segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Luciano Hang, o empresário patriota que dribla os impostos no Brasil

Investigação feita pelo EL PAÍS nos arquivos do ‘Pandora Papers’ revelou que o empresário manteve por quase vinte anos uma empresa em um paraíso fiscal no valor de 112,6 milhões de dólares.

O empresário bilionário brasileiro Luciano Hang (Brusque, 58 anos) se define como “patriota que luta pelo Brasil” em sua conta no Instagram. Dono de uma fortuna de 14,3 bilhões de reais, segundo a revista Forbes, Hang orgulha-se do número de empregos que gera no Brasil por meio de sua rede varejista, a Havan. Também é dono de agência de publicidade, postos de gasolina e até usina hidrelétrica. Hang adota um guarda-roupa verde e amarelo espalhafatoso para provar seu amor à pátria. O empresário só não se veste de patriota quando o assunto é o retorno que os impostos podem proporcionar ao país.

Uma investigação feita pelo EL PAÍS e outros veículos brasileiros nos arquivos do Pandora Papers revelou que o empresário manteve por quase vinte anos uma empresa em um paraíso fiscal, no valor de 112,6 milhões de dólares, conforme constava em um extrato de outubro de 2018 (cerca de 416 milhões de reais na época). Por todo esse tempo, Hang não comunicou ao Governo brasileiro sobre a existência de sua empresa, o que configura crime de sonegação fiscal. Os arquivos do Pandora Papers reúnem 11,9 milhões de documentos confidenciais de 14 sociedades de advogados do Caribe, Singapura, Hong Kong, Chipre, dentre outros paraísos fiscais ao redor do mundo.

A empresa de Hang no exterior atende pelo simpático nome de Abigail Worldwide. É por meio dela que o dono da rede de varejo Havan faz seus investimentos no Brasil e em outros países, com uma vantagem que poucos têm: pagar pouco ou quase nada de impostos. Isso porque Abigail está registrada nas Ilhas Virgens Britânicas, um paraíso fiscal. Ao todo, foram quase vinte anos economizando em tributos que ele pagaria se tivesse esse mesmo dinheiro aplicado no Brasil, que poderiam chegar a até 34%, dependendo da renda. A Receita Federal brasileira considera paraísos fiscais os locais que tributam a renda com alíquota inferior a 20% ou cuja legislação protege o sigilo sobre a composição societária das empresas. Na lista de mais de 60 países que respondem a esses critérios estão as Ilhas Virgens Britânicas, onde a Abigail foi aberta.

Os investimentos da Abigail estão principalmente em ações e títulos de dívida (debêntures) de empresas, muitas delas brasileiras, como Vale, Petrobras e Natura.

Mas se Hang é exibicionista em tudo que o diz respeito à Havan, o mesmo não se pode dizer de sua relação com a Abigail. Embora ela esteja com o empresário desde 1999, só foi apresentada ao Brasil em 2020, quando Hang decidiu lançar um ambicioso plano de abertura de capital da Havan, em plena pandemia. Foi nesse momento que os investidores brasileiros souberam que Abigail integrava o patrimônio da varejista Havan desde 31 de outubro de 2016. Com um dote atualizado em 478,5 milhões de reais (conforme a cotação do dólar de junho de 2020), como consta no prospecto de abertura para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Não há nada de errado legalmente com a Abigail. No mundo dos investidores ela é conhecida como empresa de prateleira (shelf company, no termo em inglês), ou seja, uma companhia aberta em paraíso fiscal, que pode ficar até anos sem atividade à espera de alguém que lhe dê um destino. São compradas por pessoas que têm uma certa pressa de ter uma empresa no exterior — para fechar acordos ou receber pagamentos com clientes estrangeiros, por exemplo —, pois são constituídas num prazo mínimo, em até 48 horas. Mas também são alvo de quem precisa dar uma cara de antiguidade ao seu negócio, já que algumas estão abertas há anos. Era o caso da Abigail, que permaneceu por três anos na prateleira. Foi aberta em 07 de outubro de 1996 em outro paraíso fiscal, na ilha de São Cristóvão e Neves, já com esse nome de origem hebraico, que batizou mulheres especialmente nos anos 50 no Brasil.

A Abigail cruzou o caminho de Hang em 1999, quando os negócios da Havan começaram a ter problemas na Receita Federal. A intermediadora da negociação de compra da offshore foi a Trident Trust, companhia que tem braços em diversos paraísos fiscais e oferece soluções discretas para pessoas ou organizações que querem manter suas atividades ocultas, segundo fontes do mercado. É um serviço análogo ao prestado pela Mossack Fonseca, o escritório de advocacia panamenho que ficou famoso após ter seus documentos revelados pela imprensa mundial em 2016, no que ficou conhecido como Panamá Papers.

Na época em que Hang comprou a Abigail, ele era investigado por suspeita de sonegação de impostos na Havan. A rede crescia a olhos vistos no mercado brasileiro. Inaugurada em 1986 numa saleta de 45 metros quadrados, no pequeno município de Brusque, no sul do país, a Havan se transformou na rede que hoje contabiliza 163 lojas físicas, em 18 dos 27 estados brasileiros. Soma mais de 22.000 colaboradores.

Uma importação ilegal chamou a atenção do Ministério Público de Santa Catarina, que passou a monitorar o empresário desde o início dos anos 1990, conforme explica a procuradora da República Ela Wiecko. À época, Wiecko era subprocuradora do MP de Santa Catarina e integrava a equipe que investigava os movimentos de Hang. Havia indícios de que a empresa não emitia notas por todos os produtos que vendia em suas lojas. O lucro dessa operação — ou seja, o dinheiro não declarado ao fisco — poderia estar seguindo para o exterior, o que poderia explicar a origem do caixa da Abigail. No entanto, não é possível saber de onde surgiu o dinheiro investido. A reportagem procurou o empresário, que não respondeu a esses questionamentos.

Cerco da Justiça

Luciano Hang chegou a responder na Justiça pela acusação de ter simulado vendas da Havan, mentido em seus livros contábeis, falsificado notas, fraudado o fisco e criado contratos sociais “que não correspondiam à realidade”, de acordo com os autos. Após uma investigação iniciada em 1999, foi autuado em 117 milhões de reais pela Receita Federal e em 10 milhões de reais pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Porém, escapou por meio de um programa de refinanciamento que permitiu que pagasse a dívida de quase 130 milhões de reais na época, em suaves prestações.

Esse acordo se tornou parte do folclore jurídico, já que seriam necessários 115 anos para que o empresário quitasse sua dívida com o fisco. A ação penal acabou sendo considerada nula após a 1a Vara da Justiça Federal em Itajaí julgar a denúncia inepta em 2008 por falta de provas. Ao EL PAÍS, Wiecko afirma que “é possível afirmar que a Havan estava enviando dinheiro para o exterior” naquela época. Em outros processos também por evasão de impostos, Hang chegou a ser condenado à prisão. Após sucessivos recursos, no entanto, escapou porque o tempo do processo prescreveu na Justiça.

Embora o cerco se fechasse sobre os negócios do empresário, o MP nunca detectou a existência da Abigail no paraíso fiscal. Foi somente ao flertar com o mercado de capitais, quando protocolou a abertura de capital da Havan, que Hang tomou o cuidado de apresentar a Abigail para a Receita Federal. Ele se beneficiou da lei de repatriação de recursos, sancionada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2016. A lei ofereceu as condições mais favoráveis possíveis para quem tinha dinheiro não declarado no exterior e queria legalizá-lo: redução de taxas e multas, que até então poderiam chegar a até 150% do valor não declarado, para apenas 30% sobre o montante total.

Dados do Banco Central mostram que o programa de repatriação fez com que dobrasse o número de pessoas que declararam possuir dinheiro no exterior. Nessa operação, ingressaram no país cerca de 10 bilhões de dólares que viviam à sombra da legalidade. O saldo da Abigail fazia parte desse montante. Seus anos de ostracismo, porém, pesaram na avaliação do mercado diante das ambições de Hang de abrir o capital da rede fundada por ele.

Ainda que no papel a Havan apresente bons resultados — o balanço da empresa anuncia que faturou 10,5 bilhões de reais em 2020, com crescimento de 16,6% do lucro líquido — , isso não convenceu potenciais investidores, que analisaram os números da empresa na sua primeira tentativa de abertura de capital, em outubro do ano passado. Vários problemas foram apontados, a começar pela aparição repentina de Abigail.

A empresa levantou dúvidas. Por qual razão incorporar uma companhia que mantém recursos tão altos em um paraíso fiscal? Por que investir em outros negócios que não sua própria empresa? À reportagem, Hang afirmou que “a Havan realiza investimentos diversificados e os mesmos encontram-se abarcados pela legislação brasileira. Não havendo nenhum tipo de irregularidade nisso”. Por meio de sua assessoria de imprensa, o empresário também disse que “como a empresa promove importações, os investimentos em moeda estrangeira proporcionam uma cobertura natural para a empresa, trazendo proteção para o negócio, tendo em vista a oscilação do câmbio mundial”.

Em um momento em que as instituições buscam cumprir princípios cada vez mais rígidos de boa governança, essas dúvidas acenderam um alerta no mercado. O empresário percebeu o incômodo dos investidores, que não aceitaram avaliar a Havan em 100 bilhões de reais, como ele esperava. E acabou desistindo de levar adiante, ao menos por enquanto, a ideia de ter sua empresa cotada na bolsa. Também pesou contra Hang as ações na Justiça mencionadas no próprio plano de abertura de capital. O Ministério Público do Trabalho acusa o empresário de ter coagido seus funcionários a votarem em Jair Bolsonaro em 2018. Aos investidores, a Havan informou que, caso perca o processo, terá de pagar 25 milhões de reais.

Aos 3,8 milhões de seguidores nas redes sociais, porém, Hang faz marketing do empresário bem-sucedido. “Criar emprego, gerar desenvolvimento e trazer alegria para as pessoas, não tem preço”, diz em uma postagem. “O Brasil que queremos só depende de nós”, estampa a camiseta verde e amarela adotada como uniforme por Hang. “Ser empreendedor no Brasil é ser herói”, ele diz em outra publicação, que leva uma foto dele mesmo vestido de super-herói.

O heroísmo de Hang inclui a intimidade com o poder. O empresário propaga as pautas bolsonaristas, como a defesa da cloroquina, o voto impresso, e a falta de uso de máscara. É também alvo de investigação no Supremo Tribunal no inquérito sobre as fake news, para apurar a existência de uma rede de propagação de notícias falsas com o objetivo de realizar ataques virtuais e desestabilizar a democracia do país. 

Também foi parar na CPI da Pandemia por supostamente fazer do gabinete paralelo da Saúde, que orientou Bolsonaro no combate à pandemia, acusado de financiar o movimento contra as medidas adotadas por governadores e prefeitos para conter o avanço do vírus. Chegou a ser questionado pelo relator Renan Calheiros, sobre contas no exterior, o que ele admitiu, mas negou financiar sites de notícias falsas. “Temos contas no exterior, temos offshore, deve ser umas duas ou três, declaradas na Receita Federal, e auditadas”, disse o empresário durante a audiência.

Ele responde ainda no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a uma ação por ter realizado supostos atos de abuso de poder econômico, fraude e ilicitude em captação e gastos de campanha nas eleições de 2018. Hang é acusado de ter financiado disparos de mensagens de WhatsApp em massa para favorecer Bolsonaro. Também fez o chamado “impulsionamento” no Facebook: investiu usando uma ferramenta da própria rede social para que o alcance de sua mensagem pedindo votos para Bolsonaro fosse turbinado, prática considerada ilegal pelo TSE. Hang confirmou à CPI ter impulsionado conteúdo pró-Bolsonaro nas eleições, como mostrou reportagem do EL PAÍS na época. Disse, porém, que não sabia que aquilo era proibido. “Tiramos do ar e pagamos multa”, afirmou.

Na minuta de abertura de capital da Havan, o empresário é colocado como um dos fatores de risco de seu próprio negócio. Ali, é reconhecido que a empresa “poderá ter sua reputação impactada de forma adversa em caso de eventual condenação do senhor Luciano Hang”.

Na investigação do Brasil participaram: Marina Rossi e Regiane Oliveira (EL PAÍS); Anna Beatriz Anjos, Alice Maciel, Yolanda Pires, Raphaela Ribeiro, Ethel Rudnitzki e Natalia Viana (Agência Pública); Guilherme Amado e Lucas Marchesini (Metrópoles); José Roberto Toledo, Ana Clara Costa, Fernanda da Escóssia, Allan de Abreu (Piauí); Fernando Rodrigues, Mario Cesar Carvalho, Guilherme Waltenberg, Tiago Mali, Nicolas Iory, Marcelo Damato e Brunno Kono (Poder360). Publicado por EL PAÍS, em 04.10.21.

A um ano das eleições, TSE abre código-fonte da urna eletrônica

Em meio a fake news, tribunal antecipa ato em seis meses. Objetivo é "ampliar a transparência, especialmente quanto à auditabilidade do sistema eletrônico de votação", ressaltou Barroso.

Desde que foi instituído, há 25 anos, nunca houve nenhuma comprovação de fraude do sistema eletrônico de votação

Para fazer frente a fake news que colocam em xeque a credibilidade da urna eletrônica brasileira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) antecipou para esta segunda-feira (04/10) a tradicional cerimônia em que o código-fonte do sistema eleitoral é aberto a interessados.

Isso significa que representantes da sociedade civil podem verificar, conferir, checar e testar o funcionamento das linhas de programação que fazem o software das urnas eletrônicas coletar e apurar os votos dos eleitores brasileiros. Por norma, o TSE abre o código 180 dias de cada pleito, e a realização do evento um ano antes das próximas eleições presidenciais é algo inédito.

Outra diferença é que, ao contrário das edições anteriores, em que apenas representantes de partidos políticos, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) puderam acompanhar o processo, desta vez foram convidadas também entidades como as Forças Armadas, a Polícia Federal, universidades, integrantes da Comissão de Transparência das Eleições — órgão criado pelo TSE — e autoridades de entidades internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Idea Internacional e a União Interamericana de Organismos Eleitorais (Uniore), além de ministros do TSE. 

Segundo informou o TSE, todos os interessados em participar precisavam manifestar interesse prévio, para garantir a organização.

"Abrir o código-fonte significa dar acesso aos comandos primários de um software, que são programados por quem faz sua engenharia. Significa dar acesso a esse script que o software executa. É como mostrar a casa de máquinas para as pessoas verem como funciona o programa", contextualiza o jurista Leopoldo Soares, professor de Direito Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

No código-fonte está tudo o que o programa é capaz de fazer. "A partir da análise dele, é possível eliminar qualquer hipótese de malícia, tudo o que não esteja ali descrito", afirma Soares. "Há quem alegue que é possível fraudar a urna eletrônica para que quando se digite o número X, apareça na tela o número X, mas o voto seja computado para o candidato Y. Para que isso aconteça, é preciso haver um comando específico no software. Abrir o código significa possibilitar essa verificação."

"O código-fonte é a linguagem de programação em seu estado bruto", define o jurista Henrique Neves da Silva, ex-ministro do TSE e atual presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral. "Ou seja, [com a abertura aos interessados] a Justiça Eleitoral permite que sejam analisados todos os comandos e linhas do programa."

"A regra previa o acesso ao código seis meses antes da eleição, mas por causa do tumulto que tem sido causado aí nos últimos meses, colocando em dúvida a lisura do processo eleitoral, a honestidade e a transparência da urna eletrônica, a Justiça Eleitoral resolveu antecipar", acrescenta o jurista Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral. 

"Quem quiser criticar, reclamar, desconfiar, tem agora a melhor oportunidade para investigar isso. Vai ter acesso ao código-fonte e vai poder criticar tecnicamente", diz Rollo. "Porque a Justiça Eleitoral não quer fofoca, quer críticas técnicas, construtivas. E se alguma dessas críticas for correta haverá tempo para corrigir eventuais falhas, eventuais problemas."

O sistema de votação eletrônico

O sistema de votação eletrônico brasileiro foi desenvolvido em 1995 por uma comissão que unia pesquisadores e técnicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), de São José dos Campos. No ano seguinte, a votação já ocorreu por meio das urnas em 57 municípios, mas foi apenas no ano 2000 que todo o território nacional usou o sistema. 

Diversos mecanismos de segurança foram desenvolvidos para garantir a lisura do processo e, ao mesmo tempo, auditorias que se fizerem necessárias. Atualmente, são mais de 30 "lacres", entre códigos criptográficos e protocolos de segurança. E a urna funciona completamente off-line, também para ficar protegida de tentativas de invasão — somente após a votação, os resultados de cada uma delas são transmitidos, via rede, para a apuração consolidada. 

"O funcionamento off-line é um dos pontos que garantem a segurança", afirma Soares. "Sem conexão à internet, a urna não pode sofrer nenhum ataque hacker, nada que venha pela rede. Dito isso, qual seria a única vulnerabilidade? Uma malícia no programa que processa os votos. Daí essa possibilidade de verificação do código-fonte é o que fecha a conta da segurança do sistema."

"A análise completa dos programas permite verificar a sua funcionalidade e certificar a ausência de qualquer código malicioso", completa o ex-ministro Neves da Silva. 

Transparência ampliada

O TSE não esconde que está preocupado em enfatizar, justamente para combater fake news e teorias conspiratórias, que o processo é transparente e correto. O evento desta segunda-feira foi chamado de abertura do "Ciclo de Transparência Democrática - Eleições 2022". Oficialmente, o tribunal divulgou que está "reafirmando o compromisso com o fortalecimento da democracia brasileira e com os eleitores e as eleitoras do Brasil".

"A proposta de antecipação do evento de acesso aos sistemas eleitorais desenvolvidos pelo TSE se justifica com o intuito de aperfeiçoamento das boas práticas e da necessidade de se ampliar a transparência do processo eleitoral, especialmente quanto ao processo de desenvolvimento e auditabilidade do sistema eletrônico de votação", ressaltou o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE.

"O fato de o TSE abrir o processo mais cedo significa que a Justiça Eleitoral está preocupada em demonstrar para a sociedade que não há nada secreto na elaboração do programa", pontua Rollo. "Ao permitir o acesso ao código, a Justiça Eleitoral mostra como é feito [o software] e que não existe a mínima possibilidade de fraude. O objetivo é dar total transparência."

Na resolução do tribunal que aprovou essa antecipação do processo, as justificativas são o aumento da transparência e o aprimoramento do processo eleitoral. "Isso me parece bastante pertinente", avalia Soares. “A despeito dos ataques à urna eletrônica e das afirmações de que ela não seria segura, um sistema sempre comporta aprimoramento."

“[A antecipação, contudo] vem como resposta a esse conjunto de ataques generalizados à votação eletrônica. O TSE resolveu responder normativamente e juridicamente a esses ataques ampliando o prazo e dando mais possibilidades de averiguação", completa o jurista.

"Justamente para ter argumento, se lá na frente alguém aventar alguma hipótese de fraude. O tribunal terá como responder que não só houve a possibilidade de verificar o código-fonte como o período para isso foi ampliado."

Desde que foi instituído no Brasil, há 25 anos, nunca houve nenhuma comprovação de fraude do sistema eletrônico de votação. "A urna eletrônica brasileira é 101% segura", comenta Rollo.

Deutsche Welle Brasil, em 04.10.21

Merkel faz apelo à defesa da democracia

No 31º aniversário da reunificação da Alemanha, a chanceler federal Angela Merkel, disse que os alemães precisam continuar trabalhando pela democracia.

 "Às vezes damos a democracia como certa, como se não houvesse mais nada a fazer. [Mas] a democracia não está aí simplesmente. Devemos trabalhar juntos pela democracia, repetidamente, todos os dias." (03/10)

Deutsche Welle Brasil, em 03.10.21

Pandora Papers: como os poderosos escondem sua riqueza

Vazamento de documentos lança luz sobre uso de paraísos fiscais por políticos e empresários para escapar de impostos e ocultar riqueza. Ministro Paulo Guedes e líderes da Jordânia e Azerbaijão são citados.

Milhões de documentos vazados de escritórios administradores de offshores jogaram luz sobre os segredos financeiros de políticos - incluindo líderes mundiais -, ministros, empresários e celebridades que usam paraísos fiscais para movimentar secretamente grandes somas de dinheiro e assim escapar de impostos e do olhar da opinião pública, ou, em alguns casos, ocultar fortunas obtidas ilegalmente.

Uma investigação com base no vazamento, realizada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) em conjunto com 150 veículos de notícias - incluindo a DW - revela que mais de 330 políticos de alto escalão e agentes públicos em todo o mundo têm vínculos com contas e empresas offshore.

Os milhões de documentos vazados e examinados pela parceria jornalística mostram até que ponto as operações offshore secretas estão emaranhadas na política financeira global, algumas vezes beneficiando justamente personagens que denunciam esses mecanismos.

Os ministros das Finanças do Paquistão e Holanda têm laços com empresas offshore, assim como ex-ministros das Finanças de Malta e da França - incluindo o ex-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) Dominique Strauss-Kahn.

No caso do Brasil, o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, aparecem ligados a offshores nas Ilhas Virgens Britânicas e no Panamá. No caso de Guedes, segundo a revista Piauí, trata-se de um offshore que continuou ativo mesmo depois de o economista assumir um cargo-chave no governo.

De acordo com a publicação, Guedes aportou na conta offshore entre 2014 e 2015 US$ 9,55 milhões (valor que no câmbio atual corresponde a R$ 51 milhões). O ministro respondeu de modo vago aos questionamentos da revista, afirmando que "sua atuação sempre respeitou a legislação aplicável e se pautou pela ética e pela responsabilidade".


O ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, movimentou quase 10 milhões de dólares em paraíso fiscal

Hipocrisia

De acordo com o ICIJ, os Pandora Papers mostram que detentores do poder que poderiam ajudar a pôr fim ao sistema offshore estão se beneficiando dele - escondendo ativos e fundos em empresas secretas, enquanto seus governos fazem pouco para desacelerar um fluxo global de dinheiro ilícito que enriquece criminosos e empobrece nações.

O ex-primeiro-ministro do Reino Unido Tony Blair, por exemplo, denunciou a evasão fiscal por décadas, mas os vazamentos revelam que ele e sua esposa adquiriram um prédio de US$ 8,8 milhões por meio de uma empresa imobiliária offshore da família do ministro do Turismo de Bahrein, Zayed bin Rashid al-Zayani.

Ao comprar as ações da empresa offshore detentora do imóvel - e não o prédio diretamente - Blair e sua esposa, Cherie, conseguiram evitar o pagamento de impostos sobre transações imobiliárias que poderiam chegar a US$ 400.000.

Tanto os Blairs quanto os al-Zayanis disseram que inicialmente não sabiam sobre o envolvimento um do outro no negócio. Cherie Blair disse que seu marido não se envolveu diretamente na transação. 

O primeiro-ministro tcheco, Andrej Babis, um bilionário que chegou ao poder em 2017 com a promessa de combater a corrupção, também é citado nos Pandora Papers.

Os registros vazados mostram que, em 2009, Babis injetou US$ 22 milhões em uma série de empresas de fachada para comprar uma mansão com duas piscinas e um cinema na Riviera Francesa, perto de Cannes. O site Investigace.cz apontou que as empresas offshore e a residência não estavam listadas nas declarações de bens que Babis apresentou quando se candidatou. Babis não respondeu aos questionamentos enviados pela imprensa.

O ex-premiê britânico Tony Blair escapou de pagar centenas de milhares de libras em impostos ao usar uma offshore

Ex-repúblicas soviéticas

O presidente da Ucrânia,  Volodimir Zelenski, também possuía uma participação em uma empresa de fachada registrada nas Ilhas Virgens Britânicas. Um mês antes de sua vitória na eleição presidencial de abril de 2019, o ator que virou político vendeu silenciosamente suas ações da Maltex Multicapital Corp. para Serhiy Shefir, um amigo próximo.

Um documento de junho de 2019 mostra que Shefir, um importante assessor presidencial que sobreviveu a uma tentativa de assassinato em setembro, manteve sua participação na Maltex Multicapital Corp depois de ingressar no governo de Zelenski.

Shefir e Zelenski não responderam aos questionamentos dos parceiros do ICIJ.

O presidente russo, Vladimir Putin, que regularmente é acusado de manter uma fortuna secreta, não aparece nos arquivos dos Pandora Papers. Mas os nomes de vários amigos próximos do presidente constam nos vazamentos, incluindo seu melhor amigo de infância - o falecido Petr Kolbin - a quem os críticos apelidavam de "a carteira de Putin".

Membros da família e pessoas próximas do presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, também aparecem envolvidos com empresas offshore que realizaram negócios imobiliários no Reino Unido que movimentaram mais de 400 milhões de libras.

O premiê tcheco Andrej Babis usou uma offshore para comprar - e ocultar - uma propriedade milionária na França

Líderes africanos, realeza árabe

Já o presidente Uhuru Kenyatta, que vem de uma das dinastias políticas mais conhecidas do Quênia, liderou uma campanha em 2013 com discursos anticorrupção e por mais transparência na política. Mas registros vazados mostram que Kenyatta e sua mãe são beneficiários de uma fundação secreta sediada no Panamá.

Outros membros da família, incluindo três irmãos, possuem cinco empresas offshore com ativos no valor de mais de US$ 30 milhões, de acordo com os registros.

Os Pandora Papers revelam os verdadeiros proprietários de mais de 29 mil empresas offshore. Algumas delas são usadas para ocultar contas bancárias secretas, jatos particulares, iates, mansões e obras de arte de artistas como Picasso e Banksy.

O rei Abdullah 2º da Jordânia, por exemplo, comprou em 2011 três mansões à beira-mar por US$ 68 milhões em Malibu, nos EUA, usando empresas offshore justamente quando seu país passava pela Primavera Árabe, quando os jordanianos foram às ruas para protestar contra a corrupção e o desemprego.

Ao todo, o rei  aparece ligado a 30 empresas que adquiriram 14 propriedades de luxo nos EUA e Reino Unido por mais de US$ 106 milhões.

Os documentos secretos também revelaram que a princesa Lalla Hasnaa do Marrocos é proprietária de uma empresa de fachada que adquiriu uma casa de US$ 11 milhões em Londres. Hasnaa fez a compra com fundos da família real marroquina, de acordo com os documentos, que indicaram sua ocupação como "Princesa".

Mohammed bin Rashid Al Maktoum, o primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos e emir de Dubai, era acionista de três empresas registradas em paraísos fiscais.

Já o emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani, continua a usar empresas offshore para fazer investimentos e administrar seu patrimônio. A investigação do Panama Papers já havia revelado que seu iate de US$ 300 milhões era administrado por meio de empresas offshore.

O presidente do Quênia, Uhuru Kenyatta. Sua família possui milhões de dólares em contas offshore

Celebridades

A cantora colombiana Shakira e a ex-estrela indiana do críquete Sachin Tendulkar, também são nomes ligados a ativos offshore. O advogado de Shakira disse que as contas offshore da cantora foram declaradas e que não oferecem nenhuma vantagem fiscal. O advogado de Tendulkar disse que o investimento do jogador de críquete é legítimo e foi declarado às autoridades fiscais. 

O líder populista tcheco Babis não é o único bilionário com negócios em paraísos fiscais: mais de 130 empresários da Turquia, Rússia, Índia, Estados Unidos, México, entre outras nações, têm laços com contas offshore.

O bilionário turco e magnata da construção Erman Ilicak tinha ligações com duas empresas offshore registradas em nome de sua mãe em 2014. Ambas detinham ativos do conglomerado de construção da família.

Uma delas, a Covar Trading Ltd., obteve US$ 105,5 milhões em receitas de dividendos durante seu primeiro ano de operações. O dinheiro ficou guardado em uma conta na Suíça - mas não por muito tempo.

No mesmo ano, mostram documentos, a empresa direcionou quase todo o valor de US$ 105,5 milhões como "doação" listada em "despesas extraordinárias". As declarações não indicam quem recebeu o dinheiro. Ilicak não respondeu aos questionamentos do ICIJ.

A empresa do magnata turco, a Rönesans Holding, foi responsável pela construção do palácio presidencial de 1.150 cômodos para o líder de seu país, Recep Tayyip Erdogan.

A construtora de Erman Ilicak foi responsável por erguer o palácio do autocrata turco Recep Erdogan

Por que os paraísos fiscais são problemáticos

Assim funcionam as empresas offshore: muitas vezes, por apenas algumas centenas de dólares, consultores podem ajudar os clientes a criar uma empresa offshore cujos verdadeiros proprietários permanecem em segredo.

E, por uma taxa de US$ 2.000 a US$ 25.000, eles podem estabelecer um fundo que, em alguns casos, permite que seus beneficiários controlem seu dinheiro, embora não sejam legalmente responsáveis ​​por suas ações. Vários mecanismos também ajudam a proteger os ativos de credores, autoridades policiais, cobradores de impostos e ex-cônjuges.

Possuir contas ou empresas offshore e conduzir transações financeiras por meio de paraísos fiscais é perfeitamente legal em muitos países - mas a prática é encarada cada vez mais como problemática.

Muitas pessoas que usam essas empresas dizem que elas são necessárias para operar seus negócios com eficiência. Os críticos, no entanto, apontam que os paraísos fiscais e as operações offshore devem ser monitorados mais de perto para combater a corrupção, a lavagem de dinheiro e a desigualdade global.

De acordo com Gabriel Zucman, especialista em paraísos fiscais e professor associado de economia da Universidade de Berkeley, na Califórnia, o equivalente a 10% do PIB mundial é mantido em paraísos fiscais em todo o mundo.

Lakshmi Kumar, diretora da Global Financial Integrity, apontou que as táticas dos ricos para esconder dinheiro por meio da evasão fiscal têm um impacto direto na vida das pessoas. "Isso afeta o acesso de seu filho à educação, à saúde e à habitação", disse ela.

Devido à natureza complexa e secreta do sistema offshore, não é possível saber a quantidade exata de riqueza ligada à evasão fiscal e outros crimes. E também saber qual foi o valor efetivamente declarado por detentores de empresas.

O montante total de dinheiro canalizado de países com taxas de impostos mais elevadas para paraísos fiscais com impostos significativamente mais baixos é desconhecido. No entanto, de acordo com um estudo de 2020 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), pelo menos US$ 11,3 trilhões são mantidos "offshore".

Os paraísos fiscais costumam despertar imagens de pequenas nações no Caribe, mas os Pandora Papers mostram que o sistema offshore opera em todo o mundo e em lugares como Cingapura, Holanda, Irlanda, Hong Kong e até mesmo alguns estados dos Estados Unidos.

Como o vazamento ocorreu e foi analisado?

O Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos obteve 11,9 milhões de arquivos confidenciais e liderou uma equipe de mais de 600 jornalistas de 150 veículos de notícias que passaram dois anos examinando os documentos, rastreando fontes e vasculhando registros judiciais e públicos de dezenas de países.

Os dados vazados vêm de 14 firmas de serviços offshore de todo o mundo que abriram empresas de fachada para clientes que muitas vezes procuram manter suas atividades financeiras nas sombras.

Os Pandora Papers estão sendo revelados cinco anos após a investigação histórica do Panama Papers. Em 2016, as revelações deste último caso incentivaram operações policiais e levaram legisladores a aprovarem novas leis em dezenas de países. O caso ainda teve desdobramentos políticos, incluindo a queda dos primeiros-ministros da Islândia e do Paquistão.

Deutsche Welle Brasil, em 04.10.21

Um Poeta

Bonfim Tobias

                                    

                     INSATISFEITO

A insatisfação tão radical,

É uma doença muito curiosa,

Tudo é ruim e tudo é banal,

Até a beleza torna-se danosa!


O amor vira só coisa carnal,

        A mais pura vontade é maliciosa

   E o início bom torna-se final,

Até a freira pura é perigosa!


A insatisfação é uma loucura,

É triste sofrimento p’ra quem tem,

É a verdade caótica e impura


De quem não tem amor e vive sem!

O insatisfeito julga-se perfeito

Co’essa faca cravada no seu peito!

Antecipando o Hidrogênio Verde

 Por Luiz Raimundo Carneiro de Azevedo

Tenho lido e ouvido falar muito bem da futura implantação de Usinas produtoras de Hidrogênio Verde no Nordeste, Maranhão incluso . 

Porque VERDE se existem tantas outras cores? Explicam os doutos 

- “verdes porque produzidos por fontes “ limpas” do tipo eolica, solar e hidráulica .Aceito o argumento. 

Penso então , como antecipar a vinda do tal do Hidrogênio combustível verde? 

A resposta parece óbvia : 

1- Investindo “de com força “nas fontes renováveis ; a Empresa de Planejamento de Energia -EPE sinaliza que até 2035 as fontes eolicas e solar podem responder por 45 % da matriz elétrica brasileira - 

O Nordeste é muito bom de sol e vento e o Maranhão tem tudo para ser bem sucedido nesse mister e também na produção de ETANOL, diz um estudo ( de capa verde) produzido pela ESALQ .                  

2-Os governos , estadual e municipais devem dar o bom exemplo dando prioridade a eficiência energética dentro de padrões internacionais, nos seus novos prédios públicos, principalmente nos itens de Ar condicionado, geladeira e outros que utilizam energia elétrica devem aderir ao padrão PROCEL, evitando-se compras governamentais  fora dos padrões aceitáveis.  

Por outro lado o projeto das instalações elétricas e sanitárias desses próprios deverá obedecer as normas que conduzam a eficiência energética desejada, todos esses expressos com clareza e rigor técnico nos Editais de Licitação A economia nas faturas de energia será relevante.                    

3- De máxima importância o fortalecer do Sistema de gestão integrada dos recursos hídricos, dotando os Comitês de bacias hidrográficas com pessoal técnico e recursos da tecnologia aplicável.  Agora com o 5G e o uso da Inteligência Artificial e da Internet das Coisas ficará mais eficiente e de pronta resposta essa integração racional das bacias hidrográficas, com um bom monitoramento das séries de chuvas, das estatísticas mais confiáveis das vazões dos rios, da poluição dos mananciais e do controle do resfriamento das usinas térmicas. O Agribusiness e a Agricultura familiar serão grandes participes e beneficiários           

4- O Ceará começou muito bem essa trajetória de controle de seus recursos hídricos, lembro das palestras do Engenheiro Ariosto Holanda, no entanto parece agora que vem arrefecendo isto. Soube que as Usinas térmicas PECEM I e II consomem água suficiente para abastecer uma cidade de 600 mil habitantes e é crítica a escassez de água na Bacia do Rio Jaguaribe no Ceará (como o é no Rio São Francisco) fato que gera elevados custos, estes repassados aos consumidores .  

O governo e a indústria do Maranhão devme insistir quanto a : 

1- dotar o Estado de um mapa solar e outro eólico e com essa ferramenta ir a EPE e cooptar empresas do setor a vir até aqui e instalar seus projetos com segurança Jurídica e estabilidade fiscal 

2- Estabelecer uma política de compras amigável com relação a eficiência energética e ao controle das emissões de CO2 , desde o projeto ,no acompanhamento da execução destes e do uso da água nos prédios Públicos  O exemplo vindo de cima   

3- fortalecer os comitês de bacia hidrográfica dotando-os de recursos técnicos e aprimorando seus bancos de dados e monitoramento / controle cada vez mais eficientes   

4- Imitar as experiências exitosas de controle dos usos dos recursos hídricos e aprender com o erro dos outros , por vezes oculta dos e que geraram danos apreciáveis por falta de planejamento e contumaz uso de “soluções emergenciais “  Espero que os próximos dirigentes pensem e ajam nesse senso.

Luiz Raimundo Carneiro de Azevedo é Engenheiro Civl, conselheiro do Brasil Export e consultor da Universidade Ceuma.

Entre a inflação e o marasmo

Baixo dinamismo e inflação elevada deverão marcar 2022, segundo o BC

Juros altos, crédito apertado, economia fraca e inflação elevada durante a maior parte do ano compõem o cenário de 2022 projetado pelo Banco Central (BC). As novas estimativas incluem crescimento econômico de 4,7% neste ano e de 2,1% no próximo. Mas até esse resultado medíocre dependerá, segundo a análise, de condições ainda duvidosas: arrefecimento da crise sanitária, diminuição da incerteza econômica, manutenção do regime fiscal e consumo de eletricidade sem “restrições diretas”. Falta combinar com o presidente Jair Bolsonaro, principal fonte de insegurança econômica e de risco fiscal, isto é, de ameaça à boa gestão das finanças públicas. As projeções aparecem no Relatório de Inflação publicado trimestralmente pelo BC.

Com a retomada econômica neste ano, sobrará em 2022, segundo o relatório, menos espaço para a recuperação cíclica. Além disso, o crescimento será dificultado pelo aperto monetário já em curso – crédito mais curto e mais caro usado como terapia contra a inflação. Ao assinalar esse ponto, os autores do boletim reafirmam, implicitamente, o compromisso de dar prioridade à ação anti-inflacionária, deixando em segundo plano, se necessário, a preocupação com o ritmo dos negócios.

Já iniciado, o aperto deverá continuar nos próximos meses. Os juros básicos, elevados em setembro para 6,25% ao ano, poderão chegar a 8,25% em dezembro e a 8,5% em 2022, segundo projeção do setor privado. Os cenários apresentados no relatório confirmam de forma indireta esse roteiro. Uma previsão de 9% no primeiro trimestre do novo ano circulou no mercado nos últimos dias.

Mesmo com o aperto, a inflação acumulada em 12 meses continuará muito alta durante a maior parte de 2022. Pela projeção central do relatório, a inflação em período anual chegará a 8,5% em dezembro, cairá para 7,3% no primeiro trimestre do próximo ano e ainda estará em 6% no trimestre seguinte. Até o fim do ano a alta dos preços ao consumidor será contida, segundo os cálculos do BC, em 3,7%, pouco acima da meta oficial, fixada em 3,5%.

Também essa trajetória vai depender de algumas condições ainda incertas, como o custo da eletricidade, uma reversão pelo menos parcial dos aumentos de preços internacionais das commodities, uma evolução razoável do dólar, sem novos choques, e menor insegurança quanto à evolução das contas oficiais e, especialmente, da dívida pública.

Se der tudo certo e nenhum choque impedir as condições apontadas no relatório, o Produto Interno Bruto (PIB) terá um crescimento maior que aquele indicado pela mediana das projeções do mercado, de 1,57%, de acordo com o boletim Focus do dia 27, mas ainda muito abaixo dos padrões dos grandes emergentes.

Mas esse crescimento na faixa de 2% a 2,5% corresponde ao potencial brasileiro estimado por instituições internacionais e por muitos analistas brasileiros. Há quem considere mais provável um potencial inferior a 2%, porque há muitos anos o investimento produtivo, no Brasil, tem ficado muito abaixo do necessário para um crescimento sustentável em torno de 4% ao ano.

Pelas estimativas do BC, o investimento em capital fixo – máquinas, equipamentos e construções – diminuiu 0,8% no ano passado, deve crescer 16% neste ano e encolher 0,5% em 2022. Não se espera, portanto, um aumento de capacidade produtiva capaz de permitir uma expansão econômica mais veloz nos anos seguintes.

O baixo potencial produtivo fica ainda mais visível quando se levam em conta as deficiências educacionais, o escasso esforço de formação de mão de obra e o baixo investimento em inovação e em pesquisa científica e tecnológica. Há esforços notáveis de treinamento realizados pelo Sistema S e respeitáveis trabalhos científicos em universidades, mas com reflexos muito limitados no conjunto da produção. O agronegócio permanece como exceção notável, quando se trata de inovação e de ganhos de produtividade.

Não há como esperar mudanças enquanto perdurar um governo desastroso para a educação, para a ciência e para a definição de rumos para o sistema produtivo.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de outubro de 2021 

Representatividade de verdade

As distorções representativas exigirão uma ampla reforma política

O Congresso promulgou uma nova regra para o cálculo de distribuição dos recursos dos Fundos Partidário e Eleitoral. A partir de 2023, os votos a mulheres e negros serão contados em dobro. Segundo parlamentares que apoiaram o projeto, a medida será mais eficaz do que as atuais cotas de candidatos para aumentar a representação de mulheres e negros no Legislativo. O tempo dirá se estão certos. De todo modo, trata-se de uma iniciativa engenhosa que de pronto tem o mérito de focar em uma grave distorção, que exigirá uma ampla reforma política e, mais profundamente, uma transformação cultural para ser definitivamente vencida.

Uma democracia sem a participação de mulheres e negros é uma democracia pela metade. No caso do Brasil, até menos: 53% da população é de mulheres e 55% se declaram pretos ou pardos. Mas no Congresso os pretos e pardos ocupam apenas 17,8% das vagas e as mulheres, 15% – menos da metade da representação feminina média nos países da América Latina (31%), segundo o Programa para o Desenvolvimento da ONU.

Essa democracia mutilada e deformada não pode perdurar. O prêmio para os partidos pelos votos a mulheres e negros é um incentivo à busca de candidaturas entre minorias marginalizadas. O mérito desse propósito é indisputável. Mas, como todo experimento social, este está sujeito à checagem e revisão. Que, possivelmente, será esse o caso é algo que se depreende de certos vícios de origem.

Ações afirmativas forjam instrumentos para corrigir distorções representativas. Pela sua natureza, esses instrumentos deveriam ser provisórios. Quanto mais eficientes forem na correção das sub-representações, mais rápido se tornam obsoletos. Assim, sua própria eficácia deveria levar a reduções graduais e, idealmente, à sua extinção. A nova regra, contudo, foi constitucionalizada a partir de uma emenda, o que torna mais difícil alterá-la ou revogá-la.

Além disso, ela visa a um fim justo a ser atingido com meios impróprios. Os Fundos Eleitoral e Partidário não deveriam existir. Partidos políticos são entidades privadas e devem ser sustentados com recursos captados com seus correligionários. A garantia de que serão abastecidos pelos cofres públicos é uma das razões que distanciam os líderes das bases e os próprios partidos dos cidadãos. Em outras palavras, os fundos estão entre as maiores causas da má qualidade representativa no Legislativo. 

A nova regra de distribuição não legitima esses fundos, mas, ao utilizá-los para remediar um problema do qual eles são causa, ao menos os torna menos nocivos.

Mas a necessidade de uma reforma política que corrija as distorções representativas vai além da inclusão de minorias nos Parlamentos. A rigor, os mecanismos legais para corrigir esse tipo de sub-representação são subsidiários. As raízes dessas disparidades são sociais e culturais e elas só serão definitivamente erradicadas por uma transformação social e cultural. A normatização de ações afirmativas – considerando que não sirvam a propósitos sectários – pode incentivar a renovação da cultura política e do ideário cívico, mas, por si só, não é suficiente para consumá-la. E, se for consumada, a proporcionalidade representativa será, como deve ser, parte natural do processo democrático, sem necessidade de anteparos legais para estimulá-la ou forçá-la.

Mas há distorções diretamente causadas pela lei que só serão sanadas pela lei. A Constituição prevê que o número de deputados de cada Estado seja revisto periodicamente para garantir que sejam proporcionais à população. Mas essa distribuição não é atualizada desde 1994. Hoje, um deputado de Roraima representa 72 mil habitantes, enquanto um de São Paulo representa 650 mil, ou seja, um voto de Roraima vale nove vezes o de São Paulo.

Não surpreende que, segundo recentes pesquisas, o Congresso só perca para os partidos políticos como a instituição menos confiável para a população. A representatividade, por si só, não será suficiente para resgatar sua credibilidade. Mas é uma condição absolutamente necessária.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de outubro de 2021 

Um projeto para o País

Mais do que ser anti-Lula ou anti-Bolsonaro, o que faz falta é ter um projeto para o País. Essa é a melhor resposta contra as forças do atraso

Com recorde de desaprovação popular e sem ter o que apresentar como realização de seu governo, Jair Bolsonaro repete, com frequência crescente, o seu mantra: não fosse ele, o PT teria voltado ao poder. Na lógica bolsonarista, o governo não precisa apresentar nenhum resultado. O dever de Bolsonaro na Presidência da República se resumiria apenas e tão somente a manter Lula longe do Palácio do Planalto.

Essa tática, que parece tão resolutamente antipetista, é uma farsa, já que atende perfeitamente aos interesses do PT. A quase completa ausência de resultados do governo Bolsonaro é o cenário dos sonhos de Lula. Não há como negar. O desgoverno de Bolsonaro é caminho muito favorável para Lula voltar ao poder.

Mas o mantra bolsonarista – não fosse Bolsonaro, o PT teria voltado ao poder – tem ainda outra evidente contradição. Nenhum candidato é eleito apenas para ocupar um espaço vazio. Jair Bolsonaro não foi eleito para impedir que Lula, diretamente ou por meio de algum de seus postes, voltasse ao poder. Bolsonaro foi eleito – eis a verdade que o bolsonarismo tenta esconder – para governar.

É acintoso o desconforto de Bolsonaro e de seus apoiadores com essa realidade tão básica: um presidente da República é eleito para governar. Quando confrontados com a ausência de resultados do governo Bolsonaro, seus apoiadores logo revidam com a subespécie do mantra bolsonarista: apesar de tudo, em 2022, no segundo turno com Lula, voto é em Bolsonaro.

Deve-se ressaltar que a manobra também é comum entre os lulistas. Quando confrontados com o legado de corrupção, incompetência e negacionismo do PT, os lulistas logo revidam: mas, num segundo turno entre Lula e Bolsonaro, em quem você vota? E ficam indignados se o interlocutor mostra que o exercício dos direitos políticos numa democracia é necessariamente mais amplo do que essa asfixiante disjuntiva.

A transformação da política em mero embate de negativos é profundamente perniciosa ao País. A rigor, não se pode nem mesmo dizer que se trata de luta entre forças políticas antagônicas. É mero choque de rejeições: o anti-Lula versus o anti-Bolsonaro.

Nesse cenário – e ainda tendo um longo tempo até as eleições de 2022 –, é muito oportuna a observação feita por Alfredo Setubal, presidente da Itaúsa, ao tratar da relação entre o empresariado e as administrações petistas, em entrevista ao jornal O Globo. “Ele (Lula) gastou muito para eleger a Dilma, o déficit fiscal foi enorme. As consequências foram muito ruins e culminaram na recessão a partir de 2014 e no impeachment da Dilma. Mas, mais que anti-Lula, os empresários querem alguma coisa pró-Brasil. Eu não acho que é um sentimento anti-Lula, eu acho que é um sentimento de mudança. Esse modelo não está dando certo. Por isso se fala da terceira via”, disse Alfredo Setubal.

Lula e Bolsonaro almejam o mero choque de rejeições. Mas tal embate é rigorosamente insuficiente para o País superar a crise econômica, política, social e moral na qual foi mergulhado. A experiência de 2018 é bastante pedagógica. Elegeu-se um presidente da República cuja única proposta consistiu – e ainda consiste – em ser o anti-Lula, e ele vai entregar um Brasil em piores condições do que recebeu.

O bolsonarismo é terreno fértil para o lulopetismo, e vice-versa, porque os dois não vivem de governar, mas de vencer eleições a qualquer custo. É urgente, portanto, que as lideranças políticas, em sintonia com a sociedade civil organizada, apresentem propostas consistentes, aptas a enfrentar com responsabilidade os problemas do País.

Uma campanha nessas bases, protagonizada por candidatos genuinamente interessados em revigorar a democracia e unir os brasileiros em torno de ideias sólidas para tirar o Brasil do atraso, terá o condão de deixar evidente que Lula e Bolsonaro pouco têm a oferecer ao País além de cizânia e impostura. Nunca é demais lembrar que, nas duas disputas pela Presidência da República com Fernando Henrique Cardoso, Lula perdeu no primeiro turno.

Mais do que ser anti-Lula ou anti-Bolsonaro, o que faz falta é ter um projeto para o País. Essa é a melhor resposta contra as forças do atraso.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de outubro de 2021 

'Falar em socialismo e comunismo no Brasil é ignorância e paranoia', diz ex-preso político que resistiu com Brizola

O jornalista, advogado e escritor gaúcho Flávio Tavares sofreu na própria pele a virulência da tortura durante a ditadura militar no Brasil e no Uruguai.

Tavares: 'Ficam ressuscitando a paranoia do comunismo como se os comunistas tivessem governado o país'. (Getty Images)

Em 1969, foram choques elétricos num quartel do Exército do Rio de Janeiro. Mais tarde, naquele ano, ele fez parte do grupo de presos políticos enviados ao México em troca da libertação do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick, que tinha sido sequestrado. Menos de dez anos depois, em 1977, Tavares foi sequestrado pelo Exército uruguaio em Montevidéu. Naquela época, o regime ditatorial dominava em quase todos os países da América do Sul.

Antes de ser preso no Rio de Janeiro e exilado, tendo morado na Cidade do México, em Buenos Aires e em Lisboa, Flávio Tavares já havia participado, no Brasil, de um outro episodio histórico. Em 1961, ele resistiu, armado, a convite do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, contra a ameaça de golpe militar. Aquela resistência, opina, acabou adiando o golpe, que ocorreu em 1964.

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No Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, o jornalista, que era editor e repórter do jornal Última Hora, participou da iniciativa de Brizola de fazer uma campanha armada - conhecida como "Campanha da Legalidade" - em defesa da posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros.

Hoje, Tavares acha que a situação é diferente em relação àquela época. Mas diz estar preocupado.

Com vários livros publicados, entre eles, Memórias do Esquecimento e O dia que Getúlio matou Allende, Flávio Tavares participou da luta armada durante o regime militar brasileiro (1964-1985). Em entrevista à BBC News Brasil, aos 87 anos, ele disse que seu grupo não soube atrair o apoio popular: "Ficamos isolados e militarmente fomos derrotados. Mas não fomos derrotados historicamente. Acho que historicamente nós vencemos. Até porque hoje a ditadura é um cadáver insepulto. Mas é um cadáver."

De Porto Alegre, onde voltou a morar, Flávio Tavares fez críticas ao presidente Jair Bolsonaro mas também ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT.

Tavares chamou de "paranoia" e "ignorância" falar em socialismo e comunismo no Brasil, como setores do governo Bolsonaro e bolsonaristas argumentam ao condenar o possível retorno de Lula à Presidência.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Seu recente relato à Folha de S.Paulo traz detalhes pouco conhecidos, de que você era um dos cinco repórteres que estavam com o então governador Leonel Brizola quando houve resistência em defesa da democracia, em 1961. Você chegou a estar com uma arma e o próprio governador Brizola com uma metralhadora. Pode contar um pouco mais?

Flávio Tavares - Jânio Quadros renunciou numa sexta-feira, o sábado foi de muita expectativa. No domingo, Brizola anunciou pelo rádio que resistiria, (porque) houve o veto dos ministros militares, dizendo que Jango, o vice-presidente, era simpático ao comunismo e estava na China e não poderia assumir o posto.

Brizola se rebelou e disse que o Rio Grande do Sul iria resistir. E no domingo, sendo o segundo dia após a renúncia, nós esperamos o ataque do Exército à sede do palácio para calar o governador Brizola. E resistimos de arma na mão, com revólveres, e com esses revólveres nós iríamos enfrentar os tanques e as metralhadoras. Só o Brizola tinha uma metralhadora lá em cima, na residência dele no palácio. A Brigada militar do Rio Grande do Sul, com arma na mão no terraço do palácio e a própria população que começou a se alistar no recrutamento voluntário, os chamados comitês de resistência democrática que se estenderam por todo o Rio Grande do Sul e receberam a adesão de pelo menos dez mil pessoas.

Foi o grande movimento de mobilizações de massa contra o golpe. Foi a primeira vez que as massas, que o movimento popular derrotou um golpe de Estado armado, armado com armas, não pleonasmo. Houve uma rebelião para garantir a aplicação da Constituição. Algo insólito. As rebeliões são para quebrar o status quo (mas) essa foi uma rebelião para manter aCconstituição.

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Tavares: 'A pretendida reforma agrária foi usada como pretexto para o golpe de 1964' (Getty Images)

BBC News Brasil - Quem entregou as armas para vocês, cinco jornalistas?

Tavares - Aí já éramos mais de 50 pessoas, na tarde de domingo, quando esperávamos o ataque do Exército, que ainda obedecia às ordens de Brasília. Quem distribuiu (as armas)...foi a mando do governador Leonel Brizola por (parte dos) oficiais da Policia Militar do Rio Grande do Sul, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul. E a população inteira, homens e mulheres, andava armada nas ruas, o que mostrava a disposição de resistir. Retratava a realidade em si. E os sindicatos faziam treinamento corpo a corpo num campo de futebol aqui perto.

BBC News Brasil - Um Brasil bem diferente.

Tavares - Um Brasil bem diferente, politizado. Todas as forças políticas se uniram e houve um repúdio absoluto, total contra o golpe. O governo continuou insistindo de Brasília, os ministros militares replicaram e mandaram bombardear o palácio de governo que era a sede de todo o movimento. Havia um movimento dos sargentos, que na época era muito forte, que desarmou os aviões, furou os pneus e escondeu as bombas. Os aviões não podiam decolar e só por isso o palácio não foi bombardeado.


BBC News Brasil - No seu relato, você diz que essa atitude coletiva impediu que o golpe ocorresse em 1961 e acabou ocorrendo em 1964. Mas esse período de 1961 e 1964 foi muito turbulento…

Tavares - Sim, porque era um Brasil muito atrasado em termos de compreensão da realidade social. Se formavam cinturões de miséria nos grandes centros urbanos, fruto da concentração da propriedade das zonas rurais do país inteiro e sem que o país percebesse que era necessária uma reforma agrária urgente. A pretendida reforma agrária foi usada como pretexto para o golpe de 1964. (...) Hoje essa situação se repete de outra forma. Hoje há um atraso de certos setores que se incrustaram no governo pelo golpe popular e que ameaçam, diariamente, com a não realização das eleições em 2022. E sob qualquer pretexto e dirigidos pelo próprio presidente da República. Isso é gravíssimo.

BBC News Brasil - No dia Sete de Setembro passado chegou-se a temer a ruptura democrática, incluindo golpe militar. Como você viveu essa data?

Tavares - Vivi com muito pesar. Porque é incompreensível que o presidente da República saia de Brasília, no avião presidencial, e vá a São Paulo para participar de uma concentração, que já tinha começado na própria capital, Brasília. É uma manifestação afrontosa à Constituição e à democracia em si.

Tavares: 'Manifestações de Bolsonaro foram a semente para uma tentativa de golpe' (Getty Images)

BBC News Brasil - No seu livro Memórias do Esquecimento, você conta a experiência de ter sido torturado no Uruguai. Como você vê hoje que nas manifestações de apoio ao presidente há quem peça a volta do regime militar e até o AI5? Por que isso acontece?

Tavares - Antes (do AI5) era uma ditadura envergonhada, de 1964 a 1968. Uma ditadura que tinha vergonha de ser ditadura. E com o Ato 5, de 1968, ela já se instaura em sua plenitude, com torturas, assassinatos, censura à imprensa, o fim do habeas corpus. Só defende (a volta do AI5) quem não conhece a ditadura. A ditadura no Brasil não chegou a assanha da ditadura da Argentina ou do Chile. Mas foi um simulacro de democracia. Havia eleições para vereadores, para os prefeitos das pequenas cidades. Era uma ditadura que fazia eleições e simulava, principalmente para a opinião pública dos Estados Unidos, que tinha sido o grande patrocinador do golpe de 1964. E só quem não conhece aqueles anos terríveis é que defende a volta da ditadura.

BBC News Brasil - Você citou a Argentina, que realizou julgamento das 'juntas militares' no governo do presidente Raúl Alfonsín (1983-1989). Essa diferença (pelo fato de o Brasil não ter tido julgamento semelhante) pode, de certa forma, ter aberto o caminho para a chegada de Bolsonaro à Presidência, já que, por exemplo, quando ele era deputado defendeu torturador, no Congresso, e aquela cena seria difícil na Argentina. Qual é sua visão?

Tavares - A anistia que ocorreu no Brasil abrangeu a todos os setores, incluindo os torturadores, e abriu caminho para que as pessoas esquecessem o que aconteceu. A sua pergunta em si já é uma resposta. Os torturadores jamais foram julgados no Brasil, ao contrário do que ocorreu na Argentina onde até hoje, até um ano atrás, havia comandantes militares condenados à prisão, inclusive perpétua, pelas torturas e assassinatos que cometeram. (...)

O Brasil tem essa mania de tapar as coisas, como se a realidade do passado não existisse. Acho que esse é um hábito bem brasileiro. Até hoje não sabemos o que fizeram os bandeirantes, que são tratados como heróis quando foram também criminosos. Desbravaram os sertões brasileiros, cometeram atrocidades contra as populações indígenas, contra populações locais. Então, isso é uma mania viciosa brasileira, de tapar o sol com a peneira.

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BBC News Brasil - No relato à Folha você diz que a ditadura nos deixou um legado que perdura até hoje, que nos faz confundir democracia com eleição direta. Como você vê a democracia hoje no Brasil?

Tavares - Acho que por um lado se diz que a democracia está consolidada porque as instituições são fortes. Mas as instituições não são uma rocha, uma pedra. As instituições são as pessoas que as compõem. E as pessoas estão cada vez mais desconectadas da realidade brasileira. Até hoje o governo não fez nenhum plano, nenhum programa, nenhum planejamento para vencer as dificuldades. A fome continua se alastrando no Nordeste e também no Sudeste e no Sul do Brasil… Cada vez mais as cidades brasileiras têm mais pessoas dormindo nas ruas. Nas grandes e até pequenas e médias cidades. E não há planos para educação e para empregos para as pessoas que dormem na rua, comem na rua e 'descomem' na rua.

Tavares: 'Só quem não conhece aqueles anos terríveis é que defende a volta da ditadura' (Getty Images)

BBC News Brasil - Por que você foi da luta armada? Hoje, aos 87 anos, o que você pensa daquela época em que você tinha vinte ou trinta e poucos anos?

Tavares - Bom, naquela época a luta armada nos parecia uma solução para nos opormos às armas que nos tinham calado. Hoje eu tenho uma outra concepção. Acho que nós ficamos isolados. A realidade mostrou que nós não soubemos nos comunicar com a população. Nós ficamos combatendo a ditadura de forma isolada. Por isso, a ditadura, com o suporte tecnológico que tinha... E nós não tínhamos nada.

(...) Mas nos parecia, de uma ótica que eu acho hoje que foi equivocada, que só podíamos nos opor às armas do poder militar pelas armas do poder popular. Mas não soubemos, não tivemos condições de nos fazer entender pelas grandes massas. Ficamos isolados e militarmente fomos derrotados. Mas não fomos derrotados historicamente. Acho que historicamente nós vencemos. Até porque hoje a ditadura é um cadáver insepulto. Mas é um cadáver.

BBC News Brasil - Pode explicar melhor?

Tavares - Hoje sabemos que a ditadura não venceu. Venceu em termos militares, pelo horror das prisões, da tortura e pela censura à imprensa. Nesse sentido, a ditadura venceu (durante o período ditatorial). Mas hoje temos uma grande imprensa livre e em defesa da Constituição.

BBC News Brasil - Como você vê a declaração do presidente que entre o feijão e o fuzil, o fuzil seria mais importante?

Tavares - Isso é um absurdo porque é a negação da própria vida, da própria existência. Mas esses disparates estão muito comuns no presidente da República neste momento. Encaram o país como se fosse uma vassoura no quintal, que se varre e está tudo solucionado. (...) O país está sem saída neste momento, em termos políticos. Os partidos estão desacreditados, as esperanças (oferecidas) se transformaram em um grande embuste. Uma roubalheira enorme durante o governo de Lula, durante o chamado governo do Partido dos Trabalhadores...

Tavares: 'Lula implantou a desfaçatez' (Getty Images)

BBC News Brasil - Naquele episódio de 1961, quando Brizola tomou a iniciativa da 'Campanha da Legalidade', era uma defesa contra um possível avanço do Exército. Qual a diferença, na sua visão, do Exército daquela época e de hoje?

Tavares - Naquela época, o Exército, do meu ponto de vista pessoal, era muito mais aberto do que hoje é. Não tinha sofrido ainda os 21 anos da ditadura militar em que as escolas militares adotaram o sistema norte-americano de educação, na caserna e fora da caserna.

Vou citar um exemplo. No Rio Grande do Sul (em 1961), o chamado Exército pelas forças dos Estados do Sul, cuja sede é em Porto Alegre, ficou a favor da Legalidade. Mas a pressão veio debaixo. Em Porto Alegre, os capitães que comandavam as chamadas companhias, jargão militar, foram ao gabinete do comandante e disseram que estavam a favor do respeito à Constituição e da posse do vice-presidente Joao Goulart. Isso foi um motivo fundamental para que o Exército, que hoje se chama Comando Militar do Sul, ficasse a favor da Legalidade de 1961.

E hoje a educação militar não mudou. Ao contrário do que houve na Argentina, por exemplo, onde as academias militares foram modificadas a partir do governo Alfonsín. Não sei como estará hoje. Mas aqui não, não houve isso. Continuou a educação imposta durante os 21 anos da ditadura militar. Isso é fundamental, mas as pessoas não dão muita importância.

BBC News Brasil - Você entende que aquela união da população em defesa da democracia, que ocorreu em 1961, e que na sua visão contribuiu para adiar o golpe de 1964, não ocorre hoje. No entanto, as manifestações têm sido frequentes no Brasil, ou a favor ou contra o governo Bolsonaro. Qual é a diferença entre os dois períodos - 1961 e agora?

Tavares - A diferença é que as manifestações contra o Bolsonaro, por exemplo, continuam divididas. A chamada esquerda, capitaneada pelo PT, e que eu acho que não tem nada de esquerda, não participou das manifestações agora, semanas atrás em São Paulo, e que foram feitas pelos dissidentes do bolsonarismo.

(...) Para mim, o PT tem características de divisionismos. O que não for uma iniciativa dele, PT, 'não vale'. Então, ficaram setores (de ex-)bolsonaristas reunindo dez mil pessoas nas ruas de São Paulo e contra o Bolsonaro. E o PT desdenhou.

BBC News Brasil - Você é crítico de Bolsonaro e também de Lula?

Tavares - Sou sim, muito crítico. Acho que Lula implantou a desfaçatez. Lula disse, textualmente, 'nunca os bancos lucraram tanto quanto na minha gestão como presidente'. Os bancos representam o setor financeiro. As instituições bancárias são o tem de mais maligno no capitalismo...

BBC News Brasil - Como você fará na eleição de 2022, se a disputa for entre Bolsonaro e Lula?

Tavares - Mas há um movimento muito grande, que começa a crescer no Brasil, pela terceira via. (...) Eu, pessoalmente, acho que o grande candidato seria o (ex-governador e ex-presidenciável) Ciro Gomes. Ele é um homem lúcido que tem plano de governo e uma visão do que seria o país tanto nas áreas econômica como a social.

BBC News Brasil - Você diz que o Brasil busca reinventar uma espécie de nova Guerra Fria (de oposição entre capitalismo e comunismo). No Sete de Setembro, o ministro-chefe do Gabinete Institucional da Presidência, general Augusto Heleno, disse, nas redes sociais, que eles, bolsonaristas, estão tentando evitar a volta da socialismo. Qual é a sua opinião?

Tavares - Pois é. A volta do socialismo, a volta do comunismo.... Mas o Brasil nunca foi socialista. Tentou reformas sociais muito tênues, necessárias para a estabilidade do próprio país e da própria população. As reformas sociais implementadas a partir do governo (José) Sarney... E nunca foi estabelecido o socialismo. Isso é um absurdo. Reflete, inclusive, a ignorância do setor governamental atual do Brasil. O general ressuscitando a paranoia do comunismo, como se os comunistas tivessem governado o país, tivessem implementado o socialismo. Isso nunca ocorreu.

(...) Eu vejo o Brasil muito confuso, sem que as pessoas saibam para onde ir. Os partidos políticos não têm significado nenhum. Ninguém morre por qualquer partido político aí, nem põe o corpo para defender qualquer partido político. Viraram aglomerados de pessoas em busca do poder.

Tavares: 'Eu vejo o Brasil muito confuso, sem que as pessoas saibam para onde ir' (Getty Images)

BBC News Brasil - Essa situação que você descreve hoje é resultado da própria trajetória brasileira? A situação em 1961, o golpe de 1964, os 21 anos de ditadura militar, o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff...

Tavares - Eu acho que é. É uma decepção geral e que criou a confusão. O Brasil hoje não está em guerra, em luta, mas está confuso. E a confusão é o detalhe mais perigoso da história. As pessoas não saberem para onde ir. O povo chegou em uma encruzilhada em que há vários rumos e não sabe para qual seguir porque todos levam ao mesmo desengano. É a situação atual que eu vejo hoje no Brasil, pelo menos em termos muito pessoais.

BBC News Brasil - Você ficou com alguma sequela daqueles anos de tortura?

Tavares - Sequelas aparentes, não. Mas eu fui pendurado, torturado, no Uruguai, onde nunca morei. Estava em Montevidéu numa missão humanitária para libertar um jornalista que tinha sido preso por uma matéria que tinha escrito no meu jornal e fui sequestrado e sofri muita tortura no Uruguai.

A única sequela visível com que fiquei foi da 'penduração'. Tenho meu lado esquerdo permanentemente dolorido. Até já me habituei à dor em si. Consigo suportá-la. Faço pilates e fisioterapia e isso atenua. Agora, a grande sequela com que eu fiquei foi desaparecendo aos poucos. Quando eu ouvia um carro da polícia eu ficava nervoso. Mas eu tenho uma força de vontade bastante grande. No Uruguai, fiquei 26 dias algemado e de olhos vendados. Eu comia de olhos vendados e algemado. Dormia de olhos vendados e algemado. Foram 26 dias. E depois mais cinco meses e meio preso.

BBC News Brasil - O que você diria às pessoas que defendem o AI-5 e a volta da ditadura?

Tavares - Eu diria que só se defende a volta da ditadura quem desconhece a ditadura. Desconhece o horror da ditadura, seja de esquerda, de direita. A ditadura em si é uma afronta à condição humana. O torturador é um psicopata.

Marcia Carmo, de Buenos Aires para a BBC News Brasil, em 2 outubro 2021

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Merval: Bolsonaro já não governa mais, é pato manco

O presidente Bolsonaro já não governa mais. Os vetos derrubados nos últimos dias o consolidam na posição de presidente mais derrotado pelo Congresso nos últimos 20 anos. 

Na questão dos preços da Petrobras para gasolina, óleo diesel e gás, Bolsonaro tenta há meses encontrar uma maneira de reduzir os aumentos constantes. 

E agora tem de enfrentar o general Silva e Luna, colocado por ele na presidência da estatal no lugar de Roberto Castello Branco justamente para estancar a alta dos preços.

O general interventor assumiu completamente a tese técnica da Petrobras e, apesar das reclamações de Bolsonaro, anunciou nos últimos dias mais aumentos, na mesma direção da diretoria anterior. A autonomia do Banco Central foi outra “derrota” do governo, embora tenha sido dele a proposta. O presidente Roberto Campos Neto, usando a liberdade que lhe deu a legislação, ficou mais à vontade para criticar a política econômica do governo. Como quando, recentemente, disse que se percebe “o aumento da incerteza do momento presente”, referindo-se à crise deflagrada pelo presidente nos atos de 7 de setembro.

O acordo feito pelo presidente Bolsonaro com o Centrão, se lhe trouxe a segurança de que os pedidos de impeachment continuarão na gaveta do presidente da Câmara, Arthur Lira, também tirou-lhe o controle do Congresso, que passou integralmente para os partidos que formam a maioria. A base governista está disposta a superar a impopularidade crescente de Bolsonaro em ano eleitoral aprovando medidas que desarranjam o equilíbrio fiscal ou o jogo eleitoral. O valor e a abrangência do novo Bolsa Família deverão ser bem maiores do que o equilíbrio fiscal recomenda, mas os efeitos eleitorais serão grandes.

Não há ideologia predominante na derrubada de vetos, tanto quando os congressistas votam a seu favor, como no caso das federações partidárias que preservarão pequenos partidos diante da cláusula de barreiras, quanto no caso da Lei de Abuso de Autoridade, em que o Congresso recuperou medidas importantes que haviam sido cortadas pelo presidente, como “constranger presos a produzir provas contrárias a si mesmo” ou “negar acesso aos autos da investigação ou ao inquérito”.

Nos dois casos, houve ideologia por parte do presidente Bolsonaro, que vetou as federações “para derrotar os comunistas”, como explicou o deputado Eduardo Bolsonaro, e trechos da Lei de Abuso de Autoridade a pedido de policiais.

A indicação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça para a vaga de Marco Aurélio Mello no Supremo Tribunal Federal (STF) é outro exemplo de como Bolsonaro está enfraquecido no Congresso. Apenas um senador, Davi Alcolumbre, presidente da Comissão de Constituição e Justiça, trava a sabatina há meses, fazendo campanha aberta contra o nomeado.

A tentativa é fazer com que Bolsonaro retire a indicação de Mendonça para escolher outro nome, do agrado de seu grupo político, como o procurador-geral da República, Augusto Aras — cuja sabatina Alcolumbre foi rápido em marcar —, ou o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, que, aliás, é evangélico. Ao afirmar, dias atrás, que nomearia outro evangélico se Mendonça fosse recusado, o presidente fortaleceu a esperança de que possa nomear Martins para a vaga, o que só reforçou a manobra de Alcolumbre.

Além das dificuldades normais da indicação, Martins tem uma que pode ser definitiva: teria de ser indicado e sabatinado até 7 de outubro, quando faz 65 anos, idade-limite para assumir o cargo. Alcolumbre, aliás, está sofrendo um desgaste pessoal grande por não ter nenhum motivo relevante para adiar a sabatina, apenas seu desejo pessoal.

A situação está tão confusa que um dos argumentos mais usados contra André Mendonça é que ele levará de volta ao plenário do Supremo a maioria de apoiadores da Operação Lava-Jato, pois teria boa relação com os procuradores de Curitiba. Bolsonaro, que é mais de falar que de trabalhar, tornou-se um “pato manco” em exercício, como se chama, em linguagem política, quem tem a expectativa cada vez menor de poder futuro.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é comentarista de política na GloboNews e no jornal O Globo. Publicado originalmente em 30/09/2021 • 04:32 hs.

Anticomunismo, Pinochet, fake news e homofobia: veja o que Jair Bolsonaro compartilhou pelo WhatsApp na última semana

O GLOBO teve acesso a mensagens enviadas nos últimos dias pelo presidente a seus contatos no aplicativo, que incluem notícias falsas sobre vacinação de jovens, vídeo elogioso ao ditador chileno, piadas preconceituosas e ataques a adversários

Vídeo compartilhado pelo presidente Jair Bolsonaro no WhatsApp Foto: Reprodução

Vídeos com elogios ao ditador chileno Augusto Pinochet, disseminação de fake news sobre a vacinação de jovens, além de piadas homofóbicas e um interminável arsenal de sua já conhecida sanha anticomunista. O GLOBO teve acesso a mensagens de WhatsApp remetidas pelo número pessoal de Jair Bolsonaro a pessoas próximas que expõem como o presidente da República tem usado o aplicativo de mensagens ao longo dos últimos dias.

O material foi enviado por Bolsonaro entre quinta-feira da semana passada e ontem por meio de um número adquirido recentemente. Diferentes pessoas do círculo do presidente receberam o mesmo conteúdo, inclusive outras importantes autoridades da República, o que indica o uso de uma lista de transmissão.

Em uma mensagem de anteontem, às 20h50m, Bolsonaro usou o aplicativo para espalhar fake news e desincentivar a vacinação ao escrever: “Jovens morrendo com a Pfizer.” No mesmo momento, ele compartilhou um vídeo com os dizeres: “Riscos — Precisam investigar! Jovens morr3ndo de parada card1aca (sic)”. No vídeo, também há a inscrição “Bolsonaro tem razão”. O material reproduz uma fala da comentarista Cristina Graeml, do programa “Os Pingos nos Is”, da rádio “Jovem Pan”, na qual ela cita cinco casos de adolescentes que faleceram recentemente, lançando dúvidas sobre a aplicação de doses da Pfizer. Duas das mortes citadas, no entanto, eram de adolescentes que sequer haviam sido vacinados. O texto foi disparado por Bolsonaro justamente no dia em que o governo voltou atrás e decidiu liberar a imunização de adolescentes, desaconselhada pelo Ministério da Saúde na semana anterior .

Uma das principais linhas de investigação da CPI da Covid é a demora na compra pelo governo federal da vacina da Pfizer. No total, 86 e-mails enviados pela farmacêutica ficaram sem resposta do Ministério da Saúde.

Em outra mensagem, disparada na última quinta-feira, Bolsonaro postou vídeo elogioso ao ditador chileno Augusto Pinochet e deu a entender que, se a esquerda voltar ao poder, o Brasil terá um destino preocupante.

“Quando os chilenos verem (sic) o que é o comunismo, quando entenderem as trapaças, as falácias, como estão enganando, vão se dar conta de que este governo tem razão”, diz a legenda em português do discurso de Pinochet compartilhado por Bolsonaro. Em seguida, aparecem imagens de protestos recentes no Chile, antes de o filmete retornar a Pinochet, que finaliza: “Isso nunca foi uma ditadura, senhores. Esta é uma ditabranda (ditadura branda). Mas, se necessário, teremos que apertar a mão, porque temos que salvar primeiro o país e depois olharemos para trás”.

O vídeo de Pinochet compartilhado por Bolsonaro vem acompanhado da seguinte mensagem, que leva o selo de “encaminhada”: “Pinochet/ Chile/ 1982. Cuba, Venezuela, Argentina, B...(?)”.

O presidente da República também disseminou homofobia. Na segunda-feira, ele compartilhou um conteúdo que mostra pessoas aparentemente num protesto por direitos da comunidade LGBT queimando uma bandeira do Brasil, acompanhado da legenda: “Essa turma toda quer ‘o cara’ voltando ao poder”.

Não foi a única mensagem preconceituosa. Na madrugada do último domingo, Bolsonaro remeteu um vídeo no qual o músico Rogério Skylab diz ter tido relações homossexuais sem, no entanto, considerar-se gay: “Já dei três vezes, mas sou hétero”. Logo depois, Bolsonaro completa: “Até três vezes pode.”

Bolsonaro também fez, em uma mesma postagem, críticas a Lula e à China. O presidente mandou ontem aos seus contatos um vídeo com a inscrição: “Lula, (sic) corrompeu-se para mentir ao mundo que a China é um ‘exemplo’”. Nesse vídeo, ao mesmo tempo em que Lula diz na parte superior da tela que a China é “um exemplo de desenvolvimento para o mundo”, a metade de baixo mostra cachorros mortos sendo comercializados como alimentos, além de uma criança levando uma surra de um suposto professor chinês dentro de sala de aula.

— Constataram coisas absurdas. Anteontem à noite, o presidente usou o aplicativo para espalhar fake news e desincentivar a vacinação. Vejam o que escreveu: "jovens morrendo com a Pfizer" — disse Humberto Costa.Ele também fez um referência à carta de recuo assinada em 8 de setembro por Bolsonaro, com a ajuda do ex-presidente Michel Temer, após ter feito ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) nas manifestações do Sete de Setembro.— É a demonstração de que toda aquela encenação com o ex-presidente Michel Temer é para enganar a população. O velho Bolsonaro está de volta — afirmou Humberto Costa.

Paulo Cappelli, em 30/09/2021 - 04:30 / Atualizado em 30/09/2021 - 11:11 hs

CPI da Covid: e-mails revelam que governo fechou compra da Covaxin após laboratório avisar que não cumpriria prazo

Empresa descumpriu o contrato, a vacina nunca conseguiu a aprovação da Anvisa e a CGU recomendou que o negócio fosse cancelado

Laboratório indiano Bharat Biontech que fabrica a vacina Covaxin Foto: Divulgação

E-mails apreendidos pela CPI da Covid na sede da Precisa Medicamentos e obtidos pelo GLOBO mostram que o laboratório indiano Bharat Biotech, fornecedor da Covaxin, alertou a empresa brasileira de que não teria como cumprir o cronograma de entregas oferecido ao Ministério da Saúde. Ainda assim, o contrato foi fechado em 25 de fevereiro com um compromisso além da capacidade da Bharat.

A Precisa descumpriu o contrato, a vacina nunca conseguiu a aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a CGU (Controladoria-Geral da União) recomendou que o negócio, investigado na CPI da Covid, fosse cancelado, o que acabou acontecendo. O órgão encontrou indícios de falsificação em documentos apresentados pela Precisa, o que a empresa atribui aos parceiros indianos.

Procurada, a Precisa Medicamentos não comentou até a publicação desta reportagem.

Em 4 de fevereiro, a diretora da Precisa Medicamentos Emanuela Medrades mandou um e-mail aos indianos prevendo a entrega de 20 milhões de doses em 90 dias após a assinatura do contrato. No dia seguinte, veio a resposta: "Estamos abertos a aumentar a quantia de 12 para 20 milhões de doses. Mas o cronograma de entrega que foi pedido não é viável para nós", diz Apoorv Kumar, funcionário da Bharat. Depois, ele pede para atrasar a entrega em "alguns meses".

Em 25 de fevereiro, o contrato entre a Precisa Medicamentos e o governo brasileiro é assinado com um cronograma muito mais veloz do que aquele que a Bharat dizia ser viável em seus e-mails. O prazo contratado pela Saúde foi de 20 milhões de doses em 70 dias após a assinatura do contrato, em 5 parcelas de 4 milhões de doses. Ou seja, pouco mais de dois meses de prazo.

Mesmo após a Precisa Medicamentos firmar um compromisso com o governo em um contrato de R$ 1,6 bilhão, a Bharat seguia frisando que não conseguiria cumprir o calendário. "A proposta indica um cronograma de entrega que não está alinhado com o nosso compromisso com o governo do Brasil. Se puder esclarecer, nós agradecemos", escreveu Apoorv Kumar em 26 de fevereiro.

O prazo não foi cumprido, nenhuma vacina foi importada e, hoje, o contrato está cancelado.

Documentos apreendidos pela Polícia Federal na sede da Precisa Medicamentos em São Paulo mostram ainda que a compra foi fechada pelo governo brasileiro sem um contrato formal entre a Precisa Medicamentos e o laboratório indiano Bharat Biotech, como mostrou o "Jornal Nacional" na semana passada.

Nos materiais apreendidos pela PF, foi encontrado apenas um rascunho de um contrato de distribuição da vacina. A comissão prevista inicialmente para a Precisa era ficar com US$ 2,25 dos US$ 15 que custavam cada dose do imunizante. Ou seja, a intermediária receberia R$ 240 milhões do R$ 1,6 bilhão que o Ministério da Saúde se comprometeu a pagar.

Natália Portinari para O Globo, em 30/09/2021 - 09:08 / Atualizado em 30/09/2021 às 09:55

Inflação desorienta mercado e preço do mesmo item chega a variar mais de 500%

Levantamento das cotações de 15 produtos de consumo básico revela diferenças de até 578%; especialistas atribuem essa disparidade à incerteza dos estabelecimentos quanto à economia e reforçam a importância de comparar concorrentes.

A disparada da inflação, que bateu 10% em 12 meses até setembro, segundo o IPCA-15, trouxe um problema adicional para os brasileiros na hora de ir às compras: uma grande variação de preço de um mesmo produto entre estabelecimentos diferentes.

Levantamento das cotações de 15 itens de consumo básico, entre alimentos e produtos de higiene e limpeza, revela diferença de até 578% no preço do mesmo creme dental. A embalagem do produto com 90 gramas, da mesma marca, foi encontrada pelo menor preço de R$ 1,18 e o maior, de R$ 8.

Discrepâncias na casa de três dígitos entre a maior e a menor cotação de um mesmo produto – algo que não era incomum encontrar antes do Plano Real – também foram constatadas no leite de caixinha (408,3%), sabonete (328,3%), macarrão (184,3%), sal (155,2%), feijão (126,8%), café (106,7%) e detergente líquido (104,7%). O óleo de soja e o arroz apareceram na pesquisa com variações de 69,5% e 70,7%, respectivamente.

Assaí

Grande variação nos preços é resultado das estratégias escolhidas pelos varejistas, aponta especialista. Foto: Ari Ferreira/Estadão

O levantamento, feito a pedido do Estadão pelo economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Fábio Bentes, mostra que todos os 15 itens registraram variações significativas. A diferença mais modesta, de 20,8%, apareceu no pão de forma industrializado, cujo maior preço foi R$ 7,20 e o menor, de R$ 5,96.

Os preços foram pesquisados na última sexta-feira, por meio da ferramenta do Google Shopping Brasil. Entre os critérios usados para fazer o levantamento, de âmbito nacional e que incluiu grandes varejistas, estão o fato de o produto ser representativo do consumo básico do brasileiro e estar disponível em pelo menos dez lojas físicas ou virtuais.

Inflação alta amplia as diferenças

Variação entre o maior e o menor preço de produtos básicos*

Valores em reais

Produto Menor preço Maior preço variação

Creme dental Colgate Máxima Proteção 90 gramas 1,18 8,00

578,0%578,0%

Leite integral UHT Piracanjuba 1 litro 1,09 5,54

408,3%408,3%

Sabonete Phebo Toque de Lavanda 90 gramas 2,89 9,20

218,3%218,3%

Macarrão de arroz espaguete sem glúten Urbano 500 gramas 2,67 7,59

184,3%184,3%

Sal Lebre refinado 1  quilo 1,45 3,70

155,2%155,2%

Feijão carioca Camil 1 quilo 6,39 14,49

126,8%126,8%

Café Pilão Tradicional 500 gramas 10,69 22,10

106,7%106,7%

Detergente Limpol neutro 500 mililitros 1,49 3,05

104,7%104,7%

Farinha de trigo Renata 1 quilo 5,49 9,49

72,9%72,9%

Sabão em pó Omo Lavagem Perfeita 800 gramas 7,99 13,69

71,3%71,3%

Arroz Tio João Tipo 1 1 quilo 5,29 9,03

70,7%70,7%

Óleo de soja Liza 900 mililitros 6,99 11,85

69,5%69,5%

Margarina Qualy com sal 500 gramas 6,01 9,99

66,2%66,2%

Açúcar refinado Da Barra 1 quilo 3,79 5,77

52,2%52,2%

Pão de forma Bauducco Tradicional 400 gramas 5,96 7,20

20,8%20,8%

*Produtos idênticos, com o mesmo código de barras, marca, embalagem e especificações

Tabela: Estadão  Fonte: pesquisa realizada pela CNC em 24/09/2021,  com base nos dados da Google Shopping Brasil  Obter dados  Criado com Datawrapper

“As variações entre o maior e o menor preço de um mesmo produto tendem a aumentar geralmente quando as expectativas de inflação são divergentes”, afirma Bentes.

No momento atual, em que a inflação em 12 meses passa de 10%, e as expectativas de inflação, segundo o Boletim Focus do Banco Central, são crescentes por 25 semanas seguidas (cerca de seis meses), estabelecer um preço é uma tarefa bastante complexa, diz Bentes.

“A dispersão entre o maior e o menor preço é alimentada pelas expectativas de inflação maior, porque, quando os agentes econômicos vão formar preço, eles têm de levar em consideração o custo da energia, a negociação com o fabricante e também a expectativa de inflação futura para poder resguardar a sua margem”, argumenta.

Essa grande variação de preços é resultado das estratégias escolhidas pelos varejistas. “Não são todos os varejistas que vão colocar gordura nos preços, há aqueles que vão manter preço baixo para tentar ganhar no volume de venda.” O resultado dessas estratégias é uma grande dispersão de preços.

Pandemia

Além da grande volatilidade nas expectativas de inflação, o economista Fábio Silveira, sócio da consultoria MacroSector, atribui essa grande dispersão entre preços à desorganização das cadeias de produção por conta da pandemia.

“Desde março do ano passado, o processo de produção está volátil e desorientado”, lembra o economista. Nesse período, as linhas de produção foram interrompidas e depois retomadas, com insumos comprados por diferentes preços no mercado doméstico e internacional. “Há uma descoordenação imensa não só por causa dos ciclos de produção, mas também por custos de matérias-primas, variação de câmbio e giro de estoques”, observa Silveira.

Na sua avaliação, a economia mundial enfrenta uma grande irracionalidade nas cadeias produtivas e nos processos de formação de preços, sendo pior o quadro no Brasil. Silveira acredita que serão necessários até dois anos para que o equilíbrio seja restabelecido e os preços de um produto comecem a convergir para um mesmo patamar.

A partir do levantamento da CNC, a reportagem escolheu seis itens – arroz, feijão, açúcar, café, leite e óleo de soja – e calculou qual seria o custo dessa cesta pelo maior e pelo menor preço. As contas do valor da cesta foram feitas considerando a quantidade consumida por uma família de quatro pessoas, critério seguido pela Fundação Procon de São Paulo.

A cesta com os produtos mais caros custaria R$ 428,98, mais do que o dobro do valor da mesma cesta com os produtos mais baratos (R$ 204,92).

Bentes lembra que a alimentação no domicílio representa 25% do orçamento do brasileiro comum, segundo Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE. 

Hoje, a internet é uma ferramenta importante para pesquisar preços. “Ficou mais fácil para quem tem acesso à informação”, afirma o economista.

Márcia De Chiara, O Estado de S.Paulo, em 30 de setembro de 2021