que aconteceram dessa forma: a do 1.º de maio e a do 7 de Setembro”, conta Kalil.

Para a pesquisa, durante os atos, os manifestantes comuns foram estimulados a experimentar tipos de conduta extrema. Líderes do movimento, como o caminhoneiro Marcos Antônio Pereira Gomes, o Zé Trovão, geraram situações em que foram investigados e presos e, assim, se transformaram em “vítimas do sistema”, levando a apoiadores o sentimento de que a democracia e as liberdades foram vilipendiadas.

“Esses acontecimentos servem de argumento para os apoiadores de que a insurgência é a única alternativa possível para a política.” Assim era até o 7 de Setembro. Os pesquisadores vão continuar o trabalho até janeiro de 2023. Querem verificar a futura estratégia do bolsonarismo e por quanto tempo e locais as táticas e dispositivos serão empregados e o que será bem-sucedido. O desafio é compreender os caminhos do movimento que cresceu além de seu líder e transformou as ruas em laboratório de ações em meio ao avanço global do extremismo contra a democracia.

Para Isabela Kalil, que coordena o trabalho, Bolsonaro pode moderar a performance e o tom sem que os atos sejam desmobilizados. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 15/10/2021

Militantes veem defesa de valores e patriotismo sem radicalização

A transformação da identidade do bolsonarista, deixando a ênfase no “cidadão de bem” para explorar a imagem do “patriota”, foi uma das constatações da pesquisa do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Esse itinerário se reflete no momento de maior abalo do movimento: a demissão do então ministro da Justiça Sérgio Moro. “Quando Moro saiu, a gente pensou que ia desmoronar”, disse o advogado Luciano dos Santos, de 59 anos. Ele foi às ruas de Salvador apoiar o presidente. “Bolsonaro quis demonstrar que o povo dá autoridade e autonomia à gestão”. 

Luciano conheceu Bolsonaro pelas redes sociais e participou dos atos da campanha, em 2018. Para ele, o candidato representava o nome ideal contra o PT. “Se tiver que chamar as Forças Armadas para pôr ordem na casa, ele tem todo apoio.”

Ele destaca que a diversidade das pessoas foi o que mais chamou sua atenção no 7 de Setembro: manifestantes de diversas idades, evangélicos e pessoas de verde e amarelo. Em 2022, assegura que votará em Bolsonaro. E afirma que irá a um outro ato caso seja convocado.

Mobilização para novas manifestações não deve faltar. É o que diz o empresário Beto Okazaki, de 44 anos, de Ponta Grossa (PR). Além de organizar dois protestos na cidade a favor do “tratamento precoce” contra a covid-19 e do voto impresso, ele compareceu ao 7 de Setembro em Brasília. “Foram dois ônibus para Brasília e três para a Paulista.”

Okazaki disse respeitar as instituições que sustentam a democracia, mas critica a atuação do STF quando ele passa “dos seus limites”. “A gente vê um cerceamento da liberdade de expressão.” Para o empresário, “um cidadão de bem, geralmente, vai ser patriota”. “E geralmente um patriota é um cidadão de bem.”

O discurso é próximo daquele do general Roberto Peternelli, deputado federal pelo PSL. Peternelli esteve no ato do 7 de Setembro. “Foi uma manifestação da família por valores, pela Constituição e pela legalidade.” Para ele, as manifestações devem continuar. “Elas serão democráticas. Sem espaço para extremismos, conforme a carta que o presidente escreveu.” /

 LEVY TELES, CÁSSIA MIRANDA e MARCELO GODOY para O Estado de São Paulo, em 18.10.21.

Prostituição: por que governo socialista da Espanha quer criminalizar a prática

O presidente do governo da Espanha, Pedro Sánchez, se comprometeu, em um discurso no domingo (17/10), a criminalizar a prostituição no país.

Pesquisa de 2009 sugere que um em cada três homens espanhóis já pagou por sexo (Getty Images)

Em declarações a apoiadores no fim dos três dias de congresso do Partido Socialista em Valência, Sanchez disse que a prática "escraviza" as mulheres.

A prostituição foi descriminalizada na Espanha em 1995, e em 2016 a ONU estimou que a indústria do sexo no país valia 3,7 bilhões de euros (R$ 23,4 bilhões).

Uma pesquisa de 2009 sugere que um em cada três homens espanhóis já pagou por sexo. No entanto, outro relatório publicado em 2009 indica que esse percentual é maior (39%).

Em 2011, a ONU citou a Espanha como o terceiro maior centro de prostituição do mundo, atrás da Tailândia e de Porto Rico.

Pedro Sánchez fez promessa de criminalizar prostituição durante discurso na conferência do Partido Socialista em Valência (Getty Images).

A prostituição atualmente não é regulamentada na Espanha e não há punição para quem oferece serviços sexuais pagos por sua própria vontade, desde que isso não ocorra em espaços públicos. No entanto, proxenetismo (atuar como intermediário entre uma trabalhadora do sexo e um cliente potencial) é ilegal.

A indústria cresceu muito desde a sua descriminalização e estima-se que cerca de 300 mil mulheres trabalham como prostitutas na Espanha.

Em 2019, o partido de Sánchez publicou uma promessa em seu manifesto eleitoral para criminalizar a prostituição, o que foi visto como uma medida para atrair mais eleitoras mulheres.

O manifesto classificou a prostituição como "um dos aspectos mais cruéis da feminização da pobreza e uma das piores formas de violência contra as mulheres".

No entanto, dois anos após a eleição, nenhum projeto de lei foi apresentado.

Os defensores do atual sistema espanhol dizem que ele trouxe enormes benefícios para as mulheres que trabalham como prostitutas e tornou a vida delas mais segura.

No entanto, nos últimos anos, aumentaram as preocupações sobre o tráfico de mulheres para fim de exploração sexual.

Em 2017, a polícia espanhola identificou 13 mil mulheres nessa situação, afirmando que pelo menos 80% delas estavam sendo exploradas contra sua vontade por terceiros.

BBC News Brasil, em 18.10.21

Melvin Konner, neurocientista: “Estamos no começo do fim da supremacia masculina”

No livro ‘Women After All’, o pesquisador defende a superioridade biológica feminina e vislumbra um futuro em que no homem não será necessário para a reprodução

Melvin Konner, doutor em Medicina, antropólogo e neurocientista da Universidade Emory, em Atlanta (EUA).

Melvin Konner, doutor em Medicina, antropólogo e neurocientista, trabalha na Universidade Emory, em Atlanta (EUA), após ter sido aluno e professor de Harvard. Nasceu há 75 anos em Nova York e, nesta tardia etapa acadêmica, decidiu enfrentar críticas e ameaças para mergulhar na piscina da literatura científica com um livro provocador: Women After All. Konner, colaborador do The New York Times, da Newsweek e do Wall Street Journal, vislumbra o final da supremacia masculina, defende a superioridade biológica das mulheres e propõe um imaginário cenário futuro (“biofantasia”, como ele diz) em que seria possível a reprodução feminina sem a participação do homem.

É a supremacia masculina, segundo a pesquisadora Marta Cintas-Peña, da Universidade de Sevilla (Espanha), que encontrou no Neolítico vestígios da origem da desigualdade, “um processo social e cultural criado que consolidou um sistema injusto”. Leonardo García Sanjuán, professor de Pré-História e Arqueologia da Universidade de Sevilla, afirma que são os excedentes que geraram os patrimônios familiares e a herança, que se transformaram “num assunto social e economicamente fundamental”. “Para que os homens tenham a segurança de que o legado passará aos seus próprios filhos biológicos, começa a surgir uma ideologia de controle das mulheres”, afirma.

Para Konner, esse processo, que inviabilizou durante mais de cinco milênios as vantagens de uma sociedade igualitária, menos violenta e mais cooperativa e colaborativa, é também um capítulo biológico sem sentido do qual a humanidade começa a sair. O neurocientista é pai de duas filhas e um filho de sua primeira esposa, a antropóloga Marjorie Shostak, que morreu de câncer em 1996. Tem outra filha de seu casamento com a psicóloga Ann Cale Kruger. A esperança de que eles vivam num mundo mais justo motivou esse professor, amante da língua e da literatura espanholas, a mergulhar na biologia, na mitologia, na história, no comportamento animal, na psicologia, na sexologia e na antropologia para escrever o livro.

Pergunta. As mulheres são biologicamente superiores aos homens?

Resposta. Antes de mais nada, quero dizer que, embora eu trate de alguns aspectos das pessoas não binárias, meu livro é principalmente sobre homens e mulheres. Entendo que existem pessoas difíceis de classificar, mas a maioria se reconhece a si mesma como mulheres ou homens. Tive problemas por dizer que as mulheres são superiores. Me acusaram de sexismo inverso, de estigmatizar um grupo de pessoas etc. Recebi e-mails de ódio de homens que obviamente se sentem ameaçados pela perda do privilégio masculino que está acontecendo diante dos nossos olhos. Inspirei-me num dos trabalhos da antropologia mais populares da história, A Superioridade Natural da Mulher, de Ashley Montagu. Ela afirmou que as mulheres vivem mais tempo que os homens, com uma mortalidade mais baixa em todas as idades, podem criar uma nova vida em seus corpos e, como dispõem de dois cromossomos X, têm taxas muito mais baixas de problemas genéticos como a hemofilia, o daltonismo e a síndrome do X frágil. Nós, homens, temos um X desprotegido que, às vezes, carrega genes ruins. Acrescento a esses fatos biológicos fundamentais certos aspectos comportamentais, alguns deles também baseados na biologia. Em especial, o de que em todos os países e culturas os homens cometem 90% da violência e 95% das agressões sexuais. Além disso, os homens reivindicaram uma superioridade sobre as mulheres durante tantos séculos que pensei que era hora de virar o jogo e mostrar as evidências do outro lado. Vamos, rapazes, tenham senso de humor!

P. Por que considera que a diferença cromossômica é tão relevante quanto o impacto da cultura e da educação?

R. Não é apenas a diferença cromossômica: são as diferenças hormonais e cerebrais dela resultantes. Mas fico satisfeito que sua pergunta inclua as palavras “tão relevante” em vez de “mais relevante”. À luz da ciência moderna, devemos aceitar que a cultura e a educação são poderosas, mas a biologia também. Há enormes aspectos do comportamento humano (inteligência geral, habilidade musical, engenhosidade na escrita e na pintura, entre muitos outros) em que não há diferenças sexuais influenciadas biologicamente. No entanto, os homens predominaram de maneira esmagadora ao longo da história. Agora sabemos que isto ocorreu porque os homens não deram às mulheres a oportunidade de se sobressair em todas essas coisas que elas poderiam ter feito muito bem. Ou porque impediram sua formação. Isto é cultura e educação. E a humanidade está saindo lentamente desse antigo erro. Mas existem alguns traços, especialmente a violência e a exploração sexual, em que encontramos diferenças tão grandes e consistentes, independentemente da cultura, que devemos considerar a biologia. Esses não são traços desejáveis, e temos cada vez mais evidências de que as diferenças hormonais, assim como certas formas em que os hormônios afetam o cérebro no início da vida, podem nos ajudar a responder à pergunta que tantas mulheres têm feito a si mesmas: “O que acontece com os homens!?” Claro que nem todos somos violentos ou exploradores sexuais. Más há suficientes para que todas as mulheres precisem ser cautelosas. Tenho três filhas e uma neta, e não poderia deixá-las neste mundo sem o conhecimento desses fatos.

P. Qual é a relevância do que o senhor chama de síndrome de deficiência do cromossomo X?

R. Isso é um pouco uma piada, e no entanto... Peço aos meus alunos que pensem, brevemente, na masculinidade como uma deficiência cromossômica. Nosso cromossomo Y parece um tanto insignificante ao lado do X, do qual as mulheres têm dois. Além disso, elas estão mais protegidas contra as doenças ligadas ao cromossomo X. O gene Y nos priva da capacidade de desenvolver nova vida dentro de nossos corpos. E, ao nos dar andrógenos, também promove os traços ruins —que estão muito mais presentes em nós. Às vezes levo essa piada, que não é apenas uma piada, ainda mais longe, e pergunto aos estudantes: o homem é como um vírus? Resposta: nenhum dos dois pode fazer nova vida sem tomar emprestado a maquinaria reprodutiva de outro organismo. Pode-se dizer que as mulheres não podem se reproduzir sem a pequena, mas importante, doação feita pelos homens. Mas devemos lembrar que a vida começou sem reprodução sexual —e existem espécies formadas somente por fêmeas! Nós, homens, somos mais ou menos uma ocorrência evolutiva tardia para aumentar a variação na vida, um objetivo digno.

P. E as mulheres não podem adotar atitudes masculinas, como a violência ou a competição não colaborativa às quais o senhor faz referência?

R. Isto ocorreu em alguns casos no passado, quando as mulheres governantes, como Isabel I, da Inglaterra, e Catarina, a Grande, da Rússia, foram empurradas ao topo das pirâmides masculinas de poder e só podiam sobreviver e governar imitando os homens. Inclusive nos tempos modernos, algumas mulheres se masculinizaram pelo poder. Mas, à medida que as mulheres líderes se tornam menos raras, acredito que têm a oportunidade de seguir suas próprias inclinações. Os países liderados por mulheres em geral se saíram melhor na pandemia que os dirigidos por homens. E alguns dos países que se saíram pior, como EUA, Reino Unido e Brasil, tinham líderes não apenas masculinos, mas hipermasculinos. Claro que essas não são diferenças em branco e preto. Nada em biologia ou comportamento é 100%. Mas parece que é mais fácil para as mulheres líderes tirar seus egos do caminho. Os sociólogos estudaram 120 prefeitos de cidades norte-americanas, 65 mulheres e 55 homens. As mulheres governaram de forma mais transparente e incluíram mais contribuições de pessoas abaixo delas na hierarquia.

P. Nossa evolução futura poderia nos levar apenas a conexões sexuais femininas, ou essa é uma “biofantasia”, como o senhor diz?

R. Digamos que é uma fantasia biológica com certa conexão com a realidade. Acredito que, cientificamente, misturar os genes de duas mulheres será muito mais fácil de conseguir do que fazer um embrião de dois homens e depois, de alguma maneira, concretizá-lo de forma segura com suportes totalmente artificiais. Mas, felizmente para nós, há muitas mulheres que gostam dos homens por este ou aquele motivo, então acredito que elas vão querer nos manter por perto. Todos temos muito a ganhar mantendo ambos os sexos ao redor, sem falar de todas as pessoas que não se encaixam simplesmente nas categorias masculinas e femininas, porque a variedade faz com que a vida seja interessante... Vive la différence! [Viva a diferença!, expressado em francês durante a entrevista]. Quanto à biofantasia, procuremos manter nosso senso de humor.

P. Estamos vivendo o fim da supremacia masculina?

R. Estamos no começo do fim da supremacia masculina, que poderia levar décadas, mas acho que estamos no processo. Minha neta Hannah, chamada assim por minha mãe, terá uma vida que será tão diferente da vida de sua xará, com muitas outras possibilidades, que minha mãe ficaria assombrada e a observaria com orgulho. Minhas avós não puderam votar até mais ou menos os 40 anos. Minha mãe precisou se impor para aprender a dirigir. Quando estava na universidade, cerca de 5% dos graduados das faculdades de Medicina, Direito e Negócios eram mulheres. Agora elas são cerca de 50%. Há um longo caminho pela frente, sobretudo nos níveis superiores de liderança. Mas as tendências são favoráveis em muitos países. Claro que em alguns isso é muito menos certo. No Afeganistão, provavelmente veremos o retrocesso de duas décadas de progresso para as mulheres. Mas as tendências em muitos outros lugares (Taiwan, Coreia do Sul, Europa ocidental, EUA) são positivas.

P. A vida seria muito mais segura com esse fim da supremacia masculina?

R. Sem dúvida, a vida será mais segura para as mulheres. Elas terão mais capacidade de fazer frente ao abuso, terão mais educação e oportunidades econômicas para proteger sua saúde e segurança, criarão coalizões entre elas que as tornarão menos vulneráveis a certos tipos de homens. Desde que saiu a versão norte-americana do meu livro, vimos o movimento #MeToo derrubar homens poderosos em muitos âmbitos da vida por assediar ou agredir as mulheres. Perguntei a muitas que conhecia se isso era uma mudança cultural real ou uma moda passageira. A maioria considera que isso marcará uma diferença no longo prazo. Vimos Andrew Cuomo, ex-governador de Nova York, tentar se esquivar da gravidade de seus maus-tratos e falta de respeito às mulheres. Ele perdeu no final, e pode apostar que a mulher que conseguiu isso não estará abusando dos homens. Além de minhas três filhas e minha neta, também tenho um filho e dois netos. Quero que eles tenham sucesso, uma boa vida. Mas acredito que o mundo será um lugar mais seguro para eles se as mulheres ganharem mais influência. Pode haver menos guerras. Isso não poderia acontecer sob uma única rainha Isabel ou Catarina. Mas, se imaginamos um mundo em que as mulheres estejam bastante representadas em altos cargos, acho que será menos provável que um choque de egos leve à violência.

P. Qual será o papel dos homens?

R. Parceiros. Colaboradores. Às vezes líderes, às vezes seguidores. Contribuirão com ideias e soluções que são diferentes das que as mulheres podem encontrar, não porque tenham melhores mentes, mas porque homens e mulheres, por muitas razões, pensam de forma um tanto diferente. Minha forte perspectiva evolutiva me leva a mencionar duas espécies que estão mais estreitamente relacionadas conosco: os chimpanzés e os bonobos. Se você não se sente confortável com a evolução, tome isso como uma parábola baseada na história natural. Os machos de chimpanzé são fortemente dominantes sobre as fêmeas, têm relações rápidas e superficiais e são muito violentos entre si. Os bonobos, igualmente relacionados conosco, têm coalizões femininas que praticamente controlam suas comunidades. Estas se baseiam, em parte, no sexo entre as fêmeas. As coalizões mantêm o controle sobre a conflitividade masculina. E os machos? Têm uma grande vida. Têm muito sexo lento e pausado com as fêmeas, à vezes cara a cara. Têm pouco a temer de outros machos, porque o nível de violência é muito baixo. Fazem o possível para se dar bem. Temos ambas as espécies em nós, mas durante muito tempo expressamos principalmente o lado dos chimpanzés de nossa natureza. Creio que poderíamos avançar rumo a uma bonobização da espécie humana, um mundo em que todos estariam mais seguros porque as clássicas “virtudes” masculinas do passado, baseadas em ter que enfrentar outros homens, seriam menos necessárias e teriam menos sentido. Houve um best-seller chamado Homens são de Marte, mulheres são de Vênus. Minha resposta a isso foi: “Os homens são de Marte, e as mulheres são da Terra.” As mulheres serão melhores protetoras da Terra, mas também acredito que melhores guardiãs da humanidade. Sim: sem nos deslocar ou dominar, elas podem nos ajudar a criar colaborações de homens e mulheres que inclusive poderiam, no final, proteger os homens dos piores aspectos de nós mesmos.

RAÚL LIMÓN para o EL PAÍS, em 17.10.21

Divergências adiam relatório final da CPI da Pandemia para que ela não acabe ‘em pizza’

Senadores opositores não concordaram com alguns termos de indiciamentos. Presidente e outras 59 pessoas eram apontadas como responsáveis por delitos no combate ao coronavírus

O presidente Bolsonaro no último dia 12, em Aparecida, SP. (Carla Carniel / Reuters)

A Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia adiará em pelo menos uma semana a leitura e votação de seu relatório final. A decisão foi comunicada neste domingo pelo presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), ao grupo de sete senadores que fazem oposição ao Governo Jair Bolsonaro e deram o rumo das principais investigações do colegiado. Da maneira como fora redigido o relatório, corria-se o risco de ele não ser aprovado, já que havia uma falta de consenso entre os sete parlamentares que até agora votavam de maneira uniforme. Ou seja, ela poderia acabar ‘em pizza’, termo usado para definir apurações políticas que não chegam a lugar algum.

A informação sobre o adiamento foi confirmada ao EL PAÍS pela assessoria de imprensa do relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), e pelo senador Humberto Costa (PT-PE), um dos membros dela. Em princípio, o relatório seria lido na terça-feira, dia 19, e votado no dia seguinte. Parte dos senadores desse grupo, apelidado de G7, demonstrou descontentamento com trechos do relatório que estavam sendo divulgados pela imprensa nos últimos dois dias.

Havia a expectativa de que o relator discutisse detalhes do documento antes de repassar os dados à imprensa. Quando parlamentares notaram o vazamento iniciou-se uma discussão em um grupo de WhatsApp sobre alguns dos termos que estavam sendo utilizados. Houve quem demonstrasse descontentamento com indiciamentos de 60 pessoas – entre eles o do presidente Bolsonaro – e com a ausência de outros, segundo contou ao EL PAÍS o senador Humberto Costa, titular da comissão e um dos representantes do G7. O petista disse que não poderia detalhar quais foram as queixas de seus colegas, mas ressaltou que algumas das tipificações criminais dos indiciados descontentaram parte do grupo. “O que posso dizer é que tivermos algumas divergências maiores e outras menores. Agora, teremos de discutir como tudo será consertado”, disse.

Bolsonaro, por exemplo, estava sendo indiciado por 11 crimes, entre eles homicídio qualificado, epidemia, charlatanismo e incitação ao crime. O presidente postergou a compra de vacinas, fez campanha contra os imunizantes e promoveu medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento do coronavírus. Algo de possível rusga entre os parlamentares é o indiciamento de um de seus pares, o primogênito do presidente e membro suplente da CPI, Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), por disseminação de fake News. Os outros dois filhos políticos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro e o deputado Eduardo Bolsonaro também seriam indiciados pelo mesmo delito.

Conforme publicado neste domingo pelo jornal O Estado de S. Paulo, o relatório previa que o Governo Bolsonaro teria agido com dolo na pandemia de covid-19. “O governo federal criou uma situação de risco não permitido, reprovável por qualquer cálculo de custo-benefício, expôs vidas a perigo concreto e não tomou medidas eficazes para minimizar o resultado, podendo fazê-lo. Aos olhos do direito, legitima-se a imputação do dolo (intenção de causar dano, por ação ou omissão)”, diz trecho do documento publicado pelo periódico.

Tribunal Penal Internacional

Para ser aprovado, são necessários os votos da maioria dos 11 senadores titulares da CPI. Quatro deles são declaradamente bolsonaristas: Luiz Carlos Heinze (PP-RS), Marcos Rogério (DEM-RO), Jorginho Mello (PL-SC) e Eduardo Girão (Podemos-CE). O prazo limite para o funcionamento da CPI é 5 de novembro.

Dessa forma, a oposição seguiria com a maioria dos votos (7 entre 11). É com essa maioria que os opositores querem seguir contando para aprovar um relatório duro contra o presidente e seus aliados. Tipos penais não faltam. Alguns deles imprescritíveis e que poderiam acabar no Tribunal Penal Internacional, como o caso da acusação de genocídio. É uma espécie de cerco político-eleitoral e jurídico-criminal contra o presidente. Há desde grupos que disseminaram desinformação até ex-gestores e autoridades federais e estaduais que agiram contra as medidas de prevenção do coronavírus ou que atrapalharam a aquisição de vacinas.

No relatório preliminar de Calheiros, Bolsonaro estava sendo caracterizado como autor de genocídio de indígenas. “Fica nítido o nexo causal entre o anti-indigenismo do mandatário maior e os danos sofridos pelos povos originários, ainda que, como outros líderes acusados de genocídio, não tenha ele assassinado diretamente pessoa alguma”, diz trecho do documento, revelado pelo Estadão.

Em meados de setembro, um grupo de juristas elaborou um parecer a pedido da CPI que definiu uma lista seis possíveis crimes comuns cometidos pelo presidente: além do charlatanismo e do crime da epidemia, crime contra a humanidade, infração de medida sanitária preventiva, incitação ao crime e prevaricação. Todos esses seriam investigados pelo Ministério Público Federal. Há ainda um possível crime de responsabilidade pela violação das garantias individuais, como o direito à vida e à saúde. Neste caso, caberia ao Congresso Nacional avaliar e a punição seria o impeachment e a cassação dos direitos políticos do presidente.

“O presidente da República deixa de cumprir com o dever que lhe incumbe, de assumir a coordenação do combate à pandemia, dizendo lhe ter sido proibida qualquer ação pelo Supremo Tribunal Federal, que, como ressaltado antes, o desmente, pois há competência comum, e devem União, Estados e Municípios atuar conjuntamente segundo a estrutura do Sistema Único de Saúde”, diz o parecer coordenado pelo jurista e ex-ministro Miguel Reale Jr, um dos signatários do pedido de impeachment que resultou na destituição de Dilma Rousseff (PT) da Presidência da República.

Todos os dados que constam no relatório serão encaminhados ao Ministério Público Federal e para o equivalente de alguns Estados para que eles ajam. Uma primeira parte já chegou às mãos da força-tarefa do MP de São Paulo que apura os crimes da Prevent Senior.

O líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros, e a rede de fake news (Evaristo Sá / AFP)

Um dos capítulos do relatório abordará exatamente os grupos de bolsonaristas que espalhavam fake news e interferiram diretamente na disseminação de dados falsos sobre a pandemia. Nesse trecho do documento, serão citados os portais Terça Livre, Brasil Sem Medo e Crítica Nacional. Os responsáveis por esses sites e aliados deles também serão investigados, entre eles o blogueiro Allan dos Santos, o ex-secretário de Comunicação do Governo Fábio Wajngarten e o empresário Otávio Fakhoury.

Um outro trecho do relatório será dedicado ao líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). Várias frentes da investigação o vinculam a uma série de irregularidades. Um cruzamento de quebras de sigilos bancários, fiscais e telefônicos analisadas pelos 25 assessores parlamentares e policiais que trabalham no relatório dão conta de que todos os fios se conectam ao deputado. “Todos os caminhos levam ao Barros”, disse uma fonte da CPI.

Barros tem vínculo, por exemplo, com diretores que negociaram propina para a compra de vacinas, com a assinatura de um contrato fraudulento para a compra de outro imunizante, é apontado como um dos fatores de pressão contra os denunciantes do esquema e é investigado em outro inquérito por pagar 20 milhões de reais para a empresa Global por medicamentos que nuca foram entregues, quando era ministro da Saúde de Michel Temer. Além disso, o próprio presidente Bolsonaro teria dito em uma conversa com um dos denunciantes das irregularidades, o deputado Luís Miranda (DEM-DF), de que Barros teria “esquemas” dentro do Ministério da Saúde.

Ainda que haja, até o momento, uma barreira de contenção a favor de Bolsonaro na Câmara e na Procuradoria Geral da República, a CPI deve causar ainda mais dano à já fragilizada imagem do presidente —sua popularidade chegou ao pior índice do mandato, 53% de ruim e péssimo em setembro, conforme o Datafolha. Os opositores contam com o tempo. Apesar da inação de parte dos atores que deveriam agir contra o presidente, alguns dos crimes que serão relatados são imprescritíveis e não dependem, necessariamente, de um juízo político. Ou seja, a possibilidade de punição dos responsáveis, ainda que tardia, permanece viva.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 17.10.21

Sob eco da Lava Jato, Câmara acelera projeto para minar poder do Ministério Público

Procuradores e promotores reclamam que manobra é mais uma no sentido de dificultar combate à corrupção. Jurista vê ato ilegítimo e professora diz que há exagero nas queixas

O presidente da Câmara, Arthur Lira, durante sessão no dia 14. (Ag. Câmara)

A operação Lava Jato fez tremer a classe política e o mundo empresarial que negocia com o Governo. Levou um presidente de empresa, Marcelo Odebrecht, e um ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, para a prisão, e mostrou-se firme no propósito de ‘limpar’ a política. A intenção era boa, conquistou o Brasil, mas o tempo mostrou um direcionamento político do Ministério Público e do então juiz Sergio Moro, que hoje cobra seu preço. 

A Câmara dos Deputados acelerou uma cruzada para aumentar o controle político de quem fiscaliza as autoridades públicas. Está prevista para esta terça-feira a votação da proposta de emenda constitucional número 5 de 2021, que trata da mudança na composição do Conselho Nacional do Ministério Público. Patrocinado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o texto é relatado pelo deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) e já tem apoio de parlamentares de várias legendas, do PT ao PSL, do PSB ao Cidadania. 

O tema foi debatido no plenário da Casa nas últimas duas semanas, atropelando discussões prévias em uma comissão especial e audiências públicas. O projeto tem enfrentado uma dura oposição de membros do MP, que entendem que sua aprovação deve ferir de morte a instituição.

Esta é a segunda tentativa de minar os poderes de procuradores e promotores em menos de um mês. A primeira ocorreu ainda entre setembro e outubro, quando as duas casas do Congresso Nacional aprovaram mudanças na lei da improbidade administrativa que afrouxam as regras para punir os gestores que cometerem esse crime. Nesse pacote está inclusa a permissão da prática de nepotismo.

As principais mudanças que preocuparam os especialistas foram o aumento dos conselheiros do CNMP que seriam indicados pelo Congresso Nacional — de dois para cinco entre 17 membros — e a obrigação de que o Legislativo indique o corregedor da instituição, que também exerceria o papel de vice-presidente. Ao corregedor cabe analisar todas as denúncias administrativas contra membros do Ministério Público que pudessem gerar qualquer punição. Um exemplo: a corregedoria do CNMP analisaria a conduta de qualquer procurador da Lava Jato que tivesse usado do cargo para punir irregularmente um político.

Representantes de cinco entidades de procuradores e promotores coordenados pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) têm feito pressão para que a Câmara rejeite a PEC 5/2021. Mas sem sucesso, por enquanto. Em notas técnicas e comunicados à imprensa, os procuradores dizem que as propostas “interfere em garantias fundamentais para a independência da instituição”. Eles temem que, se o corregedor for indicado por políticos que podem ser alvos de investigações possa haver uma atuação direcionada contra os fiscais da lei.

Na mesma linha, segue a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Para ela, há a necessidade de melhorar o funcionamento do CNP, “o que inclui a necessária escuta do Poder Legislativo e grupos sociais”, com a revisão de “mecanismos de transparência e accountability”. Contudo, o texto em análise não aponta condições para a correção de erros cometidos pelos membros do Ministério Público, avalia a associação. “Ao contrário, politiza o conselho e subordina a agenda correcional a interesses ocasionais contra atuações do MP em temas de relevância nacional”.

Por essa razão, em Brasília, a proposta tem sido chamada de PEC da Vingança. Ainda assim, há a sensação de que mudanças precisariam ser feitas para que o MP fosse mais rígido com seus membros. “Hoje, nenhum membro do MP responde contra improbidade. É importante um conselho forte, com presença, para que tenhamos transparência”, ressaltou o padrinho da proposta, Arthur Lira em entrevista à rádio CNN.

O ex-chefe da Lava Jato Deltan Dallagnol, por exemplo, foi denunciado em 2016 pela defesa de Lula ao Conselho Nacional do Ministério Público pelo uso do famoso powerpoint para acusar o ex-presidente Lula de corrupção. A projeção, apresentada numa coletiva de imprensa, colocava o nome do petista para colocá-lo como chefe de quadrilha de inúmeros crimes. O julgamento de Dallagnol foi adiado 42 vezes pelo Conselho até que a queixa prescreveu. O instrumento rudimentar já foi proibido no exterior, alega a defesa de Lula, por promover a induções genéricas.

Dallagnol, assim como o time de procuradores que integraram a Lava Jato, tiveram conversas vazadas pela série de reportagens da Vaza Jato, liderada pelo jornal The Intercept, e também na operação Spoofing, da Polícia Federal, que localizou os hackers que vazaram o conteúdo das conversas entre procuradores e o ex-juiz Sergio Moro no aplicativo Telegram. As comunicações revelaram como os procuradores agiram diversas vezes sob a orientação de Moro na busca de provas contra o ex-presidente Lula. A ida de Moro para o Governo Bolsonaro em 2019 só consolidou a leitura da atuação política de procuradores.

Há uma desinstitucionalização da democracia”,

Joaquim Falcão, jurista.

O Conselho Nacional do Ministério Público foi criado em 2004. Tem como função fazer a fiscalização administrativa, financeira e disciplinar do MP e de seus membros. Um dos que trabalharam para sua criação foi o jurista Joaquim Falcão, professor de direito da Fundação Getulio Vargas. Hoje, ao analisar a atual PEC ele diz que há uma tentativa da classe política de se blindar.

“É uma clara estratégia do populismo de direita de neutralizar e paralisar as instituições de controle”, disse Falcão ao EL PAÍS. O professor foi um árduo defensor a atuação da Lava Jato. Lira é um aliado de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Para Falcão, a mudança tem “uma aparência de legalidade, mas é ilegítima”. “Na ditadura militar tínhamos o Congresso funcionando, o Executivo funcionando e o Judiciário funcionando. Tudo parecia ser legal, mas não era. É o mesmo que estão tentando fazer agora com o Ministério Público. Há uma desinstitucionalização da democracia”.

Professora na Escola Brasileira de Direito e doutora em Direito de Estado, a advogada Telma Rocha Lisowski avalia que as mudanças são uma aparente reação à Lava Jato e aos seus desdobramentos. Em um primeiro momento, a Lava Jato – encerrada oficialmente em fevereiro deste ano após quase seis anos de apurações – cercou políticos de diversos espectros, mas especialmente do PT. A operação é tida como decisiva para a derrubada da presidente Dilma Rousseff e para tirar o ex-presidente Lula da disputa eleitoral contra Jair Bolsonaro em 2018.

Contudo, Lisowski diz não ter uma visão catastrófica, como apresentaram as associações de procuradores e promotores. “Há um certo exagero sobre essa influência política”. Hoje, os procuradores gerais da República e dos Estados já são indicados pelo presidente e pelos governadores. Em alguns casos, como no do presidente Bolsonaro, o governante nem respeita uma lista tríplice votada pelos procuradores e acaba escolhendo alguém que seja mais alinhado com o seu Governo.

Na mesma linha, seguiu a doutoranda em direito pela Universidade de Salamanca e professora na Faculdade de Direito de Franca, Ana Cristina Gomes. “O que temos hoje é uma pseudo independência do Ministério Público”. Segundo ela, há um temor exacerbado por parte dos procuradores. “Por que no Brasil há um órgão que só ele tem o direito de se auto-avaliar e se autofiscalizar? Por que um cidadão com notório saber jurídico não pode fiscalizá-lo?”.

Na análise de Lisowski, a maior preocupação deveria ser, caso fosse mantida, a previsão que constava do relatório inicial e permitia que o CNMP revisasse medidas tomadas pelos seus membros, funcionando como uma segunda ou terceira instância judicial. “Seria como se o Conselho Nacional de Justiça pudesse cassar acórdãos, decisões, sentenças de juízes do Brasil inteiro”. Essa alteração foi retirada do relatório do deputado Paulo Magalhães, que cedeu à pressão dos procuradores.

Desde que chegou à Câmara, o texto já teve três versões distintas. Nesta terça-feira, será a sua prova de fogo. Seus apoiadores calculavam que ele tinha menos de 250 votos. Para uma PEC ser aprovada são necessários os votos de 308 dos 513 deputados federais.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 17.10.21

sábado, 16 de outubro de 2021

Ciro x Lula, a guerra prematura

Imaginem se o quadro seria o mesmo se no palanque da Avenida Paulista Gleisi e Haddad tivessem dado as mãos a Ciro. Tema do comentário de Ascânio Seleme, n'O Globo hoje.

Todo mundo no PT sabia que seria difícil evitar um confronto com Ciro Gomes, mas também não se esperava que partissem do próprio PT as pedradas que desencadeariam a tormenta. O ideal era que o confronto ocorresse apenas na campanha, talvez nos debates, na propaganda de TV, nas entrevistas dos candidatos. Mas, não, os ataques que ajudam a desmontar a história alternativa que o partido pretendia contar sobre os seus quatro mandatos no governo do Brasil foram iniciados depois das agressões da militância petista a Ciro na manifestação do dia 2 de outubro. Era tudo o que ele precisava e queria. Imaginem se o quadro seria o mesmo se no palanque da Avenida Paulista Gleisi e Haddad tivessem dado as mãos a Ciro.

A estratégia agora no PT, com o leite derramado prematuramente, é evitar danos maiores. A primeira ordem do comando, de não responder a eventuais ataques, caiu antes mesmo de ser implementada. A afirmação de que Lula contribuiu de maneira decisiva para o impeachment de Dilma, que passou anos falando mal dela e de seu governo, foi prontamente respondida por Dilma. E, mais grave, pelo próprio Lula, que mordeu a isca. Falou, de maneira inapropriada para um momento grave como este, que Ciro deve ter sequelas no cérebro em razão da Covid, mas não fez referência direta à acusação de que falava mal de Dilma. Talvez para não ser pego na mentira, vai que alguém gravou.

Os ataques de Ciro são de quem conhece muito bem Lula e o PT. Quando partem de Bolsonaro ou de seus aliados, as investidas têm muito menor eficiência do que quando disparadas por gente que já foi de dentro. Ciro foi da casa, sabe muito bem com quem está lidando, conhece concretamente os métodos petistas e percebe cada dissimulação, todas as tergiversações. Mais grave, Ciro sabe se expressar. Bolsonaro, não. E Ciro tem agora João Santana, outra fonte inesgotável de informações que podem complicar muito a candidatura petista até a eleição do longínquo outubro de 2022.

Aliás, o tempo é outro problema para o PT. Se serve para Lula viajar e negociar alianças ao centro e à direita, serve também para aos poucos ir manchando sua aura de político perseguido, desmanchando a imagem de um homem indefeso que foi fustigado, condenado e preso por um juiz politicamente comprometido e um Ministério Público corrupto e interesseiro. O manto de santo com que se vestiu Lula pode virar farrapos numa campanha tão longa.

Teoricamente, esta ainda era a hora para se pressionar com todas as forças democráticas pelo impeachment do presidente, denunciado por mais de 30 crimes de responsabilidade. Foi o PT que minou a causa ao abandoná-la. Logo o PT que pediu o impeachment de todos os presidentes não petistas desde a redemocratização. Ninguém escapou da saga petista, nem mesmo o acima de qualquer suspeita Itamar Franco. Contra todos se empenhou e mostrou seus dentes. Já com o Bolsonaro, apesar do discurso inicial, aquietou-se porque, por seus cálculos corretos, com ele no páreo fica mais fácil a eleição de Lula.

Lula foi chamado de corrupto, arrogante e egocêntrico. Dilma de incompetente. Sobre o PT, Ciro disse ver um grupo de fanfarrões e hipócritas neoliberais. Difícil dizer o que dói mais na alma petista, ser chamado de corrupto ou de neoliberal. Deixando à parte todos os conhecidos exageros retóricos de Ciro Gomes, o fato é que o PT ao longo dos anos foi se transformando de um partido socialista-marxista em um agrupamento de esquerda social democrática, o que não é ruim, absolutamente, até ser hoje de centro-esquerda, como ensinou o professor Fernando Haddad.

Falta um ano para eleição, tempo demais nos cálculos petistas para ficar vendo seu telhado ser ameaçado pela chuva de pedras que já começou a pingar. A ordem de não reagir a Ciro Gomes terá de ser atendida, sob pena de Lula perder a polarização que pretende exclusiva com Bolsonaro. De sua parte, Ciro sabe que é improvável tirar Lula do segundo turno. Seu objetivo é dividir a esquerda até onde conseguir e caminhar sobre os votos do centro para alijar Bolsonaro da disputa final. Também aí terá de ralar muito. De qualquer forma, a guerra prematura à esquerda está aberta e pode ser útil aos demais.

Comprando polêmica 1

A decisão do senador Davi Alcolumbre de não pautar a indicação de André Mendonça para a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado faz parte do jogo político. A prerrogativa do presidente de indicar nomes para o Supremo Tribunal Federal não significa que automaticamente sua indicação passará. Primeiro, tem que ser pautada pelo presidente da CCJ, depois aprovada pela Comissão e depois pelo plenário. Todas estas etapas são políticas e devem ser negociadas. Se a nomeação fosse automática, não precisava da avaliação do Senado. Alcolumbre tem razão e direito legal de sentar sobre a indicação da mesma forma que Arthur Lira senta sobre mais de cem pedidos de impeachment do presidente Bolsonaro. E, já que estamos tratando do terrivelmente evangélico Mendonça, Alcolumbre tem razão de sobra.

Comprando polêmica 2

Está bem que a pauta do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, é um horror. Seus métodos de ação são ainda mais escabrosos e obscuros. O homem inventa uma pauta de manhã e à tarde a coloca em votação. Essa prática vai acabar, junto com o fim do mandato de Bolsonaro. Mesmo assim, não dá para dizer que jogar um pouco mais de luz e mais controle sobre o Ministério Público é ruim. O que faltou foi oportunidade. E debate.

Comprando polêmica 3

A possibilidade de se criar federações de partidos pode ser útil à democracia brasileira. Reduzir o número de agremiações políticas ajuda a combater o partidarismo de aluguel. E, como força que a federação perdure quatro anos, permite ajustes, entendimentos e acordos para além das eleições. O que é muito bom.

Tolinho

O governo está soprando por aí que, pelos seus cálculos, a candidatura de André Mendonça ao STF será derrotada se chegar ao plenário do Senado. Tolinho. Fosse verdade, já teria trocado o nome para não passar vexame. Seu alvo é Alcolumbre, a quem a turma palaciana deve considerar um poço de ingenuidade.

Sem estratégia

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes provaram esta semana que, além da falta de apreço, não têm qualquer estratégia em relação à Petrobras. O presidente, reclamando que sobre ele caem todas as responsabilidades dos males do Brasil, disse que até quando a gasolina sobe a culpa é dele. E falou que isso cansa e já está até pensando em privatizar a companhia para se livrar do abacaxi. O ministro, por sua vez, propôs vender ações da Petrobras toda vez que o preço dos combustíveis subir e distribuir o dinheiro obtido entre os mais pobres. Vai ver que é isso mesmo o que ele quer. Até o fim do governo, diante das sucessivas desvalorizações do Real e dos consequentes aumentos da gasolina, Guedes privatizaria a estatal. Mas claro que não é assim que se toca assunto tão importante. Falar o que dá na telha, sem estudo, sem análise, com argumentos paupérrimos, apenas confirma o que já se sabe de ambos. São dois irresponsáveis contumazes.

Coreia bem piorada

Quantos brasileiros se inscreveriam no jogo proposto na série coreana “Round 6”? Para quem não sabe, trata-se do maior fenômeno de audiência da Netflix da temporada, onde 456 homens e mulheres desesperados, pobres e endividados, sem perspectivas, topam participar de um jogo de vida e morte para ganhar um mega prêmio em dinheiro. Na Coreia, 95% têm pelo menos o equivalente ao segundo grau completo. No Brasil, bom, por aqui, num jogo semelhante, as filas de inscrição dobrariam esquinas.

Pobre e velho

O motorista fechou o apressadinho que havia buzinado para ele, forçando que parasse o carro. Abriu então a janela e disparou: “Está com pressa? Da próxima vez passa por cima, seu velho”. “Você devia ter vergonha deste carro. Aposto que ganha 15 mil por mês, seu velho, pobre!”. O outro, incrédulo com o que ouvira, até em razão do conceito de pobreza do ofensor, respondeu: “Vai se vacinar, Bolsonaro”. Bastou para o “jovem” persegui-lo por três quadras, ameaçando bater, fechando o seu carro em manobras arriscadas e chamando-o seguidamente de velho e pobre. Mais bozo, impossível.

Ascânio Seleme é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 16.10.21

CPI entra na reta final, com 11 crimes atribuídos a Bolsonaro e 30 pessoas na mira

Relatório final deve ser lido no próximo dia 19 e votado no dia seguinte. Possível penalização do presidente, no entanto, dependerá da PGR e do Supremo para que casos sejam julgados.

Tela exibe imagens de protesto na Praia de Copacabana em homenagem aos mortos por covid-19, durante a CPI da Pandemia do último dia 7. (Edilson Rodriguess / Ag. Senado

A CPI da Pandemia se encaminha para a reta final na próxima semana e, como resultado, deve propor o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), do deputado e líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), e de ao menos mais três dezenas de pessoas. É o que promete o relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL). Sob a mira da CPI ainda estão o deputado federal e ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB-RS), o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e os médicos Nise Yamaguchi e Paolo Zanotto, suspeitos de integrarem o chamado gabinete paralelo. Todos os nomes que terão o indiciamento proposto pela comissão deverão ser conhecidos oficialmente no próximo dia 19, quando Renan Calheiros fará a leitura do relatório final.

Ao menos 11 crimes deverão ser atribuídos a Bolsonaro, segundo afirmou Calheiros à Globo News. “Vão de crimes de responsabilidade, passando por crimes comuns, crimes contra a saúde pública e crimes contra a humanidade também”, afirmou o senador. O relatório final, que deve ser votado no dia seguinte, 20, não tem poder de denunciar ninguém, apenas de propor os indiciamentos. Cabe então ao Ministério Público —ou à Procuradoria-Geral da República (PGR), no caso do presidente— decidir se apresenta uma denúncia formal à Justiça.

Apesar da lista de crimes atribuídos pela CPI ao presidente, seu indiciamento pode ser rapidamente engavetado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que tem demonstrado pouca energia quando o assunto envolve Bolsonaro. Aras não deu seguimento a ações como a que pretendia responsabilizar o presidente por não usar máscara, ou a que tentou vetar a campanha O Brasil não pode parar, contra o isolamento social.

Aras terá até 30 dias a contar a partir do recebimento do relatório —previsto para ser entregue no próximo dia 21—, para encaminhar as denúncias ao Supremo Tribunal Federal (STF), instância responsável por julgar os possíveis crimes cometidos pelo presidente. De acordo com o blog da jornalista Malu Gaspar, caso Aras engavete as denúncias, entidades do direito privado já se articulam para entrar com ações diretamente no Supremo. Membros da CPI já estão, inclusive, discutindo essa alternativa com advogados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que podem assumir a causa

Nesta semana, as atividades da CPI estão suspensas. Retornarão na semana que vem, quando estava prevista a presença do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, no dia 18. Mas nesta segunda, os membros da CPI desistiram de convocá-lo e escutarão, no lugar, Carlos Carvalho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que afirma que pediu o adiamento da análise na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) de um relatório que recomenda o não uso do chamado “kit covid”. Será o último depoimento desta CPI, que iniciou seus trabalhos no final de abril e foi prorrogada por mais três meses, em julho.

Observatório da CPI

Para que as denúncias levantadas pela CPI da Pandemia não morram na praia será criado um “observatório parlamentar”. Formado por senadores que fizeram parte da comissão, o observatório deve desmembrar as acusações para apresentá-las nas diferentes instâncias do Legislativo, do Ministério Público e do Judiciário.

Assim, depois que os parlamentares entregarem o relatório a Augusto Aras, eles devem bater na porta da Procuradoria da República do Distrito Federal, no dia 26, que receberá os indiciamentos daqueles que não têm foro privilegiado. Nessa lista devem estar incluídos o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e seu secretário-executivo Élcio Franco, por exemplo. Depois, será a vez do Ministério Público de São Paulo (MPSP) e da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo receberem as denúncias referentes à Prevent Senior, que já é investigada por uma força-tarefa criada pelo MPSP. A data prevista para o compartilhamento das informações com a procuradoria paulista são os dias 27 e 28 de outubro

O presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL), também deverá receber os senadores, já que é o responsável por colocar em pauta a abertura do processo de impeachment. Um grupo de juristas, coordenado pelo ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Junior, apontou à comissão crimes de responsabilidade que, de acordo com a Constituição, podem levar ao impeachment. Reale Junior foi um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT).

Os senadores também planejam o envio de uma cópia do relatório ao Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda. Integrantes da CPI pretendem atribuir a Bolsonaro certas condutas que, de acordo com eles, configuram crime contra a humanidade, algo que entra no escopo dos julgamentos desta corte. O presidente já responde a outras ações na Corte internacional —a terceira delas, ingressada nesta segunda por uma ONG internacional por conta do desmatamento da Amazônia.

MARINA ROSSI, de São Paulo para o EL PAÍS, em 13.10.21

Tchecos provam que oposição unida pode vencer autocratas

Uma coalizão indo da esquerda aos conservadores conseguiu tirar o bilionário Andrej Babis do poder. Eleições na República Tcheca são modelo para outros países em que a democracia está em perigo, opina Barbara Wesel.

Político tcheco Andrej Babis fala em campanha eleitoral

Para sorte da democracia, Andrej Babis ainda não concluíra a conversão da República Tcheca numa oligarquia privada.

O retorno à democracia liberal é possível. O exemplo das eleições parlamentares na República Tcheca mostrou que uma oposição unida é capaz de derrubar do trono um chefe de governo que ela acusa de tendências autocráticas e práticas corruptas – se permanecer coesa.

A palavra-chave aqui é "unida", e é preciso muito bom senso, fantasia política e altruísmo para obter tal vitória. A oposição tcheca que expulsou do poder o bilionário Andrej Babis ia desde esquerdista até bastante conservadora. Mas é preciso registrar que essas forças contaram com algumas vantagens nacionais.

Por um lado, existe no país uma tradição histórica de resistência democrática: seu primeiro presidente após a guinada para a democracia, Václav Havel, é um ídolo até hoje. Além disso, os oposicionistas alardearam bem alto em sua campanha eleitoral o desejo de seguir ancorando a República Tcheca na União Europeia e na comunidade ocidental – e com isso tocaram um ponto nevrálgico.

Por fim, deve-se admitir que Babis ainda não concluíra sua conversão do país numa oligarquia privada. Alguns grandes veículos de imprensa estão em seu poder, mas não todos. Ele colocou seus adeptos na Justiça e outras instituições, mas eles ainda não estavam por toda parte. Ainda eram relativamente propícias as condições para o retorno a uma democracia liberal funcional.

No entanto a chave da vitória foi todos os partidos anti-Babis terem colaborado entre si. Eles intitularam sua aliança "coalizão das coalizões", e é preciso uma boa dose de renúncia e de superação de grandes egos para concretizar uma unidade dessas.

Trabalho árduo à frente na Hungria e Polônia

Na Hungria, onde as eleições se realizam em 2022, no momento a oposição está se empenhando por uma cooperação desse gênero. Lá, porém, as condições básicas são bem mais árduas: Viktor Orbán aniquilou a livre imprensa, subverteu inteiramente a Justiça e encurralou a sociedade civil.

O premiê lançou mão de todos os recursos do poder para transformar o país numa "cleptocratura", uma mistura de ditadura e loja autosserviço, a partir da qual ele serve à própria panelinha.

A última campanha eleitoral húngara já foi uma briga de lama impiedosa. Dá nojo lembrar a campanha antissemita que Orbán perpetrou contra seu antigo mecenas George Soros, o qual investiu muito dinheiro para o fomento à democracia no Leste Europeu.

Para o primeiro-ministro húngaro, nenhum abismo moral é profundo demais. Portanto a oposição terá que agir de forma destemida e coesa, se pretende ter uma chance contra tal adversário. Talvez o exemplo da República Tcheca lhe instile coragem.

O mesmo vale para as forças anti-PiS (o partido populista de direita Liberdade e Justiça) da Polônia, onde as eleições só transcorrem em 2023. Lá, a oposição ainda tem um pouco de tempo para aprender com os exemplos e os erros nos países vizinhos. Um grande tema já está estabelecido para ela: na verdade a tendência da Polônia em direção à Europa deveria ser um bilhete para a vitória.

Barbara Wesel é jornalista da DW / Deutsche Welle. O texto reflete a opinião pessoal da autora, não necessariamente da DW / Deutsche Welle. Publicado originalmente em 16.10.21.

Dezenas de milhares protestam contra o fascismo na Itália

Italianos saem às ruas de Roma a favor da democracia e pedem proibição de grupos neofascistas. Protesto ocorre uma semana após ataque violento de extremistas de direita contra sede de sindicato durante ato antivacina.

Dezenas de milhares de italianos saíram às ruas de Roma em protesto contra o fascismo neste sábado (16/10), uma semana depois de extremistas de direita invadirem a sede da maior associação sindical da Itália, durante atos contrários às medidas anticoronavírus no país.

A manifestação antifascista foi liderada pelo chefe da federação sindical CGIL, Maurizio Landini, ao lado de outros líderes sindicais, sob o slogan "Fascismo nunca mais". Organizadores estimaram que até 100 mil manifestantes estiveram reunidos na praça de San Giovanni in Laterano – historicamente associada à esquerda.

"Esta não é apenas uma réplica ao 'esquadrismo' fascista", disse Landini à multidão, citando uma palavra usada para se referir às milícias fascistas que começaram a operar após a Primeira Guerra Mundial. "Esta praça também representa todos aqueles na Itália que querem mudar o país, que querem fechar as portas à violência política."

Alguns dos presentes agitavam cartazes onde se lia "Si vax" (vacina sim), uma resposta direta aos manifestantes armados com pedaços de pau e barras de metal que destruíram a sede da CGIL na capital italiana em 9 de outubro, sob o símbolo "No vax".

"Si vax": manifestantes defendem a vacinação contra a covid-19, em resposta a negacionistas

Na ocasião, a polícia deteve 12 pessoas, incluindo líderes do partido de extrema direita Forza Nuova (Força Nova), após milhares saírem às ruas contra os chamados "passes verdes", recém-impostos aos trabalhadores italianos.

Desde esta sexta-feira, só podem comparecer ao local de trabalho na Itália os funcionários que estiverem vacinados, tiverem se recuperado de covid-19 ou apresentarem um teste negativo.

Em Roma, os protestos do fim de semana passado descambaram para a violência. Várias centenas de pessoas se separaram da manifestação na capital italiana e tentaram marchar até o Parlamento e, aparentemente, também invadir o escritório do primeiro-ministro, Mario Draghi, que fica nas proximidades. Houve confrontos com a polícia. Outros invadiram a sede da CGIL, atacaram guardas e destruíram escritórios. Alguns policiais ficaram feridos.

Protestos antifascismo na Itália


Organizadores falaram em até 100 mil manifestantes neste sábado

"Um país sem memória não pode ter um futuro"

Landini, secretário-geral da CGIL, comparou a invasão de sábado passado com os ataques às uniões sindicais por parte do recém-fundado Partido Nacional Fascista em 1921. O líder fascista Benito Mussolini assumiu o poder no ano seguinte e depois levou a Itália à Segunda Guerra como aliada da Alemanha nazista.

A CGIL e outros dos principais sindicatos italianos, também presentes na manifestação deste sábado, pediram ao governo que dissolva e proíba grupos neofascistas e neonazistas, bem como o partido de extrema direita Forza Nuova.

"Pedimos atos concretos, não apenas conversa fiada. É hora de o Estado demonstrar sua força democrática na aplicação da lei e da Constituição", afirmou Landini. "Um país que perde sua memória não pode ter um futuro."

O chefe da Confederação Geral do Trabalho Italiana (CISL), Luigi Sbarra, por sua vez, afirmou que o ataque contra sindicatos liderado pelo Forza Nuova fez com que "estar ali fosse a única escolha, unidos contra todos os tipos de fascismo". Ele também clamou pela rápida dissolução da legenda por parte das autoridades italianas.

Deutsche Welle Brasil, em 16.10.21, (Com AFP, DPA, Reuters e AP)

Um Poeta

 Bonfim Tobias

 Inconsciência Coletiva

        ( A um ex-Presidente)


Culpou-me pela vida que propus,

Culpou-me pelo raio que matou,

Culpou-me até pela invenção da cruz,

Culpou-me p’la esperança que falhou!


Culpou-me p’la tristeza que ficou,

Culpou-me pela mágoa que induz,

Culpou-me pela luz que apagou,

Culpou-me pela paz a que me impus!


Culpou-me pelos passos que não dou,

Culpou-me pela inércia que gerou,

Culpou-me, assim, a que isso conduz!


Culpou-me pela ânsia que parou,

Culpou-me pela fé que acabou,

Culpou-me até pela morte de Jesus!…

'Todos subestimam Bolsonaro: assim ele virou presidente e pode ser reeleito', diz cientista político

A ideia de dar um segundo mandato ao presidente Jair Bolsonaro hoje é rejeitada pela maioria da população, segundo diferentes pesquisas eleitorais. Esses mesmos levantamentos mostram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como favorito para vencer a disputa presidencial do próximo ano.


Apesar disso, o cientista político Creomar de Souza, professor da Fundação Dom Cabral e fundador da consultoria política Dharma, avalia que Bolsonaro se mantém um candidato competitivo, com chances de permanecer no Palácio do Planalto em 2023.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele lembra que o presidente mantém nas mãos a "chave do cofre", ou seja, recursos para tentar reverter sua impopularidade com políticas de governo, como o aumento de transferências de renda, seja com a prorrogação do auxílio emergencial ou a ampliação do Bolsa Família.

Além disso, acredita que "o canal paralelo de comunicação" construído por Bolsonaro e seus apoiadores por meio de grupos de WhatsApp e Telegram terão novamente papel importante na eleição, como forma de divulgar mensagens favoráveis ao presidente e "destruir reputações" de adversários. Para Souza, mesmo narrativas que pareçam pouco convincentes para parte da população podem cativar eleitores.

"O desemprego, o retorno da fome, a inflação: tudo isso gera uma enorme dificuldade para Bolsonaro. O que o presidente tem feito é jogar a conta da inflação no (discurso do) 'fique em casa durante a pandemia'. Me parece ser uma manobra muito difícil, mas não é uma manobra que não possa colar", afirma.

"Não podemos trabalhar com a ideia de que o eleitor é invulnerável a percepções que nós não consideremos objetivas da realidade. Temos que lembrar que, no fim das contas, muita gente tomou cloroquina e outros medicamentos que não tinham comprovação científica alguma. Isso acontece", reforça.

Para o professor, o cenário de 2018 está se repetindo agora, com uma ampla subestimação do potencial do presidente.

"Todo mundo subestima o Bolsonaro. O Lula subestima o Bolsonaro. Quem está com o Bolsonaro subestima o Bolsonaro. Quem quer fazer terceira via subestima o Bolsonaro. E uma característica bem importante do Bolsonaro como persona política é o fato de que ele chegou onde está com todo mundo o subestimando", lembra.

"Assim ele chegou à Presidência da República. Assim ele vai finalizar provavelmente o mandato sem impeachment, e assim ele pode inclusive ser reeleito", acrescenta.

Na sua visão, ao subestimar Bolsonaro, a oposição tende a se fragmentar, gerando um cenário mais favorável para o presidente estar no segundo turno, com chances de se reeleger.


'Quanto mais fragmentada for essa oposição, quanto mais candidatos existirem, melhor pro Bolsonaro', analisa Creomar de Souza. (Foto - Divulgação)

"Em algum sentido, essa fraqueza aparente do Bolsonaro dá a impressão de que qualquer outro candidato pode derrotá-lo, e esse é o principal vetor que impede a construção de qualquer tipo de coalizão", ressalta.

"Essa é a melhor chance do Bolsonaro. Quanto mais fragmentada for essa oposição, quanto mais candidatos existirem, melhor pro Bolsonaro, porque o Bolsonaro tem uma base concentrada de votantes. Se os (demais) votos estiverem muito diluídos em outros nomes, ele está no segundo turno", diz ainda.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - A alta rejeição de Bolsonaro medida nas pesquisas eleitorais tem indicado um caminho difícil para o presidente em 2022. Ele continua sendo um candidato competitivo com chances de se reeleger?

Creomar de Souza - O presidente ainda é competitivo por duas razões. A primeira delas está no campo bem tradicional da política: tem a chave do cofre. E quem tem a chave do cofre pode criar mecanismos, instrumentos, pra reverter percepções negativas sobre si mesmo. Isso não significa dizer que presidente é favorito ou ganharia a eleição com a fotografia que temos hoje. Mas o fato é: hoje o presidente conseguiria estar muito provavelmente no segundo turno. E isso não pode ser menosprezado.

A segunda razão que acho muito importante vem de um elemento mais novo da política, que tem muito impacto a partir de 2018 e acredito que terá muito impacto também em 2022: o presidente foi muito bem-sucedido em construir um canal paralelo de comunicação, se utilizando de WhatsApp e de Telegram de forma que, até onde eu sei, não há outra liderança política utilizando isso de maneira tão eficaz.

E a gente precisa lembrar de alguns dados. Por exemplo, uma pesquisa da consultoria Mckinsey mostra que o Brasil é o quarto país mais plugado à internet. Todo mundo usa WhatsApp, a ponto de quando tem algum problema no WhatsApp as pessoas confundem com queda de internet. Então, isso gera um impacto em termos de jogo político e eleitoral que não é desprezível.

O presidente da República e seus apoiadores têm um canal muito bem construído de construção de informações e de percepções e de destruição de reputação de inimigos. Então, em uma eleição que tem tudo pra ser altamente tumultuada, que caminha pra ter dois protagonistas (Bolsonaro e Lula) que são antagonistas e que despertam muitas paixões positivas e negativas, essa conjuntura gera um caldeirão que acaba diminuindo o componente de uma eleição que seria normal ou racionalizada.

Isso acaba sendo muito bom pro Bolsonaro em específico. Quanto mais raivosa for a eleição, melhor para ele. Porque a gente tem certeza de que os apoiadores do Bolsonaro vão às urnas. A gente não tem certeza se os eleitores nem-nem, que não sejam nem Bolsonaro nem Lula, vão comparecer à cabine de votação.

E tem outras variáveis como por exemplo o voto envergonhado. Aquelas pessoas que não dizem nas pesquisas que votam em Bolsonaro (mas na urna votam). Então, é importante levar todos esses elementos em consideração quando tentamos estabelecer uma compreensão responsável do processo eleitoral e não meramente aquilo que se deseja que seja o processo eleitoral.

BBC News Brasil - Os grupos de WhatsApp e Telegram são canais em que Bolsonaro se comunica com uma base mais fiel e radicalizada. A princípio, esse público não é suficiente para elegê-lo. Qual a importância de ter essa base radicalizada e o que ele precisa fazer pra conquistar apoio fora dela?

Souza - Creio que tem dois elementos importantíssimos nessa construção da persona política do Bolsonaro. A gente vai ter um Bolsonaro do WhatsApp, do Telegram, o Bolsonaro do YouTube, que fala para a base. E essa base é muito importante porque é o ponto de partida dele, a base que pode empurrá-lo ao segundo turno.

De outro lado, teremos um outro Bolsonaro que vai tentar ser mais palatável pra determinados pedaços da sociedade. E aqui tem um elemento que não se pode esquecer: a sociedade brasileira é em grande parte composta por pessoas conservadoras.

E onde essas duas linhas se encontram? Na junção entre a capacidade que os grupos de WhatsApp e Telegram tenham de produzir conteúdo e de manter essa base de apoio agregada, e o fato de que alguns desses conteúdos sejam palatáveis o suficiente pra atingir os concorrentes de Bolsonaro do ponto de vista eleitoral, como requentar as denúncias do Lula acerca de corrupção, falar de alguma característica de caráter do Ciro Gomes, ou fazer algum tipo de ataque a um outro candidato, como Eduardo Leite (governador do Rio Grande do Sul pelo PSDB), João Dória (governador de São Paulo pelo PSDB), (ex-ministro da Saúde, do DEM, Luís Henrique) Mandetta, quem quer que seja.

O entroncamento desses dois elementos me parece criar uma lógica e uma ação que o grupo do presidente hoje acredita que seja o suficiente pra requentar alguns elementos da narrativa de 2018, sobretudo a ideia de que Bolsonaro é um mártir diante de um sistema que é muito corrupto, que é muito pouco engajado na transformação do país, e ele pode usar isso com um mix de "olha, mesmo diante de todas essas dificuldades, nós entregamos algumas reformas".

Para o governo, hoje mais importante do que uma reforma (econômica) que seja boa, é ter reformas. Porque o governo precisa dizer para atores de mercado, para determinados atores da sociedade, que as reformas foram entregues. Se elas vão precisar ser refeitas em 2023 ou não, isso acaba se tornando uma questão menor.

Nesse aspecto, ele tem tido grande apoio do (presidente da Câmara dos Deputados) Arthur Lira (PP-AL), mas de outro lado tem-se uma dificuldade pra que se avance no Senado. Por exemplo, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA) deixou muito claro que a reforma do Imposto de Renda não vai avançar e que o governo tem outras alternativas pra prorrogar o auxílio emergencial que não envolvam necessariamente rebatizar o Bolsa Família.

BBC News Brasil - O governo não conseguiu até o momento criar um programa para substituir o Bolsa Família, ao mesmo tempo que desemprego e inflação seguem altos. A economia e a atuação do governo na pandemia são fatores que dificultam a reeleição?

Souza - Sendo bem pragmático, eu creio que a pandemia não será o principal tema da eleição. A vacinação vai avançar, devagar os casos tendem a se reduzir e talvez a gente não tenha (em 2022) uma grande reflexão sobre o que foi a pandemia, sobre o papel do governo. Talvez o timing nesse aspecto da pandemia vai ser mais gentil com Bolsonaro do que foi com (o ex-presidente americano Donald) Trump por exemplo. O Trump entrou no processo eleitoral no meio da tempestade da pandemia. O Bolsonaro vai conseguir se distanciar disso.

Agora, o desemprego, o retorno da fome, a inflação: tudo isso gera uma enorme dificuldade para Bolsonaro. O que o presidente tem feito é jogar a conta da inflação no "fique em casa durante a pandemia". Me parece ser uma manobra muito difícil, mas não é uma manobra que não possa colar. Não podemos trabalhar com a ideia de que o eleitor é invulnerável a percepções que nós não consideremos objetivas da realidade. Temos que lembrar que, no fim das contas, muita gente tomou cloroquina e outros medicamentos que não tinham comprovação científica alguma. Isso acontece.

É uma estratégia que existe desde o primeiro dia de governo: tudo aquilo que é bom é sempre responsabilidade do Bolsonaro, e tudo que está errado ele sempre transfere o ônus. O presidente vai tentar terceirizar o ônus para os governadores e pros concorrentes políticos que foram favoráveis a medidas mais restritivas durante a pandemia.

A questão é: vai colar? Isso depende da capacidade que o governo tem de por dinheiro na mão das pessoas, principalmente dos mais pobres, que são os que decidem a eleição. Vai depender de conseguir reativar o auxílio emergencial (previsto para acabar em outubro) ou ampliar o Bolsa Família.

BBC News Brasil - A vitória do presidente em 2018 é em boa parte atribuída ao antipetismo, que teria levado pessoas moderadas a votar em Bolsonaro. Esse fator perdeu força agora, dificultando a reeleição?

Souza - Me parece que o antipetismo é uma força de longa duração, assim como o petismo. O sistema político brasileiro da redemocratização é povoado por partidos fisiológicos, os partidos não são orgânicos. Você não vê uma pessoa na rua entusiasmada com uma bandeira do MDB ou do DEM, por exemplo. Já os partidos que são mais orgânicos em sua maioria são nada competitivos. E você tem uma exceção: o PT conseguiu se construir como um partido orgânico e competitivo.

Isso gerou dois elementos muito importantes. O primeiro é dentro do DNA do PT uma lógica de hegemonia. O PT quer ser um partido hegemônico. E os militantes do partido acreditam piamente que tenham direito a essa conquista hegemônica porque são o partido mais orgânico da República.

O segundo elemento é que, como não há uma cultura de vida partidária na sociedade civil como um todo, você desperta encantamento e estranhamento. Esse estranhamento se cristalizou numa lógica de antipestismo que vem mesclada com reminiscências de conservadorismo da sociedade, da ideia de que o PT é um partido comunista e coisas do gênero, que são anteriores até ao próprio partido.

Então eu creio que, assim como o petismo conseguiu sobreviver, saiu ferido mais saiu vivo de toda essa crise que vem de 2013 até 2016, o antipetismo é uma força de permanência.

Durante muito tempo se criou a ideia de que o PSDB era o partido orgânico do antipetismo, e o Bolsonaro veio pra destruir isso. O Bolsonaro elevou o antipetismo a um novo patamar. Ele conseguiu dizer: "o problema é que falta alguém que tenha coragem de dizer o que deve ser dito acerca desses caras. Eu vou dizer". Ele disse e foi bem-sucedido.

A questão é que hoje tem um antipetismo que está cristalizado no Bolsonaro, mas esse anti bolsonarismo está cristalizado no PT? Talvez essa seja a pergunta de um milhão de dólares pra eleição do ano que vem. Um cenário que no segundo turno teremos Lula contra Bolsonaro não será uma eleição de escolha positiva, será uma eleição em que a rejeição vai dizer mais que a aceitação. Com o retrato que nós temos hoje, provavelmente o Bolsonaro tem um problema, que é o fato de que ele tem mais rejeição que o Lula (segundo as pesquisas atuais).

O antipetismo é uma força de longa duração e o PT trabalha muito pouco com a ideia de reduzir essas arestas. Acaba, em algum sentido, sendo cômodo também para o partido trabalhar com a ideia de que eleitores que não gostam dele são moralmente não comprometidos com uma transformação social. Assim, os coloca em um ponto de vilania. Isso é parte do processo também.

BBC News Brasil - A principal aposta dos potenciais candidatos da terceira via hoje parece ser o derretimento de Bolsonaro e a possibilidade de uma dessas alternativas disputar o segundo turno com Lula. É um cenário provável ou estão subestimando o presidente?

Souza - Eu creio que todo mundo subestima o Bolsonaro. O Lula subestima o Bolsonaro. Quem está com o Bolsonaro subestima o Bolsonaro. Quem quer fazer terceira via subestima o Bolsonaro. E uma característica bem importante do Bolsonaro como persona política é o fato de que ele chegou onde está com todo mundo o subestimando.

Todo mundo acha que não vai dar em nada, que o Bolsonaro de fato não é uma ameaça ou que ele vai estar sob controle de alguém. E ele vai galgando as posições e assim ele chegou à Presidência da República. Assim ele vai finalizar provavelmente o mandato sem impeachment, assim ele pode inclusive ser reeleito presidente da República.

Para além disso, eu creio que para a terceira via está faltando mensagem. Sem uma mensagem você não tem voto.

E aí, por exemplo, caso o (apresentador José Luiz) Datena saia candidato pelo União Brasil (partido que será criado com a fusão de DEM e PSL) ou que a gente imagine um cenário de uma chapa do Eduardo Leite com Datena, com um monte de dinheiro, tempo de TV (para propaganda eleitoral), possibilidade de fazer um monte de coisa, mas isso não necessariamente significa que você consegue entregar algo, porque no fim você precisa de uma mensagem.

E nós aqui (na consultoria política Dharma) acreditamos que essa mensagem vai estar num tripé que envolva melhoria econômica, qualidade de política pública e, em específico, o tema saúde. A covid vai ter um elemento nisso, mas a reflexão sobre o SUS vai ser um elemento importante também.

Nesse aspecto, me parece que Bolsonaro, numa manobra muito arriscada, vai se negar a discutir vários desses temas e vai insistir na ideia do anticorrupção, de "não tem escândalo no meu governo". Ele ganhou uma eleição negando os debates, então isso pode funcionar de novo, não se pode descartar isso.

O Lula vai trabalhar muito com a memória (do seu governo), e essa terceira via, os candidatos que queiram esse voto nem-nem, vão ter que entregar alguma coisa, trazer uma mensagem bem construída.

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BBC News Brasil - Esse cenário de predominância da preocupação econômica na eleição, do aumento da miséria, parece ser um cenário que favorece Lula a trabalhar com a memória do seu governo. Qual seria a fraqueza dele, algo que pode atrapalhar esse caminho?

Souza - Eu creio que o grande inimigo na candidatura do ex-presidente Lula será certamente todo o imbróglio que envolve a Lava Jato. Por mais que o ex-presidente e o partido hoje tenham uma narrativa de dizer que Lula foi inocente, para um número considerável de eleitores isso é uma história muito confusa, muito mal explicada. Muito provavelmente todos os inimigos de Lula farão uso disso de forma muito forte porque o líder da corrida eleitoral sempre é o alvo preferencial.

O Bolsonaro vai tentar tirar uma casquinha, o Ciro vai tirar uma casquinha, o candidato do PSDB vai tirar uma casquinha. É isso, o Lula vai virar a grande vidraça, cada outro candidato vai dar sua tijolada. E talvez por isso o Lula esteja sendo até aqui, muito inteligentemente, bastante parcimonioso em termos de exposição. O Lula não tem ido pra manifestações de rua, ele tem tentado manter uma variável de controle em que ele só dialogue em espaços em que sabe que mesmo quando vier alguma crítica, essa crítica vai ser muito tranquila.

Então, o grande obstáculo pra ele será como lidar com esse passivo. Pra uma parte da sociedade, o Sérgio Moro ainda é um herói nacional. E você precisa de todos os votos possíveis. Não é uma eleição em que as pesquisas estão dizendo que o Lula leva no primeiro turno. Muito provavelmente vai ser uma eleição muito acirrada, com muito tumulto e alguma instabilidade.

BBC News Brasil - Então, embora exista um discurso de que Bolsonaro é autoritário e de que tem que haver uma união das forças democráticas contra ele, na prática Lula, por ser o líder das pesquisas, pode virar o alvo preferencial?

Souza - E esse me parece ser um ponto bem interessante. Em algum sentido, essa fraqueza aparente do Bolsonaro dá a impressão de que qualquer outro candidato pode derrotá-lo, e esse é o principal vetor que impede a construção de qualquer tipo de coalizão. E essa é a melhor chance do Bolsonaro.

Quanto mais fragmentada for essa oposição, quanto mais candidatos existirem, melhor pro Bolsonaro, porque o Bolsonaro tem uma base concentrada de votantes. Se os (demais) votos estiverem muito diluídos em outros nomes, ele está no segundo turno. E segundo turno é aquele negócio que a gente não sabe como termina, é muito difícil pra um candidato em reeleição perder em segundo turno. Esse é um ponto muito crítico e muito importante da conjuntura do ano que vem.

Mariana Schreiber - @marischreiber, de Brasília para a BBC News Brasil, em 16.10.21.